Resumo: O presente artigo visa discorrer sobre a (im)possibilidade de cessão de crédito oriundo de contrato administrativo. Para tanto, considerando que o tema não é pacífico, serão abortadas as argumentações desenvolvidas a favor e contra o instituto.
Palavras-Chave: Cessão de crédito. Contrato Administrativo. Administração Pública.
1. INTRODUÇÃO
A cessão de crédito é regulada, especialmente, pelos arts. 286 a 298 do Código Civil. Trata-se de um negócio jurídico bilateral pelo qual o credor de uma obrigação (cedente) transfere, no todo ou em parte, a terceiro (cessionário), independentemente do consenso do devedor (cedido), sua posição na relação obrigacional, com todos os acessórios e garantias, salvo disposição em contrário, sem que se opere a extinção do vínculo obrigacional original.
O devedor cedido, portanto, não é parte no negócio da cessão, mas, certamente, deve ser notificado do ato para tomar ciência a quem deve efetuar o pagamento. Com efeito, reza o art. 290 do CC que a “cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita”. Enquanto não tiver conhecimento da cessão, pagando ao credor primitivo, o devedor estará pagando bem (art. 292).
Ademais, é importante que o devedor seja comunicado para que tenha a oportunidade de opor ao cessionário as eventuais exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente (art. 294 do CC). Sendo assim, poderá o devedor opor contra o cessionário todas as alegações de defesa de que dispunha contra o cedente à época da cessão, a exemplo da prescrição ou alguma causa de anulabilidade ou nulidade da dívida (erro, incapacidade do agente, ilicitude do objeto, etc.).
Acontece que a aplicação do instituto da cessão de crédito no âmbito do Direito Público é controvertida, especialmente quando se trata de contratos administrativos. A seguir serão apresentados entendimentos pela possibilidade e pela impossibilidade da aplicação do instituto aos contratos administrativos.
2. DA IMPOSSIBILIDADE DE CESSÃO DE CRÉDITO ORIUNDO DE CONTRATO ADMINISTRATIVO
De saída, convém trazer à baila o que dispõe o art. 286 do Código Civil:
Art. 286. O credor pode ceder seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.
Como se vê, o ordenamento jurídico admite o afastamento da cessão em determinadas hipóteses. De acordo com o dispositivo legal acima transcrito, a cessão de crédito não é admitida em qualquer circunstância, vedando-se a sua realização diante da natureza da obrigação, por lei ou por determinada convenção.
Os contratos administrativos se encontram na exceção mencionada pelo art. 286 do Código Civil em razão de: (i) a ausência de previsão legal específica sobre a cessão de crédito no regime de direito público; (ii) o fato de possuírem caráter personalíssimo e, ainda, (iii) à impossibilidade de liquidar a obrigação em favor de outrem por força do art. 63 da Lei nº 4.320/64.[1]
Como cediço, o princípio da legalidade tem diferentes acepções. Nos termos do art. 5º, inc. II, da Constituição Federal, referido princípio estabelece que o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe, podendo atuar, portanto, nos seus espaços livres (ideia de vinculação negativa à lei).
Por outro lado, diante dos interesses a serem tutelados, a Administração Pública somente pode atuar de acordo com a lei - compreendida esta em sentido amplo para abranger qualquer norma prevista no ordenamento jurídico, seja explicita ou implícita, em razão da evolução do princípio da legalidade para o princípio da juridicidade.
Os contratos administrativos submetem-se ao regime de direito público, nos termos da Constituição Federal e da Lei n° 8.666/93. Não há previsão nesta espécie normativa permitindo a cessão de crédito nos contratos administrativos. E tal não poderia ser diferente, pois o cessionário é investido da condição de credor em toda a sua amplitude, sendo-lhe permitindo buscar a realização do seu crédito por todos os meios, o que não se adequa aos contratos administrativos.
Vislumbra-se aqui a característica intuito personae do contrato administrativo por outro ângulo. A pessoalidade não é apenas meio de assegurar que o contratado será de fato o responsável pela prestação da obrigação, mas também de condicionar seu direito ao crédito ao adimplemento da prestação. Se um terceiro passa a ter direito sobre o crédito de forma desvinculada da prestação, o contrato passa a servir pretensões econômicas alheias ao interesse público que se quer satisfazer.
