Resumo: Tramita no Congresso Nacional a PEC 383/2014. Almeja imprimir nova redação ao artigo 170 da Carta Política Brasileira para incluir, expressamente, o “regime do Capitalismo Humanista” na ordem econômica além de acrescentar o inciso X no referido artigo 170 prevendo, expressamente, a “observância dos Direitos Humanos”. A aludida proposta de emenda a Constituição Federal é de grande valia à combalida economia brasileira e tem inspiração em obra jurídica produzida por Ricardo Hasson Sayeg e Wagner Balera. Sua efetividade, contudo, perpassa por uma “correção de rumos” do Poder Judiciário Brasileiro, retornando, no mínimo, à constitucional realidade alcunhada por Montesquieu quanto à independência e autonomia dos Poderes da República (art. 2º da CF)
Abstract: The PEC 383/2014 is being processed in the National Congress. It aims to reword article 170 of the Brazilian Political Charter to expressly include the “Humanist Capitalism regime” in the economic order, in addition to adding item X in said article 170, expressly providing for the “observance of Human Rights”. The aforementioned proposal to amend the Federal Constitution is of great value to the weakened Brazilian economy and is inspired by a legal work produced by Ricardo Hasson Sayeg and Wagner Balera. Its effectiveness, however, involves a "correction of course" of the Brazilian Judiciary, returning, at least, to the constitutional reality nicknamed by Montesquieu regarding the independence and autonomy of the Powers of the Republic (Article 2 of the Federal Constitution)
Palavras-chave: Capitalismo Humanista – ordem econômica (art. 170 da CF) – Direitos Humanos – efetividade – Cogência estatal – Direito posto (Hans Kelsen) - Inércia da Jurisdição – Separação dos Poderes (art. 2º da CF).
Key words: Humanist Capitalism – economic order (art. 170 of the CF) – Human Rights – effectiveness – State cogency – Law enacted (Hans Kelsen) - Inertia of Jurisdiction – Separation of Powers (art. 2 of the CF).
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Da concretização de um modelo econômico capitalista sem descurar da dignidade da pessoa humana. - 3. Da inarredável “correção de rumos” do Judiciário Brasileiro para que pontifique o capitalismo humanista e efetividade do artigo 170 da CF. – 4 Considerações Finais. – 5. Referências.
1- Introdução.
A idéia do capitalismo humanista na ordem econômica brasileira é realidade que se impunha antes mesmo do advento da Covid 19. Nossa sociedade, não é de hoje, está doente.
O povo praticamente agoniza pelas ruas da maioria das cidades brasileiras sem emprego e, consequentemente, a mais diminuta dignidade humana. Mais de cem milhões de brasileiros não contam com esgoto encanado.
A pobreza e miséria extrema crescem vertiginosamente em nosso país. Somos o sétimo país mais desigual do mundo, superado apenas por algumas nações africanas. Os 5% mais ricos do país auferem 95% da renda nacional.
Chega a ser surreal, para dizer o menos, que 1% de nossa população detenha 49,6% da riqueza nacional, conforme dados extraídos do Credit Suisse noticiados no portal Uol em 24 de junho do ano em curso.
Esmagadora maioria do povo brasileiro vive na miséria. Muitos sequer têm CPF para fins de cadastro e recebimento de valores decorrentes de programas sociais, como “bolsa família”, por exemplo.
E o trágico panorama que se assiste, contudo, e como veremos no presente estudo, é incompatível com o direito posto (positivado) na vigente Carta Política Brasileira
Desde o preâmbulo da Constituição Federal[1], é garantida ao povo brasileiro a dignidade da pessoa humana entre outros direitos fundamentais, naturalmente.
Registre-se, por oportuno, conforme Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, que o preâmbulo da Constituição Federal é “norma constitucional e se encontra em vigor produzindo efeitos”. [2]
Portanto, palavras e expressões constantes do aludido preâmbulo de nossa Carta Política como, por exemplo, “direitos sociais”, “bem estar”, “desenvolvimento”, “igualdade” e “justiça” e assertiva “como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluaralista e sem preconceitos”, não devem servir apenas como mero exercício de retórica.
