JOÃO CARLOS DA CUNHA MOURA
(orientador)
RESUMO: O presente estudo é voltado ao ordenamento jurídico-penal diante do abuso sexual infantil intrafamiliar com enfoque na revitimização da vítima que ocorre no judiciário. Os direitos das crianças e dos adolescentes foram, por muito tempo, inexistentes e assim criava-se precedente para maus tratos e abusos familiares sob a justificativa de que dentro de casa os responsáveis possuem absoluto poder. Neste cenário, o ECA surge como garantidor dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, além da Constituição Federal que prioriza o interesse superior dos infantojuvenis. É na infância que o indivíduo se estrutura psicologicamente, possuindo ali a sua personalidade moldada. Frente a isso, passar por uma situação traumática nos anos iniciais de vida gera inúmeras sequelas aos futuros adultos, por isso importa analisar a efetivação da vasta legislação existente no que concerne à proteção da criança e do adolescente, uma vez que esses sujeitos merecem ter condições dignas que lhe favoreçam o desenvolvimento físico, moral, mental, espiritual e social de forma livre. Desta forma, é necessário compreender conceitos básicos como criança, adolescente e família, de acordo com a legislação, para que se observe como tal abuso se dá e quais os reflexos dentro das relações sociais. Para melhor entendimento do assunto, será realizado levantamento bibliográfico quanto a definição do crime, a respeito do que é a vitimização secundária e como combater tais ações. O estudo perpassa o direito, atingindo a esfera social, dado que todos os indivíduos já foram crianças. Assim, cuidar desses sujeitos de direitos especiais é cuidar de todos, é preservar a integridade mental dos futuros adultos e efetivar os princípios básicos constitucionais, a exemplo da dignidade humana. Sendo significativo entender a legislação a respeito do crime de abuso sexual infantil, bem como quais medidas jurídicas são tomadas em face do abusador e da criança, que necessita de amparo após o trauma.
Palavras-chave: Abuso sexual infantil. Adolescente. Criança. Direitos fundamentais. Família. Vitimização.
ABSTRACT: The present study is focused on the legal-penal system in the face of child sexual abuse within the family with a focus on the victim's re-victimization that occurs in the judiciary. The rights of children and adolescents were, for a long time, non-existent, thus creating a precedent for mistreatment and family abuse under the justification that those responsible for them have absolute power in the house. In this scenario, the Brazil’s Child and Adolescent Statute emerges as a guarantor of the fundamental rights of children and adolescents, in addition to the Federal Constitution, which prioritizes the best interests of children and adolescents. It is during childhood that the individual is psychologically structured, and their personality is shaped there. Therefore, going through a traumatic situation in the early years of life generates countless consequences for future adults. It is therefore important to analyze the effectiveness of the vast existing legislation regarding the protection of children and adolescents, since these individuals deserve to have dignified conditions that favor their physical, moral, mental, spiritual, and social development in a free way. Thus, it is necessary to understand basic concepts such as child, teenager, and family, according to the legislation, in order to observe how such abuse occurs and what the reflexes are within social relations. For a better understanding of the subject, a bibliographical survey will be carried out regarding the definition of the crime, what secondary victimization is, and how to combat such actions. The study goes beyond the law, reaching the social sphere, since all individuals were once children. Thus, to take care of these subjects of special rights is to take care of everyone, to preserve the mental integrity of future adults and to enforce the basic constitutional principles, such as human dignity. It is significant to understand the legislation regarding the crime of child sexual abuse, as well as what legal measures are taken against the abuser and the child, who needs support after the trauma.
Keywords: Adolescent. Child. Child sexual abuse. Family. Fundamental rights. Victimization.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 O ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO E A PUNIÇÃO A QUEM COMETE ABUSO SEXUAL INFANTIL. 2.1 Legislação penal, Constituição Federal e ECA frente ao abuso sexual infantil intrafamiliar. 2.2 Ação penal em face do crime de abuso sexual infantil intrafamiliar. 2.3 Da definição de criança, adolescente e família. 3 OS MECANISMOS JURÍDICOS DE PROTEÇÃO À VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INFANTIL. 3.1 Vitimização secundária. 3.2 Mecanismos de proteção à vítima. 3.2.1 Atenção primária à vítima. 3.2.2 Delegacias especializadas. 3.2.3 Conselho Tutelar. 3.2.4 Acolhimento institucional. 4 MEDIDAS DE PREVENÇÃO A SUBNOTIFICAÇÃO DOS CASOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR EM FACE DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. 4.1 O combate ao abuso sexual infantil intrafamiliar e o 18 de maio. 4.2 O fenômeno da alienação parental e suas consequências ao abuso sexual infantil intrafamiliar. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
O abuso sexual infantil afeta o que há de mais puro na sociedade: a criança. A qual possui sua infância maculada, pois tem seu corpo invadido de maneira indigna. A situação é ainda mais problemática, pois grande parte dos abusos ocorre no ambiente familiar, conforme dados da Agência Brasil que mostram que mais de 70% da violência sexual contra crianças ocorre dentro de casa. Com isso, há uma dificuldade em identificar os casos, uma vez que ocorrem no local que deveria ser de afeto e aprendizagem.
O Direito possui como finalidade a garantia de uma vida justa para todos. Entretanto, esta ciência distancia-se de seu propósito quando observada a insegurança as quais crianças e adolescentes são submetidos no que concerne ao aspecto sexual. O ambiente familiar pode ser um ambiente hostil e inapropriado a um desenvolvimento digno, assim cabe ao Estado intervir, visto que as pessoas que deveriam dar amor e os devidos cuidados são muitas vezes as causadoras dos maiores traumas na vida do infante.
Esse problema transpassa o campo jurídico, atingindo o campo psicológico, se analisadas as sequelas deixadas nas vítimas de abuso sexual infantil intrafamiliar. A interdisciplinaridade é importante em todos os aspectos, inclusive em todo o processo que envolve a denúncia do crime de abuso sexual. O amparo deve começar desde o momento em que a vítima, como única testemunha na maioria das vezes, tem que ser colocada diante de autoridades jurídicas para depor e reviver tudo o que lhe ocorreu por meio de seus relatos.
O surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente no ano de 1990 foi um avanço aos direitos infantojuvenis, uma vez que a disposição das famílias e a crença patriarcal de que os familiares possuíam absoluto poder diante de seus filhos, podendo agir assim como bem entenderem, silenciou durante muito tempo maus tratos e abusos. O silenciamento ainda existe, se observados os dados referentes as subnotificações em casos de abuso sexual infantil intrafamiliar. Contudo, a inexistência de legislação a respeito, agravava a situação.
A vulnerabilidade das crianças que são vítimas é enorme, pois estas muitas vezes sequer sabem que estão sofrendo abuso, pois como o ato é praticado por um ente familiar, tem-se como crença de que aquilo é natural, ou até mesmo acredita que seja uma espécie de carinho, o que acarreta inúmeros transtornos mentais e traumas futuros. Além disso, mesmo entendendo que o ocorrido configura um abuso, na maioria das vezes não há a quem recorrer, visto que quem deveria lhe prestar todo o suporte é quem pratica o ato. Desse modo, essa realidade existe mais do que se imagina, dada a enorme subnotificação dos casos, seja por vergonha de alguns familiares que tomam conhecimento e preferem não expor ou seja pela falta de amparo a essas crianças.
Diante do exposto, há uma vasta legislação que protege as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, sobretudo penal, contudo, ainda é possível observar a recorrência desses casos, bem como a sua subnotificação. Dentro desse problema, tem-se ainda o fato de que muitos meninos são vítimas, porém, não há tantas denúncias a respeito deles, visto que se implanta uma ideia social de virilidade masculina, o que impede que esses sejam também amparados. Ante a tudo que fora explanado, o direito penal é um espaço de prevenção a esses abusos, ou de mera punição?
A principal resposta hipotética para a questão é que o sistema penal é punitivista, então, em análise a esse ordenamento jurídico observa-se que seu intuito é o enrijecimento das penas a fim de que haja uma punição. Todavia, tratando-se de um crime que mexe com a estrutura física e mental de crianças, a ação posterior não repara os danos causados. Uma vez que a prevenção desses crimes é a melhor alternativa em face da mera punição, visto que não se soluciona o problema da segurança dessa maneira somente.
A base jurídica em face do abuso sexual infantil é vasta, em observância aos tipos penais que podem ser adequados a esse crime, mas importa evidenciar que além do crime que essa criança ou adolescente sofre ainda há um caminho tortuoso a percorrer dentro das investigações, pois as vítimas repetem inúmeras vezes seus depoimentos, revivendo assim os acontecimentos, além de terem sua confiabilidade fragilizada. Diante disso, essa revisitação ao crime a que são submetidas faz com que haja uma revitimização, indo de encontro ao que o ordenamento jurídico penal se propõe, pois nesse caso a vítima está sendo punida por algo que não tem culpa.
Nesse aspecto, o objetivo principal deste trabalho é analisar a efetividade das medidas jurídico-penais quanto ao abuso sexual intrafamiliar, à medida que são destacados como objetivos específicos: a) compreender de que forma o ordenamento jurídico penal brasileiro pune quem comete abuso sexual infantil; b) estudar os mecanismos jurídicos de proteção à criança vítima de abuso sexual infantil e entender se o direito penal é um espaço de prevenção a esses abusos, ou de mera punição; c) discutir a partir do melhor interesse da criança, de que maneira o ordenamento jurídico penal brasileiro pode agir para que não haja subnotificação dos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar.
A relevância acadêmica do presente trabalho se atribui ao bem jurídico tutelado, que é a dignidade sexual de crianças e adolescentes. A própria Constituição Federal trata dos direitos desses sujeitos especiais como prioridade. Além disso, a sociedade demanda profissionais preparados para lidar com os casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, em vista da vulnerabilidade das vítimas e de quão complexo é o problema.
A relevância social, que está ao lado da relevância científica neste trabalho, se dá com o exorbitante número de casos de abuso sexual infantil intrafamiliar e com a alta subnotificação desse crime, o que agrava mais ainda o problema e gera danos irreversíveis. A infância é a fase da vida que forma os adultos em todos os aspectos, então atentar-se a esses sujeitos de direitos especiais é observar e proteger os futuros adultos.
A motivação pessoal nasceu da observância de relatos próximos de pessoas que foram vítimas do abuso sexual infantil e, hoje, vivem as consequências de forma cruel. Somado a isto, vem a observação ao problema que é silenciado e pouco comentado no dia a dia, seja por receio ou pela crença de que nunca irá acontecer “na minha família”. Por fim, o meu amor por direito penal e direito das famílias atrelado a minha paixão pelo cuidado com crianças e adolescentes fez nascer o presente trabalho.
Ademais, o método utilizado foi o hipotético-dedutivo que, conforme Lakatos e Marconi (2003), consiste na análise dos fatos dentro da realidade, ou melhor, dentro de um contexto. Esse método parte de um problema inicial o qual é apresentada uma solução provisória, passando-se depois a criticar tal solução, com vista à eliminação do erro. Busca-se observar as diversas visões acerca do assunto. Desse modo, o artigo se dispõe a entender os fatos e considerar em que situações eles ocorrem e por qual motivo, buscando a raiz do problema de modo que suscite diversos questionamentos ao leitor.
A aplicação do método hipotético-dedutivo e sua análise em face de diferentes contextos se deu por meio de pesquisa bibliográfica em livros doutrinários, artigos disponíveis na internet e dados percentuais.
Para melhor entendimento do tema, a presente monografia se divide em três capítulos. O primeiro busca entender o ordenamento jurídico-penal brasileiro e a punição a quem comete abuso sexual infantil, buscando compreender as diferentes tipificações do crime, o caminho processual e a definição de criança, adolescente e família conforme o ECA.
Por conseguinte, serão analisados os mecanismos de proteção as vítimas de abuso sexual infantil intrafamiliar, buscando entender como o judiciário se porta e como a rede de apoio presta a devida atenção a vítima.
Por fim, os mecanismos de prevenção a ocorrência do crime, medidas pedagógicas e educacionais, além das campanhas de conscientização serão analisados. Também será estudada a influência da família na notificação desses crimes.
2 O ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO E A PUNIÇÃO A QUEM COMETE ABUSO SEXUAL INFANTIL
O presente capítulo objetiva retratar como a legislação se porta diante do crime de abuso sexual infantil intrafamiliar, com enfoque na legislação penal a fim de compreender quais medidas legais manifesta e além disso, demonstrar como há a revitimização da vítima que já sofreu com o abuso.
O estudo será voltado sobretudo a esse sujeito de direitos especiais que tem uma importante fase de sua vida tolhida com reflexos em diversos aspectos do seu futuro. O sistema penal além de não estar preparado para lidar com a vítima, não está preparado para lidar com o acusado, não havendo assim um denominador comum que promova a justiça e ao mesmo tempo uma política de redução de danos.