Nesse sentido, as lições de Jessé Torres Pereira:
"Transplantando a hipótese (de cessão de crédito) para o regime jurídico dos contratos públicos, constata-se que à cessão do contrato opõem-se a natureza 'intuito personae' dele, a lei e o contrato, este se, no caso concreto, não contiver cláusula que a autorize (e lá inserida pela anuência da Administração, no interesse da adequada execução do contrato)."[2]
Além disso, interpretando-se a contrário sensu o art. 77, VI, da Lei n° 8.666/93, verifica-se a possibilidade de cessão do contrato, e não dos créditos decorrentes do contrato. Eis a redação do dispositivo legal:
Art. 77. Constituem motivo para rescisão do contrato:
(...)
VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato;
A rigidez que se verifica na norma para a alteração da posição contratual decorre, como dito, da extrema confiança depositada pela Administração no contratado (característica intuito personae dos contratos, que pode ser relativizada em situações pontuais de aquiescência e previsão contratual), a ponto de influenciar a disciplina a ser adotada no contrato administrativo.
Não há como a Administração Pública responsabilizar-se pelo pagamento a uma pessoa jurídica distinta da relação jurídica que foi estabelecida na avença contratual (no caso, uma instituição bancária) se a verificação acerca do adimplemento contratual será feita a posteriori de acordo com as medições.
Assim, a cessão do crédito pode implicar significativa alteração nas condições iniciais da contratação, em ofensa ao princípio da isonomia, na medida em que a contratada passa a oferecer garantia a seus fornecedores não prevista no edital da licitação.
Ademais, o art. 63 da Lei n° 4.320, de 1964, impede a modificação do credor para efeito de liquidação de despesa, pois condiciona a liquidação da despesa ao adimplemento da obrigação (art. 63, § 2º, III). Novamente, deve-se observar o princípio da legalidade, para considerar anômalo o recebimento de crédito por terceiro que não detém qualquer vínculo com a Administração e que não participou da execução do objeto contratado.
Tem-se que a transação pretendida enseja benefício exclusivo para a empresa contratada, mas que gera consequências obrigacionais para o Município de João Pessoa. A supremacia do interesse público sobre o interesse privado proíbe tal prática.
Em suma, os argumentos que fundamentam a impossibilidade da aplicação da cessão de crédito oriundo do contrato administrativo podem ser resumidos da seguinte forma:
a) A cessão de crédito não é admitida em qualquer circunstância, vedando-se a sua realização diante da natureza da obrigação, por lei ou por determinada convenção (Art. 286 do Código Civil);
b) A cessão de crédito estaria vedada pelo inciso VI do art. 78 da Lei nº 8.666/93;
c) A cessão de crédito é incompatível com o regime de direito público, sobretudo com a natureza personalíssima (intuitu personae) dos contratos administrativos;
d) Não existe previsão legal específica sobre a cessão de crédito dos contratos administrativos, de sorte que a sua aceitação violaria o princípio da legalidade estrita no sentido de que à Administração somente é lícito fazer aquilo que esteja previsto em lei;
e) O art. 63 da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, e o art. 44 do Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986, proibiriam a cessão de crédito, na medida em que dispõem que os pagamentos realizados pela Administração Pública devem ser feitos em conta bancária do credor; e
f) A cessão de crédito poderia causar prejuízos à execução contratual, à satisfação do interesse público ou, ainda, servir de simulação a negócios escusos praticados em conluio pela empresa contratada e pelo terceiro cessionário (a exemplo de fraude a credores).
Além disso, é importante destacar que há julgados de tribunais administrativos e judiciários indicando a ilegalidade da cessão de crédito de contrato administrativo.
Nesse sentido, o Plenário do Tribunal de Contas da União proferiu o julgado transcrito abaixo, tido como paradigma para a matéria [Acórdão n.º 831/2000 – Plenário]:
“(...)Relativamente à validade da cessão de créditos, entendemos que ocorreu descumprimento do art. 44 do Decreto nº 93.872/86 que dispõe que 'o pagamento de despesa será feito mediante saque contra o agente financeiro, para crédito em conta bancária do credor, no Banco por ele indicado, podendo o agente financeiro fazer o pagamento em espécie, quando autorizado' (grifo nosso).
22.Entendemos que não existe previsão legal que autorize a cessão de créditos decorrentes do adimplemento de contratos administrativos. Conforme preceitua o art. 1.065 do Código Civil, 'o credor pode ceder seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor'. Logo, considerando que a lei veda a cessão de tais créditos, opinamos pela prática de ilegalidade da autoridade que autorizou o levantamento dos créditos da Construtora Ikal Ltda. pela Banco OK.
