Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar a responsabilidade das instituições bancárias por danos materiais sofridos pelo cliente em face do golpe do motoboy. Neste golpe, estelionatários munidos de dados pessoais, através de ligação telefônica, fazem a vítima acreditar que a ligação é do próprio banco; informada sobre uma suposta fraude, a vítima é induzida a fornecer a senha e entregar o cartão de crédito e/ou débito a um motoboy que o retira no endereço da pessoa; com isto em mãos, os golpistas fazem uma série de transferências, causando danos materiais. Observar-se-á analiticamente, pelo método dedutivo, a legislação, doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo para, ao fim, verificar se as instituições bancárias são civilmente responsáveis pelos danos materiais sofridos pelos consumidores decorrentes do supracitado golpe.
Palavras-chave: consumidor, responsabilidade civil, responsabilidade das instituições bancárias.
Abstract: The aim of this article is to analyze the responsibility of banking institutions for material damages suffered by the customer due to the courier scam. In short scammers who accessed personal data, through a telephone call, make the victim believe that the call is from the bank itself; informed of a fake fraud, the victim is induced to provide the password and hand over the credit card with or without debit option to a courier who picks it up at the person's address; with this in hand, the scammers transfer money causing material damage. The legislation, doctrine and jurisprudence of the Superior Court of Justice and the Court of Justice of São Paulo will be observed with the deductive method to verify the civil liability of banking institutions for damages to their costumers due to the mentioned scam.
Keywords: consumer, civil liability, banking institutions liability.
SUMÁRIO: 1. Introdução. - 2. A relação de consumo estabelecida entre banco e cliente. - 3. A responsabilidade do fornecedor de serviços. - 4. Culpa exclusiva e concorrente do consumidor. - 5. Considerações finais. - 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A vida em sociedade: disposição natural do ser humano por sua natureza política[1], ou uma necessidade para escapar de um insustentável estado de insegurança, em busca de satisfação e preservação própria, como intui Hobbes[2]; seja como for, no estágio de coexistência social estabelecida, a humanidade encontrou na troca a forma para adquirir o necessário à subsistência e satisfação de desejos.
Em pequenas comunidades, com baixa complexidade, o sistema de trocas pode funcionar de forma relativamente satisfatória. Neste sentido, Harari postula por uma desnecessidade até do direito em grupos pequenos[3]. De todo modo, a fim de que uma troca ocorra, ambas as partes envolvidas na transação devem querer o que é oferecido. Assim, com o aumento da complexidade, a inviabilidade torna-se patente e insustentável, tanto em razão das demandas, quanto das qualidades e quantidades do que se troca.
A fim de superar este entrave, cunhou-se um denominador comum: o dinheiro, “uma garantia de permutas no futuro”[4]; o meio universal de trocas, cuja qualidade básica, conforme Harari, é a aceitabilidade universal[5]. Assim, com a introdução do dinheiro para entabular negócios em geral, o sistema de trocas libertou-se dos primeiros freios.
Todavia, o estabelecimento do dinheiro para trocas não foi o ponto final; o desenvolvimento do sistema de crédito, possibilitando compras sem a existência de pecúnia, tanto em espécie no momento, quanto reservada em outro lugar, fomentou um consumo superior, subvertendo a lógica originária capitalista de primeiro poupar, para então comprar, em favor de comprar e depois se preocupar com o pagamento.
No Brasil, o sistema de crédito é fortemente explorado por instituições bancárias, que oferecem este serviço a seus clientes, em especial por meio de cartões numerados, com nome do cliente, data de validade e um código de segurança, que possibilitam transações através do uso de uma senha numérica pessoal.
Ao passo que o avanço tecnológico permitiu novas formas de transação em tempo real sem o uso de papel moeda, oportunizou novos tipos golpes. Dentre os golpes, hodiernamente, destaca-se o “golpe do motoboy”, no qual, por meio de ligação telefônica, estelionatários, munidos de dados pessoais, fazem a vítima acreditar que a ligação é do próprio banco e estão falando com um de seus representantes; informada sobre uma suposta fraude, a vítima é induzida a fornecer a senha e entregar o cartão de crédito e/ou débito a um motoboy que o retira no endereço da pessoa; com isto em mãos, os golpistas fazem uma série de transferências, como compras online ou em estabelecimentos comerciais físicos, bem como solicitam empréstimos, bem como saques, causando danos materiais à vítima.