É que modelos econômicos mais extremados não atenderam os anseios das populações mundo afora. Em outras palavras, nem o capitalismo idealizado por Adam Smith muito menos o comunismo de Stalin ou algum outro modelo de forte apelo socialista, ainda que menos radical, que eleja o Estado como grande protagonista da economia.
Conforme Sayeg e Balera “O neoliberalismo acredita na intervenção mínima do Estado, e permite – por meio da “mão invisível” de Smith – que a economia siga a maré da própria dinâmica e selvageria. Ao referir-se com freqüência à destruição criativa, Alan Greenspan – que presidiu o Federal Reserv dos Estados Unidos da América – defende tal viés: o mercado destrói, mas reinventa para melhor. Trata-se do radical fundamentalismo de mercado, cuja fé em si mesmo é capaz de absorver e superar todas as adversidades. Tal posição, incompatível com a defesa dos Direitos Humanos, vê como natural a morte e a exclusão pela fome e pela miséria de mais de um bilhão de pessoas humanas. Tampouco o Socialismo foi resposta suficiente, nem mesmo em favor dos pobres e excluídos, o que a Europa do Leste comprova historicamente. Não são obras do acaso a emblemática incorporação da Europa Oriental à União Europeia, a dissolução da União Soviética e a reunificação alemã.”[3]
Dignas de notas as considerações tecidas pelos renomados juristas Ricardo Sayeg e Wagner Balera, ressalvando-se, apenas, não ser objeto da presente reflexão trazer à tona discussões sobre correção de conceitos e consequências do chamado neo liberalismo que para muitos, no plano puro da ciência econômica, se trata de figura até inexistente, mormente com alusão a recorrente, e também por muitos contrariada, “selvageria” de mercado ou alguma outra forte expressão nesse sentido.
A ideia é demonstrar que os modelos mais extremados não atingiram a almejada justiça social, com elevação da dignidade da pessoa humana. Tratam-se, aliás, de fatos históricos. Verdadeiros e acontecidos. O mundo assistiu. Longe de se falar, portanto, em conjecturas ou suposições.
É realmente induvidoso que os modelos econômicos mais radicais (capitalismo liberal e comunismo/socialismo) provocaram graves distorções na vida cotidiana das nações em que foram aplicados. A solução, não há dúvida, se encontra em algum modelo que prime por um ponto de equilíbrio.
Há que se registrar, contudo, que o viés dito capitalista não pode ser desgarrado do modelo econômico que efetivamente deve ser adotado.
Justamente por isso, a propósito, pedindo escusas pela obviedade, que se fala em capitalismo humanista e não socialismo humanista ou algo parecido.
Aliás, a própria Constituição Federal, nos artigos 1º e 170, por exemplo, menciona “livre iniciativa” além de defender, a todo instante, a “propriedade privada”. Ou seja, políticas públicas tipicamente capitalistas.
É preciso deixar bem claro, então, que o presente artigo quer sustentar a prevalência do capitalismo como modelo econômico ideal para a sociedade brasileira. A idéia é justamente no sentido de cada vez mais, ainda que paulatinamente, ou ao menos em um futuro não tão distante, diminuir a presença do Estado em nossa economia.
Emblemática, nessa linha de raciocínio, a afamada frase do ex Presidente Ronald Reagan “o homem não é livre a não ser que o governo seja limitado. Há uma relação de causa e efeito aqui, tão clara e previsível quanto às leis da física: à medida que o governo aumenta, a liberdade diminui”.[4]
Entretanto, e na esteira do raciocíonio até aqui sustentado, é imprescindível fomentar o equilíbrio nas políticas públicas determinadas pelo modelo econômico em vigor. Capitalismo sim, mas sem o “descarte” de seres humanos.
Posturas liberais, estado mínimo, privatizações, mas sem olvidar da imprecindível tutela da dignidade da pessoa humana, expressamente prevista, a propósito, nos já prefalados artigos 1º e 170 da Carta Política Brasileira.