23.A propósito vale referir que o referido instrumento de cessão de créditos pode ter sido uma forma utilizada para fraudar os credores da Construtora Ikal Ltda. Conforme noticiado nos jornais locais, a Construtora, após a denúncia na mídia quanto às ilegalidades perpetradas na construção do fórum paulista, encerrou suas atividades em Pernambuco deixando de saldar compromissos comerciais e trabalhistas. Às fls. 41 do TC nº Processo 016.411/1999-4 anexo verifica-se diversos mandados de penhora dos créditos da Construtora em decorrência de sua inadimplência generalizada.
(...)25.A partir destas informações não é difícil imaginar que esta cessão de créditos pode, por exemplo, ter servido de simulação para que o Banco OK recebesse os créditos da Construtora, que à época poderia ter seus contas bloqueadas pela Justiça, tanto em decorrência de execuções civis e trabalhistas, como a partir de solicitações de indisponibilidade de bens da empresa e controladores efetuadas pelo Ministério Público Federal, conforme constava em notícias jornalísticas. Pode ser o caso de fraude à execução, capitulada no art. 179 do Código Penal.
(...)
30.Retornando aos pagamentos, entendemos que a natureza das despesas públicas, e seu procedimento próprio de liquidação e pagamento previstos na Lei nº 4.320/64, não autorizam a cessão de crédito nos moldes ajustados pela Construtora e pelo Banco.”
No mesmo sentido, encontram-se os seguintes precedentes do TCU: Decisão n.º 831/2000 - Plenário, Decisão n.º 420/2002 – Plenário e Acórdão n.º 984/2004 – Plenário.
Em julgado mais recente, datado de 24 de junho de 2015, o Plenário da Corte de Contas da União reiterou seu posicionamento acerca da matéria, declarando a impossibilidade de reconhecimento da cessão de crédito [Acórdão n.º 1570/2015 - Plenário]. Confira-se trecho do referido julgado:
“51.6.4. Como é sabido, no direito público, diferentemente do privado, só pode ser feito o que a lei permite. De acordo com o art. 44 do Decreto 93.872/1986 (que também se aplica às entidades da administração indireta, inclusive as empresas estatais como a CBTU, por força do inciso III c/c o caput do art. 50, da Lei Complementar 101/2000), determina que o pagamento de despesa deve ser feito a crédito da conta bancária do credor. Não há previsão para o pagamento a terceiros.
51.6.3. Acerca dessa questão, o TCU já se posicionou pela sua irregularidade, conforme disposto no Acórdão 984/2004-TCU-Plenário, anterior à irregularidade aqui cometida. No Relatório que antecedeu o Acórdão 3812/2012-TCU-Segunda Câmara, foi proposta ciência à unidade jurisdicionada nos seguintes termos:
7.5.5 realização de pagamentos a terceiros para a quitação de débitos de fornecedores ou prestadores de serviços contratados por ela, em virtude de cessão de crédito, identificados no Contrato 027/2000, o que afronta o disposto no art. 44 da do Decreto 93.872/1986 e decisões do Tribunal, como a proferida no Acórdão 984/2004-TCU-Plenário (item 4.15 da instrução de fls. 466-483);
51.6.4. A doutrina também se posiciona nesse sentido, conforme excerto abaixo transcrito, extraído do Relatório que integrou o Acórdão 282/2007-TCU-Plenário:
73. Para argumentar contra a licitude da cessão de credito em contratos administrativos, transcrevem-se excertos da matéria veiculada na Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC nº 143, jan/2006, p. 58, Seção 'Direitos dos Licitantes Contratados', título 'Cessão de Crédito nos Contratos Administrativos', que vão ao encontro do entendimento defendido no tópico 4.3 deste relatório:
Os contratos administrativos se encontram na exceção mencionada pelo art. 286 do Código Civil dados (i) a ausência de previsão legal específica sobre a cessão de crédito no regime de direito público; (ii) o fato de possuírem caráter personalíssimo e, ainda, (iii) à impossibilidade de liquidar a obrigação em favor de outrem por força da Lei nº 4.320/64, art. 63.
(...)De acordo com o regime de cessão de crédito do Código Civil, o cessionário é investido da condição de credor em toda sua amplitude, sendo-lhe permitido buscar a realização do seu crédito por todos meios. Aí reside o receio - caso houvesse previsão legal sobre a matéria - de que a Administração admitisse a cessão de crédito nos seus contratos.