Deve-se sublinhar que, a fim de combater golpes em geral, instituições bancárias tendem a apostar em publicidade informativa e contatos diretos com os seus clientes, a fim de evitar transtornos.
Assim, por meio do presente artigo, partindo do arcabouço legislativo, doutrinário e jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça de São Paulo, analisar-se-á, pelo método dedutivo, a responsabilidade civil das instituições bancárias pelos danos sofridos por clientes vítimas do golpe do motoboy; observar-se-á, posteriormente, a existência, ou não, de excludentes de responsabilidade por culpa exclusiva do consumidor, bem como eventual mitigação por culpa concorrente, a fim de que se possa compreender qual a responsabilidade das instituições bancárias, seus limites e eventuais excludentes.
2. A RELAÇÃO DE CONSUMO ESTABELECIDA ENTRE BANCO E CLIENTE
Preliminarmente, mister observar, brevemente, a relação jurídica que instituições bancárias estabelecem com seus clientes.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), promessa da Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, inciso XXXII), introduziu-se formalmente o conceito de fornecedor, definindo o prestador de serviço como tal (artigo 3º); conforme Theodoro Júnior, o critério para caracterização é o exercício de atividade profissional[6]. Dentro dos serviços, há expressamente menção à atividade bancária e de crédito (artigo 3º, §2º).
Neste sentido, em 2004, por meio da súmula 297, o Superior Tribunal de Justiça confirmou o determinado pelo Código de Defesa do Consumidor com relação a sua aplicabilidade às instituições bancárias.
O assunto, ainda, foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.591, em face do fato de que a Constituição Federal, em seu artigo 192, supostamente exigiria a edição de lei complementar para regular o tema e o Código de Defesa do Consumidor é uma lei ordinária; no acórdão, aclarou-se que a constituição abrange tão-somente a regulamentação da estrutura do sistema financeiro, aplicando-se, por conseguinte, o Código de Defesa do Consumidor às instituições bancárias[7].
3. A RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR DE SERVIÇOS
Inicialmente, é fundamental notar que inexiste, em condições lícitas, negócio sem risco. A existência da pessoa jurídica de responsabilidade limitada é sintoma deste aspecto basilar. Ciente do risco negocial, o explorador de atividade econômica almeja um lucro compensatório, de modo que a quantificação do risco faz parte da formação do preço final do serviço do produto fornecido ou serviço prestado. Logo, o consumidor já é, mesmo que indiretamente, afetado financeiramente pelo risco.
Por outro lado, impende notar, o fornecedor encontra-se, invariavelmente, em posição de vantagem ante o consumidor. O conhecimento sobre o que se oferta, pelo fato de fornecer profissionalmente determinado tipo de serviço, é muito maior. Ademais, o superior poder econômico não pode ser olvidado, bem como o controle de uma série de informações relativas à forma como o serviço é prestado que o consumidor não tem acesso e, portanto, a produção de provas torna-se uma tarefa hercúlea.
Precisamente em razão de sua condição de hipossuficiência, erigiu-se um sistema protetivo, o Código de Defesa do Consumidor, que abrange tanto a atividade do fornecedor, proibindo a introdução de serviços que representem riscos fora da normalidade (artigo 8º), quanto o dano que pode, eventualmente, ser sofrido pelo consumidor, alçando à condição de direitos básicos (artigo 6º) a prevenção e reparação de danos (inciso VI); e, para sua materialização, a garantia de acesso aos órgãos (inciso VII) e facilitação de sua defesa (inciso VIII).
Neste sentido, o Código de Defesa do Consumidor busca estabelecer uma igualdade entre as partes, a fim de superar a vulnerabilidade intrínseca do consumidor; nas palavras de Cavalieri Filho, o retrocidado código:
Reconhecendo a desigualdade existente, busca estabelecer uma igualdade real entre as partes nas relações de consumo. As normas desse novo direito estão sistematizadas a partir dessa ideia básica de proteção de determinado sujeito: o consumidor, por ser ele vulnerável[8]
Ademais, a legislação de proteção do consumidor, no entender de Cavalieri Filho, adota a teoria do risco do empreendimento, pela qual o fornecedor responsabiliza-se tanto pela qualidade, quanto segurança dos seus serviços oferecidos[9]. A materialização disso encontra-se no reconhecimento da responsabilidade objetiva do fornecedor prestador de serviços (artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor[10]).
