RENATA MIRANDA DE LIMA [1]
(orientadora)
Resumo[2]: A temática desse trabalho apresenta a violabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana no ambiente carcerário brasileiro. Tem por objetivo identificar as condições precárias do sistema penitenciário atualmente, que ensejam na grave violação dos direitos fundamentais do preso nos presídios, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, expõe-se o histórico do sistema prisional, e o surgimento da pena de prisão no Brasil. Em seguida, aborda-se a realidade prisional brasileira, abordando os direitos fundamentais do detento, e sua violação no interior das prisões, em clara ofensa aos preceitos constitucionais estabelecidos. Por fim é feita uma análise da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, em que a Suprema Corte brasileira reconheceu estado de coisas inconstitucional em relação aos presídios brasileiros, reforçando a grave violação do princípio da dignidade da pessoa humana no cárcere. Tem por intuito propiciar a reflexão sobre o estado crítico encontrado no sistema carcerário brasileiro, e como os detentos possuem seus direitos violados no cumprimento de suas penas, mesmo o ordenamento jurídico os assegurando legalmente. Pretende também caracterizar a temática importantíssima acerca de como esse estado crítico e caótico do sistema interfere negativamente nos aspectos de ressocialização do apenado, bem como, para a sociedade. Como metodologia, trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa com objetivo explicativo e exploratório, utilizando-se como metodologia a pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Sistema carcerário brasileiro. Dignidade da pessoa humana. Violação. Estado de Coisas Inconstitucional.
Abstract: The scope of this work is to present the violation of the principle of human dignity in the Brazilian prison environment, identifying the precarious conditions of the penitentiary system today, which lead to a serious violation of the prisoner's fundamental rights in prisons, as well as the principle of human dignity human. It addresses the detainee's fundamental rights, and their violation within prisons, in clear violation of established constitutional precepts. An analysis of the decision of the Federal Supreme Court (STF), in the judgment of the Provisional Measure in Allegation of Non-compliance with Fundamental Precept (ADPF) n. 347, where the Brazilian Supreme Court recognized an unconstitutional state of affairs in relation to Brazilian prisons, reinforcing the serious violation of the principle of human dignity in prison. Its purpose is to provide a reflection on the critical state found in the prison system, and how inmates have their rights violated while serving their sentences, even though the legal system legally guarantees them. It also intends to characterize the very important theme about how this chaotic state of the system interferes negatively in the inmates' resocialization, as well as to society. As a methodology, it is a research with a qualitative approach with an explanatory and exploratory objective, using bibliographical research as a methodology.
Keywords: Brazilian prison system. Dignity of human person. Violation. Unconstitutional State of Things.
1. INTRODUÇÃO
O sistema prisional é mais antigo do que se possa ter conhecimento. Na história, observa-se que ele já se encontrava presente desde a Idade Antiga, todavia, com uma finalidade totalmente diferente do que se tem hoje. Aos poucos, percebe-se uma evolução quanto ao caráter e finalidade das penas de prisão, na Idade Moderna, por exemplo, a pena de prisão passou a observar caráter de proporcionalidade, abolindo-se as aos poucos as penas consideradas cruéis e desumanas. Foi a partir de meados do século XVI, que a pena começou a ser introduzida na sociedade como forma de sanção penal.
Na atualidade, a pena de prisão possui caráter retributivo/preventivo e função ressocializadora. Entretanto, ao observar a atual realidade do sistema carcerário brasileiro, percebe-se que este não possui condições necessárias a fim de efetivar essa finalidade.
Observa-se que o sistema carcerário brasileiro se encontra em índice de superlotação, não comportando todos os detentos necessários, resultando em um ambiente fático de grave violação aos direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, ao suportar celas superlotadas, falta de acesso a saúde, celas insalubres e em condições subumanas, os detentos possuem seus direitos constitucionalmente assegurados violados, dia após dia, diante da inércia do Estado em atuar com políticas públicas voltadas ao fornecimento de uma estrutura adequada e suportável.
Importante ressaltar que esse quadro de superlotação, resulta também em um índice mínimo de condições a fim de propiciar a ressocialização do detento, fazendo com que esse fator seja considerado utópico. Dessa maneira, a pena de prisão não tem atingido o seu real significado.
