ELISA ANDRADE ANTUNES DE CARVALHO[1]
(coautora)
RESUMO: Os investidores anjo são figuras de extrema importância para o fomento das startups que, por sua vez, têm um papel central e estratégico na nova economia mundial, por trazer grande inovação na tecnologia e em seu modelo de negócios. Entretanto, embora o investimento anjo seja indispensável para promover o crescimento significativo do setor, tem-se que o sistema jurídico brasileiro apresenta diversos entraves que desestimulam essa forma de investimento. Este trabalho, portanto, tem como objetivo avaliar se o novo marco legal das startups incentiva de forma satisfatória o investimento anjo, bem como analisar as mudanças promovidas no ordenamento jurídico nacional.
Palavras-chave: startups, novo marco legal, investidor anjo, inovação
ABSTRACT: The investor angels are figures of extreme importance to the fomentation of startups that, in their turn, have a central and strategic role in the new world economy, by bringing important technological and business model innovations. However, nonetheless the indispensable role of angel investment to promote a significant growth in the startup sector, the brazilian legal system presents several obstacles that discourage that sort of investment. This article, therefore, has the goal of analysing whether the new legal mark of startups promotes in a satisfactory manner the angel investment, as well as the changes it brought to the national legal system.
Key-words: startups, new legal milestone, angel investment, innovation
Sumário: 1) Introdução; 2) Startups; 2.1) Desenvolvimento das startups e seus desafios; 3) Investimento Anjo; 3.1) Contrato de participação; 3.2) Contrato de sociedade em conta de participação; 3.3) Contrato de Mútuo Conversível em Ações; 3.4) Contrato de Aquisição da Opção de Compra de Participação societária; 4) Novo Marco Legal das Startups e o Incentivo Legal ao Investimento Anjo; 4.1) Ambiente regulatório; 4.2) Segurança jurídica e incidente de desconsideração da personalidade jurídica; 4.3) Liberdade contratual e liquidez dos investimentos; 4.4) Tributação; 5) Conclusão; 6) Referências Bibliográficas.
1.INTRODUÇÃO
O mundo inteiro está passando, atualmente, pela 4ª Revolução Industrial, também chamada de revolução digital, que teve início, aproximadamente, na passagem do milênio (SCHWAB, 2017).
O seu advento provocou mudanças profundas, de modo que os avanços agora acontecem simultaneamente e de forma extremamente acelerada em todas as áreas de conhecimento, promovendo uma integração jamais vista entre elas (COMEÇOU, 2017).
Trouxe, principalmente, a possibilidade de modelos de negócio inovadores, que permitem um substancial aumento de ganhos e retornos, demandando, contudo, muito menos capital investido para tornar tais negócios uma realidade.
É justamente neste contexto, que clama por mudanças, que nasceram as startups, novas organizações de natureza empresarial caracterizadas por inovar não apenas nos produtos e serviços que oferecem, mas também em seu modelo de negócio.
No entanto, embora as startups sejam indispensáveis para a inserção brasileira nesse novo cenário econômico trazido pela 4ª Revolução Industrial, é perceptível que ainda enfrentam verdadeiros entraves, tanto no âmbito econômico-cultural quanto no meio jurídico, que muitas vezes inviabilizam o crescimento do setor.
Entre os fatores mais importantes para a mitigação de tais dificuldades, que serão abordadas mais a fundo no curso deste trabalho, está o investimento mais expressivo no setor, que pode ocorrer de diversas maneiras, sendo o investimento anjo uma delas.
Os investidores anjo têm um papel fundamental no fomento das startups, uma vez que oferecem não apenas o investimento financeiro, mas também atuam como verdadeiros mentores, eis que são, em geral, eles próprios, empreendedores mais experientes e bem-sucedidos.
Ocorre que, assim como as próprias startups, o investimento anjo também sofre com diversos desestímulos no cenário jurídico nacional, que muitas vezes inibem seu desenvolvimento na escala necessária para a obtenção de resultados favoráveis mais significativos.
Embora a Lei Complementar nº 155, de 2016, que primeiro regulamentou o investimento anjo, tenha trazido importantes avanços, estes foram insuficientes para estimular tal modalidade de investimento no Brasil, uma vez que ainda é possível observar grande insatisfação por parte dos investidores, especialmente quanto aos riscos oriundos da desconsideração da personalidade jurídica, da alta tributação dos rendimentos e da insegurança jurídica decorrente da ausência de uma jurisprudência sólida sobre o tema, entre outros.
