RAFAEL SILVA OLIVEIRA[1]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo discorreu sobre o massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, como um marco memorável da história do sistema penal brasileiro, relacionado a vários questionamentos como a dimensão do ocorrido, a tentativa de apagamento, os Direitos Humanos sendo feridos e a impunidade. Um estudo sobre a violação dos direitos humanos no contexto do Massacre do Carandiru, suas implicações sociais e a condução do caso no âmbito judiciário brasileiro. Justifica-se pela ausência de efetiva punição aos responsabilizados pelas mortes e suas repercussões. Este estudo foi realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica sobre a temática, tendo como principais fontes de pesquisa Nucci (2011), Jocenir (2011), Morais (2006); Greco (2011), Custódio (2014) e Foucault (2017). Concluiu-se que mesmo com a com uma Constituição Federal humanizada, por contar com a Lei de Execução Penal e os tratados internacionais de direitos humanos no rol das garantias mínimas da pessoa humana, o Estado, não conseguiu garantir o assegurado à população carcerária brasileira minimamente: a vida.
Palavras-chave: Carandiru. Sistema penal brasileiro. Direitos Humanos. Ressocialização.
ABSTRACT: This article discussed the Carandiru massacre, which took place in 1992, as a memorable milestone in the history of the Brazilian penal system, related to various questions such as the dimension of what happened, the attempt to erase, human rights being injured, and impunity. A study on human rights violations in the background of the Carandiru Massacre, its social implications, and the conduct of the case in the Brazilian judiciary. It is justified by the absence of effective punishment of those responsible for the deaths and their repercussions. This study was carried out for bibliographical research on the subject, having as main research sources Nucci (2011), Jocenir (2011), Morais (2006); Greco (2011), Custodio (2014), and Foucault (2017). It was concluded that even with a humanized Federal Constitution, by relying on the Criminal Execution Law and international human rights treaties on the list of minimum guarantees for the human person, the State was unable to guarantee the minimum guarantee to the Brazilian prison population. : life.
Keywords: Carandiru. Criminal Justice System. Human Rights. Resocialization.
Sumário: 1 – Introdução; 2 – Contextualização: o Massacre do Carandiru; 3 – Aspectos gerais dos direitos humanos; 4 – O Massacre do Carandiru e os direitos humanos; 5 – Considerações finais; 6 – Referências.
1. INTRODUÇÃO
A discussão a respeito dos Direitos Humanos assegurados pela Constituição Federal e a aplicação dos mesmos no sistema carcerário brasileiro cresce a cada dia. Os presídios enfrentam problemas recorrentes dia após dia e as críticas sofridas são inúmeras: superlotação, reincidência, precariedade quanto aos cuidados com a saúde; má gestão das rotinas dentro das carceragens e falta de apoio da sociedade.
As leis brasileiras asseguram aos encarcerados direitos que são inerentes à perda da liberdade, mas o modo como vivem faz desaparecer valores pessoais e coletivos, representando assim um atentado à condição humana. Sem a efetiva aplicação dos Direitos Humanos, a reincidência torna-se algo certo, o que mostra que o caráter ressocializador dos cárceres brasileiros é inefetivo. Segundo a Constituição Federal (art. 5º, XLVII , e , CF/88) dentro do sistema prisional, o Estado tem o dever de garantir programas educacionais, assegurar os Direitos Humanos e como consequência, contribuir para que o preso seja reabilitado.
A partir desta problemática, o presente artigo objetiva discutir sobre os Direitos Humanos, tendo como estudo de caso o Massacre do Carandiru, ocorrido em 02 de outubro de 1992 em São Paulo (SP). A rebelião de presidiários que se iniciou motivado pelo desentendimento de dois presos, resultou em uma chacina de 111 encarcerados.