Porém, mesmo que objetiva, deve-se considerar o caso fortuito para fins de apuração de responsabilidade. O §3º do supracitado artigo 14, que trata de excludente de responsabilidade, é silente quanto o caso fortuito; o artigo 399 do Código Civil, por sua vez, é expresso ao afastar a responsabilidade, salvo em caso de assunção expressa por parte do devedor[11].
Para Rizzatto Nunes, o Código de Defesa do Consumidor, é claro o suficiente, não aceitando o uso de caso fortuito para afastar a responsabilidade, fundamentando-se no uso do advérbio “só”, no comando normativo da legislação consumerista, bem como a teoria do risco do empreendimento, devendo o empresário arcar com todos os riscos atinentes ao negócio[12].
Cavalieri Filho entende ser pertinente dividir o caso fortuito em interno e externo, pois no caso de fortuito interno, quando o fato imprevisível e inevitável ocorre na realização do serviço, não se afasta a responsabilidade do fornecedor, já que é parte de sua atividade comercial; quanto ao fortuito externo, enquadra-o na excludente de inexistência do defeito (artigo 14, §3º, I, CDC) por não guardar relação com o serviço prestado[13]. Silva Neto aponta que o fortuito interno “é aquele fato que se encontra associado, dentro de certo grau de previsibilidade, à atividade desempenhada pelo prestador de serviço”, não excluindo sua responsabilidade[14].
De forma didática, aclara Gonçalves:
Modernamente, na doutrina e na jurisprudência se tem feito, com base na lição de Agostinho Alvim, a distinção entre “fortuito interno” (ligado à pessoa, ou à coisa, ou à empresa do agente) e “fortuito externo” (força maior, ou Act of God dos ingleses). Somente o fortuito externo, isto é, a causa ligada à natureza, estranha à pessoa do agente e à máquina, excluiria a responsabilidade, principalmente se esta se fundar no risco. O fortuito interno não... Quem assume o risco do uso da máquina ou da empresa, desfrutando os cômodos, deve suportar também os incômodos[15].
Neste sentido, mister observar o enunciado 443 da V jornada de direito civil, pelo qual “o caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida”[16].
Com estes apontamentos em mente, deve-se partir para a observação do “golpe do motoboy”, sofrido por clientes de instituições financeiras pela via telefônica. De início, é preciso atentar que, se a via telefônica é contratualmente estabelecida, entre fornecedor e consumidor, como meio de contato, este deve ser equiparado a agência física bancária, sob pena de excludente irrestrita de responsabilidade de todas as instituições que operam sem agência física. Ademais, é evidente, a partir do momento que a via telefônica é estabelecida para contato, cabe ao fornecedor propiciar todos os meios de segurança.
Portanto, não há que se falar na excludente de responsabilidade em razão do fato não ocorrer dentro de agência bancária – posição consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça[17], em julgado sobre o golpe da “saidinha de banco”, qualificado como fortuito externo – pois a comunicação telefônica, mesmo que putativa, equivale à tratativa em agência bancária física, não devendo ser caracterizada como fortuito externo. A respeito da responsabilidade da instituição bancária pela segurança, observa Theodoro Júnior:
A falha na segurança interna da agência bancária, que propicie a atuação de criminosos contra cliente, nas suas dependências, torna o banco responsável por vício na prestação de serviço[18].
Por fim, quanto à questão da via telefônica, insta notar o posicionamento do desembargador Alberto Gossom, do Tribunal de Justiça de São Paulo:
É certo que o golpe do motoboy é conhecido, mas não é menos certo que o consumidor frequentemente se depara em situação de insegurança crônica, porque as próprias instituições financeiras não se cansam de dirigir propagandas, propor serviços e efetuar contatos mediante a utilização de chamadas telefônicas, ..., fazendo com que os usuários de seus serviços por vezes acabem caindo em golpes perpetrados por estelionatários que, usufruindo do conhecimento de dados pessoais dos clientes, engendram situações como a dos autos, com requintes de sofisticação, com o bloqueio da linha telefônica para que o usuário pense estar ligando para a própria instituição financeira quando na verdade está contatando os próprios estelionatários[19].