2.1 Legislação penal, Constituição Federal e ECA frente ao abuso sexual infantil intrafamiliar
A legislação que protege a dignidade sexual da criança é vasta, dada a sua importância social, uma vez que traumas na fase infantil ocasionam reflexos para toda a vida. A Constituição Federal brasileira de 1988, que engloba as normas mais importantes aduz em seu artigo 227, caput:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)
E em seu § 4º, do artigo supramencionado, cita que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. Observa-se assim, que é prioridade absoluta do Estado cuidar da dignidade da criança. Andrade et al. (2018) retrata isso ao definir o princípio do interesse superior da criança e do adolescente, afirmando que este deve pairar como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens, isto é, deve existir amplo resguardo dos direitos fundamentais, sem subjetivismos do intérprete.
Nesse sentido, ainda sobre o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, Ishida (2015) entende que este trata-se da admissão da prioridade absoluta dos direitos dos infantojuvenis. Desse modo, em análise ao dito pelos dois autores, entende-se que o princípio debatido é o norte que orienta todos aqueles que vão de encontro às exigências naturais da infância e juventude. Com isso, para materializar os direitos das crianças e dos jovens o Estado deverá agir prontamente. O abuso sexual infantil se configura como maus tratos, conforme leciona Ishida (2015). Caso alguma das pessoas elencadas no rol do artigo 245 do ECA (médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche) tenha conhecimento da ocorrência de maus tratos no ambiente familiar de uma criança, deve comunicar às autoridades competentes (BRASIL, 1990b).
A não comunicação desses maus tratos por parte do rol elencado acima, poderá acarretar na determinação de sanção, visto que estes não estão contribuindo para a preservação da integridade física, psíquica e intelectual da criança e do adolescente.
Nucci (2014) elucida acerca do crime de estupro de vulnerável que, o incapaz de consentir validamente para o ato sexual tem uma denominação própria: vulnerável, que significa ser passível de lesão, despido de proteção. A tipificação trazida no artigo 217-A do Código Penal brasileiro protege justamente esse indivíduo que não possui a capacidade de resistir, no caso aqui debatido ainda se torna mais difícil, pois a violência ocorre no local que deveria haver proteção, ou seja, a vulnerabilidade da vítima é ainda maior.
Prado (2019) afirma que a vulnerabilidade do crime tipificado no artigo 217-A do Código penal brasileiro respeita a sua capacidade de reagir a intervenções de terceiros quando no exercício de sua sexualidade. Nesse crime, o sujeito passivo é caracterizado como vulnerável quando por ser ou estar mais suscetível à ação de quem pretende intervir em sua liberdade sexual, de modo a lesioná-la, como leciona o autor. Observando os princípios elencados pelo ECA e em decorrência da dignidade humana, cabe entender que é de total necessidade além da proteção, a severa punição no que tange esse crime, pois a vítima é vulnerável e está em um ambiente o qual deveria sentir-se segura.
Além da tipificação do Código Penal, o Estatuto da Criança e do adolescente alude em seu artigo art. 130 que caso seja verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsáveis, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum (BRASIL, 1990b).
O Código Penal Brasileiro em seu artigo 218 penaliza aquele que induz alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos (BRASIL, 1940). Contudo, acerca dessa tipificação Nucci (2014) afirma:
Entretanto, o equívoco gerado pelo novo art. 218 é visível. Criou-se uma modalidade de exceção pluralística à teoria monística, impedindo a punição de partícipe de estupro de vulnerável, pela pena prevista para o art. 217-A, quando se der na modalidade de induzimento (participação moral).
O autor acredita que não deveria haver concessão de pena menor ao indutor em face dos princípios elucidados e da enorme proteção que as crianças e adolescentes têm, de fato. Pois o instigador está dando a ideia a esse sujeito de direitos especiais, que não possui maturidade para a escolha, ou seja, a pessoa está influenciando um vulnerável a ser vítima de um crime, o que configura um absurdo.
O artigo 61 Código Penal brasileiro expõe circunstâncias agravantes genéricas no concernente ao delito sexual praticado contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge, em sua alínea “e”. Há também agravante nos casos em que se é aproveitada a relação doméstica de coabitação ou hospitalidade, conforme alínea “f”. Observa-se como a legislação penal almeja assegurar uma punição maior em casos que se é utilizado o poder familiar ou de intimidade para a prática do crime, uma forma de entender a maior vulnerabilidade nessas relações. (BRASIL, 1940)
A legislação penal traz como hipótese de aumento de pena em seu artigo 226, II algumas circunstâncias quanto a ligação do agente e da vítima caso seja ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou ter qualquer outro título de autoridade sobre ela. Percebe-se como a relação familiar e de poder faz com que o crime seja mais cruel ainda, merecendo assim a majoração da pena.
2.2 Ação penal em face do crime de abuso sexual infantil intrafamiliar
Bem como Lopes (2020) expõe, dentro da sistemática brasileira, para saber de quem será a legitimidade ativa para propor a ação penal, deve-se observar o delito e não só, mas também o capítulo e até mesmo o título no qual está inserida a descrição típica. Em observância ao Título VI do Código Penal que trata acerca dos crimes contra a dignidade sexual, tem-se em seu artigo 225 que nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada (BRASIL, 1940). Se tratando de ação penal de iniciativa pública a atribuição é exclusiva do Ministério Público, assim, membros desse órgão podem exercer por meio da denúncia, bem como aduz o autor citado.
A ação penal de iniciativa pública tem diversas características e a primeira delas é a obrigatoriedade, chamada também de legalidade que conforme anuncia Lopes (2020) consiste no dever em que o Ministério Público tem de oferecer a denúncia sempre que presentes as condições da ação que são: prática de fato aparentemente criminoso- fumus comissi delicti; punibilidade concentra e justa causa. A indisponibilidade é outra característica da ação penal de iniciativa pública que consiste na impossibilidade de o Ministério Público desistir da ação penal, assim, uma vez iniciada não pode este dispor da ação penal. No que concerne aos crimes contra a dignidade sexual, a ação penal é pública incondicionada, com isso, ela é exercida por meio da denúncia e tem sua atribuição exclusiva do Ministério Público.
A incondicionalidade da ação penal pública torna irrelevante a manifestação do ofendido, então a denúncia pode ser oferecida mesmo sem a sua autorização, basta constatar que está caracterizada a prática do crime (autoria e materialidade), bem como na mesma conjuntura, caso a autoridade policial tenha conhecimento da ocorrência de um crime, deverá, de ofício, determinar a instauração do inquérito policial para apurar responsabilidades, conforme o artigo 5°, II do Código de Processo Penal brasileiro. (POTTER, 2019).
No que diz respeito ao prazo para a denúncia, o Ministério Público tem, em tese, até a prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato, calculada pela maior pena prevista no tipo penal e a partir dos prazos previstos no artigo 109 do Código Penal brasileiro tem-se o valor (LOPES, 2020). A prática do crime de estupro de vulnerável, tipificado no artigo 217- A do Código Penal brasileiro, tem como prazo prescricional 20 anos, seguindo o que ordena o artigo 109, I, o qual aduz que os crimes que possuem o máximo da pena superior a doze anos, o que é o caso do crime em questão, em que o máximo da pena é de 15 anos, prescreverão em 20 anos (BRASIL, 1940).
O bem jurídico tutelado pelo direito penal em casos de delitos sexuais é a liberdade sexual da vítima (POTTER, 2019). Mas cabe destacar que no referente às crianças e aos adolescentes, a violação vai muito além da liberdade sexual, dada a fase de desenvolvimento a qual se encontram, atingindo assim a integridade física, psicológica e a dignidade da pessoa humana.
O Estado é violentador a partir do momento em que se observa todo o caminho percorrido pelos infantojuvenis, desde a violência até a investigação e consequente condenação (POTTER, 2019, p. 197). Por se tratar de um crime cometido no seio familiar, a sua perversidade é maximizada, com isso, na maioria das vezes quem relata o crime são as outras pessoas que possuem contato com aquela criança ou adolescente, educadores, médicos ou dentistas. Ao ter ciência de que aquela criança ou adolescente possivelmente é vítima de um abuso sexual infantil no ambiente familiar, uma das formas de relatar o fato é procurando o Conselho Tutelar, como assevera o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 13 e 98. Após a colheita dos relatos e ao ser instaurada a investigação policial, a vítima é submetida aos exames periciais para que sejam apurados os fatos ocorridos.
A realização do exame de corpo de delito em caso de crime sexual almeja saber se o estupro teve ou não conjunção carnal, qual o meio empregado para a realização da violência, quais mecanismos além da idade impossibilitaram a vítima de oferecer resistência (CROCE; CROCE JUNIOR, 2012). Então, preliminarmente, o jovem, seja ele criança ou adolescente, é submetido a diversos procedimentos, que claro, buscam efetivar a justiça e a existência de uma denúncia fundamentada, contudo, a repetição de depoimentos para pessoas diferentes e em locais distintos ocasiona medo naquela vítima que já está traumatizada com a prática do crime. Com isso, cabe considerar o despreparo estatal para lidar com essa situação, pois sem o devido amparo, o que ocorre é a revitimização do indivíduo.
O despreparo está desde a fase preliminar, com a escassez de delegacias especializadas ao atendimento dos infantojuvenis a carência de médicos peritos especializados em crimes sexuais que envolvam vítimas infantojuvenis, uma vez que o tratamento deve ser totalmente distinto ao dado para as vítimas já adultas.
Batista e Cadan (2020) expressam que o termo “vulnerável” caracteriza aqueles cuja desigualdade, seja ela potencial ou real, pode levar à supressão de direitos ou gerar entraves para o pleno exercício da cidadania. Em análise a definição e em observância ao conceito de criança e adolescente trazido pelo ECA em seu artigo 2°, tem-se a convergência de ambos. Pois socialmente, os sujeitos de direitos especiais, são seres vulneráveis que dependem de seus responsáveis para fazer basicamente tudo, desde a alimentação até o estudo e assim, quando se analisa um crime tão cruel como o abuso sexual infantil intrafamiliar, observa-se que a vítima é vulnerável ao extremo, em virtude da situação a qual é submetida, uma vez que quem deveria lhe proteger e cuidar é aquele que põe a sua dignidade em risco.
O sistema de justiça se torna o principal agente quando se tem a ocorrência desse crime, cabendo assim fazer a indagação da relação do sistema de justiça em face das demandas trazidas pelos públicos vulneráveis (POTTER, 2019, p. 275). Pois a política empregada, deve ser a de redução de danos, a que almeja não revitimizar aquele indivíduo que foi covardemente ferido, desde o seu físico ao seu psicológico. Na maioria das vezes a vítima é a única testemunha em caso de abuso sexual infantil intrafamiliar, sendo ela indagada diversas vezes por autoridades distintas.
Nesse aspecto, a vítima-testemunha infantil juvenil dentro do processo penal, tem direitos e garantias fundamentais violados, em decorrência do não cuidado especial existente na sua oitiva, pois é obrigada a percorrer todo o itinerário até o esclarecimento do ocorrido. Potter (2019) afirma que o Estado não está preparado com recursos capazes de proteger e preservar a vítima em sua integridade moral, psicológica e socioafetiva. O que deveria ocorrer era uma preparação com profissionais especializados em crianças e adolescentes, a exemplo de pedagogos e psicólogos.
O depoimento sem dano, que é o depoimento especial, visa proteger a criança e colocar em prática o princípio do melhor interesse a criança amparado no artigo 227 da Constituição Federal Brasileira. O depoimento sem dano consiste na oitiva da criança ou adolescente por uma equipe de psicólogos e assistentes sociais, preparados para lidar com a situação e o juiz participa de tudo por meio de vídeo, escutando as declarações daquela vítima, sem intervir (HOMEM, 2015). Esse depoimento visa colocar em prática uma política de redução de danos, pois o infante já foi submetido ao crime e ter que relembrar inúmeras vezes o mesmo fato para um profissional que não possui a escuta adequada, é torturante e faz com que esse indivíduo seja revitimizado, ou seja, passe mais de uma vez pelo mesmo crime, então além de reduzir os danos psicológicos, busca-se a naturalidade da fala dessa criança, preservando assim sua integridade moral e física.
Importa destacar que não há legislação que obrigue o uso do Depoimento sem Dano, mas a técnica se popularizou em alguns estados e busca reduzir os danos causados pelo crime (BATISTA; CADAN, 2020). O objetivo do sistema de justiça é descobrir a realidade dos fatos e para isso necessita de minuciosa investigação, para que não haja injustiças, mas isso não significa que a vítima deva ser submetida a uma escuta não especializada e sem os devidos cuidados.
Há casos envolvendo abuso sexual contra crianças e adolescentes, em que dificilmente pode-se estabelecer a materialidade por meio de elementos físicos ou comportamentais, a fim de evidenciar o ocorrido, já que comumente são situações que acontecem de modo silencioso. Assim, o depoimento de quem estava diretamente implicado no evento criminal parece fundamental (AMENDOLA, 2009). Por isso, com a enorme importância do depoimento da vítima, faz-se necessário um amparo especial, ainda mais por conta de todo o trauma e da fase em que se situa, a infância ou começo da adolescência.