Em um primeiro momento da pesquisa, realiza-se uma contextualização do Massacre do Carandiru, trazendo aspectos jurídicos e históricos do fato e evidenciando a condução do caso pelo sistema judicial brasileiro e suas implicações para a efetivação dos direitos humanos no âmbito carcerário do país.
Posteriormente, busca-se discutir sobre a forma como o Estado brasileiro agiu a partir de uma reflexão sobre os direitos humanos e sua composição na Constituição Federal Brasileira e nas leis infraconstitucionais que lidam com o sistema carcerário. Por fim, questiona-se sobre o sistema penitenciário enquanto possibilidade de recuperação de vidas a partir da promoção efetiva de políticas públicas eficientes para a ressocialização de detentos por parte do Estado. Além disso, é construída uma ponderação a respeito do massacre e os direitos humanos, entendendo como estes foram desrespeitados desde o acontecimento até o tratamento dado pelo sistema judiciário.
Para o desenvolvimento, utiliza-se como metodologia a pesquisa bibliográfica através de livros jurídicos, artigos científicos e a legislação brasileira. A partir deste arcabouço teórico busca-se estabelecer uma linha de comparação entre o acontecimento do Massacre do Carandiru, sua relação com os Direitos Humanos e aplicação dos mesmos dentro das penitenciárias brasileiras. Os principais autores utilizados para a construção deste artigo foram Nucci (2011), Jocenir (2011), Morais (2006), Greco (2011), Custódio (2014) e Foucault (2017).
Para Antônio Carlos Gil (2002) a principal vantagem da pesquisa bibliográfica é o fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente.
Essa vantagem tem, no entanto, uma contrapartida que pode comprometer em muito a qualidade da pesquisa. Pode ocorrer que os dados disponibilizados em fontes escritas tenham sido coletados ou processados de forma inadequada. Assim, um trabalho fundamentado nessas fontes tenderá a reproduzir ou mesmo a ampliar esses erros. Para reduzir essa possibilidade, convém aos pesquisadores assegurarem-se das condições em que os dados foram obtidos, analisar em profundidade cada informação para descobrir possíveis incoerências ou contradições e utilizar fontes diversas, cotejando-as cuidadosamente. (GIL, 2002, p. 45).
Esta pesquisa foi desenvolvida na Universidade de Gurupi (UNIRG), contemplando o primeiro e segundo semestre do ano de 2021. Ressalta-se que o artigo não necessitou ser submetido para aprovação junto ao Comitê de Ética em Pesquisa, conforme a resolução CNS 466/2012, pois se tratou de uma pesquisa cujas informações serão obtidas em materiais já publicados e disponibilizados na literatura, não havendo intervenção ou abordagem direta junto a seres humanos. Dessa forma, a pesquisa não implicará em riscos ao sujeito.
Para iniciar a discussão teórica, faz-se necessário compreender que a legislação brasileira não coincide com a realidade prisional vigente no país. O descaso com as normas existentes faz com que a ressocialização seja algo longe da realidade, pois para que isso aconteça, a prática das normas do ornamento jurídico é necessária. Apesar de o apenado viver em regime fechado, seus direitos fundamentais devem ser garantidos de forma ampla, para que assim tenha condições de voltar a conviver em sociedade de forma digna.
As penitenciárias devem ser um meio de reabilitação, para que os detentos não se tornem pessoas frustradas e sem esperança alguma após o cárcere. Sobre o assunto, Rogério Greco (2011, p. 19), jurista penal, fala:
Partilhamos do ideal de que é preciso que o governo seja consciente que é, em parte, responsável pelo alto índice de criminalização no Brasil, e que possui obrigação de lutar para garantir um sistema penitenciário legal, agindo nas raízes desse mal, e garantindo os fatores essenciais para a formação de um cidadão.
A solução para que a ressocialização seja efetiva é um cárcere baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, através do investimento do governo na educação e profissionalização do condenado, trazendo assim condições de reingresso ao mundo do trabalho e esperança de um convívio social abrangente.