Constatando essa influência do cessionário sobre o contrato, já que investido na qualidade de credor, acatamos o entendimento professado por Marçal Justen Filho de que a cessão de crédito não se aplica aos contratos bilaterais, uma vez que o Código Civil menciona o cessionário do crédito como sendo meramente credor, e não devedor de uma prestação.
Logo, não se verifica vantagem para a satisfação do interesse público. Muito ao contrário, ao permitir que terceiro possa interferir no andamento do contrato tendo como único objetivo a realização do seu crédito, a autarquia estará colocando em risco este interesse.
(...) Entretanto, quando se trata da contratação administrativa, deve ser considerado que o pagamento do crédito está vinculado a normas restritivas, que inviabilizam a quitação a outro que não o responsável pela prestação, conforme o art. 63 da Lei nº 4.320/64. Em síntese, no regime de direito público vale o dito de que 'o direito de crédito não se confunde com o direito sobre o crédito'.
(...)Justamente por essa razão é que a cessão de crédito não figura na regulamentação dos contratos administrativos; embora sendo obrigação acessória, o cessionário poderá exigir alterações contratuais para a satisfação de seu crédito, interferindo na consecução do interesse público à revelia da empresa contratada e da autarquia contratante.
Os contratos administrativos caracterizam-se pela pessoalidade. Aquele que é contratado deve ser o responsável pela execução e consequente recebimento dos créditos. A cessão de crédito ofenderia este princípio na medida em que um terceiro passa a ter direito sobre o crédito de forma desvinculada da prestação.
51.6.4. No Voto condutor do Acórdão 831/2000-TCU-Plenário, o E. Relator, Walton Alencar Rodrigues, deixou assente como irregularidade a realização de pagamentos, pelo DNER, ao Banco OK Investimentos S.A., mediante cessão de créditos da Construtora Ikal Ltda., em afronta ao art. 44 do Decreto 93.872/86 c/c arts. 64 e 65 da Lei 4.320/64.
51.6.5. Por fim, ainda sobre essa questão, este Tribunal, mediante o Acórdão 1094/2012-TCU-Segunda Câmara, se pronunciou nos seguintes termos:
(...) que se-abstenha de (...) efetuar pagamentos a entidade diferente daquela constante do contrato, vez que essa situação pode caracterizar subcontratação total e constituir motivo para rescisão unilateral do instrumento pela administração, no caso de a minuta do contrato ou a avença original não preverem tal possibilidade, conforme reza o art. 78, inciso VI, da Lei nº 8.666/1993;”
Portanto, o TCU considera ilegal a cessão de créditos decorrentes de contratos administrativos em face da interpretação empregada aos arts. 64 e 65 da Lei 4.320/64 c/c art. 44 do Decreto 93.872/86, cuja essência visa impedir eventuais desvios de preferência creditória que se tornem viáveis a partir da aceitação do pagamento, além de resguardar à necessária comprovação de regularidade fiscal, que haveria de ser verificada em duplicidade.
Nesse prumo, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já decidiu da seguinte maneira:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE EMPREITADA PARA EXECUÇÃO DE OBRAS EM RODOVIAS. CESSÃO DE CRÉDITO A EMPRESA ALHEIA AO CONTRATO ADMINISTRATIVO. PAGAMENTO DIREITO À CESSIONÁRIA. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Os contratos administrativos se submetem aos preceitos de direito público, devendo se pautar pelos princípios constitucionais norteadores da administração pública, dentre eles o da legalidade, segundo o qual o administrador deve agir conforme a lei. 2. A contraprestação pela execução do contrato administrativo deve ser efetuada à empresa contratada, não havendo previsão legal que autorize a aceitação, pela Administração, da cessão de crédito a empresa alheia ao negócio jurídico, com a liberação do pagamento diretamente à cessionária, mormente quando há discussão, na esfera administrativa, acerca da possibilidade de liberação do crédito em questão, em face da existência de indícios de irregularidades na execução do contrato. 3. Sentença denegatória da segurança, que se confirma. 4. Apelação desprovida. (AMS 0038593-16.2003.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.114 de 09/08/2010)
Destarte, com a devida vênia àqueles que pensam em sentido contrário, entende-se que o caminho mais seguro a ser seguido pela Administração e que melhor resguarda o interesse e o erário público é que se adote postura cautelosa diante do negócio jurídico de cessão de crédito celebrado entre a contratada cedente e o terceiro cessionário.