Dentro da teoria do direito penal mínimo, existem os princípios metodológicos da construção alternativa dos conflitos e dos problemas sociais, conforme Baratta (1987). Nessa classificação o autor aduz acerca do princípio geral de prevenção que oferece uma indicação política fundamental para uma estratégia alternativa de controle social. Tal princípio busca deslocar, cada vez mais, a ênfase posta nas formas de controle repressivo para formas de controle preventivo.
O princípio retromencionado é relevante em face de todos os tipos penais, pois o que se busca é a não existência de crimes, então nada mais justo que os prevenir, agindo com uma política de prevenção de danos. Em face ao aludido, tem-se como questionamento se o Estado fomenta as violências, seja por omissão ou por maciça intervenção. O controle social deve existir, mas é necessária a realização de medidas focadas na criança e no adolescente, principalmente nos ambientes extrafamiliares para que aquela criança esteja ciente dos tipos de violência e dos limites ao que concerne o toque em seu corpo.
No âmbito penal é necessária a produção de prova qualificada se tratando de abuso sexual a um infantojuvenil (POTTER, 2019). Nesse aspecto, após a reconstrução material, é possível extrair, em regra, as consequências jurídicas do caso, contudo, na maioria das vezes o suporte informativo da realidade processual é muitas vezes limitado, mas mesmo com essa situação deve haver a investigação a fim de que não haja impunidade. Além disso, para que não existam outras vítimas do abusador.
Na situação debatida não é diferente, o processo penal precisa respeitar o devido processo legal sendo assim justo, dado que o art. 5°, LIV da Constituição anuncia que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (BRASIL, 1988). Essa garantia constitucional deve ser harmonizada ao princípio do contraditório e com as limitações processuais existentes em um caso de abuso sexual infantil. A partir do momento que se tem o depoimento especial para que a vítima, no caso o infantojuvenil, seja preservado, dada a ocorrência do crime, não há mácula aos princípios constitucionais, pelo contrário, há uma ponderação entre contraditório e respeito às garantias fundamentais da vítima, em prol da preservação de sua dignidade.
Em acórdão proferido na Apelação de nº 70042952382 em 2011, a Oitava Câmara Criminal do TJRS a Desembargadora Fabianne Baisch decidiu pela constitucionalidade do uso do depoimento especial:
[...] Por outro lado, embora se reconheça a relevância do contato direto do magistrado com a vítima e a validade da comunicação não verbal, na formação da livre convicção do julgador, há que considerar que a adoção do procedimento especial não inviabiliza o juiz, assim como o Ministério Público e a defesa, os quais assistirão o ato através de equipamentos de áudio e vídeo de tecnologia avançada, que interligam a sala de audiências com o local onde se encontra a vítima, de participarem ativamente da inquirição, formulando perguntas, a fim de elucidar eventuais pontos controvertidos; ao contrário, já que a entrevista será integralmente gravada em CD, que será anexado ao processo, possibilitando inclusive a visualização das reações apresentadas pelo ofendido durante o depoimento. Por certo que não é obrigatório. Mas, diante da especial relevância e inegável proveito - reduzindo a exposição da criança ou adolescente, já traumatizados com a violência sofrida -, merece ser privilegiado. Nessas condições, não se vislumbrando nenhum prejuízo pelo emprego desta sistemática, seja à acusação, seja à defesa ou à formação do livre convencimento do juiz, deve prevalecer aquele meio disponível que, a meu ver, revela-se mais hábil na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, vítimas de abuso, e resguardo da dignidade, respeito e intimidade das mesmas. Mas não se ignora, por outro lado, que existem casos nos quais o adolescente está no limiar de completar a maioridade, despontado absolutamente desproporcional a medida de proteção, com a ouvida através de profissionais da área social e psicológica. (RIO GRANDE DO SUL, 2011)
O julgado acima foi transcrito para que se observe, por meio de exemplo real, como dentro de um crime tão delicado a análise deve ser cuidadosa e além disso, deve respeitar as particularidades de cada caso, tentando minimizar os danos e deixar a vítima o mais confortável possível. Contudo, é inevitável o sofrimento dessa vítima testemunha, pois ela reviverá todo o ocorrido, então já que o sofrimento ocorrerá que seja o menos danoso, para que não haja a revitimização já mencionada.
A Lei 13.431/17 estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Nesta lei têm-se os aparatos técnicos em relação à justiça criminal. A proteção às crianças almeja concretizar o artigo 227 da Constituição federal e assim, as crianças, quando chamadas para testemunhar acerca de um fato criminal tem-se a revisão de alguns protocolos de atuação dos profissionais do sistema de justiça.
O Decreto nº 99.710/1990 que promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe em seu artigo 12:
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional. (BRASIL, 1990a)
Observa-se então que a oitiva da criança é um direito garantido em prol de um processo, busca-se assim assegurar o devido processo legal. O cuidado na escuta da criança está relacionado a sua dignidade e além disso, tem-se o objetivo de extrair a verdade dos fatos da forma menos danosa possível.
O artigo 111 do Código Penal brasileiro dispõe acerca das situações em que a prescrição da pretensão punitiva lato sensu começa a correr. No que concerne aos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos no Código Penal ou em legislação especial, o início se dá da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal. Nesse sentido, a legislação penal, em sua função interventora, almeja efetivar a justiça e proteger a dignidade sexual do infante, pois o termo inicial da prescrição punitiva se inicia, como fora retromencionado, quando este completar 18 anos, podendo exercer o direito de representar, ainda que a violência sexual tenha ocorrido durante sua infância ou adolescência.
Assim, Bitencourt (2020) assevera acerca do dispositivo legal citado que o objetivo da novel norma penal é proporcionar maior proteção ao bem jurídico - dignidade sexual do infanto-juvenil-. Conforme o autor, objetiva-se com a norma em comento a seguridade da persecução penal, ou melhor, da atividade repressiva do Estado. Até porque, até a maioridade penal a legitimidade para representar o ofendido infantojuvenil é do seu representante legal e em grande parte dos casos, o violentador dessa criança ou adolescente é aquele que legalmente, seriam os seus representantes (pais, padrastos, tutores etc.), conforme abordado aqui.
2.3 Da definição de criança, adolescente e família
Ao tratar de violência sexual infantil intrafamiliar é imprescindível evocar o conceito legal de família. Ao longo dos anos esse conceito sofreu alterações significativas, pois antes os conceitos estavam atrelados a formalidade do casamento e a consanguinidade, como preconizava o Código Civil brasileiro de 1916. Farias e Rosenvald (2016) determinam que o conceito de família assume uma concepção múltipla, plural, podendo dizer respeito a um ou mais indivíduos, ligados por traços biológicos ou sociopsicoafetivos, com a intenção de estabelecer, eticamente, o desenvolvimento da personalidade de cada um.
A família é um núcleo transmissor de costumes e experiências humanas que vão passando de geração em geração (FARIAS; ROSENVALD, 2016). A amplificação do conceito acompanhou a evolução social, visto que a família é composta por aquelas pessoas que participam das relações interpessoais e sociais do indivíduo, existindo ou não consanguinidade. É nesse ambiente familiar que o infante terá sua formação, assim, para a criança, o modelo da relação ao qual for submetido será o padrão que guiará suas ações, então se o ambiente for de agressão e abuso, existirão reflexos psicológicos e comportamentais.
Farias e Rosenvald (2016) asseguram que a família é o lugar adequado em que o ser humano nasce inserido e, merecendo uma especial proteção do Estado, desenvolve a sua personalidade em busca da felicidade e da realização pessoal. Entretanto, como visto aqui, muitas crianças e adolescentes possuem essa parte da sua vida maculada em vista da violência a qual são submetidos, pelas pessoas que deveriam cuidar e proporcionar um ambiente saudável. Nesse aspecto, os conceitos jurídicos de criança e adolescente merecem destaque.
O Estatuto da Criança e do Adolescente traz em seu artigo 2° que a pessoa até doze anos de idade incompletos é definida como criança, e adolescente é aquela entre doze e dezoito anos de idade para efeito da referida lei (BRASIL, 1990b). Após a definição jurídica, é importante observar que o “ser criança” e o “ser adolescente” são fases diferentes, não só na vida, mas também de vivência sexual (POTTER, 2019). Com isso, a depender da maturidade biológica, a consequência do abuso sexual infantojuvenil intrafamiliar deixa uma sequela distinta.
A infância é uma fase transitória que molda o físico e psíquico da criança para a sua vida adulta (MARQUES et al., 2013). Mas essa fase da vida é ampla, pois há momentos em que o infante depende integralmente da ajuda dos seus pais e responsáveis, seja para andar, banhar ou se alimentar, mas já há uma fase em que essa criança adquiriu certa autonomia. Então, em cada fase dessa deve existir um tratamento diferenciado e uma atenção especial.
A dependência estrutural das crianças consiste na confiança plena delas em seu progenitor ou cuidador, acreditando que tudo que eles fazem é bom e ajuda de alguma forma em seu desenvolvimento (FURNISS, 1993). Além disso, no abuso sexual infantil questões de poder estão envolvidas, conforme afirma Furniss (1993), assim, estruturalmente há uma interferência desse poder na relação. Essa dinâmica de poder se dá tanto pelas atitudes, quanto fisicamente, então aquele infante além de ter que obedecer aos seus pais ou responsáveis, ainda tem que se submeter a força física deles.
Marques et al. (2013) afirma que o Direito Penal produz mais violência que combate. Em face dos princípios constitucionais, o direito penal deve agir somente quando medidas menos gravosas não forem cabíveis. Nesse sentido, cabe destacar, sob a ótica dos autores retromencionados, que o direito penal também é uma forma de violência e no que concerne ao crime aqui debatido, a tutela do direito penal é da liberdade sexual da criança e do desenvolvimento livre e sadio da sua personalidade sexual.
No julgamento do Recurso Especial 1.159.242 SP, o STJ decidiu que: “Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos” (BRASIL, 2012). Entende-se que amar é faculdade, mas cuidar é dever, assim, os responsáveis possuem legalmente a obrigação de cuidar dos filhos e preservar sua dignidade e integridade. Por isso, o crime em questão é uma barbárie, pois é cometido por quem deveria preservar a saúde desse infante.
É de suma importância definir as diferentes formas de violência sexual, especialmente do abuso sexual intrafamiliar que podem se dar com ou sem contato físico. A relação de poder já mencionada, acarreta em uma superioridade em que a vítima é constrangida e ameaçada pelo abusador, seja fisicamente ou verbalmente, por conversas sobre sexualidade destinadas a despertar o interesse da criança e do adolescente, por meio da exibição de filmes pornográficos, exibicionismo e do voyeurismo (POTTER, 2019). Além do ato sexual propriamente dito, podem existir, conforme mencionado, a masturbação do abusador em frente da vítima ou o induzimento a prática de relações sexuais daqueles que estão em desenvolvimento.
Essas práticas são nocivas e causam sequelas aos que são submetidos, havendo uma perturbação psicológica visto que o trauma não está atrelado somente ao toque, mas também ao que aquele infante olha e escuta. No Brasil não há legislação específica que trate acerca do abuso sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes, então os dispositivos que tutelam esse bem jurídico são os dispostos no Código Penal brasileiro. O artigo 217-A da legislação supramencionada trata acerca do estupro de vulnerável tutelando as crianças, que vão até os 12 anos de idade conforme o estatuto da criança e parte dos adolescentes (até 14 anos). O 213 da mesma legislação tipifica o crime de estupro e tutela os adolescentes e adultos. (BRASIL, 1940)
Além do que fora citado, existem outros tipos penais que podem se encaixar nesse envolvimento criminoso que faz uso da relação de parentalidade ou de autoridade. No que tange a relação sexual de adultos com crianças ou adolescentes no contexto familiar pode existir a conduta do artigo 218 do Código Penal que consiste no uso do menor de 14 anos para servir a lascívia de outrem, o artigo 218 -A do dispositivo mencionado configura como crime a conduta de satisfazer a lascívia mediante presença de criança ou adolescente. Além disso, o artigo posterior, o 218-A aduz acerca do favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de vulnerável. (BRASIL, 1940)
O capítulo V do Código Penal brasileiro também tutela a dignidade sexual abrangendo os infantes. Em seu artigo 227 tipifica a conduta de mediação para servir a lascívia de outrem (BRASIL, 1940). Desse modo, em face de todos os dispositivos citados, observa-se que não configura o abuso sexual infantil intrafamiliar somente o ato entre o próprio familiar e a criança ou adolescente, mas também o fato de favorecer que outra pessoa violente aquela vítima, permitir ou até mesmo realizar práticas sexuais na sua frente. Pois, todas essas condutas de alguma maneira maculam a fase da vida daquela criança ou jovem, visto que quem deveria lhe dar amor, carinho e cuidados é quem está lhe machucando ou permitindo que lhe machuquem.
As condutas mencionadas buscam tutelar o bem jurídico em questão que é a dignidade sexual e nesse caso, sobretudo, além do físico, o psicológico dessa vítima que é submetida a um crime tão bárbaro durante um período muito longo, pois até que se descubra, os traumas aos quais foram submetidos já deixa danos irreparáveis.