Um dos principais problemas do sistema carcerário brasileiro, por exemplo, é a da superlotação. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (2021), atualmente o Brasil tem uma taxa de lotação de seu sistema presidiário de 161,26%.
Os fatores que causam essa situação estão relacionados a presídios com a quantidade de presos maior que sua capacidade pode suportar, o excesso de crimes praticados no Brasil, a inobservância das normas legais sobre o assunto e a falta de atenção do Estado sobre o assunto.
Através desta e de tantas outras realidades do sistema prisional brasileiro é possível observar como a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional a ser seguido em todo âmbito nacional, tem sido descumprido. O preso deve ser tratado assim como a lei permite, de forma humana, objetivando a sua ressocialização (NUCCI, 2011). O procedimento a ser seguido pelo setor criminal do país, as regras para que o cárcere seja de acordo com a lei e o apenado possa ser reeducado enquanto cumpre sua dívida com o Estado estão vigentes, entretanto, não são cumpridas. Afinal: por que isso acontece?
2. CONTEXTUALIZAÇÃO: O MASSACRE DO CARANDIRU
No dia 2 de outubro de 1992 ocorreu o Massacre do Carandiru, conhecido na história brasileira como um exemplo de desrespeito aos direitos humanos. O massacre teve origem numa rebelião de presidiários do Pavilhão 9, da Casa de Detenção no Carandiru, Cidade de São Paulo (SP). A rebelião foi reprimida pela invasão das tropas da Polícia Militar e resultou na morte de 111 de detentos.
Para compreender as minúcias do massacre é importante saber que dentro de uma prisão convergem duas categorias de normas: as que têm origem no Estado e as que são criadas pelas relações interpessoais existentes dentro da prisão entre os próprios prisioneiros e os funcionários que lá trabalham, visto que esta última normalmente é tolerada pelos administrados dos presídios (PECKNY, KULLER, JARDIM; 2014). A chamada “lei da massa” que tem origem no chamado “mundo do crime” é o que vale dentro dos presídios e foi justamente de um conflito interpessoal que originou o Massacre do Carandiru.
Regina Célia Pedroso (2012) e Dráuzio Varella (1999) relembram que no início do dia do massacre aconteceu um jogo de futebol no presídio. Um dos times era formado pelos presidiários que cuidavam da faxina e o outro pelos encarregados da preparação dos alimentos. A partida acontecia normalmente sob o comando de um juiz também presidiário até que um conflito no espaço de secagem de roupas entre dois detentos no segundo pavimento do Pavilhão 9 começou.
Uns dos envolvidos era Antônio Luiz do Nascimento, conhecido como Barba. Liderança de um grupo de quadrilhas da zona oeste de São Paulo e condenado a 21 anos de reclusão por latrocínio, Barba pendurava suas roupas em um determinado varal quando foi provocado por Luiz Tavares de Azevedo, o Coelho, condenado a onze ano por assalto a banco, também líder de uma quadrilha da zona leste de São Paulo.
Barba foi levado para o ambulatório da prisão desmaiado, enquanto que Coelho foi agredido por três guardas penitenciários e levado para um local trancado. Com a briga, os demais presos arrebentam a fechadura e iniciam um tumulto generalizado. Os comparsas dos presidiários que iniciaram a confusão começaram outra briga e um carcereiro tentou apartá-los, mas foi impedido por outros presos. Como tentativa de conter a confusão, outros guardas miraram armas para os presos e ameaçaram atirar, mas os focos de tumulto entre os presidiários já haviam se multiplicado e já não foi possível controlá-los mais.
Os agentes penitenciários acionaram o alarme e os policiais militares que estavam na guarita no momento comunicaram o Batalhão da Guarda alertando sobre a rebelião no Pavilhão 9. Aproximadamente trinta carcereiros tentaram, sem sucesso, conter a confusão, mas os presidiários continuaram brigando e destruindo o local, até que se trancaram no Pavilhão 9 do presídio.