Visando a minimização destas dificuldades e ciente da importância em se fomentar o empreendedorismo inovador no Brasil, foi idealizado pelo Congresso Nacional o novo marco legal das startups, que se concretizou pela fusão do PL 146/2019 com PL 249/2020, apensados por tratarem da mesma matéria, culminando na edição da LC 182/21.
Referido marco legal das startups visou trazer medidas de estímulo à criação dessa nova modalidade empresarial e estabelecer incentivos aos investimentos por meio do aprimoramento do ambiente de negócios no País.
Assim, o presente trabalho tem como objetivo analisar a situação atual das startups e sua relação com o investimento anjo no Brasil, destrinchando as principais alterações trazidas pelo novo marco legal, para investigar se a nova legislação de fato trouxe incentivos suficientes para a criação de novas startups no país, sob o enfoque do investimento anjo.
2.STARTUPS
As startups são definidas pelo art. 4º da LC 182/21, que assim dispõe:
Art. 4º São enquadradas como startups as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados.
Em síntese, são pequenos empreendimentos que surgem em virtude de uma ideia inovadora, capaz de fazer sucesso e crescer rapidamente, mediante um investimento inicial baixo, porém bastante arriscado, em meio a um cenário repleto de incertezas.
Elas se encontram em posição central e estratégica em relação às transformações trazidas pela chamada nova economia, baseada na tecnologia da informação e na hiperconectividade, frequentemente atuando em um cenário de insegurança e risco.
Seu surgimento se deu na década de 1990, nos Estados Unidos, à época da chamada “bolha da internet”, que acompanhou o nascimento de empresas como Google, Yahoo e Amazon. No Brasil, entretanto, esse modelo empresarial só começou a difundir-se por volta da virada do milênio, ganhando maior força a partir de 2010 (BONFIM, et al. 2018, p. 1).
Entretanto, por mais que representem um modelo de negócio com imenso potencial, capaz de seduzir muitos novos empreendedores, também carregam em seu bojo uma série de desafios. Para superá-los é necessária toda uma gama de habilidades e recursos, que esses novos empreendedores, em regra, não possuem.
Para além disso, deve-se lembrar ainda dos desafios intrínsecos ao cenário brasileiro, notadamente o jurídico. Isso envolve aspectos que abrangem as mais diversas áreas do direito. São problemas envolvendo a falta de incentivos fiscais, a grande burocracia que assola a atividade empresarial, uma legislação trabalhista engessada e altamente burocrática, entre tantos outros.
Exatamente por isso era imperativa uma modernização da legislação pátria sobre o assunto, contexto este que deu origem ao presente trabalho, que analisa a recém-publicada Lei Complementar 182, de 1º de junho de 2021.
Entretanto, antes de abordar os desafios enfrentados pelas startups e suas possíveis soluções jurídicas é preciso realizar uma breve digressão acerca da forma como nascem as startups e como se desenvolvem, de forma a viabilizar maior compreensão acerca do tema.
2.1. Desenvolvimento das startups e seus desafios
Em um primeiro momento, as startups nascem de uma análise mercadológica, identificando-se uma necessidade do mercado. A partir da identificação da ideia, os seus fundadores aplicam, em regra, seu próprio capital, também chamado de capital semente.
Uma vez levantado o capital mínimo essencial, os empreendedores passam por uma fase de experimentação, em que testam a viabilidade técnica e econômica do projeto. É justamente nessa fase gestacional que se inicia a busca por investimentos externos, como por exemplo o investimento anjo.
Superada a fase inicial de captação de investimentos, o produto ou serviço idealizado é lançado no mercado. Neste momento, ou a ideia cresce para se tornar um sucesso, ou acaba morrendo (ALVES, 2013, p. 52).
Para que se tenha uma dimensão das dificuldades enfrentadas pelas startups brasileiras, é interessante observar a seguinte análise estatística efetuada pela Fundação Dom Cabral: pelo menos 25% das startups brasileiras não sobrevivem ao primeiro ano, e mais da metade não sobrevive mais do que 4 anos. Ao verificarmos a taxa de sobrevivência a longo prazo (mais de 13 anos), o número é ainda mais estarrecedor, pois observa-se que 75% das startups brasileiras deixam de existir (NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2015, p. 28).
Embora tal taxa de insucesso seja também recorrente em nível internacional, faz-se imperativo diagnosticar, no cenário nacional, suas causas mais relevantes, não só para buscar resolvê-las, como também, e principalmente, para estimular o surgimento de um número bem maior de tentativas. Isso porque é natural neste modelo de negócio um elevado índice de frustração. Assim, com uma maior base de cálculo, o resultado positivo seria também consistente com o verificado nas principais praças do mundo, obtendo-se, em consequência, um aumento de investimentos no setor.