Dessa forma, essa pesquisa tem por objetivo expor detalhadamente as condições atuais carcerárias brasileiras, e sua precariedade, ao identificar a superlotação do sistema penitenciário, resultando em celas insalubres, sem ventilação, inexistência de acesso a água, sem condições mínimas a propiciar um ambiente humano aos detentos.
Busca demonstrar essa realidade a fatores que ensejam na constante violação dos direitos fundamentais dos detentos como vedação de tortura e tratamento indigno, direito de acesso à Justiça, direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana.
Busca expor também, de forma objetiva em como isso afeta negativamente na ressocialização dos presidiários, visto que, atualmente, o cárcere brasileiro se torna um ambiente degradante, perigoso e violento, impactando negativamente na vida dos detentos.
2. SISTEMA PRISIONAL: ORIGEM E FINALIDADE
Observa-se que na história, sempre esteve presente o sistema de punições, que desde então, foi se modificando, até chegar ao modelo de repreensão atual. Todavia, nesse primeiro momento, não vislumbra-se a privação de liberdade como caráter de sanção penal. (FOUCAULT, 1987)
Desde a Antiguidade, os governantes estabeleciam regras e normas comuns para a convivência e sobrevivência nos agrupamentos de tribos, famílias, clãs, a fim de obter-se o bem comum e a paz no ambiente social. Dessa maneira, quem as descumprisse, era penalizado por tal ação. (TELES, 2006. 20). Entretanto, nesse primeiro momento, não se vislumbra limites para a penalização e condenação do infrator e nem proporcionalidade entre o delito e a sanção aplicada. (CHIAVERINI, 2009, p. 76).
Vejamos, na Idade Antiga, o período de punição é marcado pelo cárcere-custódia, que tinha como característica o ato de aprisionar o indivíduo, mas até então, não como caráter de pena e sim, como garantia de manter o sujeito sob o domínio físico, para se exercer a punição. (SÁ, 2015).
Nessa linha de pensamento Bitencourt (2011, p.28 apud SÁ, 2015) assevera que,
A Antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu desde tempos imemoráveis, não tinha caráter de pena e repousava em outras razões.
Carvalho Filho (2002 apud a Escola de Serviços Penais, 2021),
[...] a descrição que se tem daqueles locais revela sempre lugares insalubres, sem iluminação, sem condições de higiene e “inexpurgáveis”. As masmorras são exemplos destes modelos de cárcere infectos nos quais os presos adoeciam e podiam morrer antes mesmo de seu julgamento e condenação, isso porque, as prisões, quando de seu surgimento, se caracterizavam apenas como um acessório de um processo punitivo que se baseava no tormento físico.
As punições eram destinadas a castigar fisicamente o infrator; carregavam consigo sacrifícios e castigos desumanos para aqueles que infringissem alguma regra e, via de regra, não se observava proporção entre o delito cometido e a punição recebida por tal.
Fundado no princípio do “olho por olho, dente por dente”, o Código de Hamurabi retrata bem em seus dispositivos que as penas possuíam essa característica de punição severa ao físico do indivíduo, onde grande parte das punições resultavam em morte e mutilações. Observa-se, portanto, os dispositivos do próprio Código:
1. Se alguém enganar a outrem, difamando esta pessoa, e este outrem puder provar, então aquele que enganou deve ser condenado à morte.
2. Se alguém fizer uma acusação a outrém e o acusado pular no rio e afundar, seu acusador deverá tomar posse da casa do culpado, e se o acusado escapar sem ferimentos, ele não será culpado, e então aquele que fez a acusação deverá ser condenado à morte, enquanto que aquele que pulou no rio deve tomar posse da casa que pertencia a seu acusador.
3. Se alguém trouxer uma acusação de um crime frente aos anciões, e este alguém não trouxer provas, e se a acusação pudesse resultar em pena capital, este alguém deverá ser condenado à morte.
4. Se ele satisfizer aos anciões em termos de ter de pagar uma multa de cereais ou dinheiro, ele deverá receber a multa que a ação produzir.