Os presidiários não faziam exigências e não possuíam reféns, mas estavam reunidos para fazerem um acerto de contas entre as duas gangues representadas por Barba e Coelho a partir da aplicação da “lei da massa”. Os guardas que ainda estavam no Pavilhão 9 conseguiram fugir. O então comandante de Policiamento Metropolitano (SP), o coronel Ubiratan Guimarães, foi informado da rebelião na penitenciária e comunicou a situação para o chefe do Estado-maior do Comando do Policiamento de Choque de São Paulo, o tenente-coronel Luiz Nakarada.
Sem sucesso na tentativa de conter a rebelião, 320 policiais invadiram o local. Muitos relatos afirmam que a tropa da PM estava desorientada e mesmo já tendo sido criada desde 1984 uma estratégia militar de invasão da Casa de Detenção – o plano Boreal[2] este não foi utilizado pelos comandantes. O Massacre do Carandiru chegou ao fim com 111 detentos mortos. Destes, 103 morreram em decorrência de disparos de armas de fogo e 8 por causa de ferimentos de objetos cortantes e mais 130 feridos.
Juridicamente, o caso da Casa de Detenção Carandiru deu origem a muitos encaminhamentos e providências na área e que, por sua vez, evidenciou um conflito social no cerne desse acontecimento, envolvendo um contexto político e social complexo onde há todo um poder paralelo ao Estado e também um Estado onde seus representantes agem à revelia do bem comum (PECKNY, KULLER, JARDIM; 2014).
Nos anos de 2013 e 2014 foram realizados alguns julgamentos de policiais militares que participaram da invasão ao Carandiru, 21 anos após o acontecido. Por haver muitos réus e outros envolvidos o julgamento teve quatro fases, sendo que o critério foi em conformidade com os integrantes dos grupos policiais que adentraram a penitenciária naquele dia, ainda divididos pelos pavimentos do Pavilhão 9 (PEDROSO, 2012).
O primeiro julgamento teve 23 policiais condenados a 156 anos de prisão pela morte de 13 detentos ocorridos na operação no primeiro andar da penitenciária, enquanto que a o segundo, referente à atuação no segundo andar aconteceu em julho de 2013 e 25 policiais foram condenados e eram integrantes da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) 624 anos de prisão pelas mortes de 52 presos, foi o resumo da sentença (VARELLA, 1999).
A terceira etapa referente às 4 mortes que ocorreram no terceiro andar, tiveram 15 policiais do COE (Comando de Operações Especiais) a 48 anos de prisão. Enquanto que a última etapa foi referente ao quarto andar e suas 8 mortes, sendo que 10 policiais foram condenados a 104 anos de prisão (PECKNY, KULLER, JARDIM; 2014).
Mas o Coronel Ubiratan não foi condenado devido a uma série de imbróglios jurídicos. Este chegou a ser condenado a 632 anos de prisão, mas teve sua condenação anulada pelo fato de ser parlamentar na época do julgamento, ano de 1994. Ele teve um novo julgamento que foi adiado e foi assassinado em 2006 antes de um novo julgamento (PEDROSO, 2012).
Os policiais condenados não cumpriram pena até o momento devido a muitos trâmites judiciais que já duram 29 anos (STJ, 2021).
3. ASPECTOS GERAIS DOS DIREITOS HUMANOS
Através dos Direitos Humanos, em uma nação onde haja o mínimo de prevalência de um regime democrático, toda e qualquer pessoa deve ter a sua dignidade respeitada seja em relação a sua origem, etnia, raça; convicção econômica/política/social, idade, identidade sexual; orientação ou credo religioso (JOCENIR, 2001).
Essa classe de direitos é o objetivo norteador da CF (1988) outorgada pelo Poder Constituinte Originário, visto que a carta magna tem como epicentro de seu ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana aliado ao princípio da isonomia, visto que o propósito é que todos sejam igualmente tratados em âmbito nacional, sem discriminação de qualquer natureza (RODRIGUES, 2002).