Dentre as causas de tamanha taxa de fracasso, há fatores importantes como a falta de habilidades e competências pessoais, inclusive em gestão de negócios, carência de técnicas comerciais e falta de networking, além de um ambiente regulatório e cultural pouco favorável ao empreendedorismo e das dificuldades naturais em obter capital (SPANIOL MENGUE, et al. 2019, p. 85,87).
Segundo Santos, Tonetti e Monteiro:
“(...) o principal gargalo jurídico para o fomento desse segmento do mercado encontra-se na ausência de um instrumento jurídico que confira, com solidez e possibilidade de multiplicação, ao investidor e ao investido a devida segurança jurídica e enseje menores impactos tributários (SANTOS et al. 2017, p. 19).”
Neste sentido, é relevante analisar as modalidades de investimento existentes no ordenamento jurídico pátrio atual e as dificuldades enfrentadas por cada uma delas, com principal destaque ao investimento anjo, enfoque do presente trabalho.
3.INVESTIMENTO ANJO
Conforme já explicado alhures, as startups contam, em seus estágios iniciais de desenvolvimento, com o investimento “semente”, que, em regra, tem sua origem no capital dos próprios fundadores, seus familiares e amigos (founders, family and friends), também chamados de os 3 F's (HERBST; AGUSTINHO, 2019, p. 249).
Esse investimento nada mais é do que um “pontapé” inicial, necessário para tirar a ideia do papel. A partir daí, uma vez avaliada a eventual viabilidade técnica e econômica do projeto, bem como seu potencial retorno financeiro, dá-se início à busca por outras fontes de capital, capazes de dar andamento ao projeto e expandi-lo, mesmo porque, na maioria dos casos, o capital semente é insuficiente para financiar o empreendimento.
Nesse sentido, existem variadas formas de investimento, dentre as quais destacam-se as seguintes: incubadoras, aceleradoras, venture capital, private equity, crowdfunding, e, é claro, o investimento anjo.
Investidor anjo é a pessoa, física ou jurídica, que faz aportes, com recursos próprios e/ou de terceiros, em empresas que se enquadram como startups. A principal peculiaridade desta modalidade de investimento se dá pelo fato de que o valor investido não integra o capital social da startup, de forma que o investidor não faz parte de seu quadro societário, ao menos em um momento inicial, não possuindo, também, direito de gerência ou voto em assembleia, não sendo, por outro lado, responsabilizado por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, a ele não se aplicando, também, as regras do art. 50 do Código Civil (BRASIL, 2021).
Este tipo de investimento conta com várias vantagens para os empreendedores, se comparado com as demais modalidades de investimento.
Isto porque, além dos recursos financeiros obtidos, o investimento anjo configura o que se denomina smart money. Ou seja, o investidor não apenas faz aportes de capital, mas também atua como verdadeiro mentor da sociedade, uma vez que tais investidores são, na maioria das vezes, empresários experientes e bem sucedidos, que contribuem também com know how, networking e muitas vezes, até mesmo com recintos próprios, espaços físicos ou virtuais aptos ao desenvolvimento de tais atividades (HERBST; AGUSTINHO, 2019, p. 243; SPANIOL MENGUE, et al. 2019, p. 90,92).
Neste ponto, o investimento anjo se diferencia de forma substancial de outras modalidades de investimento, que não contam com este viés de mentoria. É o que ocorre, por exemplo, com o venture capital, mais voltado para sociedades já em fase operacional, ainda que emergentes, com o private equity, que, em regra, tem como alvo as sociedades em fase mais avançada de investimento (SALAMA, 2018, p.14), ou mesmo com o crowd funding, que é caracterizado pela reunião de pequenos investimentos efetuados por uma verdadeira "multidão" de pessoas, com o objetivo de financiar determinada iniciativa ou empreendimento (COCATE; PERNISA JÚNIOR, 2012, p.1).
Não deve, ainda, ser confundido com as ditas incubadoras e aceleradoras de startups que, ao contrário, contam com o aspecto de mentoria, know how e facilitação do empreendimento, mas não realizam aportes de capital, e frequentemente estão vinculadas a instituições sem fins lucrativos ou a instituições de ensino (GITAHY, 2014, s.p.).
No investimento anjo existe ainda a vantagem do investidor, não sendo sócio, não possuir poder de voto ou decisão em reunião de sócios ou assembleia, o que, por si, afasta indesejável ingerência na gestão da startup, conferindo aos fundadores maior autonomia e independência para colocar em prática suas ideias inovadoras.