Além da legislação penal, o artigo 244-A da Lei n° 8.069, ECA dispõe acerca do assunto tipificando a conduta de submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual. Nesse aspecto, o Estatuto da Criança e do adolescente traz as consequências a quem comete essa forma de abuso, seu artigo 98, II anuncia que são aplicadas as medidas de proteção à criança e ao adolescente sempre que os direitos reconhecidos determinados na Lei em questão forem ameaçados ou violados por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável. (BRASIL, 1990b). O abuso sexual já referido enquadra-se na conduta mencionada e tal crime é mais comum do que se imagina, pois além de a vítima sofrer com seu agressor, em algumas ocasiões a outra pessoa que é sua responsável, seja mãe, pai, madrasta ou padrasto são coniventes, o que dificulta ainda mais a punição do autor desse crime, bem como a sua libertação dessa crueldade.
Nucci (2018) define as medidas de proteção citadas no caput do artigo colacionado como as determinações dos órgãos estatais competentes para tutelar, de imediato, de forma provisória ou definitiva, os direitos e garantias da criança ou adolescente, com enfoque na situação de vulnerabilidade na qual se vê inserido o infante ou jovem. Essas medidas estão elencadas no art. 101 do Estatuto da Criança e do adolescente e são aplicadas de acordo com o caso em concreto. O dispositivo busca preservar a integridade dessa vítima, bem como punir o acusado.
Nucci (2014) afirma que a tutela penal no campo sexual se estende, com maior zelo, em relação às pessoas incapazes de externar seu consentimento racional e seguro de forma plena. A criação do art. 217-A do Código Penal observa a vulnerabilidade do jovem que pode ser facilmente convencido de praticar um ato o qual não deveria pela sua imaturidade e também pela relação de poder existente, até porque um adulto possui mais poder que um infante ou adolescente e o adulto que é responsável por aquela vítima, possui ainda mais, visto que ela é a pessoa a qual deve ser respeitada e obedecida pela lógica do arcabouço familiar. Constatar essa vulnerabilidade é importante, pois o discernimento daquela vítima é reduzido, então, é cabível tipificar tal ato almejando o afastamento da presunção de violência, pois este não é requisito para a consumação do crime (POTTER, 2019).
A interpretação jurisprudencial acerca da abolição de necessidade da presunção de violência no crime de estupro de vulnerável é clara, conforme se observa no julgamento do Habeas Corpus n° 101.456 - TJMG pelo STF, do Relator Ministro Eros Grau:
1. Ambas as Turmas desta Corte pacificaram o entendimento de que a presunção de violência de que trata o artigo 224, alínea a, do Código Penal é absoluta. 2. A violência presumida foi eliminada pela Lei nº 12.015/2009. A simples conjunção carnal com menor de quatorze anos consubstancia crime de estupro. Não se há mais de perquirir se houve ou não violência. A lei consolidou de vez a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ordem indeferida. (BRASIL, 2010a)
Para que se figure o tipo penal colacionado, basta que o agente saiba que aquela vítima é menor de catorze anos e decida ter conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com ela. Considerando o caso em questão, de abuso sexual infantil intrafamiliar, é quase impossível que o agente tenha desconhecimento da idade da vítima pelo fato dele ser o responsável. Contudo, mesmo que exista o desconhecimento seja por desleixo ou descuido, o crime ainda está figurado, pois aquela vítima está em situação de vulnerabilidade não podendo ter a quem recorrer, visto que a prática é realizada por quem tem o dever legal de lhe proteger.
A irrelevância da vontade da vítima no ato sexual praticado contra menor de quatorze anos já foi reconhecida em precedente judicial do STF. Em abril de 2014, nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.152.864/SC, sob a relatoria da Ministra Laurita Vaz, tem-se:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. ARTS. 213 C.C 224, ALÍNEA A, DO CÓDIGO PENAL, NA REDAÇÃO ANTERIOR À LEI N.º 12.015/2009. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA. CONSENTIMENTO DAS VÍTIMAS. IRRELEVÂNCIA. INCAPACIDADE VOLITIVA. PROTEÇÃO À LIBERDADE SEXUAL DO MENOR. RETORNO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA EXAME DAS DEMAIS TESES VEICULADAS NA APELAÇÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS.
1. A literalidade da Lei Penal em vigor denota clara intenção do Legislador de proteger a liberdade sexual do menor de catorze anos, infligindo um dever geral de abstenção, porquanto se trata de pessoa que ainda não atingiu a maturidade necessária para assumir todas as consequências de suas ações. Não é por outra razão que o Novo Código Civil Brasileiro, aliás, considera absolutamente incapazes para exercer os atos da vida civil os menores de dezesseis anos, proibidos de se casarem, senão com autorização de seus representantes legais (art. 3.º, inciso I; e art. 1517). A Lei Penal, por sua vez, leva em especial consideração o incompleto desenvolvimento físico e psíquico do jovem menor de quatorze anos, para impor um limite objetivo para o reconhecimento da voluntariedade do ato sexual.
2. A presunção de violência nos crimes contra os costumes cometidos contra menores de 14 anos, prevista na antiga redação do art. 224, alínea a, do Código Penal, possui caráter absoluto, pois constitui critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com o ato sexual. Não pode, por isso, ser relativizada diante de situações como de um inválido consentimento da vítima; eventual experiência sexual anterior; tampouco o relacionamento amoroso entre o agente e a vítima.
3. O Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento "quanto a ser absoluta a presunção de violência nos casos de estupro contra menor de catorze anos nos crimes cometidos antes da vigência da Lei 12.015/09, a obstar a pretensa relativização da violência presumida." HC 105558, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 22/05/2012, DJe de 12/06/2012). No mesmo sentido: HC 109206/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/10/2011, DJe 16/11/2011; HC 101456, Rel. Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 09/03/2010, DJe 30/04/2010; HC 93.263, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, DJe 14/04/2008, RHC 79.788, Rel. Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, DJ de 17/08/2001.
4. Embargos de divergência acolhidos para, afastada a relativização da presunção de violência, cassar o acórdão embargado e o acórdão recorrido, determinando o retorno dos autos ao Tribunal a quo para que as demais teses veiculadas na apelação da Defesa sejam devidamente apreciadas. (BRASIL, 2014). (Grifo nosso)
A jurisprudência transcrita retrata que o foco da legislação penal é tutelar a criança, mesmo que exista o consentimento, este não é levado em consideração visto a imaturidade daquela vítima e não só, mas também a relação de poder que enseja em uma coação psicológica que tolhe a compreensão da seriedade do ato realizado.
Acerca da relativização do consentimento do menor de 14 anos, com o advento da Lei n. 12.015/2009 que introduziu o art. 217-A ao Código Penal, tem-se a superação desse questionamento, pois o dispositivo não fala sobre consentimento ou violência, somente tipifica o ato em si com menor de 14 anos. Contudo, a vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa é ainda debatida pela doutrina, sob o argumento de que o juiz, diante do caso concreto, deve observar as condições pessoais da vítima, bem como conhecimento e discernimento, conforme Bitencourt (2014). A proteção constitucional supera todas as ponderações e torna irrelevante uma análise, pois uma criança pode ser facilmente convencida a achar que deseja ter uma relação enquanto não deseja, o poder, citado reiteradamente no corpo do capítulo, só reforça a ideia da vulnerabilidade absoluta.
O Ex ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira em curso acerca da violência contra crianças e adolescentes, com ênfase no abuso sexual, ministrado a escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados relatou a definição de abuso sexual para a Organização Mundial de Saúde (1999) que consiste no envolvimento de uma criança em atividade sexual que ele/ela não tem compreensão, é incapaz de dar consentimento informado ou para qual a criança não tem preparo, em termos de desenvolvimento, para dar consentimento ou que viola as leis ou os tabus sociais de uma sociedade. A criança pode ser induzida, coagida, explorada, diversas são as formas de execução de tal crime bárbaro, reafirmando assim a desnecessidade de deliberação da vítima, ou seja, de consentimento.
A legislação penal reflete diretamente a sociedade e os costumes aos quais é submetida. É nítido que a legislação penal anterior a de 1940, os Códigos penais de 1830 e 1890 possuíam um grande aspecto patriarcal e sexista, bem como “adultocentrista”, pois tinha-se a concepção que o adulto era titular de direitos e a criança não precisava de tutela específica, uma vez que esta estava sob os cuidados de seus responsáveis, assim, a realidade cruel era ignorada, visto que sempre existiram crimes contra crianças e adolescentes, principalmente sexuais. As legislações citadas, de 1830 e 1890 sequer possuíam tipificação específica para crimes cometidos a menores de 14 anos ou recrudescimento das penas previstas na ocorrência dessas situações.
Essa alegação de que deve haver a observância de cada caso em face de um estupro de vulnerável é decorrente de um olhar patriarcal e sexista que deseja colocar a vítima dentro de padrões comportamentais que ela ao menos é, visto que é uma fase de transição psíquica. Esse momento de formação mental e física, é um momento em que fatores externos atingem profundamente esses indivíduos, logo, se forem submetidos a coações, ou a realidades conflituosas e que incentivem a sua prática sexual irão agir assim e essa atitude em momento algum é justificativa para desclassificação do abuso sexual. Afirmar que aquele infante ou adolescente já possuíam maturidade corporal ou que eram desenvolvidos demais para a sua idade não é argumento ou o fato de a criança ser “sedutora” não existe, não é cabível, é na verdade absurdo.
Perceber que os cuidados das crianças e dos adolescentes vão além da família, visto que essa instituição pode, como visto aqui, ser o responsável pelos maiores traumas do infante juvenil foi de imensa importância, pois o Estado é o responsável pela tutela dos direitos fundamentais dos indivíduos. Contudo, não foi o suficiente, uma vez que a tipificação não ensejou a cessação desse crime ou sua diminuição, os dados ainda são alarmantes. O jornal “O Globo” em 2020 fez um levantamento dos dados emitidos pelo ministério da saúde em 2018, e o número de casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes foi de 32 mil durante o referido ano, o que consiste em três casos a cada uma hora (HERDY, 2020).
Conforme o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ao final de 2020 a maioria das vítimas de estupro no Brasil têm menos de 13 anos. Os dados mostram que em 2019 esse número cresceu, foram 66.123 vítimas de estupro e estupro de vulnerável figurando um estupro a cada 8 minutos, desse número 57,9% tinham no máximo 13 anos. Outro dado assustador divulgado no mesmo anuário é o referente a relação entre o autor do crime e a vítima dos estupros e estupros de vulnerável, em 84,1 % o autor era conhecido da vítima, ou seja, familiar, amigo, vizinho e etc. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020)
Os dados colacionados retratam um padrão preocupante, que demonstra a ineficácia da jurisdição penal quanto ao crime aqui tratado, além disso, reitera-se a necessidade de uma política de redução de danos, visto que o crime em si ainda conta com números alarmantes.
Diante disso, neste capítulo, observou-se como a legislação brasileira se porta diante do crime de abuso sexual infantil intrafamiliar, expondo as tipificações, bem como as penas cominadas. O aspecto procedimental no concernente a ação penal também foi tratado, assim como as definições de criança, adolescente e família. No capítulo seguinte, serão abordados os mecanismos jurídicos de proteção a vítima de abuso sexual infantil assim como a revitimização ocasionada pelo sistema penal.
3 OS MECANISMOS JURÍDICOS DE PROTEÇÃO À VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INFANTIL
Passada a análise ao ordenamento jurídico penal e a punição a quem comete o abuso sexual infantil intrafamiliar, serão examinados nesse capítulo os mecanismos de proteção as vítimas desse crime. Como o ordenamento se coloca diante desses sujeitos de direitos especiais para que as consequências do crime não sejam ainda maiores, isto é, o que é feito pela redução dos danos.
O foco aqui é a vítima, importando entender se o direito penal é um espaço de prevenção a esses abusos, ou de mera punição. Além disso, vale salientar que um assunto tão importante quanto esse atinge as mais diferentes esferas do direito não sendo tratado somente o ordenamento penal em si, mas toda a legislação que protege as vítimas.
3.1 Vitimização secundária
Beristain (2000) elucida os efeitos diretos da prática de violência sexual, que consistem na vitimização primária, podendo estes serem de desespero, perturbações, bloqueio do pensamento, problemas sexuais, dentre outros. A reação inicial é o reflexo direto do que o abuso causa à vítima, sendo assim, o mais grave fato dentro do contexto do crime.
Diante do gravíssimo ato de abuso, além dos reflexos físicos, têm-se os traumas psíquicos que reverberam durante toda a vida da vítima. Ademais, a vítima que é vulnerável tratando-se do caso em questão- tendo em vista a sua idade- está hiper fragilizada e ao recorrer ao judiciário encontra além do despreparo, um tortuoso caminho até a condenação do abusador. Tal caminho torna o crime mais penoso que já é, por isso é significativo esmiuçar a vitimização secundária com vistas a sua superação. A vitimologia partilha da mesma metodologia da Criminologia, sendo um subcampo dessa área, conforme Potter (2019). A vitimologia que consiste no estudo da vítima considera o seu comportamento, assim como os aspectos que norteiam o drama criminal (POTTER, 2019, p. 92).