Anterior ao ano de 1988 outros ordenamentos jurídicos, entre os quais se encontravam até os de origem internacional é quem regimentavam sobre a dignidade da pessoa humana e da isonomia dos cidadãos brasileiros, mas a partir da promulgação da CF (1988) essa questão tornou-se mais clara e objetiva.
Historicamente, os chamados direitos natos universais é que deram origem aos direitos humanos. São aqueles que não dependem de positivação, ou seja, trata-se da perspectiva de caráter universalista e, portanto, foram ratificados pela CF (1988), visto que antes já eram previstos em tratados internacionais, acordos entre nações e visavam proteger as pessoas de abusos de governos e grupos, ou até mesmo de indivíduos que atentassem contra sua dignidade e sua própria vida (RAMOS, 2002).
Regras nacionais e internacionais fazem parte do ordenamento jurídico, e tem como objetivo proteger a pessoa humana. Nas palavras de Alexandre de Moraes, ministro do STF:
Um conjunto institucionalizado (positivado) de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade o respeito à sua dignidade por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e o desenvolvimento da personalidade humana. (MORAES, 2006).
Na mesma linha de pensamento, Flávia Piovesan ainda complementa as palavras do ministro ao dizer que “Os direitos humanos são inerentes à existência humana e objeto de regulação internacional.” (PIOVESAN, 1996, p. 27).
Nessa perspectiva, a dignidade da pessoa humana é o cerne dos direitos humanos, visto que se trata de uma qualidade essencial para ser conferida a humanidade à pessoa.
Em suas palavras:
A dignidade da pessoa humana, (…) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro (PIOVESAN, 1996, p. 54).
O regime democrático brasileiro foi instituído pela CF (1988) e trata-se de um marco jurídico e histórico nesse sentido, completamente abrangente e detalhado traz um avanço quando se trata da consolidação dos direitos fundamentais. Seu contexto epistemológico aponta para o pós-positivismo, onde a dignidade da pessoa humana ganhou status de bem e fundamento do Direito, assim valores foram colocados em forma de princípios, o que difere bastante do jus naturalismo, em que os valores eram externos ao Direito.
4. O MASSACRE DO CARANDIRU E OS DIREITOS HUMANOS
Temas como segurança pública, política criminal, responsabilidade do Estado em relação à população carcerária e o sistema penitenciário brasileiro tem sido tema de discussões que envolvem a temática dos direitos humanos (MORAES, 2013).
Trata-se de temas entrelaçados e que ao mesmo tempo têm uma relação paradoxal, à medida que a estrutura tanto física (precariedade das prisões no que diz respeito à lotação, prédios sem manutenção, entre outros) e administrativa dos sistemas prisionais tem sido constante nas discussões e ações de entidades e pessoas que tratam de justiça criminal. Em especial o próprio Ministério Público, que possui a incumbência de investigar se os direitos humanos têm sido respeitados no âmbito das prisões brasileiras (FILHO; DIAS, 2014).
Por outra perspectiva, sabe-se que nem mesmo com as intervenções do Estado tem efetivado as políticas públicas que resguardem os direitos da população encarcerada (FILHO; DIAS, 2014).
A tortura e/ou tratamento desumano ou mesmo degradante, além de atentado contra a dignidade humana, seja ela física ou moral da pessoa encarcerada é condenada pela Constituição Federal.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. (CF, 1988, art.1º).
O fato de uma pessoa encontrar-se em situação de encarcerado não o torna indigno de ter seus direitos fundamentais respeitados, portanto, o direito à vida, que é o alicerce dos demais deve ser garantido pelo Estado.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 traz o direito à vida e a segurança da pessoa humana assim como considera como crime a tortura e tratamentos cruéis ou que degradam a pessoa humana, além de que prevê a igualdade junto à legislação, inclusive punição para qualquer agente do Estado ou pessoa física que venha ser responsável por alguma ilegalidade e/ou contra a própria Declaração (JOCENIR, 2001).