Urge ressaltar, ainda, que o investimento anjo pode ocorrer por meio de diversas formas contratuais, cada uma com suas peculiaridades e com seus prós e contras.
3.1 Contrato de participação
Tal modalidade contratual de investimento anjo foi instituída pela Lei Complementar 155/2015, consubstanciado pelo contrato de participação, conforme previsto no art. 61-A da LC 123/2006. Tal dispositivo o definiu como o contrato pelo qual o investidor anjo realiza aportes de capital em uma microempresa ou empresa de pequeno porte, com o fim de fomento à inovação e investimentos produtivos. Pela regra acima citada, referidos aportes não são integrados ao capital social da sociedade, e o investidor não será considerado sócio.
Nesta modalidade de contrato, a administração deverá ser exercida única e exclusivamente pelos sócios, sem a ingerência do investidor anjo, que não possui direito a voto em assembleia, mas poderá atuar como um mentor.
Em contrapartida por seus investimentos, o investidor anjo recebe remuneração periódica por seus aportes, que pode ser convertida em participação societária, caso assim seja acordado.
3.2 Contrato de sociedade em conta de participação
Esta modalidade de investimento está tipificada nos arts. 991 e seguintes do Código Civil e consiste em um contrato pelo qual o sócio participante aporta capital próprio no negócio, enquanto a empresa é exercida tão somente pelo chamado sócio ostensivo.
A sociedade em conta de participação é desprovida de personalidade jurídica, e não deve ser registrada na junta comercial, nos termos do art. 993 do CC/02. Entretanto, mesmo que este registro ocorra, não confere personalidade jurídica à empresa.
Em virtude disso, tem-se como consequência jurídica a ausência de titularidade obrigacional, processual ou responsabilidade patrimonial do sócio oculto, em regra, sendo que todos os bens destinados ao exercício da empresa são de única titularidade do sócio ostensivo, assumindo este todos os riscos da atividade (GALIZZI, apud JUDICE et al, 2015, p. 121).
3.3 Contrato de Mútuo Conversível em Ações
O contrato de mútuo conversível em ações é um contrato atípico, pelo qual o investidor empresta recursos financeiros à startup, constando do contrato que o mútuo poderá ser adimplido mediante a transferência de ações da sociedade ao investidor, em um evento futuro, que poderá ser tanto um termo, quanto uma condição a ser preenchida pela startup como, por exemplo, uma transformação societária, sendo livre a pactuação destes elementos acidentais pelas partes (JUDICE et al, 2015, p. 121,122).
Uma vez ocorrido o termo ou condição pactuada, o mútuo poderá ser convertido em ações ou ser pago em dinheiro, à escolha do investidor, sendo esta a grande vantagem deste tipo de contrato.
Ressalta-se que o investidor apenas passa a integrar o quadro societário da startup quando opta por converter seu crédito em participação.
3.4. Contrato de Aquisição da Opção de Compra de Participação societária
O contrato de opção de compra de participação societária se dá por meio da aquisição pelo investidor do direito de opção de compra da participação societária em um momento futuro, que pode ser um termo ou condição (JUDICE et al, 2015, p.121,122).
Neste caso, quando ocorrido o termo ou condição pactuados no contrato, o investidor terá a escolha de, querendo, adquirir a participação societária, mediante pagamento de um valor pré-determinado no contrato, que frequentemente é simbólico, considerando que já houve um prévio investimento no momento de aquisição do direito.
Optando o investidor por não adquirir a participação societária, valor algum lhe será devido pela startup, justamente porque inexiste mútuo, sendo esta a principal diferença desta modalidade em comparação ao mútuo conversível. O mesmo ocorrerá quando a opção estiver subordinada a uma condição suspensiva que não se implementar, o que caracteriza um grande risco desta modalidade de investimento, que deve ser abordado de forma cuidadosa.
4.NOVO MARCO LEGAL DAS STARTUPS E O INCENTIVO LEGAL AO INVESTIMENTO ANJO
É no contexto traçado nos capítulos anteriores que surgiu o novo marco legal das startups, que se concretizou na Lei Complementar 182/2021, bem como nas alterações trazidas para a Lei 6.404/1976, que trata da sociedade por ações, e para a Lei Complementar 123/2006, já citada, que regulamenta as microempresas e empresas de pequeno porte.