Mas não há se confundir tutela da dignidade da pessoa humana com assistentalismo ou paternalismo estatal.
Repudia-se, por exemplo, já com os olhos mais na atualidade brasileira, propostas de emenda constitucionais como aquela recentemente sustentada pela Deputada Federal Tábata Amaral no sentido de positivar o programa “bolsa família” na Constituição Federal. (PEC 200/2019)
Óbvio que o aludido programa social de distribuição direta de renda ostenta inegáveis virtudes. Todavia, à evidência, não pode se eternizar no seio da sociedade sob pena de intuitiva aleijão de milhares e milhares de brasileiros. O trabalho eleva a auto estima e, conseqüente, eleva a diginidade humana. O brasileiro carece de oportunidades, emprego, educação e crescimento como cidadão.
O povo não merece receber migalhas ou esmolas para todo sempre. O país, pontue-se novamente, necessita de mais empregos e desenvolvimento. Saúde, educação, trabalho e não eterno paternalismo estatal.
O país tem inalienável direito a dignidade da pessoa humana. É direito posto. Positivado na Carta Política em vigor. Desde seu preâmbulo.
Inegociável, portanto, na atual ambiência jurídica e constitucional brasileira, a dignidade de seu povo. Trata-se, repita-se, de direito posto. Positivo que conta (ou ao menos deveria contar) com cogência estatal.
E nessa linha de raciocínio, ressoa certeira a ideia do capitalismo humanista tão bem concretizada na obra de Balera e Sayeg aqui já mencionada, sendo interessante, a propósito, para ideal intelecção, citar aqui o conceito encontrado pelos referidos autores:
“ O capitalismo humanista, regime jus econômico correspondente à evolução do modelo Liberal excludente para um Capitalismo inclusivo, com observância dos Direitos Humanos, edificador da Dimensão Econômica dos Direitos Humanos, reconhece o direito de propriedade privada e liberdade econômica e, ainda, garante a todos acesso a níveis dignos de subsistência; e, assim, supera o mito da neutralidade ontológica entre as categorias do Capitalismo e dos Direitos Humanos. Desta sorte, garante a todos, sejam ricos, pobres e classe média, a dignidade universal da pessoa humana e planetária.”[5]
Essa, em apertada essência, uma das mensagens mais relevantes que a presente reflexão pretende enaltecer.
2- Da concretização de um modelo econômico capitalista sem descurar da dignidade da pessoa humana.
A pergunta que se desperta, a partir do raciocínio até aqui sustentado, seria como se tornar prática e efetiva a idéia central de tese econômica (por que não política e social também?) tão bem idealizada por Ricardo Hasson Sayeg e Vagner Balera na acalentada obra jurídico/econômica mais atrás referida?
A resposta, ou ao menos sua essência, encontra-se positivada na própria Carta Política Brasileira de 1.988. Basta concretizá-la. Dar-lhe vida e eficácia. Muito melhor, por evidente, que a PEC referida no preâmbulo se concretize.
Todavia, antes mesmo de seu advento, já existem dispositivos consitucionais que permitem a possível salvação da sociedade pela essência do modelo capitalista humanista.
Exatamente nesse sentido se posicionou o legislador constituinte na redação do artigo 170 da Constituição Federal, alcunhado de “regra matriz da ordem econômica brasileira”, por Thiago Lopes Matsushita em abalizado estudo sobre seu efetivo alcance:
Assim, vincula-se diretamente a ordem econômica ao conceito de dignidade da pessoa humana, estabelecendo o asseguramento desta como dever-ser daquela. A dignidade da pessoa humana é conceito amplamente estabelecido nos diplomas de direitos humanos, e inclusive na nossa Constituição Federal. Os direitos humanos, assim, tratados enquanto feixe indissociável de direitos historicamente conquistados e positivados por grande parcela da comunidade global, tiveram como principal marco a Revolução Francesa de 1789, revolução esta tipicamente da burguesia, cujos interesses sobre a liberdade, a propriedade e o direito à desobediência civil tiveram primordial impacto sobre as estruturas do Estado então absolutista e eminentemente aristocrata.