3. DO ENTENDIMENTO DIVERGENTE. COMPATIBILIDADE ENTRE CESSÃO DE CRÉDITO E CONTRATO ADMINISTRATIVO
Conforme visto anteriormente, a matéria aqui tratada não é pacífica no âmbito jurídico. Há quem defenda a possibilidade da cessão de crédito decorrente de contrato administrativo.
A Advocacia Geral da União - AGU já enfrentou o tema diversas vezes, sendo possível encontrar posicionamentos daquele órgão em ambos os sentidos - tanto pela possibilidade, quanto pela impossibilidade.
Acontece que, em 27/05/2020, foi publicado um despacho do Presidente da República para aprovar o Parecer nº 31/2019 da AGU[3], que consolida o entendimento do órgão jurídico acerca da cessão de crédito decorrente de contrato administrativo. Eis a ementa do mencionado parecer:
EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS. CESSÃO DE CRÉDITO ORIUNDO DE CONTRATO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE. RESTRIÇÕES, FORMALIDADES E CAUTELAS. CONTINUIDADE DA EXECUÇÃO DO OBJETO CONTRATUAL PELA EMPRESA CONTRATADA.
I – A cessão de crédito decorrente de contrato administrativo é juridicamente viável, desde que não seja vedada pelo edital ou contrato.
II – A aplicação supletiva do Direito Civil autorizada pelo art. 54 da Lei n.º 8.666/93 possibilita a cessão de crédito na seara pública.
III – Determinadas cautelas e formalidades devem ser observadas na cessão de crédito no âmbito administrativo, sobretudo a celebração de termo aditivo entre a Administração e a contratada, a comprovação da regularidade fiscal e trabalhista também por parte da cessionária, bem como a certificação de que a cessionária não se encontra impedida de licitar e contratar por ter sido punida com fundamento no art. 87, III ou IV, da Lei n.º 8.666/93, no art. 7.º da Lei n.º 10.520/2002 ou no art. 12 da Lei n.º 8.429/92.
IV – O crédito a ser pago à cessionária é exatamente aquele que seria destinado à cedente (contratada) pela execução do objeto contratual, com o desconto de eventuais multas, glosas e prejuízos causados à Administração, sem prejuízo da utilização dos institutos da conta vinculada e do pagamento direto previstos na Instrução Normativa SEGES/MP n.º 5/2017.
V – A cessão de crédito não afeta a execução do objeto contratado, que continuará sob a responsabilidade da empresa contratada.
O Parecer nº 31/2019 da AGU registra que existe posicionamento contrário do TCU acerca da matéria[4], porém conclui pela viabilidade da cessão de crédito decorrente de contrato administrativo, desde que sejam observados determinadas cautelas e formalidades.
Nesse contexto, importa transcrever trechos do referido opinativo legal em que são elencadas as restrições e cautelas em cessão de crédito de contrato administrativo:
“89. Contudo, não se pode olvidar que o edital ou o contrato pode conter regra proibindo a cessão. Tal fato está amparado no art. 286 do Código Civil ("O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor") e também na posição preponderante conferida à Administração nos contratos administrativos.
(...)
91. Ademais, não se pode aceitar que a cessão de crédito comprometa a boa execução contratual. Isso é essencial. O interesse público não pode ser olvidado.
92. Outro aspecto a ser abordado diz respeito ao momento exato do início da produção dos efeitos da cessão de crédito em sede administrativa.
(...)
94. A interpretação de tal dispositivo é delicada e não recebe tratamento unânime na doutrina. Mas não se pretende aqui aprofundar o estudo do assunto. Por ora, basta reafirmar que a alteração da forma de pagamento em razão de fato superveniente à celebração do contrato administrativo impõe a assinatura de termo aditivo em cumprimento ao art. 65, II, "c", da Lei n.º 8.666/93. E esse termo aditivo firmado entre a Administração e a contratada obedecerá às formalidades previstas no art. 61, parágrafo único, da Lei n.º 8.666/93.
96. Sendo assim, não é a notificação exigida pelo art. 290 do Código Civil que determina a observância da cessão na seara administrativa. Como visto, é necessário mais para que o negócio celebrado entre particulares determine a alteração da forma de pagamento de um contrato administrativo: a celebração do termo aditivo e a obediência às formalidades constantes do art. 61, parágrafo único, da Lei n.º 8.666/93.
97. Outrossim, julga-se prudente exigir do cessionário certidões de regularidade fiscal e trabalhista ao longo de toda a cessão para que seja dificultada qualquer tentativa de utilizar o instituto da cessão de crédito com finalidade ilícita. Essa medida também parece útil para evitar contratempos na execução contratual.