Nos termos do art. 3o da LC 182/2021, o novo marco legal se pauta no incentivo ao empreendedorismo inovador, em virtude de sua grande importância para o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Para tanto, buscou-se criar um ambiente regulatório favorável a estas atividades, prezando pela segurança jurídica, liberdade contratual, modernização do ambiente de negócios, cooperação entre os entes públicos e o setor privado e promoção da competitividade das empresas nacionais.
Assim, neste capítulo iremos abordar as principais alterações trazidas pela nova legislação no que diz respeito ao tema deste trabalho, bem como analisar se estas mudanças de fato representam os avanços propostos pelo programa.
4.1 Ambiente regulatório
Primeiramente, é interessante verificar que o novo marco legal trouxe algumas disposições com nítida intenção de desburocratizar o ambiente empresarial brasileiro.
Uma delas é a previsão do art. 11 da LC 182, que traz a possibilidade de instituição do chamado sandbox regulatório pelos órgãos e entidades da administração pública.
Isto significa que a administração pública poderá autorizar que determinadas empresas inovadoras atuem dentro de um regime regulatório mais flexível e dinâmico, desde que obedeçam a certos parâmetros, o que é muito interessante, considerando que as startups frequentemente não se enquadram nas categorias regulatórias clássicas, aplicáveis às demais empresas (COUTINHO FILHO, 2021, 266,265).
Um excelente exemplo de sandbox regulatório instituído pelo novo marco legal é a introdução do art. 294-A na Lei 6.604/76, determinando que a CVM regulamente condições facilitadas de acesso das empresas de menor porte ao mercado de capitais
Ademais, a possibilidade do art. 293 da Lei da S.A. de que as companhias fechadas com receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 realizem suas publicações de forma eletrônica e substituam os livros previstos no art. 100 do mesmo diploma legal por registros eletrônicos também é de grande relevância, já que diminuem os custos destas companhias com despesas burocráticas.
Estas alterações, entre outras, demonstram a preocupação do legislador de facilitar a abertura de novas startups, o que se traduz em significativa desburocratização dos processos, que tende a fomentar um desenvolvimento mais acelerado do ramo, como se observou na experiência internacional, por exemplo a italiana, cujo Italian Startup Act de 2012 alavancou em 160% o crescimento desta modalidade empresarial entre 2014 e 2016 (GRANT THORNTON BRASIL, 2017, p. 3).
4.2 Segurança jurídica e incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Um dos pontos de maior preocupação dos investidores anjo é a desconsideração da personalidade jurídica, que traz graves riscos ao investimento, sendo necessária uma maior proteção legislativa neste sentido.
O novo marco legal trouxe mudanças significativas, que devem ser analisadas cuidadosamente.
Temos que, antes da publicação da nova lei, ainda carecia de segurança jurídica o investimento anjo, uma vez que era incerto se o investidor poderia ser alcançado pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
No que diz respeito ao contrato de participação, tem-se que a LC 155/2016 limitou a proteção do investidor do incidente de desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil.
Ora, olvidou-se a legislação de esclarecer se a proteção se estendia às demais modalidades de desconsideração da personalidade jurídica, como a prevista no art. 28 do CDC, que adota a teoria menor, bem como às previstas nos arts. 2o, §2o, 10o e 855-A da CLT.
Deixou, ainda, de incluir a proteção contra a responsabilização tributária, prevista nos arts. 124, 133, 134 e 135 do CTN.
Assim, a proteção do investidor anjo, nos termos da LC 155/2016, se demonstrou deficiente, já que prevalecia, ainda, grande insegurança jurídica e vulnerabilidade ao patrimônio do investidor.
Para as demais modalidades contratuais a situação não era muito mais vantajosa.
O contrato de sociedade em conta de participação conta com expressa previsão legal de que apenas o sócio ostensivo responde pelas dívidas relativas à empreitada, desde que o sócio oculto não interfira nas relações entre a sociedade e terceiros, nos termos do art. 993, parágrafo único, do Código Civil.
Entretanto, frequentemente vinha sofrendo com a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica prevista na legislação trabalhista.
Isto porque, apesar do art. 2o da CLT ter delimitado um pouco mais a responsabilização solidária em situações enquadradas como "grupo econômico", a jurisprudência ainda é altamente vacilante e, a depender da interpretação dada pelo Juiz do Trabalho, muitas vezes influenciada por uma tradição de grande protecionismo do hipossuficiente e de responsabilização de todo aquele que, de alguma forma, aufere proveito ou tem participação na atividade empresarial, o que pode ensejar a responsabilização do sócio oculto.