(CÓDIGO DE HAMURABI -cerca de 1780 a.C- apud SINOSINI 2013).
Sá (2015), destaca que, na Idade Média, vislumbra-se uma pequena mudança quanto à função da prisão, mas ainda assim, permanecendo como caráter de custódia. Por serem impostas por aqueles que detinham poder, a pena não carregava consigo somente o caráter de punição e vingança, mas funcionava também como um meio de apresentar temor a autoridade e as suas ordens, e, por conseguinte, amedrontar a sociedade, não servindo, portanto, como meio de ressocialização.
Assim relata Foucault, ao descrever a condenação de um indivíduo por parricídio,
[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.
(FOUCAULT. 1987, p.8)
Esse período é, portanto, marcado por punições severas tendo como característica geral da pena, o suplício. A pena de morte, a amputação de membros, degola, forca, queimaduras a ferro, entre outras medidas totalmente cruéis e desumanas, eram comuns até então. Segundo Rogério Greco,
[...] as penas possuíam um caráter aflitivo, ou seja, o corpo do homem pagava pelo mal que ele havia praticado. Seus olhos eram arrancados, seus membros, mutilados, seus corpos esticados até destroncarem-se, sua vida esvaia-se numa cruz, enfim, o mal da infração penal era pago com o sofrimento físico e mental do criminoso.
(2015, p. 86)
A Escola de Serviços Penais (2021), destaca em seu artigo “A histórias das prisões e dos sistemas de punições” que nesse momento, a Igreja Católica detinha grande influência e poder quanto ao sistema de punições, a exemplo o período da Inquisição (Santo Ofício), que era a instituição formada por tribunais da Igreja Católica que perseguiam, julgavam e puniam pessoas acusadas de cometer ilícitos, ou desviar de suas normas e condutas.
Ainda assim no mesmo artigo, expõe que nesse mesmo período surgem as chamadas “prisões eclesiásticas” e as “prisões de Estado”. A primeira destinada aos membros do clero, para que quando cometessem ato ilícito, se reclusassem nos mosteiros para meditar e orar, a fim de se livrar do mal e obter a correção, tendo cunho de caridade e redenção da Igreja, servindo como apenas um meio de “castigo” e correção, e não de pena. A segunda, por sua vez, era destinada aos hereges, que cometiam crimes de traição. Desse modo, ficavam ali detentos em custódia para aguardar a condenação, ou de forma perpétua.
Nas palavras de Bitencourt (2011, p.26 apud SÁ, 2015),
Na prisão de Estado, na Idade Média, somente podiam ser recolhidos os inimigos do poder, real ou senhorial, que tivessem cometido delitos de traição, e os adversários políticos dos governantes. A prisão apresentava duas modalidades: a prisão-custódia, onde o réu esperava a execução da verdadeira pena aplicada (morte, açoite, mutilações etc.), ou como detenção temporal perpétua, ou ainda até receber o perdão real.
Em continuidade aos momentos históricos, a idade moderna, por sua vez, traz consigo diversas mudanças quanto ao caráter da pena, isso porque, nesse momento surge a necessidade de estabelecer outra forma de punição que fosse violenta, porém, mais eficaz. Isso se dá, principalmente, pela grande influência do Iluminismo nesse período, bem como as dificuldades econômicas enfrentadas pela população, que trouxeram a ideia de que a pena deveria possuir aspecto de proporcionalidade ao delito cometido, e como finalidade o ato de isolar o infrator, para que esse não viesse a se tornar um perigo a sociedade.
Rogério Greco assim expõe:
O período iluminista teve fundamental importância no pensamento punitivo, uma vez que, com o apoio na "razão", o que outrora era praticado despoticamente, agora necessitava de provas para ser realizado. Não somente o processo penal foi modificado, com a exigência de provas que pudessem conduzir à condenação do acusado, mas, e sobretudo, as penas que poderiam ser impostas. O ser humano passou a ser encarado como tal, e não mais como um mero objeto, sobre o qual recaía a fúria do Estado, muitas vezes sem razão ou fundamento suficiente para a punição. (2015, p.87).