(...)
Por fim, deontologicamente a ordem econômica deve assegurar existência digna “a todos”, ou seja, impõe uma axiologia do homem enquanto inserido na coletividade, em princípio já solapando a ideologia estritamente liberal e individualista, pois coloca o homem, individualmente concebido, enquanto inserido na coletividade, solidarizando a dignidade da pessoa humana, direito esse que deve ser garantido a todos, tanto na relação vertical Estado-Sociedade, quanto na relação horizontal Indivíduo-Sociedade, Sociedade-Sociedade. Enfatizamos a relação horizontal, e.g., por ter o artigo 170 elencado a propriedade privada e sua função social, o que significa que o direito subjetivo de propriedade, em princípio individual, tem necessariamente que satisfazer a dimensão fraterna, qual seja, a de assegurar que não seja violada e, ainda, proativamente, que seja garantida e viabilizada a existência digna a todos os partícipes da coletividade. A ordem econômica é expressão, neste sentido, também da dimensão fraterna dos direitos humanos[6]
Como se vê, a dignidade da pessoa humana é expressamente garantida na própria ordem econômica da nação brasileira. Cuida-se, ou deveria se cuidar, de política pública com inegável cogência estatal.
Não se trata de quimera. Simples exercício de retórica. É direito positivado que deve, portanto, ser usufruído e exercido pelo povo brasileiro.
Mas para atingir esse intento, contudo, é imprescindível, corrigir aquilo que ousamos rotular de “correção de rumos” do sistema jurisdicional brasileiro.
3- Da inarredável “correção de rumos” do Judiciário Brasileiro para que pontifique o capitalismo humanista e efetividade do artigo 170 da CF.
Não parece exagerado dizer que a sociedade civil brasileira assiste, passivamente, inédita confusão de conceitos e posturas no sistema jurisdicional que, bem ou mal, ou em última análise, acaba por impactar os destinos da própria nação.
Sedimentados princípios são diuturnamente ignorados em praça pública. Aos olhos de todos. Fala-se, por exemplo, em “ativismo judicial”.
Pisoteia-se, portanto, às escâncaras, e só para começar, o princípio da separação dos poderes alcunhado em nossa Carta Política a partir da idéia de Montesquieu. Óbvio que os poderes devem guardar harmonia entre sí, mas, também, antes, cultivar inegociável independência (art. 2º da CF)
Princípios devem ser rigorosamente observados. Ainda mais de inspiração e expressa previsão constitucional.
Pouco adianta, na atual realidade do sistema jurisdicional, positivar a Constituição Brasileira com a tutela da dignidade da pessoa humana, por exemplo, se, em uma penada, e impunemente, o preceito é olimpicamente ignorado em sentenças e acórdãos sem a menor censura ou algo que o valha contra o autor da ilicitude; ainda que imbuído, bom que se registre, das melhores das intenções.
A Constituição Federal, invariavelmente, é rasgada na Corte que tem o dever de guardá-la e nenhuma conseqüência prática ou sanção resulta do ignominioso ato. Só para exemplificar, e não alimentar polêmicas, já se falou mais atrás da separação dos poderes.
Como, então, aos olhos de todos, falar, defender e sustentar um “ativismo judicial”? Judiciário julga! Judiciário é inerte. Depende de provocação como cediço.
É o princípio da inércia da jurisdição. Judiciário julga, insiste-se vez mais. E deve julgar com base em legislação posta. Positivada. Julgamento forçosamente alheio a subjetivismo e interpretações mais descontraídas.
A voz das ruas não pode ditar decisões judiciais como tem se assistido. Ainda mais com viés/efeito legislativo. Presidente do Supremo Tribunal Federal na capa da Revista Veja se vangloriando por marcar encontro com Presidentes dos outros poderes para discutir pautas de julgamento e modular seus efeitos.
As liturgias do cargo estão sendo atropeladas. Tempos sombrios. Alardeou-se que os presidentes dos três poderes discutiriam se essa ou aquela decisão poderia ser modulada de uma forma ou de outra.