Veja-se, a título de exemplo, a jurisprudência abaixo, que é apenas uma entre várias no mesmo espírito:
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ESGOTAMENTO DOS MEIOS DE EXECUÇÃO. TEORIA MENOR. SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO. SÓCIO OCULTO. I. À vista do resultado negativo da pesquisa realizada por intermédio do sistema disponível ao Juízo, bem como diante da não localização de veículo pertencente à empresa executada e da ordem de gradação prevista no art. 835 do CPC, está comprovado o esgotamento dos meios de execução em face da empresa executada, o que justifica a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. II. Para a sua decretação, dispõe o art. 50 do CC sobre a teoria maior, que exige a demonstração de abuso ou fraude, e o art. 28, § 5.º, do CDC sobre a teoria menor, que admite a responsabilização dos sócios quando a personalidade da sociedade empresária configurar impeditivo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao credor. Nos dois regramentos legais, a responsabilidade recai sobre a figura do sócio, enquanto partícipe da sociedade com suas cotas sociais, condição comprovada nos autos. III. No caso, aplica-se a teoria menor, advinda da relação de consumo, a qual também incide sobre o regime processual do trabalho, como salvaguarda das verbas trabalhistas devidas ao empregado, ante a omissão da legislação que é própria ao regime celetista. Comprovada processualmente a impossibilidade de a empresa executada assumir o pagamento do débito exequendo, a instauração do incidente para o prosseguimento dos atos executórios em face dos sócios é medida que se ajusta ao ordenamento legal. IV. Nos termos do art. 991 do Código Civil, na sociedade em conta de participação a responsabilidade exclusiva do sócio ostensivo está condicionada ao fato de a atividade constitutiva do objeto social ser exercida unicamente pelo sócio ostensivo. No caso dos autos, o sócio participante movimentava os recursos financeiros da sociedade perante instituição financeira, fato esse, inclusive, reconhecido pelo próprio recorrente na sua peça recursal, sob a justificativa de falta de confiança nos repasses dos lucros da sociedade pela sócia ostensiva. Tal situação traz a aplicação do disposto no art. 993, parágrafo único, do CCB, tornando o sócio oculto solidariamente responsável pelo débito exequendo.
(TRT-10 - AP: 00001954920125100102 DF, Data de Julgamento: 23/06/2021, Data de Publicação: 29/06/2021) (grifo nosso)
Idêntica preocupação se aplica aos contratos de mútuo conversível, e aquisição da opção de compra de participação societária.
Por fim, todas as modalidades do investimento anjo sofriam, previamente ao novo marco legal das startups, grave insegurança jurídica no que tange à responsabilidade tributária, especialmente quando, eventualmente, ocorre a conversão em participação societária.
Adentrando agora as novidades trazidas pela LC 182/2021, o novo marco legal das startups, passaremos analisar se as supracitadas inseguranças foram solucionadas pela nova lei.
Primeiramente, tem-se que o art. 5o do marco legal traz a tipificação, em numerus apertus, das modalidades de investimento que não serão consideradas como integrantes do capital social, contendo todas as modalidades já abordadas neste artigo, além de outras.
Em complementação, o art. 8o esclarece que o investidor que realizar o aporte de capital nos formatos já especificados "não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, conforme pactuação contratual" e
não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, e a ele não se estenderá o disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), no art. 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, nos arts. 124, 134 e 135 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e em outras disposições atinentes à desconsideração da personalidade jurídica existentes na legislação vigente (BRASIL, 2021).
É nítida a preocupação do legislador em aumentar a segurança jurídica do investimento anjo em startups, que acertou em estender a proteção ao patrimônio do investidor, para abarcar não só o incidente de desconsideração da personalidade jurídica do código civil, mas também às relações trabalhistas, consumeristas e de responsabilidade tributária.
Outra alteração interessante sob a ótica da segurança jurídica foi a complementação promovida no art. 61-A, §4o da LC 123/06, para resguardar a possibilidade de o investidor anjo participar das deliberações societárias em caráter estritamente consultivo, sem que isso configure a descaracterização do contrato de participação.
Referida alteração é de grande relevância, uma vez que esclarece que a participação do investidor em caráter consultivo não configura, por si só, qualquer fraude ou simulação de efetiva participação societária, o que reduz sobremaneira o risco de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Não obstante o aumento na segurança jurídica, temos que ainda restam brechas significativas para se alcançar o patrimônio do investidor anjo, especialmente porque a nova lei se esqueceu da responsabilização solidária do grupo econômico, quando demonstrada a efetiva comunhão de interesses e atuação conjunta, prevista no art. 2o da CLT.