Assim, em meados do século XVI, surgem movimentos de grandes inovações quanto a aplicação das penas privativas de liberdade, estabelecendo e construindo instituições de restrição de liberdade mais organizadas, modificando por completo a sua finalidade, que se destinava ao labor e ao ensino do detento.
Nesse sentido, a pena de prisão é aos poucos introduzida na sociedade como forma de sanção penal, todavia, somente para crimes mais leves, tais como: ociosidade, vadiagem. Desse modo, não se vislumbra o extermínio por completo das penas de suplícios, pois os crimes considerados mais graves ainda eram acometidos com penas capitais e físicas.
Foucault ressalta que,
O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX. Sem dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito. (1987, p.19).
Nesse passo, Shecaira e Corrêa Junior (2002 apud SINOSINI p.7) afirmam que o homem passou a ser assim centro do Direito Penal, buscando-se alcançar a ressocialização do infrator, e trazendo o conceito de que as penas privativas de liberdade não deveriam carregar a finalidade de castigo, e sim, de reintegração e ressocialização social.
Surge então uma nova concepção de prisão, como prisão-pena, deixando no passado o caráter cautelar. Carvalho Filho (2002 apud a Escola de Serviços Penais, 2021), vincula o surgimento da pena de privativa de liberdade ao surgimento do capitalismo, concomitantemente a um conjunto de situações que levaram ao aumento exacerbado no índice de pobreza no mundo, que consequentemente, levaria ao aumento da criminalidade na sociedade. Carvalho Filho (2002 apud a Escola de Serviços Penais, 2021), ressalta ainda que as instituições penais, em meados do século XVIII, passaram a caracterizar a dinâmica de repressão ao delito e promovendo a reinserção social de quem os cometesse.
Nesse sentido, Beccaria (1764 apud SÁ 2015) em sua obra Dos Delitos e Das Penas, traz uma forma diferente acerca do entendimento da sanção penal, acentuando um início ao processo de humanização do caráter das penas. Assim, a pena privativa de liberdade se torna mais efetiva para o indivíduo, uma vez que, por estar recluso e impossibilitado de desfrutar de sua liberdade civil, o sofrimento se prolonga dia após dia, o qual continuamente levaria o sujeito a uma reflexão da consequência do seu ato.
“A tortura e martírio foram substituídos pela coação penal, uma forma de punição que atinge não o corpo do indivíduo, mas sim, sua alma.” (BEZERRA, 2017, p.43). As sanções passaram a ser aplicadas de maneira mais proporcional e efetiva, possuindo a pena um caráter preventivo e retributivo.
A punição deixa de ter como foco o sofrimento e o corpo do indivíduo, passando a ser uma perda de um direito de liberdade, dando início portanto, a um processo de mudança quanto ao objeto e finalidade da pena de prisão, tendo esta um enfoque mais humanizado.
Assim, a partir dessa nova concepção, a punição passa a fundamentar-se no que se estabelece na atualidade: privar o infrator de sua liberdade, retirando-o do convívio social, do seio familiar e de outras relações intersociais, para que através do isolamento, esse venha a refletir sobre sua conduta danosa, tornando o reflexo mais direto da punição.
3. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Foi a partir do século XIX que no Brasil se deu início a criação das prisões com celas individuais, com arquitetura própria, voltadas especialmente para a pena de prisão. (MINELO, 2020).
A Proclamação da República em 1889 e a elaboração do Código Penal de 1890, possibilitou a introdução do fundamento sob a ótica de reeducação do infrator, ao invés de simplesmente reprimi-lo com a punição. Assim, ensejou no surgimento de novas modalidades de prisão, visto que, foram abolidas as penas morte, e de caráter perpétuo ou coletivas, restringindo-se tão somente as penas restritivas de liberdade individual, com pena máxima de trinta anos, bem como penas de reclusão, prisão com trabalho obrigatório e disciplinar, e prisão celular, aplicadas de acordo com o comportamento do preso, a gravidade da conduta, entre outros.
Desse modo, estabeleceu-se portanto, o sistema progressista como fundamento para o sistema penitenciário, voltando-se para o lado preventivo, bem como repressivo, observando-se a individualização da pena do condenado.