Em análise ao artigo 5° da Constituição Federal tem-se uma série de direitos e garantias fundamentais dados ao criminoso efetivando o Estado democrático de Direito. Contudo, quando se refere ao sujeito passivo do crime, o que se observa é uma tentativa de tornar a pena branda a exemplo da agravante trazida no artigo 61 do Código penal brasileiro no caso de delito cometido em face de criança. Mas tal medida ainda não cuida da vítima em si, só almeja punir o criminoso de forma mais severa.
Beristain (2000) afirma que muitas vezes deverá evitar-se o cumprimento de alguns preceitos formais, em detrimento de novos direitos humanos dos menores. Na perspectiva da vítima, cuidados especiais devem ser tomados, ainda mais no que concerne às vítimas infantojuvenis que sofreram abuso sexual intrafamiliar. O cuidado especial não significa macular o devido processo legal previsto constitucionalmente, o que deve ocorrer é a estruturação adequada, pois, conforme o autor, grande parte do pessoal do Judiciário opina que as vítimas não necessitam de um tratamento especial e demonstra não possuir suficientes estruturas adequadas para atendê-las.
Tal descuido reflete na revitimização desses sujeitos de direitos especiais e além disso, o tratamento não especializado ignora que crimes cometidos dentro da família contra crianças e adolescentes faz com que estes facilmente, se convertam em delinquentes quando chegarem a certa idade como aduz Beristain (2000). Então, se ignora o conceito de vítima e as suas particularidades, bem como os efeitos no comportamento dos futuros adultos, ou melhor da sociedade, tendo em vista que o infante de hoje é o adulto de amanhã.
A vitimização é delineada em graus, de acordo com Beristain (2000). A vitimização primária deriva diretamente do crime, como afirma o autor, no caso do abuso sexual infantil intrafamiliar consiste no próprio ato, nas sequelas físicas e psicológicas do trauma. Dentre as reações iniciais tem-se o desespero, hiperemotividade intensa, como ansiedade, medo, sensação de abandono, de humilhação, depressão, raiva, sensação de culpa (BERISTAIN, 2000, p.103).
A exposição do infantojuvenil ao abuso sexual infantil é definida para Potter (2019) como vitimização primária o qual desencadeia em ressentimentos e desequilíbrio emocional. Cabendo destacar a diferenciação existente entre as vítimas do abuso sexual infantil intrafamiliar, pois aquelas que sofreram ato de violência sexual único não tiveram a mesma vitimização das que residiram durante um longo tempo com o agressor (POTTER, 2019, p. 106). Entende-se que tal crime reverbera de uma forma diferente a partir da sua dimensão, constituindo níveis diferentes de vitimização e sequelas nesses infantes e adolescentes.
O agressor usa do seu poder em face da vítima para lhe despertar sexualidade e prazer, o que faz com que essa vítima se sinta culpada, pois acabou consentindo com o ato (POTTER, 2019, p. 108). Mas tal consentimento é inválido à luz da incapacidade dessas crianças e adolescentes, esse fato consiste na vitimização, sendo uma consequência do crime que na maioria das vezes gera o silêncio da vítima, seja por medo de ser julgada ou medo que algum mal atinja sua família.
A vitimização secundária é definida por Beristain (2000) como os sofrimentos que às vítimas, às testemunhas e majoritariamente aos sujeitos passivos de um delito lhes impõem as instituições mais ou menos diretamente encarregadas de fazer “justiça”. Policiais, juízes e peritos são alguns exemplos de acordo com o autor. As respostas formais do sistema penal desconsideram a possível revitimização da vítima que já sofreu com o crime em si, além disso, como o autor afirma, as vítimas ao decorrer das investigações não são compreendidas devidamente e possuem cada vez menos informação.
Os problemas relatados acima são amplificados quando as vítimas são crianças e adolescentes abusadas por seus familiares, pois se estes não possuem acolhimento em seu seio familiar, nem na justiça, quem os acolherá?
Os papéis de vitimador e de vitimado não são fixos, nem estáticos, nem permanentes, mas sim dinâmicos, mutáveis e intercambiáveis. O mesmo indivíduo pode, sucessivamente ou simultaneamente, passar de um papel a outro, conforme Beristain (2000). Quando não direcionada a atenção especial à vítima, a transmutação desses papéis fica passível de ocorrer, gerando um problema social ainda maior. Não podendo a vítima ser tratada somente como testemunha ou colaboradora a punição do acusado, além disso, é preciso observá-la como sujeito de direitos especiais que merece total atenção e bem como Potter (2019) leciona, a vítima não necessita de compaixão, mas sim solidariedade e conduta ética dos agentes que integram o sistema penal.
Além da vitimação primária e secundária, Beristain (2000) faz referência a vitimação terciária sendo segundo ele o resultado das vivências e dos processos de atribuição e rotulação, como conseqüência ou “valor acrescentado” das vitimações primária e secundária precedentes. Então, quando o indivíduo ciente vitimação primária ou secundária, avoca um resultado, em certo sentido, paradoxalmente bem-sucedido (fama nos meios de comunicação, aplauso de grupos extremistas, etc.) (BERISTAIN, 2000, p. 109). Além disso, aceita a nova imagem de si e busca vingar-se das injustiças sofridas e de seus vitimadores.
A vingança mencionada não se dá somente em face do criminoso, mas sobre si, tornando-se delinquente. Sendo assim, uma cadeia social que possui inúmeros reflexos comportamentais.
3.2 Mecanismos de proteção à vítima
Andrade et al. (2018) leciona que na incidência de abuso sexual intrafamiliar, o qual o agressor é o pai (ou mãe), tutor ou guardião (neste incluído o padrasto ou madrasta), é cabível propositura da ação de representação por infração administrativa prevista no art. 249 do Estatuto da Criança e do adolescente cumulada com a ação de afastamento de agressor prevista no art. 130 do mesmo Estatuto e fixação provisória de alimentos (parágrafo único incluído ao art. 130 do ECA pela Lei n. 12.415/2011), além da aplicação subsidiária da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) e Lei n. 13.431/2017. Nesse sentido, tratando-se de legislação específica, tem-se um vasto amparo, uma vez que todas as medidas cabíveis estão expressas tanto no Estatuto supramencionado, como na Constituição Federal brasileira.
O Código Civil brasileiro de 2002 aduz em seu artigo 1.638, II, b parágrafo único que perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que praticar contra filho, filha ou outro descendente estupro de vulnerável. Tem-se mais uma consequência do abuso sexual infantil alocada na legislação brasileira, confirmando assim que há uma gama de proteção jurídica à criança (BRASIL, 2002). Nesse sentido, haverá uma destituição desse pai, mãe ou responsável que cometeu o ato criminoso. O poder familiar é definido por Tartuce (2017) como sendo o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, dentro da ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto.
O artigo 98 do ECA aduz em seu texto que serão aplicadas medidas de proteção quando a criança ou adolescente possuírem alguns direitos violados (BRASIL, 1990b). Nesse aspecto, Nucci (2018) leciona que a intervenção do Estado, por seus órgãos competentes, torna-se viável assim que detectada uma ameaça a direito ou garantia do menor de 18 anos, bem como – e com mais razão – quando se apresentar uma efetiva violação (dano) a direito ou garantia. Nesse sentido, o jovem, ao ter sua dignidade sexual atingida, possui amparo neste dispositivo também, o qual autoriza a intervenção estatal. O autor acrescenta que os órgãos estatais podem tutelar de maneira provisória ou definitiva os direitos e garantias da criança ou do adolescente, tudo dependerá da situação específica.
A Lei 13.431/2017 que alterou o ECA estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
O artigo 14 caput e o § 2º da lei supramencionada aduzem que:
As políticas implementadas nos sistemas de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde deverão adotar ações articuladas, coordenadas e efetivas voltadas ao acolhimento e ao atendimento integral às vítimas de violência. § 2º acrescenta que nos casos de violência sexual, cabe ao responsável da rede de proteção garantir a urgência e a celeridade necessárias ao atendimento de saúde e à produção probatória, preservada a confidencialidade. (BRASIL, 2017)
Desse modo, a vítima além de ter amparo garantido, também tem direito à confidencialidade, que respeita a sua dignidade, que foi violada brutalmente, tal sigilo é importante até mesmo em uma perspectiva de futuro, para que não haja constrangimentos posteriores. Contudo, Nucci (2018) assevera acerca do dispositivo que “as várias medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente também não são, na maioria, cumpridas. Disso decorre que o papel aceita tudo, mas há de se caminhar bastante para que essas providências sejam efetivadas no Brasil”. Desse modo, observa-se a existência de vasto amparo legal às vítimas, entretanto, infelizmente não há efetivação plena no plano prático.
Diante do exposto, é necessário entender que violência sexual reverbera em diversas áreas da vida do indivíduo: cognitiva, emocional e comportamental, por isso, cada caso deve ser analisado cuidadosamente, o tempo de duração do abuso, a frequência, a relação da criança com o abusador. Com isso, é importante que os mecanismos previstos legalmente funcionem, visando amparar aqueles que tiverem o seu momento mais bonito da vida maculado por brutal violência.
O romance epistolar “A cor púrpura” de 1982 da escritora Alice Walker retrata como a falta de informação dessas crianças e adolescentes reverbera nesse crime.
No livro a personagem principal, Celie, com apenas 14 anos é abusada sexualmente por seu padrasto e em seus relatos é possível observar a sua falta de conhecimento diante do que estava ocorrendo. A vítima questiona Deus acerca do que estava acontecendo com ela e relata em suas cartas que o seu padrasto colocou “a coisa dele” dentro do órgão genital dela. Nesse ponto, é possível observar como a falta de conhecimento desses sujeitos de direitos especiais faz com que esse crime se perpetue, uma vez que não tendo ciência de que aquele ato se configura um crime, a vítima sequer se sente no direito de contar a alguém ou buscar ajuda.
Além disso, o agressor fala para ela que aquele ato é o melhor e que era bom ela se acostumar. A partir disso, extrai-se que a inocência da vítima agrava o crime e acarreta em danos psicológicos muito maiores, no próprio livro, quando adulta, Celie torna-se insegura e se sente merecedora dos diversos sofrimentos que vem a passar. Nesse cenário, o que se infere é que os traumas da personagem interferiram diretamente em seu desenvolvimento mental e em suas ações.
Apesar da história retratada ser uma ficção, os fatos narrados infelizmente não são, pois os dados mostram como há um alto índice de abuso sexual infantil intrafamiliar. Então, com toda certeza o previsto no inciso V do artigo 101, que está sendo analisado, deve ser aplicado em todos os casos, porque o abuso sexual atinge as mais profundas esferas do indivíduo, principalmente a mental. O inciso mencionado aduz acerca da requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico pelo Conselho Tutelar.
Entretanto, dado o cometimento de um crime por parte dos pais ou responsáveis, sendo estes, os incumbidos de dar afeto a criança, conforme exposto pelo autor anteriormente, haverá uma destituição desse poder. Nessa situação ocorrerá a extinção do poder de família, a qual diante do caso concreto será feita a análise para saber se a vítima será afastada somente do agressor ou se ambos os pais perderão o poder familiar. Nesse sentido, o artigo 130 do ECA afirma que autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum no caso de abuso sexual praticado pelos pais ou responsáveis (BRASIL, 1990b).
A mácula na relação de confiança e cuidado entre a vítima e o abusador gera danos descomunais, como já mencionado. Nesse aspecto, a rede de apoio possui enorme importância para que o trauma não seja potencializado no decorrer das investigações. A rede consiste em um conjunto de sistemas e de pessoas significativas (estrutura) que integram os relacionamentos existentes e percebidos pela criança, e que podem atuar no sentido de efetivamente protegê-la (função) (HABIGZANG; RAMOS; KOLLER, 2011).
No caso em comento, de abuso sexual infantil intrafamiliar, tem-se como rede de apoio a família, escola, comunidade, Conselho Tutelar, Delegacia, Conselho de Direitos da Criança, Ministério Público e Juizado da Infância e Adolescência, abrigos, serviços de saúde (postos de saúde e hospitais) e assistência social (Centro de Referência da Assistência Social e Centro de Referência Especializado da Assistência Social), conforme afirmam Habigzang, Ramos e Koller (2011).
A transdisciplinaridade no presente caso, que demonstra uma das mais cruéis formas de violação aos direitos humanos faz-se necessária, conforme elucida Potter (2019). Além de uma análise de diferentes disciplinas, se tem a observância do sistema em sua totalidade, arte, literatura, saindo de uma lógica rígida.
Foucault (1999) afirma que dentro de uma sociedade existem relações de poder que se manifestam em diferentes níveis a depender de como são formadas. É clara a relação de poder que existe dentro do seio familiar, que na verdade muitas vezes é de hierarquia, tendo em vista que os mais velhos devem ser tratados com respeito e serem obedecidos.
A contextualização feita foi para que possamos entender como até a análise das relações sociais atinge diretamente o assunto tratado aqui, porque até a dimensão do poder imposto na relação entre a vítima e o abusador que é seu familiar, mensura a extensão do dano psíquico e a forma como a rede de apoio e as investigações devem agir.