No âmbito do ordenamento jurídico nacional tem-se a Lei nº. 7.210/1984 que se chama Lei de Execução Penal que tem o objetivo de assegurar ao apenado seus direitos, estendido ao internado e também ao egresso do sistema, entre as assistências previstas tem-se assistência material, auxilio à saúde, apoio jurídico; educacional, social e espiritual, além de outros aspectos que são contemplados, principalmente no seu artigo 41.
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
I - alimentação suficiente e vestuário;
II - atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - Previdência Social;
IV - constituição de pecúlio;
V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI - chamamento nominal;
XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente (Lei nº. 7.210/1984).
Percebe-se que tanto a CF (1985) quanto as demais leis infraconstitucionais tem o mesmo propósito, ratificar os direitos humanos, sem exceção, para todas as pessoas, independente de está em liberdade ou na condição de encarcerado.
Os sofrimentos que acontecem dentro do sistema prisional são desnecessários e, principalmente, não tem vínculo nenhum com o cumprimento da pena e nem respaldo legal, pelo contrário, é ilegal (MORAES, 2013). A questão é que qualquer ser humano tem o direito a ter sua dignidade respeitada, não tendo relação alguma com merecimento ou quaisquer crimes cometidos (RODRIGUES, 2002).
Além disso, a população encarcerada atualmente, além de ser muito volumosa, ainda será a mesma que estará livre nas ruas daqui a algum tempo e, portanto, o tratamento recebido na carceragem pode ser refletido na própria sociedade. A aceitação das condições degradantes da população encarcerada pode ser uma semente do mal que irá germinar no futuro da própria sociedade (RAMOS, 2002).
O campo prisional é um dos grandes gargalos para a efetivação dos direitos humanos no Brasil. É comum lermos noticiários, artigos, livros e outros escritos sobre a precariedade da vida nos sistemas prisionais.
As chamadas “rebeliões” e “amotinações”, em muitos casos, são decorrentes das péssimas condições de vida dessa população, prisões extremamente lotadas, ou seja, 54,9% das penitenciárias estão com mais encarcerados do que sua própria capacidade (MORAES, 2013).
O cenário de barbárie nas prisões nacionais observados atualmente é um reflexo histórico dos castigos que se aplicavam aos apenados ao longo da história da humanidade, como bem relata Michael Foucault (2017) em sua obra que conta os sórdidos detalhes das punições públicas as quais eram submetidos os apenados da Europa e dos Estados Unidos ao longo da história. Para o autor, após a superação desse período de extrema crueldade de presos, estes teriam um tratamento mais humanizado, algo que fosse mais coerente com a finalidade da pena. O que se tem hoje são pessoas encarceradas em locais completamente insalubres, celas lotadas e sujas, sem o mínimo de possibilidades de higiene pessoal com a presença de insetos e ratos, realidade não tão diferente do sistema punitivo original relatado por Foucault.
No que diz respeito aos direitos humanos, o Massacre do Carandiru foi um marco negativo, recentemente completou 29 anos do acontecido e os policiais que foram condenados pelas mortes dos presidiários não cumpriram suas penas. Isso se deu pelo fato de que muitos processos foram iniciados, porém foram suspensos ou interrompidos ou ainda não foram finalizados. Isso se deu tanto no âmbito internacional quanto nas varas civis e criminais do Brasil (MORAES, 2013).
O Estado brasileiro foi aconselhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) a atuar para diminuir a lotação das penitenciárias, realizar um procedimento legal de investigação e punição dos responsáveis pelo massacre, indenizar as vítimas e suas famílias, isto com base em um documento construído pela OEA em que relata os acontecimentos que violam os direitos humanos durante esse episódio embasados nas leis brasileiras e tratados internacionais aos quais o país é consignatário (RAMOS, 2002).