Na atualidade, o sistema prisional tem como enfoque a ressocialização e a punição da conduta criminosa; assim, o Estado tem por dever garantir a repreensão dos crimes, punindo o infrator e o retirando do seio social através da prisão, onde é privado de sua liberdade, deixando de ser um risco iminente a sociedade.
[...] a reforma propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias do direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, extensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir. (FOUCAULT, 2011, p. 79)
Todavia, embora o foco do sistema prisional brasileiro seja a penalização do infrator culminada com a finalidade de o ressocializar, ao observar-se as condições atuais do nosso sistema penitenciário, observa-se que este possui condições totalmente contrárias para fins de ressocialização, visto que, há uma precariedade no que tange ao cárcere brasileiro.
Nesse sentido, Mirabete expõe que,
A falência de nosso sistema carcerário tem sido apontada, acertadamente, como uma das maiores mazelas do modelo repressivo brasileiro, que, hipocritamente, envia condenados para penitenciárias, com a apregoada finalidade de reabilitá-lo ao convívio social, mas já sabendo que, ao retornar à sociedade, esse indivíduo estará mais despreparado, desambientado, insensível e, provavelmente, com maior desenvoltura para a prática de outros crimes, até mais violentos em relação ao que o conduziu ao cárcere. (2008, p.89).
A exemplificar essa precariedade no sistema prisional, tem-se o Caso do Urso Branco (Casa de Detenção José Mario Alves), situado na cidade de Porto Velho, Estado de Rondônia, que foi levado a pauta perante a Corte Interamericana por tratar-se de violação dos bens da vida ora protegidos.
Assim, nos anos de 2002 e 2006, os detentos sem contar com nenhuma fiscalização, e com liberdade total e passe livre entre o presídio e suas celas, motivados pela segregação entre grupos, disputavam acerca do “poder” e monopólio dentro da penitenciária. Nessa situação, os agentes penitenciários permaneciam inertes, alegando a falta de segurança dentro dos pavilhões, que os impossibilitaria a exercer plenamente suas atividades.
Resultante dessa inércia e falta de fiscalização e atividade policial, o caos e terror foi instalado na prisão, levando os detentos a uma matança em massa entre os grupos rivais, levando-os a praticarem crimes horrendos, como degola e mutilação, em frente da impressa e até mesmo dos familiares que os assistia, resultando em um cenário de violência exacerbada.
Greco narra uma situação entre os detentos:
em sinal de poder, subiram até o alto do prédio, onde ficava localizada uma caixa d’água e, de lá, à vista de todos, deram início às execuções sumárias, chegando, inclusive, a decapitar e a esquartejar os corpos. Os familiares dos presos, que a tudo assistiam do lado de fora do presídio, se desesperavam. Mães desmaiavam, pais clamavam por misericórdia, enfim, foram dias de verdadeiro terror dentro do sistema prisional. Há relatos, inclusive, que alguns presos jogaram futebol com a cabeça de um detento, que havia sido decapitado. (2015, p.176).
Posto isto, em Junho de 2002, o caso Urso Branco foi até a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que julgou e condenou a República Federativa do Brasil a adotar medidas necessárias a garantir e proteger todos os direitos de vida, integridade e proteção de todos os detentos reclusos na Penitenciária Urso Branco, bem como identificar e penalizar os responsáveis pelas mortes de mais de noventa presidiários.
Nessa esteira, os principais bens juridicamente assegurados violados, foram: dignidade, vida e integridade física, visto que houve um massacre entre os próprios detentos, e também em relação as condições precárias em que se encontrava o presídio.
Segundo dados do G1 (2019), quando da primeira rebelião ocorrida em 2002, a penitenciária tinha uma capacidade total para suportar 360 presos, todavia, encontravam-se reclusos 1,3 mil no local, sendo celas de 30m², com espaço suportável para seis homens, que no entanto, chegava a abrigar vinte apenados.
Com isso, os detentos suportavam uma realidade de superlotação do presídio, ausência de assistência médica, insalubridade das celas, acesso a água restrito e insalubre, alimentação inadequada, bem como a inexistência de atividades educacionais e laborais a fim de estimular e garantir a ressocialização dos detentos.