Difícil, nesse quadro, público a todos, noticiado largamente em todos os setores da mídia, se defender, com esperança, a prevalência da dignidade da pessoa humana em um modelo econômico capitalista.
Talvez seja preciso, antes da gastar tanta energia, “perguntar” a opinião do Judiciário...
E ainda mais lastimável é o silêncio da sociedade civil brasileira e, (por que não?), da própria comunidade jurídica que, passivamente, assiste às mais inéditas teratologias e atrocidades contra a vigente Carta Magna.
O dantesco quadro atual talvez remonte àquele fracassado movimento que se viu, principalmente no sul do país, nos anos 90, rotulado de Direito Alternativo: Rasgavam-se os códigos e buscava-se, subjetivamente, “justiça” dos homens...
Ao menos eram autênticos. Não se via a hipocrisia hoje reinante.
É preciso por cobro a esse inconstitucional quadro. Judiciário como dito mais atrás, deve aplicar a legislação posta em vigentes ordenamentos jurídicos tendo como viga mestra a Constituição da República.
Neste sentido que um modelo mais kelseniano, refratário a subjetivas interpretações de parte do Poder Judiciário, teria o condão de tornar efetiva a prevalência e aplicabilidade do Capitalismo Humanista em nosso país.
O Ministério Público, com apoio no artigo 127 da Constituição Federal e, também, qualquer cidadão brasileiro, por intermédio de ação popular (art. 1º da Lei 4.717/65), provocariam o Poder Judiciário para que preceitos constitucionais sintonizados com o Capitalismo Humanista fossem forçosamente aplicados como política pública, sob pena de sanção. Direito é força. É cogência estatal.
Há que se colocar um freio em “ginásticas interpretativas” atualmente protagonizadas pelas mais varidadas instâncias e esferas do Judiciário Brasileiro.
Mais Hans Kelsen[7] e respeito a texto expresso de vigente Carta Política. O Capitalismo Humanista, ao menos sua essência, encontra-se positivado na vigente Constituição Federal. A PEC mencionada no preâmbulo é benvinda evidentemente.
Mas, no atual quadro judiciário que se assiste, é de se perguntar novamente: de que adiantaria, em termos práticos ou efetivos, a sua vigência formal e positivada?
O Poder Judiciário, lamentavelmente, tem feito o que bem entende da Constituição Federal. Nesta esteira que se sustenta um direito brasileiro mais kelseniano, principalmente com relação aos modelos econômicos e políticas públicas positivados em vigente Carta Política.
Arrede-se, desde já, a antiga e indevida pecha imposta ao modelo kelseniano no sentido de que até o nazismo por ele foi abraçado ou legitimado.
Neste sentido, lição de Norberto Bobbio: no que diz respeito à relação entre ideologia do positivismo jurídico e ditadura, é estranho que com facilidade tende-se a esquecer que os postulados éticos do positivismo jurídico – o princípio da legalidade, a ordem como fim principal do Estado, a certeza como valor do direito – foram elaborados no século XVIII pela doutrina liberal, de Montesquieu a Kant, para levantar uma barreira ao despotismo, ou seja, com freios ao arbítrio do príncipe, como defesa da liberdade individual contra a enorme potência do Poder Executivo, como garantia de igualdade de tratamento contra os privilégios. Na Itália, nos anos da ditadura fascista, a resistência ao arbítrio foi conduzida pelos juristas em nome dos postulados éticos do positivismo jurídico...(...).A ideologia do positivismo jurídico não é, abstratamente considerada, nem melhor nem pior do que qualquer outra. Não leva à ditadura mais do que conduz ao estado de liberdade.”[8]
Ainda que assim não fosse, há que se confiar no Parlamento. Nas instituições. No Estado Democrático Direito. Mal ou bem, bem ou mal, é o melhor dos regimes conforme antiga máxima de Winston Churcill: “A democracia é a pior de todas as formas de governo, excetuando-se as demais”
Nessa linha que se defende uma verdadeira “correção de rumos” do Judiciário Brasileiro. Mais aplicação da lei, da Carta Política em vigor e menos interpretações daquilo que claramente não deve ser interpretado.