3.2.1 Atenção primária à vítima
Observando o caminho percorrido pela vítima ou testemunha infantojuvenil vítima do crime sexual tem-se inicialmente a comunicação do ato às autoridades competentes para analisar e agir. A comunicação da ocorrência o crime pode se dar por meio do Disque - 100 que é o serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, Conselhos tutelares, Polícia Civil, Hospitais, Escolas, CRAI - Centros de Referência no Atendimento Infantojuvenil, CRVV - Centro de Referência às vítimas de violência, Ministério Público, Defensoria Pública e outros.
Romper o silêncio em situações como essas não é nada fácil, então a porta de entrada para a identificação desse crime é muito importante, escolas, disque-denúncia, serviços de saúde, familiares da vítima, Conselho Tutelar, dentre outros.
A condição peculiar de pessoas em desenvolvimento das crianças e adolescentes fez com que a Constituição Federal Brasileira de 1988 se dedicasse à tutela dos direitos fundamentais desse sujeito colacionando um rol em seu artigo 227 (TAVARES, 2018). Essa proteção integral às crianças e adolescentes trouxe normas em face da política de atendimento, como o disposto no parágrafo 7° do artigo referido que remete a descentralização político-administrativa e a participação popular. A descentralização consiste na distribuição do poder por todas as entidades federativas, como afirmado por Tavares (2018) e a participação popular segundo a autora, compreende no chamamento da sociedade para colaborar na formulação das políticas públicas.
Esses mecanismos que se debruçam ao cuidado especializado e a um alargamento no que refere aos direitos e garantias infanto-juvenis, retratam a evolução histórica e o esquecimento a períodos autoritários em que se tinha somente os pais ou responsáveis como supremos dentro da relação familiar, ignorando o fato de que estes podem ser nocivos a esses infantes, pois são muitas vezes os autores dos crimes de abuso sexual infantil.
O artigo 87 do Estatuto da Criança e do Adolescente carrega o rol de ações para que haja a concretização da política de atendimento desses infanto-juvenis. Os comandos trazidos nos incisos do artigo mencionado consistem em um comando normativo, sendo a sua execução obrigatória, conforme assente Tavares (2018). O inciso II merece uma análise em face das alterações históricas, como afirma a autora supracitada, pois a Constituição de 88 conferiu a concepção de política pública de estado à assistência social, recebendo uma atenção especial, sendo regulamentada pela Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS.
As políticas de assistência social são voltadas para pessoas e grupos que se encontrem em estado permanente ou temporário de necessidade em razão de algum fator de vulnerabilidade, conforme mencionam Rossato, Lépore e Cunha (2014), abrangendo assim um segmento da população, pois só serão abarcados aqueles que de fato precisam no momento. As vítimas de abuso sexual infantil intrafamiliar enquadram-se dentro do segmento que necessita de assistência, por conta da vulnerabilidade que as atingem, não só naquele momento, mas pelo resto de suas vidas, pois tamanho trauma reverbera em toda a sua formação social.
O inciso III do artigo mencionado acima, que trata da prevenção e atendimento médico às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão, se refere a uma ação específica quando da ocorrência de um dos fatos citados. Sendo necessário atentar-se que as crianças e os adolescentes são indissociáveis de seu contexto familiar e sociocomunitário (TAVARES, 2018). De fato, a análise deve ser feita dentro do contexto social, observando como chegar até aquela criança que é vítima de uma agressão no ambiente que deveria estar totalmente amparada e segura.
O artigo 88 do ECA dispõe as diretrizes da política de atendimento atestando a sua municipalização logo no inciso I fazendo jus assim a descentralização político-administrativa prevista constitucionalmente, devendo estes, por sua vez, realizar programas de atenção direta, conforme Rossato, Lépore e Cunha (2014). Os municípios assumiram assim atribuições que antes eram privativas da União e dos Estados Membros. Tal municipalização deve estar em consonância ao princípio da responsabilidade solidária do poder público, bem como da razoabilidade e proporcionalidade (ROSSATO; LÉPORE; CUNHA, 2014).
Ishida (2014) afirma acerca do artigo mencionado no parágrafo anterior que embora o escopo seja de descentralizar as políticas, cabendo esta tarefa precipuamente ao Município, é certo que também é necessária a participação dos Estados e da União. Observa-se que é importante a integração para que exista agilidade e suporte adequado para lidar com os casos de crime, principalmente os que envolvem exploração e abuso.
3.2.2 Delegacias especializadas
A Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017 que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera o ECA, traz em seu artigo 20 a faculdade de o poder público criar delegacias especializadas no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência (BRASIL, 2017). Inexistindo esse órgão, a vítima será encaminhada prioritariamente à delegacia especializada em temas de direitos humanos, como dispõe o § 2º do artigo supramencionado. Essa faculdade dada ao poder público faz com que exista pouquíssimas delegacias especializadas o que acarreta em despreparo dos locais para o atendimento das crianças e adolescentes vítimas dos mais diversos abusos, principalmente o sexual.
Nucci (2018) afirma que as delegacias especializadas deveriam ser instituídas, mas que na ausência desses locais especializados em direitos humanos, é importante levar as crianças e adolescentes vítimas de maus tratos e abuso a delegacias que cuidem de minorias, como distritos da mulher, de discriminação racial ou até mesmo de violência doméstica. A constituição defende as garantias e direitos das crianças e adolescentes bem como toda a legislação penal ao trazer causas de agravamento da pena em caso de crimes praticados contra descendente e aumento de pena em caso do crime ser praticado padrasto, madrasta, tutor e etc. conforme o Código Penal brasileiro elenca.
Interpreta-se em comparação a cominação da pena e ao tratamento inicial especializado, que a vítima não recebe os cuidados que possui o direito e merece. O acompanhamento de equipe jurídica e psicossocial para que o menor preste suas declarações está disposto no art. 14 da Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Contudo, não há reconhecimento de nulidade caso a regra não seja obedecida pelas autoridades policiais, como afirma Nucci (2018), o que não impede a punição por desvio funcional em decorrência do descumprimento implementado pela referida lei.
A vitimização secundária definida no início desse capítulo entra nesse ponto, a partir do momento que as delegacias especializadas no atendimento à criança e ao adolescente não são uma prioridade e sim uma faculdade.
Em análise do caminho percorrido no caso de comunicação do crime às Delegacias de Polícia, inicialmente, verificada a ocorrência, cabe ao Estado dar início a persecução penal, comprovada a materialidade e autoria do caso, aplica-se a sanção (POTTER, 2019). O Código de Processo Penal dispõe como deverá ocorrer todo o procedimento em seu artigo 4° aduz que “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria” (BRASIL, 1941). No seu artigo 6° traz quais medidas devem ser tomadas assim que houver o conhecimento da prática do crime, assim, o inquérito policial nasce de uma probabilidade da ocorrência de um fato criminoso tipificado em lei, que ocasiona uma possível denúncia ao Poder Judiciário, conforme Potter (2019).
Os crimes de abuso sexual infantil possuem algumas especificidades pela atenção diferenciada que demanda e de qual forma aquela investigação se procederá. Nesse cenário, faz-se surgir a necessidade de delegacias especializadas. Infelizmente são escassos os espaços especializados e propícios a oitiva da vítima. A intervenção multidisciplinar é necessária para que a rede de atendimento tenha habilidade e sensibilidade para agir. O atendimento deve ser humanizado, sendo a rede de atenção primária (hospitais, emergências, centro de atenção psicossocial/CAPS) uma importante ferramenta de redução de danos.
3.2.3 Conselho Tutelar
O Conselho Tutelar é apresentado pelo Estatuto da Criança e Adolescente em seu artigo 131 como sendo um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei (BRASIL, 1990b). Esse órgão foi criado com o intuito de materializar os direitos dispostos no artigo 227 da Constituição Federal, concretizando assim a proteção a esses direitos fundamentais. Então, o que se tem é uma desjudicialização do atendimento previsto do Estatuto citado, tendo como objetivo “à busca de soluções simples, ágeis, imediatas e em consonância com princípio do respeito à condição peculiar da criança e do adolescente” (KOZEN).
Apesar da independência e da natureza administrativa, esse órgão não pode se omitir em situações que atingem crianças e adolescentes, dada a fiscalização da sua comunidade a que são submetidos. O Conselho Tutelar deve zelar pelo efetivo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, como mencionado, mas não só, deve também fazer com que o Estado aplique de forma correta os direitos assegurados no Estatuto, mesmo que estes estejam inseridos em ambiente familiar, como é o caso em comento (FONSECA, 2012). Sendo importante ressaltar que o órgão não estabelece nem impõe sanções jurisdicionais, seu papel é providenciar a efetivação dos direitos e garantias retromencionadas.
Grande parte das atribuições do Conselho Tutelar estão previstas no artigo 136 do Estatuto da Criança e do adolescente. O artigo 101 do dispositivo supramencionado elenca em seus incisos I a VII as medidas específicas a serem tomadas no caso da ocorrência das hipóteses previstas no art. 98, citado momentos atrás. Se tratando do crime de abuso sexual infantil que se enquadra no inciso II do artigo 98 do ECA, o encaminhamento ao pai ou responsável anunciado como primeira medida específica do artigo 101 deve ser ponderado, dado que o crime é cometido pelos próprios responsáveis. (BRASIL, 1990b)
Diante disso, não significa que não pode haver a aplicação desse dispositivo, até porque outros familiares poderiam não ter conhecimento acerca do crime, então esses podem vir a serem os responsáveis seguros dessa vítima. Caso haja conhecimento desses outros responsáveis e estes porventura nada fizerem, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 5° que em caso de omissão quanto a atitudes que atinjam os direitos fundamentais dos sujeitos de direitos especiais, a punição será feita na forma da lei (BRASIL, 1990b). A omissão é tão criminosa quanto a ação, pois é dever dos pais, responsáveis, familiares, bem como de toda a sociedade cuidar da dignidade dessas crianças e adolescentes.
O Conselho Tutelar é um órgão que protege os interesses das crianças e adolescentes, conforme Ishida (2015), sendo assim o responsável pela realização do atendimento inicial. Ao ser comunicado de uma situação de violação de direitos contra crianças ou adolescentes, o órgão possui poderes para averiguar o fato e agir de acordo com o que for necessário para que seja cessada a situação de abuso (POTTER, 2019). Como demonstrado, inúmeros casos de violência sexual são praticados pelos membros imediatos da família, conforme Potter (2019), com isso, o Conselho Tutelar, como órgão que muitas vezes tem a primeira atitude precisa interferir de maneira cuidadosa respeitando as particularidades de cada caso.
Fonseca (2012) afirma que o Conselho Tutelar pertence ao Município, à comunidade que o gera e gerencia. A natureza do órgão é administrativa e especial, conforme o autor mencionado, possuindo uma autonomia relativa, tendo em vista que a comunidade pode fiscalizá-lo. O órgão analisado tem como atribuição principal o zelo não podendo omitir-se ou deixar de agir perante situações de iminente ameaça aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes (FONSECA, 2012, P. 206). A sua atuação almeja pôr em prática as diretrizes do artigo 227 da Constituição Federal, por isso possui tanta importância.
A disposição dos membros do Conselho Tutelar está expressa no artigo 132 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual afirma que cada município deverá ter no mínimo, 1 (um) Conselho Tutelar sendo este composto por 5 (cinco) membros, escolhidos pela população local. Tais membros possuem enorme responsabilidade social e são os que irão consumar direitos e garantias fundamentais delineadas constitucionalmente. (BRASIL, 1990b). Por isso, existem requisitos para concorrer ao cargo, previstos no artigo subsequente ao mencionado.
A estruturação do órgão e a sua atuação no âmbito municipal são pautadas no princípio da democracia participativa que fundamenta a sua criação, como afirma Tavares (2018). Por isso toda a sua base legal tem viés participativo e integrativo e esse é o objetivo da luta ao abuso sexual e maus tratos as crianças e adolescentes, inserir todos no combate a esses crimes.
A autonomia que o Conselho Tutelar possui consiste na sua ação pautada somente nos ditames legais, não sendo admitida qualquer interferência externa em sua atuação, conforme Tavares (2018). O órgão possui liberdade para decidir, em face do caso concreto, como melhor proteger determinada criança ou adolescente, sendo ele próprio o responsável por promover a execução de suas decisões, segundo o autor retromencionado. Observa-se que toda a estruturação tem como objetivo concretizar os direitos e garantias fundamentais das crianças e adolescentes, entendendo que diante da situação, o órgão poderá agir com maior celeridade a fim de cessar qualquer violação.
O artigo 136 do ECA traz as atribuições do Conselho Tutelar, sendo o órgão responsável por tomar decisões, mas vale ressaltar a sua não jurisdicionalidade, visto que a jurisdição é conferida ao Poder Judiciário, tratando-se de um verdadeiro órgão de execução das medidas de efetivação dos direitos da criança e do adolescente (ISHIDA, 2015, p. 340). A comunicação de violação de direitos a esse órgão pode ser realizada por qualquer pessoa, como o inciso I do artigo 136 do dispositivo mencionado afirma, participando a população ativamente no combate a violência e abusos praticados contra esses sujeitos de direitos especiais.