Superado este ponto, há de se considerar a forma como os golpistas entram em contato. A obtenção de um número de telefone de determinado indivíduo, já antes da era digital, não demanda grandes habilidades, mas a obtenção deste número junto com dados pessoais e informações bancárias não pode ser tolerada. Em razão da importância que os dados pessoais passam a ter na sociedade, adveio a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709 de 2018), estabelecendo diretrizes e princípios para o uso de dados, bem como a responsabilização de quem os utiliza. Neste contexto, o artigo 6º, inciso X, da retrocitada lei é um dos mais importantes avanços, ao determinar que o controlador dos dados deve demonstrar a adoção de medidas eficazes e capazes comprovara observância da norma protetiva de dados. A este respeito, é fundamental notar que
Além do dever de cumprir integralmente a LGPD, quem realizar o tratamento de dados pessoais deverá ter evidências de todas as medidas adotadas, com a finalidade de demonstrar a sua boa-fé e diligência[20].
Deste modo, com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados, a responsabilidade da instituição bancária também recai sobre o vazamento de dados, de forma presumida, em face do dispositivo agora em comento que deve ser conjugado com o inciso VIII, do artigo 6º, do Código de Defesa do Consumidor. O vazamento de dados, certamente, pode não ser de responsabilidade da instituição bancária, mas esta deverá provar que mantém um sistema seguro; não se trata da prova do fato negativo, mas da apresentação do sistema de segurança apta a demonstrar a integridade do local e tratamento dos dados do consumidor lesado.
Estabelecido o contato telefônico e logrado êxito na obtenção do cartão e senha, o golpe ainda não foi consumado. A consumação é dada tanto por meio eletrônico, quanto físico com transferências de valores feitas pelos golpistas no menor tempo possível. Neste ponto, o monitoramento realizado pela instituição bancária é fundamental para fins de responsabilização; se há discrepância entre as transações realizadas, cabe ao sistema de monitoramento emitir um alerta para bloqueio imediato do cartão, a fim de garantir a segurança do cliente. Não o fazendo, é claro que descumpre o dever de segurança.
Finalmente, como bem salienta Silva Neto, “a determinação da responsabilidade também deve ser feita levando-se em conta a segurança que se espera do serviço e a probabilidade da ocorrência de fatos imprevisíveis e inevitáveis”[21]. Assim, como momento da transação é parte integrante da prestação do serviço relativo ao cartão emitido pela instituição bancária; independentemente desta ser a fonte do vazamento de dados, não monitorado o uso do serviço proporcionado, deve ser responsabilizada, pois é defeituoso o serviço prestado sem a segurança que o consumidor poderia esperar (artigo 14, §1º, CDC).
4. CULPA EXCLUSIVA E CONCORRENTE DO CONSUMIDOR
A grande interrogação agora levantada é se há uma culpa exclusiva do consumidor – causa excludente de responsabilidade (artigo 14, §3º, CDC) – que, apesar de alvo de um golpe, entrega a senha, que deveria ser exclusivamente de seu conhecimento, bem como o cartão deveria estar em sua posse a todo momento. Em outros termos, questiona-se se a vítima do golpe, pelo fornecimento da senha e cartão, seria exclusivamente responsável pelo dano sofrido.
A respeito da culpa exclusiva da vítima, pondera Gonçalves:
Quando o evento danoso acontece por culpa exclusiva da vítima, desaparece a responsabilidade do agente. Nesse caso, deixa de existir a relação de causa e efeito entre o seu ato e o prejuízo experimentado pela vítima. Pode-se afirmar que, no caso de culpa exclusiva da vítima, o causador do dano não passa de mero instrumento do acidente[22].
Por sua vez, Cavalieri Filho:
Fala-se em culpa exclusiva da vítima quando a sua conduta se erige em causa direta e determinante do evento, de modo a não ser possível apontar qualquer defeito no produto ou no serviço como fato ensejador da sua ocorrência. Se o comportamento do consumidor é a única causa do acidente de consumo, não há como responsabilizar o produtor ou fornecedor por ausência de nexo de causalidade entre a sua atividade e o dano[23].
Pelo golpe do motoboy ser um tipo de fraude, há posicionamento do Superior Tribunal de Justiça que não pode ser olvidado. Através dos julgamentos dos recursos especiais 1.197.929/PR e 1.199.782/PR, tema repetitivo 466, firmou-se a tese de que “as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”, originando a súmula 479, nos mesmos termos.