O direito dinâmico, “criado” - permitam-nos assim dizer - a construção de novas teses, o confronto de uma súmula, a fuga do mesmo de sempre, do banal, do que é fácil e apenas escrito é realmente estimulante.
Um direito de “despachante”, “carimbado”, fulcrado em antiga jurisprudência de Tribunais, parece realmente “emburrecer” o operador do direito.
A construção de teses, ancoradas em outras ciências, sociais inclusive, filosóficas também, enriquece o debate jurídico.
Não é exatamente essa prática que ousamos censurar ao enaltecer Kelsen. Refere-se apenas à máxima adoção de cautela na “abertura” de todo um sistema, com interpretações das mais subjetivas; como infelizmente vem ocorrendo no Brasil.
Vivemos atualmente, visando ilustrar o raciocínio, períodos estranhos e sombrios. O direito, talvez mais que nunca, necessite de conceitos objetivos. Transmitir segurança jurídica. Força. Regramentos sólidos.
Respeito a arraigados princípios. Cogência estatal. Plena e implacável, pontue-se mais uma vez.
Assiste-se um total atropelo a arraigadas liturgias. Atropelo a princípios de direitos sedimentados até em vigente Carta Magna. Descumpre-se, às escâncaras, aos olhos de todos, expressos comandos de lei federal.
Já existem juízes, para se ter uma ideia, negando vigência a expresso comando legal inserido no Código de Processo Civil Brasileiro do ano de 2015. Lei relativamente nova. Lei Federal. Fruto de recentes estudos técnicos e científicos. Longamente debatida com setores da sociedade civil.
E magistrados, em sentenças e acórdãos públicos, aos olhos de todos, afirmam expressamente que não deve se aplicar o artigo 85 do referido Código de Processo Civil na fixação dos honorários advocatícios.
Não fixam a honorária em percentual sobre o valor da causa ou do bem da vida em jogo na contenda, como expressamente determina, a referida lei processual civil. (vide, por favor, autos digitais de possessória nº. 1023633-59.2018.8.26.0562 E.TJ/SP - valor da causa de R$ 182.000,00 e honorários fixados em R$ 1.000,00 e não R$ 18.200,00, que já seria o mínimo).
Dizem, nas entrelinhas, e por vezes expressamente, que não é “razoável” o advogado, eventualmente, ser agraciado com uma significativa soma em dinheiro, embora a lei, de maneira cogente, diga que referida soma deva ser paga.
Fala-se aqui “apenas” de verba alimentar eleita como tal por Súmula emanada da Corte Judicial guardiã da Carta Política Brasileira (Súmula Vinculante nº 47). Em palavras menos robustas, trata-se de comida na mesa de um cidadão brasileiro. Óbvio que se imbrica com sua dignidade humana.
E aí um integrante do Poder Judiciário, simplesmente retira o prato da mesa sem que nada, absolutamente nada, lhe aconteça.
Será, então, nessa teratologia judicial que assistimos, que a PEC 383/2014, tão bem construída, fruto de exaustivos estudos científicos - gerada com amor, principalmente - terá o condão de, em última análise, cumprir seu legítimo escopo e facilitar a vida dos brasileiros, tornando-a mais fraterna?
Necessário, pois, imperativo mesmo, se corrigir os rumos do Poder Judiciário Brasileiro antes de qualquer coisa. Carta Política deve ser observada.
Texto de Lei Federal também. O caso concreto mais atrás aludido fala de comando expresso, repita-se. Texto claro. Dispensa interpretações. Positivado aos olhos de todos.
E justamente o aplicador da legislação, investido em tal atividade pelo próprio Estado, ignora o comando, deixa-o de lado, por uma visão outra, claramente subjetiva; e hermética para piorar.
Não faltam exempos: decretava-se prisão até pouco tempo atrás (apenas o bem mais sagrado de um cidadão) já em segundo grau de jurisdição quando vigente Carta Política, com todas as letras, traz orientação justamente em sentido contrário: exige trânsito em julgado. E a positivação?