Sendo comunicado de uma situação de violação de direitos contra crianças e adolescentes, o Conselho Tutelar pode averiguar o fato e agir da forma que for necessária, respeitando as suas atribuições, conforme o artigo 101 do ECA. Em situações emergenciais, pode o Conselho ordenar o acolhimento institucional, mas deve haver imediata comunicação ao juiz da vara da infância e juventude.
3.2.4 Acolhimento institucional
O acolhimento institucional presente no inciso VII do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente faz parte da rede de apoio e é uma medida de proteção. As medidas de proteção, conforme Andrade et al. (2018) são providências que almejam salvaguardar quaisquer crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados ou estão na iminência de ter. É fato que essa intervenção no poder familiar é uma das mais radicais, contudo, é esse o papel das instituições e da sociedade, agir para que aquela situação cesse ou até para que não venha a ocorrer, caso esteja em iminência.
Conforme Andrade et al. (2018) o acolhimento institucional apresenta-se como medida que pode ser utilizada em situação emergencial, sempre respeitando os princípios da excepcionalidade e da provisoriedade. Por ser uma medida em caso de iminente perigo, é dispensado o termo formal de guarda, como afirma a autora citada, contudo, tudo deve respeitar as diretrizes do ECA, devendo a justiça ser informada logo após a retirada do infante ou adolescente de seu lar.
A medida de acolhimento institucional consiste na permanência da criança ou adolescente em uma entidade de atendimento, podendo ser governamental ou não, sendo esta presidida por um dirigente o qual é guardião dos que estão sob os cuidados da instituição (ROSSATO; LÉPORE; CUNHA, 2014, p. 320).
O artigo 92 do ECA dispõe os princípios que norteiam o acolhimento institucional, dentre eles a preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar. Constata-se a humanização presente em tal medida, pois o foco não é a simples retirada daquele infante ou adolescente da sua família, mas sim a preservação dos seus direitos e garantias fundamentais.
Foram introduzidas novas maneiras de compreender a infância e a adolescência pelo ECA, conforme Negrão e Constantino (2011), por consequência a visão quanto ao tratamento dado a esses sujeitos de direitos especiais também foi alterada. O que antes se chamava de “abrigo”, hoje nomeia-se de “acolhimento institucional” sob uma nova perspectiva de atuação. Essas alterações foram realizadas a fim de que se fizesse jus ao preconizado constitucionalmente e houvesse uma humanização, pois, ao invés de somente institucionalizar os cuidados a aquela criança ou adolescente acolhida, tem-se o direito a uma convivência comunitária, como elucida Negrão e Constantino (2011), mas claro que há o respeito a integridade da vítima, visto que no assunto em questão quem comete o crime faz parte do seio familiar.
Essa análise é cuidadosa e importante, pois existem familiares e amigos da família que possuem amor pela vítima e que nada tem relação com o crime ocorrido, merecendo assim partilhar momentos com o acolhido.
As crianças e adolescentes são encaminhadas a entidades de acolhimento somente sob a determinação de um Juiz da Vara de Infância (ROSSATO; LÉPORE; CUNHA, 2014, p. 321). O artigo 93 do Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza em caráter excepcional e de urgência sem prévia determinação da autoridade competente, contudo, a comunicação do fato deve ser feita em até 24 (vinte e quatro) horas ao Juiz da Infância e da Juventude (BRASIL, 1990b). Observa-se assim que essa é uma medida drástica e que exige uma observação individualizada entendendo todas as minúcias possíveis da situação.
O procedimento respeitará o disposto no artigo 101 do ECA, seu parágrafo § 3o exige a emissão da Guia de Acolhimento, documento que deve constar o disposto nos incisos do parágrafo mencionado. A qualificação completa de seus pais ou de seu responsável, se conhecidos, devem constar na Guia bem como os motivos da retirada ou da não reintegração ao convívio familiar, além de outros dados concernentes a endereço e identificação dos parentes ou de terceiros interessados em ter a vítima sob sua guarda. Esses dados são necessários para que seja elaborado um plano individual de atendimento, que está disposto no parágrafo subsequente ao retromencionado § 4º.
A legislação não almeja somente retirar a vítima infantojuvenil do ambiente de desrespeitos aos seus direitos fundamentais, além disso, os dispositivos do ECA retratam o desejo de acolhimento e proteção, fazendo até mesmo com que haja integração com familiares, tudo dentro da particularidade do caso.
Após a análise de todo o aparato jurisdicional de acolhimento a vítima, se estudará a seguir as medidas de prevenção aos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, bem como as medidas de enfrentamento a subnotificação desse crime.
4 MEDIDAS DE PREVENÇÃO A SUBNOTIFICAÇÃO DOS CASOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR EM FACE DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA
Neste capítulo, serão apresentadas as medidas de prevenção ao crime de abuso sexual infantil intrafamilar que consequentemente funcionam como medidas de prevenção a subnotificação dos casos. Pois, a partir do momento que é realizada uma educação preventiva, caso o crime ocorra, logo no início a vítima sente-se à vontade para expor tendo em vista seu conhecimento e assim, ocorrerá a redução dos danos.
O abuso na maioria das vezes dura anos, deixando danos irreversíveis pela ausência de conhecimento desses sujeitos de direitos especiais. Em um segundo momento, será analisado como os conflitos familiares podem interferir diretamente em casos de abuso sexual intrafamiliar, ainda mais quando se tem o fenômeno da alienação parental sendo praticado.
4.1 O combate ao abuso sexual infantil intrafamiliar e o 18 de maio
Para entender a campanha do maio laranja é necessária a remissão a Lei Federal nº 9.970/2000 que instituiu o dia 18 de Maio como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2000). A data é importante pois alerta a sociedade de um problema recorrente que ainda é invisibilizado. De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 52% dos casos de exploração, violência ou abuso sexual ocorrem dentro da casa da vítima, e apenas um em cada 10 casos é notificado às autoridades (MAIO LARANJA, 2021).
Conforme a rádioagencia nacional, o dia 18 de maio foi escolhido por conta da ocorrência de um crime nessa data, no ano de 1973, em que Araceli, de apenas 8 anos, foi sequestrada, estuprada e morta por jovens de classe média no Espírito Santo. Até hoje o crime permanece impune. O maio laranja, que alerta acerca do abuso e da exploração sexual de crianças e adultos, é um importante veículo de encorajamento à denúncia desse crime e não só, mas também ao debate, que muitas vezes é evitado. (GOUVEIA, 2020)
A campanha é significativa ao dedicar-se a um crime que é pouco comentado, ainda mais no aspecto intrafamiliar, pois tem-se a crença que dentro de casa nada de ruim pode acontecer a aquela criança, entretanto não é exatamente assim. O sistema familiar pode ser algumas vezes ineficaz, impossibilitando uma base para o desenvolvimento saudável (POTTER, 2019, p.59). Esse sistema é responsável por toda a carga emocional e formação psicológica do infante, então ao ensinar essas crianças que tudo que ocorre dentro de casa é permitido por ser familiar não está se trabalhando com a educação preventiva.
O Disque 100 é um dos principais veículos de denúncia sendo um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Além do número, existe o site da ouvidoria, conforme traz a Agência Brasil que é o “ouvidoria.mdh.gov.br” e o aplicativo “Direitos Humanos Brasil”. Como qualquer crime, a comunicação também pode ser feita em delegacias comuns ou nas especializadas, caso haja alguma na cidade.
O adultocentrismo autoriza o poder do adulto sobre a população infanto-juvenil sendo manifestado por meio de postura autoritária e dominadora, ao olhar o jovem com desconfiança e o tratá-lo como sua propriedade, conforme Braga, Aguiar Filho e Rodrigues (2018). O fenômeno mencionado corrobora com a subnotificação dos casos de abuso sexual infantojuvenil intrafamiliar, pois ao colocar o adulto como centro de tudo, despreza as alegações da vítima por acreditar que aquele familiar não faria nenhum mal por ser mais velho e de “confiança”. Por isso, em meio a essa sociedade, é de suma relevância a sensibilização quanto à ocorrência do crime debatido.
Além do padrão de colocar o adulto no centro das relações, tem-se o ideal sexista que domina muitos vínculos familiares, sendo este pautado em um histórico social patriarcal, como aduzem Braga, Aguiar Filho e Rodrigues (2018). A assimetria de poder reflete diretamente nas relações sociais, pois existem famílias em que a figura masculina é observada como a de poder supremo, não podendo nada e ninguém divergir. Então, se isso for perpetuado, quando vier a ocorrer um abuso sexual praticado pela figura masculina em uma família que possui tal ideal, dificilmente o infante terá coragem de externalizar o ocorrido, ocasionando a subnotificação e a perpetuação do crime.
A dinâmica familiar, os diálogos estabelecidos, a conexão entre os adultos e as crianças, fazem parte da luta ao abuso sexual infantil intrafamiliar. Por tratar-se de um crime que na maioria das vezes a testemunha é a própria vítima, torna-se necessária a existência de um ambiente propício para que esse sujeito de direitos especiais exteriorize o que lhe ocorreu. Então, o ideal patriarcal em que os pais e responsáveis são figuras de poder absoluto, conforme Braga, Aguiar Filho e Rodrigues (2018) esmiúçam, corrobora para o silêncio da vítima, pois esse distanciamento decorrente da relação de poder fará com que o infantojuvenil imagine que não tem a quem recorrer ou até mesmo que merece o que está passando por ser “inferior”.
Pois bem, Braga, Aguiar Filho e Rodrigues (2018) afirmam que combate ao abuso sexual infantil intrafamiliar tem que incluir o questionamento destes valores culturais que favorecem a existência de contextos relacionais assimétricos que se constituem em uma característica central das situações abusivas que suprimem o direito de escolha da vítima as expropriando da autonomia do seu corpo.
Entendida a importância do diálogo, Marques et al. (2013) ensina que os problemas sociais caem no colo do direito penal para que estes os solucionem, seja criando tipos penais ou elevando as penas. Contudo, é necessário entender que a violência não combate a violência, como os próprios autores evocam. O que é eficaz tratando-se dos sujeitos de direitos especiais, é o investimento na educação e saúde com o objetivo de promover um desenvolvimento saudável e seguro.
O Direito penal não deve ser utilizado como instrumento pedagógico. (MARQUES et al., 2013). Nessa perspectiva, cabe mencionar que os meios pedagógicos para a prevenção e redução dos danos provenientes do abuso sexual infantil intrafamiliar existem e são a educação escolar e a familiar.
Brino e Williams (2008) constatam que é bastante raro encontrar educadores com capacitação acerca do abuso sexual infantil. Partimos, então, para a reflexão acerca do crime diante da legislação brasileira. Foi pormenorizada ao longo desta monografia a proteção dada aos sujeitos de direitos especiais pela constituição, assim como as tipificações penais, as sanções e os casos de aumento de pena, que existem a fim de dar maior seguridade a tais indivíduos.
Contudo, à medida que o ordenamento jurídico se preocupa tanto em punir, há uma carência no tocante às estratégias de prevenção, estratégias essas que devem ser promovidas pelo Estado. Os autores citados acrescentam que tal discussão começa a ganhar terreno, timidamente, nos espaços escolares e nas salas de aula (BRINO E WILLIAMS, 2008). Por isso, essa timidez deve dar espaço a um programa expansivo com estratégias eficazes a nível nacional.
Retomando ao tópico da revelação do abuso, lecionam Berliner e Conte (1995, apud SANTOS; DELL'AGLIO, 2010) que a iniciativa de revelar o abuso pode estar associada à qualidade da relação que a criança estabelece com a pessoa para quem contou e, consequentemente, com a interpretação que a criança supõe que a pessoa faria. Nessas condições, reitera-se a intervenção direta na notificação dos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar com a conexão existente entre o infante e seus responsáveis.
A BBC News Brasil destacou alguns tópicos elencados no relatório publicado em 2019 pelo setor de pesquisas da revista britânica The Economist. Dentre os tópicos, é observado que as iniciativas para combater o abuso de crianças devem levar em conta diferenças de gênero, mas sem que isto deixe qualquer segmento esquecido. A diferença deve considerar o estigma social quando o crime ocorre com meninos, por conta do machismo e da homofobia. (ABUSO, 2021)
O gênero é uma construção histórico-social e a aprendizagem se dá a partir dessa mesma construção, e se inicia a partir do nascimento, tendo a família um importante papel na formação dessa identidade, como alega Seixas et al. (2020). Nesta linha, portanto, constata-se que uma educação pautada na virilidade masculina e que a fragilidade compete apenas às meninas, pode impossibilitar a revelação dos casos de abuso por parte dos meninos. Para além da conscientização acerca da prevenção ao abuso sexual infantil, tem-se a discussão acerca das particularidades do que é ensinado em relação a cada gênero.