Consequentemente, em face de engenharia social capaz de ludibriar o cliente, vítima do golpe, fazendo-o acreditar estar em contato com o banco, há previsão quanto à responsabilidade da instituição bancária.
Nesta linha, o Tribunal de Justiça de São Paulo possui jurisprudência consolidada no sentido de que a instituição bancária é responsável, independentemente da entrega de cartão e senha[24]. Entretanto, é possível observar alguma dissidência na 37ª Câmara de Direito Privado, na qual se constata a adoção de culpa concorrente, partilhando a responsabilidade entre a instituição bancária, pela falha no monitoramento, e o consumidor, pelo fornecimento de senha e cartão[25].
A culpa concorrente, conforme Gonçalves, é aquela em que a vítima participa para a produção do resultado[26]. Em uma análise superficial, considerando apenas a entrega da senha e do cartão, há de certo modo uma participação do cliente; porém, três relevantes fatos devem ser levantados: primeiro, a entrega ocorre mediante fraude; segundo, o cliente não participa da forma como os dados necessários para o golpe foram obtidos; finalmente, um sistema criterioso de monitoramento do uso do cartão é capaz de evitar fraudes, cruzando dados como horário, local, valor e diferença de tempo entre transações e até enviando mensagens para confirmação de compra.
Em face dos supracitados fatos imprescindíveis para a ocorrência do efeito danoso, carear ao consumidor a responsabilidade, mesmo que concorrente, é transferir ao consumidor o risco integral de ter um cartão de crédito. Campanhas de educação são fundamentais para evitar este tipo de golpe, mas a presunção de ciência por parte dos consumidores não se coaduna com a sistemática do Código de Defesa do Consumidor.
Por conseguinte, deve a instituição bancária comprovar a segurança de seu sistema e que realizou o monitoramento das transações, indicando que o valor gasto não foge do consumo histórico, para que se possa falar em culpa exclusiva ou concorrente do consumidor vítima do golpe do motoboy, a depender do caso concreto.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prestação do serviço de crédito com fornecimento de cartão magnético com senha opera um grande papel na sociedade em que vivemos, possibilitando diversas transações com agilidade e segurança. Entretanto, a segurança que se espera do serviço prestado, em face do “golpe do motoboy”, que se utiliza de engenharia social para induzir ao fornecimento de cartão e senha, não é fornecida.
Para que o golpe em questão seja bem sucedido, transações precisam ser realizadas. Neste momento, cabe ao sistema de segurança da instituição bancária agir para evitar qualquer dano ao consumidor, cruzando dados históricos de compra, que devem incluir, horários, lugares, bem como observar o lapso temporal entre transações. Garantir um sistema de monitoramento satisfatoriamente funcional é um dever de segurança fundamental.
De outro lado, em que pese a inexistência de comando normativo no arcabouço legislativo pátrio, a imposição comercial de obrigatoriedade de apresentação de documentação, com seu registro por parte do beneficiário da transação, para transações com cartão de crédito, não representa qualquer ofensa a direito; muito pelo contrário, adiciona uma camada de segurança, para além da senha, capaz de impedir este tipo de golpe. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça já observou quanto à conferência de autenticidade que
cabe às administradoras, em parceria com o restante da cadeia de fornecedores do serviço (proprietárias das bandeiras, adquirentes e estabelecimentos comerciais), a verificação da idoneidade das compras realizadas com cartões magnéticos, utilizando-se de meios que dificultem ou impossibilitem fraudes e transações realizadas por estranhos em nome de seus clientes, independentemente de qualquer ato do consumidor, tenha ou não ocorrido roubo ou furto[27].
Logo, é claro que a promoção de campanhas auxilia na educação dos clientes para evitar golpes, mas a adoção de um sistema de conferência de documentos mostra-se com mais aptidão para concretamente evitar o golpe. Igualmente, a instituição bancária que contratualmente estabeleça a obrigação do estabelecimento parceiro de exigir a apresentação de documentação, guardando meio de prova, resguarda-se com um eventual direito de regresso, se o golpe for perpetrado e seu parceiro comercial descumprir obrigação de verificar a documentação.