Ora, caso o investidor anjo seja pessoa jurídica, poderia facilmente ser responsabilizado por meio do grupo econômico, eis que, a depender da interpretação, pode-se configurar o interesse integrado entre o investidor anjo e a startup, o que acarreta sua responsabilidade solidária, que é, inclusive, mais gravosa do que a desconsideração propriamente dita da responsabilidade jurídica que, em regra, goza do benefício de ordem.
Não bastasse, também deixou a nova lei de abordar a responsabilidade do sucessor empresarial prevista no art. 133 do CTN, referente à aquisição de fundo de comércio ou estabelecimento, com continuação da atividade econômica.
Neste caso, a responsabilidade do adquirente é integral, caso o alienante não mais exerça atividade empresária, e subsidiária à do alienante que continua a exercer a atividade, ou que recomece a explorá-la nos seis meses subsequentes à alienação.
É patente a possibilidade de incidência do referido artigo para as modalidades de investimento anjo em que o investidor opta pela conversão em participação societária, com a continuação da atividade pelo investidor.
A conversão do investimento em participação societária pode ser considerado aquisição de fundo de comércio? Para tanto, seria necessário que o investidor se tornasse sócio majoritário?
São questões que permanecem sem resposta clara, a gerar grande incerteza para os investidores.
4.3 Liberdade contratual e liquidez dos investimentos
Foram também realizadas modificações visando aumentar a liberdade contratual entre as partes, já que o prazo de remuneração dos aportes do contrato de participação, previsto no art. 61-A, §4o, III da LC 123, foi expandido de 5 para 7 anos.
Também se promoveu um aumento na liquidez dos contratos de participação, com significativa alteração no §6o do referido artigo, eliminando-se o limite de 50% dos lucros da sociedade para a remuneração do investidor, bem como trazendo explicitamente a possibilidade da conversão de aporte de capital em participação societária.
O §7o também sofreu alteração, ainda que mais discreta, para prever que, para fins de resgate do investimento, o valor deverá ser corrigido conforme índice previsto no contrato.
4.4 Tributação
A tributação do investimento anjo também deve ser analisada de forma cuidadosa, por se tratar de um dos principais alvos de críticas pelo mercado, em virtude da ausência de maiores incentivos.
No contrato de participação, sob o ponto de vista da startup, o regime tributário é vantajoso, tendo em vista que os aportes de capital não são considerados receita, e não impedem que a startup que recebe o investimento permaneça optante pelo Simples Nacional (BRASIL, 2016).
Por outro lado, sobre a tributação dos rendimentos do investidor anjo,
Apesar de ser equiparada à participação nos resultados em sociedade, há incidência de imposto de renda sobre a remuneração, que consiste em uma das três modalidades de retirada de capital pelo investidor, a teor do que disciplina a IN n. 1.719/2017 (RORATO FILHO, 2019, p. 59).
Não bastasse, a IN RFB n. 1719, que regulamenta a tributação destes rendimentos, traz em seu art. 5o alíquotas regressivas que variam entre 22,5% e 15%, e que são idênticas às praticadas na tributação de investimentos de renda fixa.
Referida alíquota se aplica não só sobre a remuneração periódica do investidor, mas também ao resgate e à cessão dos direitos para terceiro, tudo nos termos da IN RFB n. 1719.
Trata-se de verdadeiro desincentivo, uma vez que o investimento anjo é de altíssimo risco, enquanto a renda fixa é de baixo risco, o que, no entendimento de Rorato Filho, viola o princípio da isonomia, previsto no art. 150, II da CF/88 (RORATO FILHO, 2019, p. 25).
Lado outro, a IN RFB n. 1719 não prevê como fato gerador a conversão do aporte em participação societária. Sendo assim, caso o investidor opte por não receber sua remuneração periódica, mas sim convertê-la em participação ao final do termo estipulado em contrato, não incidiria imposto de renda para o investidor.
Assim, analisando a legislação sob outro enfoque, pode-se dizer que a legislação tributária, na realidade, estimula que o investidor realize, ao final, a conversão de seu aporte em participação societária, o que é interessante para o desenvolvimento das startups, pois promove a aplicação dos valores na atividade empresária.
Já o contrato de mútuo conversível em participação societária é tributado de forma diversa.
Isto porque, caso o investidor seja pessoa jurídica, a operação de mútuo é fato gerador do IOF, nos termos da Lei 5.143/66, bem como do imposto de renda sobre o ganho de capital, em alíquotas regressivas de 22,5% a 15%, análogas às aplicáveis à renda fixa (RORATO FILHO, 2019, p. 38).