Talvez tais eventos tenham se dado, sintomaticamente, após a chamada “abertura” de sistemas e interpretações, nascidas, paradoxalmente, após ferrenhas críticas a Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito.
Interessante, nesse panorama, citar mais uma vez trecho da obra de Norberto Bobbio:“ Quanto ao positivismo como teoria do direito, creio necessário distinguir um significado estreito e um amplo dessa teoria. Ao se entender por positivismo jurídico apenas o “codicismo”, a teoria da interpretação mecânica da lei, creio que teriam razão aqueles que sugerem descartá-lo, pela ótima razão de que ele é desmentido pelos fatos. Mas, desde a época do chamado fetichismo legislativo, muita água passou por debaixo da ponte, e ninguém mais acredita seriamente no juiz como autômato. Trata-se de verificar se convém chamar de positivismo jurídico a teoria ampliada, que mudou ou está mudando radicalmente as idéias sobre interpretação jurídica e sobre a ciência do direito. Creio que sim, seja porque me parece que não foram inventados outros nomes, seja porque, de fato, essa acepção mais ampla está entrando em uso sem provocar muitos inconvenientes, seja, enfim, porque a ampliação, como mostrei na oitava seção, não causa nenhuma desordem irreparável nos pressupostos. Cuidou-se de reestruturar o interior, mas a fachada e o corpo do edifício permaneceram os mesmos; e o destino também. Enfim, quanto ao positivismo como modo de estudar o direito, parece-me que é aceitável, sem mudanças e sem necessidade de introduzir uma distinção entre sentido bom e sentido ruim, como no que diz respeito à ideologia positivista, ou entre sentido largo e sentido estreito, como na teoria positivista Aqui o problema é um só: trata-se de saber se verdadeiramente deseja-se estabelecer a ciência jurídica em bases sólidas, ou se o que se quer é perpetuar a confusão, que exerce sempre grande fascínio nas disciplinas morais, entre o momento da pesquisa e o momento da crítica ético-política.”[9].
4- Considerações finais.
A sociedade brasileira, enfim, merece o capitalismo humanista, mas sob o manto de uma atmosfera jurisdicional mais kelseniana, onde a Constituição Federal seja efetivamente aplicada e observada pelo Poder Judiciário, sob pena até, se o caso, de eventual sanção àquele que descumprir o preceito, inclusive, claro, o próprio julgador, constituindo-se tema, quem sabe, com relação a essa observação final (punição ao julgador que descumprir expresso comando legal), para artigo futuro.
Aliás, importante aqui mencionar, embora o intuito do artigo esteja longe de fomentar estéril beligerância entre os operadores do direito, que a Lei de Abuso de Autoridade, busca coibir, com firmeza, a violação das prerrogativas inerentes, por exemplo, as atividades advocatícias. (artigo 43 da Lei 13.869/2019, sujeitando o infrator, inclusive, a censura de natureza criminal)
E a fixação de honorários advocatícios, em uma sentença ou Acórdão, com fundamento em vigente Código de Processo Civil (artigo 85), recentemente alcunhado e “batizado” com o nome de magistrado de carreira (Luiz Fux, hoje Presidente do E. STF) não representa prerrogativa de um advogado brasileiro?
Ou seja, não é direito do advogado pretender que sua honorária (verba alimentar segundo Súmula 47 do E. STF) seja fixada conforme preconiza vigente lei processual brasileira?
E sentença e Acórdão que ignora tais preceitos, não estaria a violar as prerrogativas do advogado?
De outro lado, era só o que faltava para nossa sociedade, com tantos e tantos problemas, assistir uma espécie de “batalha” entre Judiciário e a classe dos advogados.
Óbvio que não há necessidade. Contudo, é difícil digerir ter direito posto e vigente a 10% ou 20% de determinado valor (verba alimentar, não nos esqueçamos) e ver esse valor, contrariando lei expressa e em vigor, repita-se, ser fixado em menos de 1%.
Evidente que esse estado de coisas precisa ser alterado. Não há necessidade de maiores elucubrações para se chegar a essa conclusão.