Assim, como observado, o cliente vítima do golpe não possui controle sobre todas as fases em que se desenrola o evento; ademais, carear a responsabilidade por falhas de segurança, quando existem, ao consumidor é absolutamente contrário ao espírito da lei consumerista brasileira.
Portanto, a responsabilidade por danos sofridos por conta do golpe do motoboy é, em tese, da instituição bancária. Isto, contudo, não pode ser irrestritamente aplicado: comprovada a segurança de seu sistema de proteção de dados e o monitoramento satisfatoriamente realizado, não se mostra justa a atribuição de responsabilidade. O caso concreto apontará a responsabilidade. De todo modo, com o avanço das tecnologias, surgem novas possibilidades de golpes, cabendo aos prestadores de serviço sempre estarem atualizados e buscarem soluções para além da simples conscientização, sob pena de não atingir a segurança mínima que se espera.
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[1] ARISTOTELES. Política. Tradução de António Capelo Amaral e Carlos Gomes. [s.l]: Vega, 1998, 1253a, página 53.
[2] HOBBES, Thomas. Leviathan or the Matter, Forme, & Power of a Common-wealth Eclesiasticall and Civil. Londres: Andrew Crooke, 1651, páginas 103-104.
[3] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína Marcoantonio. 51. ed. Porto Alegre: L&PM, 2020, página 32.
[4] ARISTÓTELES. Ética a nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. São Paulo: Madamu, 2020, 1133b, página 135.
[5] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína Marcoantonio. 51. ed. Porto Alegre: L&PM, 2020, página 187.
[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, página 16.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2591. Relator para acórdão: Ministro Eros Grau. Julgado em 07/06/2006. Publicado em 29/09/2006.
[8] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2019, página 8.
[9] Ibidem, página 310.
[10] Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
[11] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
[12] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Curso de direito do consumidor. 13. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, páginas 362-363.
[13] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2019, página 339.
[14] SILVA NETO, Orlando Celso da. Comentários ao Código da Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2013, página 297.
[15] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 2: teoria geral das obrigações. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, página 395.
[16] V Jornada de Direito Civil. Organização Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. Brasília: CJF, 2012, página 73.
[17] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. REsp 1.284.962/MG. Relatora: Nancy Andrighi. Data de julgamento: 11/12/2012. Data de publicação: 04/02/2013; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. REsp 1.557.323/PR. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Data de julgamento: 06/02/2018. Data de publicação: 15/02/2018.
[18] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, página 332.
[19] BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível 1018458-47.2020.8.26.0002. Relator: Alberto Gosson. 22ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 04/02/2021.
[20] FLUMIGNAN, Silvano José Gomes e FLUMIGAN, Wéverton Gabriel Gomes. Princípios que regem o tratamento de dados no Brasil. In: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coord.). Comentários à lei geral de proteção de dados. São Paulo: Almedina, 2020, página 137.
[21] SILVA NETO, Orlando Celso da. Comentários ao Código da Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2013, página 283.
[22] GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, página 722.
[23] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2019, página 335.
[24] Em especial a este respeito, vide: BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1001421-62.2020.8.26.0404; Relator: Jairo Brazil Fontes Oliveira; 15ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 13/04/2021; BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1001132-55.2020.8.26.0073; Relator: Cauduro Padin; 13ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 23/09/2020; BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1000888-55.2019.8.26.0011; Relator: Roberto Mac Cracken; 22ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 08/08/2019.
[25] Neste sentido, vide: BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1001854-66.2021.8.26.0037; Relator: José Tarciso Beraldo; 37ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 27/07/2021; BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1040622-58.2020.8.26.0114; Relator: José Tarciso Beraldo; 37ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 28/07/2021; BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1006806-26.2019.8.26.0533; Relator: Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 29/06/2021; BRASIL. TJSP. Apelação Cível 1017165-39.2019.8.26.0564; Relator: Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 11/05/2021.
[26] GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, página 723.
[27] BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. Terceira Turma. REsp 1.058.221-PR. Relatora: Nancy Andrighi, Data de julgamento: 04/10/2011. Data de publicação: 14/10/2011.
mestrando em direito na PUC/SP, graduado em direito na UPM/SP, advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELLO, Leonardo Tozarini. A responsabilidade civil das instituições bancárias pelo golpe do motoboy Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 ago 2021, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57150/a-responsabilidade-civil-das-instituies-bancrias-pelo-golpe-do-motoboy. Acesso em: 22 dez 2024.
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