98. Nesse mesmo sentido, outra providência que deve ser adotada pela Administração se refere à certificação de que a cessionária não se encontra impedida de licitar e contratar por ter sido punida com fundamento no art. 87, III ou IV, da Lei n.º 8.666/93, no art. 7.º da Lei n.º 10.520/2002 ou no art. 12 da Lei n.º 8.429/92.
99. Tal comprovação é exigida ordinariamente da empresa contratada e, por tudo o que foi dito até aqui, se sabe que a cessionária não ingressa no contrato administrativo por força da cessão de crédito. No entanto, a exigência se justifica pela dificuldade adicional imposta àqueles que poderiam tentar usar a cessão de crédito como meio de superar as graves penalidades citadas acima. Acredita-se que conluios e fraudes poderiam ser inviabilizados com a adoção da medida sugerida.”
Portanto, para que seja possível a cessão em análise, a AGU entende que alguns requisitos devem ser observados, a saber: a) não haver vedação no edital ou no contrato; b) não pode comprometer a boa execução contratual; c) a celebração de termo aditivo entre a Administração e a contratada; d) a comprovação da regularidade fiscal e trabalhista também por parte da cessionária; e) a certificação de que a cessionária não se encontra impedida de licitar e contratar por ter sido punida com fundamento no art. 87, III ou IV, da Lei n.º 8.666/93, no art. 7.º da Lei n.º 10.520/2002 ou no art. 12 da Lei n.º 8.429/92.
De bom alvitre frisar que, nos termos do entendimento da AGU, o momento do início da produção dos efeitos da cessão de crédito em sede administrativa não se dá com a notificação exigida pelo art. 290 do Código Civil, sendo necessário a celebração de termo aditivo para alterar a forma de pagamento, conforme exigido pelo art. 65, II, "c", da Lei n.º 8.666/93.
O aditamento do contrato, portanto, é uma providência necessária para dar eficácia plena ao negócio jurídico, levando em conta que haverá alteração no procedimento de execução da despesa pública, em especial no empenho inicialmente efetuado.
5. CONCLUSÃO
A par de todas essas considerações, entende-se que o caminho mais seguro a ser seguido pela Administração e que melhor resguarda o interesse e o erário público é que se adote postura cautelosa para não admitir a cessão de crédito oriundo de contrato administrativo, sobretudo em razão do entendimento do Tribunal de Contas da União acerca da ilegalidade do referido negócio jurídico, conforme visto anteriormente.
Não se desconhece, contudo, o posicionamento acerca da viabilidade da cessão de crédito decorrente de contrato administrativo. Caso seja adotado este entendimento, recomenda-se que seja feita uma análise caso a caso, a fim de avaliar se foram cumpridos os requisitos elencados no Parecer Jurídico nº 31/2019 da AGU.
[1] Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC nº 143, jan/2006, p. 58, Seção 'Direitos dos Licitantes Contratados', título 'Cessão de Crédito nos Contratos Administrativos'
[2] PEREIRA, Jessé Torres. Comentários a lei das licitações e contratações da administração pública. 4. ed. Rio de Janeiro: renovar. 1997. p.491
[3] Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/AGU/Pareceres/2019-2022/PRC-JL-01-2020.htm> Acesso em 19.10.2021
[4] “Não se desconhece que o posicionamento aqui sustentado conflita com a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (Decisão n.º 831/2000 - Plenário, Decisão n.º 420/2002 – Plenário e Acórdão n.º 984/2004 - Plenário). Todavia, acredita-se que as razões e as cautelas apresentadas neste estudo confirmam a juridicidade da cessão de crédito relativo a contrato administrativo." (Trecho do Parecer nº 31/2019 da AGU)
Artigo publicado em 26/10/2021 e republicado em 30/04/2024
Advogada. Pós-graduada em Direito Público. Pós-graduada em Direito Administrativo e Gestão Pública. Autora dos livros - "Audiência de Custódia: Alternativa à Cultura do Encarceramento Enraizada no Sistema Penitenciário Brasileiro" (2019); e - "A (Im)prescritibilidade das Ações de Ressarcimento por Dano Causado ao Erário: Interpretando o art. 37, § 5º, da CF, à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal" (2019). Professora no Conteúdos PGE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Marcela Pedrosa. Cessão de crédito oriundo de contrato administrativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57330/cesso-de-crdito-oriundo-de-contrato-administrativo. Acesso em: 23 dez 2024.
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