Nucci (2018) afirma que a voz do infante, para dizer o que se passa em sua vida, os abusos sofridos, é relevante, visto que por vezes, poderá ser a única prova do evento lesivo, como se dá, lamentavelmente, no contexto da violência sexual no contexto da própria família. Nesse sentido, observa-se como é importante políticas públicas que atuem em ambientes praticados pela criança fora da área residencial, para que a criança identifique se determinadas atitudes são normais ou fruto de abusos. Além disso, é importante que toda a família observe as crianças, visto que, infelizmente, nenhum local está isento de ocorrer a violência sexual infantil.
A Lei 13.431/2017, em seu art. 15, afirma que:
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar serviços de atendimento, de ouvidoria ou de resposta, pelos meios de comunicação disponíveis, integrados às redes de proteção, para receber denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes. 59 Parágrafo único. As denúncias recebidas serão encaminhadas: I – à autoridade policial do local dos fatos, para apuração; II – ao conselho tutelar, para aplicação de medidas de proteção; e III – ao Ministério Público, nos casos que forem de sua atribuição específica. (BRASIL, 2017)
Acerca do dispositivo exposto, Nucci (2018) tece comentários lecionando que já existem os serviços mencionados e questiona se o artigo pretende implementar novos órgãos voltados à criança e ao adolescente. Observa-se assim, diante do comentário, que falta efetividade dos meios de denúncia referentes ao abuso sexual infantil.
O artigo 86 do Estatuto da Criança e do adolescente afirma que “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" (BRASIL, 1990b). Acerca do dispositivo, Ishida (2015) afirma que se verifica a responsabilidade da União para criação de normas gerais e de coordenação da política de atendimento, para que haja a efetivação do exposto, o Município deve atuar providenciando creches, vagas no ensino fundamental a partir dos 6 anos, bem como proporcionar tratamento de saúde. Com isso, verifica-se que a responsabilidade acerca das políticas públicas no que concerne às crianças e adolescentes é da União, dos Estados e Municípios.
Ante ao exposto, legislação não falta no que tangencia as maneiras para denunciar o abuso sexual infantil ou até mesmo formas de preveni-lo, o que falta é a efetivação dessas políticas. Os órgãos de fiscalização devem atuar para que haja a efetivação dos direitos positivados e não só, mas também para reprimir atitudes que violem os direitos de crianças e adolescentes. É necessário incentivar propostas que permitam a concretização do artigo 70 do ECA, o qual afirma que é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
As propostas mencionadas devem incluir escolas e espaços os quais a criança frequente fora do seu ambiente familiar, uma vez que os abusos aqui estudados ocorrem nesse ambiente. Assim, conscientizando as crianças dos limites no que tangencia o toque em seu corpo, é provável que essas relatem aos professores ou psicólogos caso algum toque venha a ocorrer, impedindo assim a subnotificação que ocorre e evitando também que esse abuso se prolongue por muito tempo.
A criança ao aprender que na família “tudo é permitido” e que somente estranhos podem lhe fazer mal não entende qualquer ato vindo de uma pessoa de sua confiança como algo negativo (POTTER, 2019, p.110). Então, os ensinamentos dados aos infantes possuem total influência na denúncia desse crime, pois se a criança não fala, é mais difícil que o responsável de confiança perceba. Diálogo entre filhos e responsáveis é o passo mais importante para a prevenção do abuso sexual infantil e para a redução de danos caso o crime ocorra.
Conforme Pierson (2019), a criança aprende padrões de resposta que são provenientes do ambiente e dos adultos com os quais interage. Por isso, o diálogo preventivo é importante, pois a criança possuindo conhecimento do que pode lhe ocorrer, ao ser submetida a um comportamento abusivo consegue identificar e saber a quem recorrer mesmo que o comportamento seja de alguém próximo.
Desde cedo a criança responde ao ambiente e a quem exerce o papel cuidador(a) principal. Havendo uma interação a qual absorverá do ambiente bom e mau (PIERSON, 2019).
O ECA dispõe de medidas de proteção da família e dos vínculos familiares. O seu artigo 101 determina medidas de proteção a serem aplicadas em caso de violação ou ameaça dos direitos das crianças e adolescentes (BRASIL, 1990b). Contudo, antes de tudo, a primeira rede de prevenção vem dos locais que as crianças frequentam como escola e seu lar.
Cezar (2012) afirma que estimativas mundiais informam que não mais de 10% das violências praticadas conseguem ser reveladas, dado esse que demonstra o nível de impunidade que existe nesse tipo de crime. Além disso, acrescenta que a impunidade ocorre pela falta de preparo dos adultos para ouvirem essas revelações (família, escola, saúde, polícia, justiça), desses 10% dos casos que conseguem ser revelados, não mais do que um décimo dos abusadores é responsabilizado. Então, se não há preparo para lidar com a criança em seu ambiente de confiança, como esses casos chegarão ao judiciário e serão punidos?
Essa "síndrome do segredo” como nomeia Cezar (2012) ocorre porque além das crianças não possuírem a devida orientação para lidarem com o caso, elas possuem medo da punição pela ação de que participou e temem também que não acreditem nela e por isso possam puni-la pela mentira.
A Constituição Federal ao prever prioridade absoluta ao direito das crianças e adolescentes denota que todas as medidas possíveis devem ser tomadas para que exista a efetividade desses direitos, pois a sua formalização não é suficiente, é necessário que haja a sua materialização.
Ao longo do trabalho foi demonstrado como a legislação brasileira é vasta no assunto, sendo reconhecida internacionalmente, como afirma Dantas (2019), contudo, a maior parte desses direitos são desconhecidos e não possuem sua aplicação plena.
As famílias, os casais, os futuros pais devem lembrar-se que no momento em que se concebe uma criança, essa criança está firmando com a vida um “contrato” onde se registra, se programa, se marca a vida em todos os sentidos. (POTTER, 2019, p. 68). Essa marca deixada faz nascer o cuidado como um dever, pois é obrigação legal tutelar e preservar a vida das crianças e adolescentes.
Assim, passada as considerações acerca da educação preventiva e da conscientização quanto ao crime em questão, no tópico seguinte, se observará como o fenômeno da alienação parental pode agravar ainda mais a problemática do abuso sexual intrafamiliar.
4.2 O fenômeno da alienação parental e suas consequências ao abuso sexual infantil intrafamiliar
Para que se possa compreender o fenômeno da alienação parental é importante olhar a sua definição que é dada pela Lei nº 12.318/2010 em seu art. 2o, além disso, seus incisos exemplificam situações que caracterizam o fenômeno:
Art. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. (BRASIL, 2010b)
Observa-se que a legislação entende as particularidades da família e as consequências de possíveis desentendimentos entre os genitores do infante nos diversos âmbitos da vida.
Farias e Rosenvald (2016) afirmam que toda ruptura de convivência é marcada pelos solavancos naturais das frustrações pessoais de um projeto afetivo que se imaginou para sempre. Então, a partir desse momento tem-se a fragilização psicológica das crianças que porventura passam por essa situação em sua relação familiar. Caso o guardião aja de forma a tentar sujar a imagem do outro genitor para a criança, o que pode ocorrer é uma confusão mental fazendo com que esse sujeito tenha receio até mesmo de relatar o que acontece para o outro responsável por temer algum tipo de conflito e essa situação atinge diretamente os casos de abuso sexual infantil intrafamiliar.
Essa confusão feita na cabeça da criança fere frontalmente seus direitos fundamentais que são previstos constitucionalmente e principalmente o princípio do melhor interesse da criança. Pois ao existir um genitor inventando histórias para a criança tem-se como consequência a criação de falsas memórias
As deturpações causadas afetarão a vida dessa criança por toda a sua vida, conforme Potter (2019) e se observadas em um contexto e abuso sexual infantil intrafamiliar tem-se seu agravamento, pois já existe um abuso moral contra a criança e/ou adolescente. Então, aquela criança, já tendo seu psicológico prejudicado não sabe em quem confiar para relatar algum ataque a sua dignidade sexual, visto toda a sua confusão mental.
Uma demanda muito presente nos trâmites judiciais é a de falsa acusação de ofensa sexual, então se busca sempre o melhor interesse da criança, seja em situações em que a ofensa sexual se constitui um fato real ou quando tal situação é utilizada para cercear o direito de convivência de filhos com um dos genitores (SILVA, 2015, p. 42). Observa-se então que um desdobramento dos conflitos familiares e da alienação parental é a prejudicialidade no que se refere a interferência desnecessária do judiciário e não só, a criança passa por diversos procedimentos até mesmo exames em prol de uma situação inexistente. Caso venha a ocorrer algum caso nessa família, a relação de confiança já tendo sido quebrada entre os entes e a criança irá fazer com que esta sinta-se amedrontada de expor, por conta de tudo que viveu.
O fenômeno das falsas memórias surge juntamente com a alienação parental, conforme Potter (2019). Essa implantação das falsas lembranças é feita pelo alienante que acusa o ex parceiro de praticar atos sexuais contra o/a filho/a, fato este que não ocorreu (POTTER, 2019, p. 124).
Um caso ocorrido em 2017, noticiado pelo G1 CE, retrata como a falta de amparo da família corrobora para a subnotificação. Uma jovem de dezessete anos denunciou seu pai por tê-la abusado sexualmente durante onze anos, afirmando que seu silêncio se deu em face das ameaças do abusador. Ao efetuar a denúncia, a família da jovem a rejeitou, até mesmo a sua mãe e diante da rejeição familiar a jovem teve que ser acolhida institucionalmente. (JOVEM, 2017)
A crença da vítima é essa, que será rejeitada pela família se contar ou que irão achar que ela está mentindo e quando isso acontece, só demonstra o despreparo familiar para lidar com situações em que o criminoso é um familiar, o qual aparenta inofensibilidade.
Por fim, é importante destacar o quão impactante é o tipo de relação familiar entre a criança e seus responsáveis, pois, por meio dela é que se terá ou não a notificação desses crimes às autoridades competentes.
Foi possível aferir quão nociva a dinâmica familiar pode ser, ainda mais quando se tem em questão a ocorrência de abuso psicológico e a criação de falsas memórias em virtude de uma alienação parental.
A sociedade, no entanto, possui entraves a serem superados, como a ausência de diálogo no ambiente intrafamiliar bem como no escolar. A intervenção pedagógica preventiva é um importante meio para a diminuição dos casos do crime em comento e para a redução dos danos.
oi estudado, neste trabalho monográfico, o abuso sexual infantil intrafamiliar e a revitimização causada nessas vítimas pelo judiciário envolvendo as concepções teóricas do Direito Penal e do Direito das famílias. Sendo também observadas as nuances psicológicas desse crime, considerando o seu impacto. O estudo invocou dados percentuais quanto ao número de casos denunciados e as subnotificações, além disso, foi realizada análise quanto a efetividade do sistema penal no enfrentamento do crime em questão e na sua prevenção.
No início desta pesquisa foi observado como o ordenamento jurídico se porta diante do crime de abuso sexual infantil intrafamiliar, em relação a tipificação e cominação de penas. Mas não só, também se analisou os direitos dos infanto-juvenis em face dos princípios que norteiam a sua proteção. A análise procedimental do aspecto processual penal foi realizada, bem como a elucidação acerca da definição de criança, adolescente e família de acordo com o ECA.
A observância das medidas de proteção à vítima de abuso sexual infantil intrafamiliar culminou na análise de quão despreparado o judiciário está para lidar com esses sujeitos, visto que ocorre uma vitimização secundária ao longo de todo o processo. As crianças e adolescentes são sujeitos de direitos especiais e merecem atenção especializada diante do judiciário. Como visto pelos dados colacionados, a maioria das vítimas de estupro são crianças e adolescentes e os abusadores em grande parte dos casos são conhecidos da vítima. Então, a falta de debate e diálogo tem agravado o assunto, pois a melhor forma de evitar a ocorrência desse crime é falando sobre e não o ignorando.
Diante o exposto, a hipótese inicial foi atendida, tendo em vista que embora exista o endurecimento de penas quanto as tipificações relacionadas ao abuso sexual infantil intrafamiliar, a redução dos danos ainda não é trabalhada de forma efetiva e nem a prevenção ao crime.
Por fim, importa alertar que a mera punição não soluciona o problema da segurança desses sujeitos de direitos especiais. O problema é complexo e exige uma análise interdisciplinar, bem como a preparação dos profissionais que irão lidar com as vítimas do crime aqui elucidado, havendo assim a necessidade de uma escuta especializada. Além da política de redução de danos, que é de enorme valia, é necessário também o diálogo e debate preventivo quanto ao crime, pois este além de evitar que o crime ocorra, faz com que o infanto-juvenil tenha coragem para expor o crime assim que aconteça, evitando que haja seu prolongamento no tempo.
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Artigo publicado em 04/10/2021 e republicado em 21/05/2024
Bacharelanda em Direito pelo Centro universitário Dom Bosco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LAGO, Beatriz Rodrigues. Família do lado esquerdo do peito? Uma análise da proteção jurídico-penal em face do abuso sexual infantil intrafamiliar com enfoque na revitimização da vítima Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 maio 2024, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57250/famlia-do-lado-esquerdo-do-peito-uma-anlise-da-proteo-jurdico-penal-em-face-do-abuso-sexual-infantil-intrafamiliar-com-enfoque-na-revitimizao-da-vtima. Acesso em: 24 nov 2024.
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