Ainda, em caso de ágio, quando da conversão da participação em sociedade limitada, incidirá alíquota de 15%, sendo os sócios da investida pessoas físicas, até 34%, se forem pessoas jurídicas. Assim, pode ser vantajosa a transformação da sociedade em Sociedade Anônima antes da conversão, uma vez que, neste caso, o art. 38 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 afasta a incidência de imposto sobre o ágio (RORATO FILHO, 2019, p.38).
Uma vantagem muito interessante nesta modalidade contratual é que o valor investido não afastaria o regime tributário Simples, uma vez que seria contabilizado como um passivo (RORATO FILHO, 2019, p. 38).
Por fim, resta abordar a tributação dos investimentos anjo realizados por meio de sociedade em conta de participação.
Na prática, esse tipo de contrato acaba sendo pouco utilizado nos investimentos em startups, uma vez que, segundo interpretação dada pela Receita Federal, pode inviabilizar a startup de permanecer optante pelo regime tributário Simples Nacional, conforme leitura combinada do art. 3º, § 4º, VII e do art. 30 da Lei Complementar 123/06. Assim, considerando que a grande maioria do investimento anjo em startups se dá em uma fase inicial do negócio, a migração para um regime tributário mais complexo pode trazer diversos empecilhos para a sociedade que recebe o investimento (JUDICE et al, 2015, p. 171 e 172).
5.CONCLUSÃO
O que se pode concluir a partir da análise das modificações trazidas pela Lei Complementar 182/21, é que o legislador conseguiu introduzir no ordenamento jurídico uma série de possíveis soluções para problemas que há muito vinham desestimulando o investimento em startups no Brasil. É claro que, para verificar se as propostas realmente produzirão os efeitos esperados, será necessário aguardar pela entrada em vigor da lei, mas a expectativa é otimista.
No que toca o sandbox regulatório foram introduzidas alterações com vistas a reduzir a burocracia e flexibilizar o ambiente regulatório, trazendo dinamismo para a atuação de empresas emergentes como as startups, e proporcionando-lhes a chance de crescer sem a necessidade de enfrentar obstáculos de ordem puramente procedimental.
No que toca à liberdade contratual e à liquidez dos investimentos, percebe-se que, muito embora as alterações sejam mais discretas, a mudança na redação do §6º, do art. 61-A, da LC 123/06, que não mais limita a remuneração do investidor anjo a 50% dos lucros da sociedade, pode representar um incentivo significativo, pois permite a possibilidade de maiores retornos para o investidor.
No entanto, na seara tributária, o novo marco legal foi omisso, não trazendo qualquer mudança significativa.
Assim, permanece a incidência de imposto de renda em alíquotas análogas à da renda fixa para a remuneração ao investidor anjo nos contratos de participação e mútuo conversível, além de, neste último, em caso de ágio, sendo a sociedade investida uma limitada, 15%, sendo os sócios da investida pessoas físicas, até 34%, se forem pessoas jurídicas. Referidas alíquotas, especialmente as incidentes sobre a remuneração do investidor anjo, podem ser consideradas como verdadeira ofensa ao princípio da isonomia tributária, quando se considera que o investimento anjo vem sendo tratado pelo fisco como se fosse equivalente ao investimento em renda fixa, não obstante o primeiro tenha altíssimo grau de risco e o segundo tenha risco praticamente inexistente.
Por fim, a proteção do investidor anjo contra o incidente de desconsideração da personalidade jurídica foi aumentada sobremaneira, para abranger não só o art. 50 do Código Civil, mas também as hipóteses do art. 855-A da CLT, e dos os arts. 124, 134 e 135 do CTN.
Ocorre que olvidou-se o legislador de dispor sobre a caracterização eventual de grupo econômico que, nos termos do art. 2º da CLT, acarretaria na responsabilização solidária dos investidores, o que é temerário.
Omitiu-se, ademais, o legislador quanto à responsabilidade tributária do sucessor empresarial prevista no art. 133 do CTN, referente à aquisição de fundo de comércio ou estabelecimento, com continuação da atividade econômica, hipótese esta que pode restar configurada em caso de conversão do investimento em participação societária.
Portanto, entende-se que o novo marco legal foi deficitário neste aspecto.
Concluindo, em um panorama geral, a Lei Complementar 182/2021 trouxe importantes alterações que estimulam o crescimento das startups, bem como fomentam o investimento anjo. No entanto, ainda restam aspectos a serem melhorados no ordenamento jurídico pátrio para que o setor atinja seu amplo potencial.
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[1] Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário Una.
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