Mesmo que as condenações tenham acontecido, as penas não foram pagas ainda. Isso se deu devido em decorrência da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo anular julgamentos, no ano de 2016, os julgamentos dos 74 policiais militares condenados em primeira instância pelas mortes dos 111 presidiários em decorrência da invasão ao Pavilhão 9 do Carandiru. Os júris foram revistos atendendo aos pedidos dos advogados dos condenados.
Porém, no ano de 2021 o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Joel Ilan Paciornik entendeu que o Ministério Público de São Paulo tinha razão e restabeleceu às condenações atribuídas pelo tribunal do júri aos policiais que participaram da chacina no antigo Complexo Penitenciário do Carandiru (STJ, 2021).
O massacre do Carandiru no ano de 1992 tornou-se um fato emblemático quando se trata de desrespeito aos direitos humanos da população carcerária do Brasil, principalmente no que diz respeito ao básico que é o direito à vida.
Ao concluir a escrita desse artigo pensou-se que mesmo com a existência de uma Constituição Federal extremamente humanizada, por contar com a Lei de Execução Penal e os tratados internacionais de direitos humanos no rol das garantias mínimas da pessoa humana, o Estado, nem de longe, consegue efetivamente garantir o que está assegurado e a população carcerária brasileira ter seus direitos básicos de educação, saúde e vida preservados.
Foi possível perceber que o Estado brasileiro não consegue nem mesmo garantir a integridade e a dignidade da pessoa humana em situação de encarceramento, nem mesmo os direitos que tem a ver com a ressocialização e reinserção na sociedade.
O problema da população carcerária ainda é o de superlotação das unidades prisionais que, em efeito cascata, influencia na oferta de melhor qualidade de vida, o que ficou evidenciado no episódio que desencadeou o conflito que culminou no massacre do Carandiru: a disputa por um varal para secar roupas entre dois líderes de quadrilhas rivais e de cumprimento com outras obrigações do Estado em relação a essa população, como o direito à vida.
Nessa perspectiva, esse estudo trouxe uma breve reflexão teórica sobre os reflexos da tragédia do Carandiru no sistema prisional brasileiro, assim como a urgência de políticas públicas que melhore o cumprimento do ordenamento jurídico no que diz respeito aos direitos humanos em solo nacional.
Não se trata apenas de uma política de proteção à população encarcerada, mas da própria sociedade, que na maioria das vezes faz vistas grossas para essa situação, tendo em vista que a função do sistema prisional não é somente segregar a pessoa em cumprimento de pena, mas de recuperá-la para que ela volte ao convívio social e, portanto, é necessário garantir educação, qualidade de vida, capacitação profissional para que possa haver uma efetiva ressocialização, assim impactando positivamente na problemática da violência no Brasil.
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[1] Graduado em Filosofia; Especialista em Ética e Ensino de Filosofia; Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. Professor do colegiado de Direito na Universidade de Gurupi – UNIRG.
[2] A penitenciária do Carandiru tinha seu próprio plano de estratégias militares para situações de emergência, ele se chamava Plano Boreal, e foi elaborado no ano de 1984, recebendo atualizações ao longo dos anos. Mas este plano não foi seguido no dia da invasão, e ficou muito tempo sem ser divulgado, até que o jornalista Ricardo Stefanelli ao realizar uma pesquisa nos processos relativos ao caso do Massacre descobriu evidências de sua existência (ONODERA, 2021).
Bacharelanda em Direito na Universidade de Gurupi UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAYSSA JORGE PARRIãO, . Massacre do Carandiru: direitos humanos e sua correlação com o sistema penitenciário brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2021, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57345/massacre-do-carandiru-direitos-humanos-e-sua-correlao-com-o-sistema-penitencirio-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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