E é partir desse cenário, como se alertou no início, que se conclui que a pontificação de um modelo mais humano, ainda que capitalista, perpassa, necessariamente, por uma “correção de rumos” do Judiciário Brasileiro.
O preâmbulo de nossa Carta Política e seu artigo 170 estão em pleno vigor. Positivados. Basta se tornarem efetivos a partir de regular e adequada provocação da sociedade civil e presença firme e marcante do Poder Judiciário.
É claro que sua aplicabilidade do preâmbulo de nossa Carta e seu artigo 170 vem sendo ignorada pela sociedade brasileira. Mero exercício de retórica que precisa ganhar vida. Precisa ser efetivo.
Na realidade, e seguindo a linha de raciocínio até aqui esposada, é direito de nosso povo, positivado como dito tantas vezes, na Lei Maior do país, desfrutar de um modelo econômico que garanta, efetivamente, a eficácia e prevalência não apenas dos ditames insculpidos no artigo 170 da CF, mas também em seu próprio preâmbulo.
Como repetido tantas vezes, o preâmbulo da Constituição Federal é direito posto. Direito vigente. Deve, necessariamente, obrigatoriamente em verdade, ser desfrutado por toda a nação brasileira.
Há de se convir, e o quadro remonta a panorama anterior a desgraça da Covid 19, que não temos, nem de longe, conforme proclama o preâmbulo da nossa Carta Política, um Estado Democrático assegurando “direitos sociais”, “bem estar”, “desenvolvimento”, “igualdade” e “justiça” e assertiva “como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluaralista e sem preconceitos”
Necessário, portanto, sem a menor sombra de dúvida, forte reação da sociedade brasileira, quer mediante ação civil pública a ser promovida pelo Ministério Público, quer mediante Ação Popular cuja propositura é facultada a qualquer cidadão do país, almejando-se, em ambas as situações, atuação firme do Poder Judiciário conferindo eficácia (a partir da aplicação de penalidades) aos dispositivos constitucionais vulnerados.
5- Referências
BALERA, Wagner; SAYEG, Ricardo. Capitalismo Humanista, São Paulo, Ed. Max Limonad, 2019
BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e Positivismo Jurídico, São Paulo, Ed. Unesp
MATSUSHITA, Thiago. Libro de Memorias. XXII Congresso Ibero Americano de Direcho Constitucional, Universidade Extrenado de Colombia, 2016.
[1] “ Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”
NERY JUNIOR, Nelson, ANDRADE NERY, Rosa Maria, Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 115
[3] Fator Caph, Capitalismo Humanista, A Dimensão Econômica dos Direitos Humanos, 1ª Ed, Max Limonad 2019, fls. 91
[4] HTTPS://www.youtube.com/watch?v=M#F0M-vqgu4
[5] Fator Caph, Capitalismo Humanista, A Dimensão Econômica dos Direitos Humanos, 1ª Ed, Max Limonad 2019, fls. 308
[6] MATSUSHITA,Thiago..Librodememoriais.XXIICongresso ibero americano de direchoconstitucional,universidade extrenado de colombi2016, p981/998
[7] “ Uma outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas – particularmente contra condutas humanas indesejáveis – com um ato de coação, isto é como um mal – como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros -, um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra sua vontade, se necessário empregando até a força física – coativamente, portanto.” In: KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, São Paulo, Martins Fontes, 2019, p. 35
[8] NORBERTO BOBBIO, Jusnaturalismo e positivismo jurídico, São Paulo, 2016, Editora Unesp, pp. 144.
[9] NORBERTO BOBBIO, Jusnaturalismo e positivismo jurídico, São Paulo, 2016, Editora Unesp, pp. 154.
Mestrando em direitos humanos pela PUC/SP. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CURI, DANIEL NASCIMENTO. O capitalismo humanista e a busca pela efetividade do artigo 170 da Constituição Federal. O papel do poder judiciário nesse cenário. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 set 2021, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57162/o-capitalismo-humanista-e-a-busca-pela-efetividade-do-artigo-170-da-constituio-federal-o-papel-do-poder-judicirio-nesse-cenrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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