Nesse sentido,
[...] no quesito alimentação, foi descoberto que, também em muitos presídios, era oferecida comida estragada aos presos, ou então com prazo de validade vencido; os detentos faziam suas refeições com as próprias mãos, não utilizando qualquer tipo de talher, nem mesmo os plásticos, porque, por questões de segurança, afirmavam, não eram fornecidos, uma vez que poderiam ser utilizados como armas brancas. Por essa razão, os presos ou comiam com as próprias mãos, ou utilizavam algum utensílio de papel, que lhes servisse para retirar a comida do invólucro onde era servida.
(GRECO, p.176, 2015).
Antes a esses fatos, é nítido o vislumbre quanto a violação de preceitos fundamentais e constitucionais no sistema carcerário, que não possui condições algumas a garantir o mínimo aos indivíduos reclusos, qual seja: sua dignidade.
Segundo o que estabelece a Constituição Federal de 1988, a todo ser humano é garantindo, o direito à vida com dignidade, sendo a vida inserida como um direito fundamental previsto no art. 5º da Carta Magna do Brasil e a dignidade da pessoa humana consagrada como princípio supremo do Estado Democrático de Direito no art. 1º da mesma normativa,
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...] III - a dignidade da pessoa humana.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 1988).
A dignidade da pessoa humana vem a ser inserida, portanto, na Constituição, como uma qualidade inerente a todo indivíduo, não dependendo de nenhum critério específico para que seja assegurada, tornando-se parte de todo o ser humano e característica própria de qualquer um.
Nesse sentido, para Sarlet, dignidade vem a ser,
Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (2002, p.62)
Ainda assim, para Bernardo Pereira de Lucena Rodrigues Guerra,
Não há que se falar em condição humana sem o princípio da dignidade humana: são dois termos correlatos, inseparáveis, que devem, sempre, ser aplicados em conjunto. A condição humana só será condição propriamente dita se for digna, se assegurar aqueles valores intrínsecos a todo ser humano, sob pena de permitir arbítrios e violações que podem ser muito perigosos, num provável retorno a situações que precisam ser evitadas e suplantadas. (2006, p.91)
Neste prima, José Afonso da Silva dispõe que,
Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. "Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma ideia qualquer apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir' teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana". Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana. (2014, p.107).
Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana, é interligado a um conjunto de princípios e valores que regem todo o ordenamento jurídico, a fim de proteger e garantir que qualquer indivíduo tenha seus direitos efetivados e respeitados pelo Estado, garantindo uma vida e tratamento digno.
A elucidar a tamanha relevância desse preceito constitucional, no âmbito internacional, todos os Tratados são implantados de maneira que assegurem a dignidade da pessoa humana, que parte de ser somente um direito básico, mas também, um direito universal.
A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente, vem a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passam a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos. (PIOVESAN, 2002, p. 149).
Ainda assim,
Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico, incorporam o valor da dignidade humana. (PIOVESAN, 2003, p.188)
A superlotação do cárcere brasileiro tem sido apontada como um dos principais motivos de violação de diversos direitos humanos consagrados em inúmeros instrumentos internacionais, muitos deles dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948; as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, de 1955; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966; a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, de 1969, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica; e a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984.
Dessa forma, contrariamente ao que leciona todo o ordenamento jurídico acerca da relevância e “proteção” ao princípio da dignidade da pessoa humana, observa-se que no que se refere ao sistema carcerário, esse não mantem sua concretização.
Segundo dados estatísticos, o Brasil possui uma superlotação penitenciária de 54,9%, totalizando em 682,1 mil presos, porém, com capacidade para 440,5 mil (G1, 2015). Esses dados resultam no vislumbre de celas pouco ventiladas, sujas e lotadas, incapazes de manter a sobrevivência de forma digna e humana.
De acordo com o manual de Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (CNJ, 2016, p. 21), em sua Regra 1, dispõe que,
Todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido a tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos presos, dos servidores prisionais, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada.
Além de ser vedado quaisquer atos de tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes para com os presos, estes devem ter sua segurança resguardada. Ainda assim, na regra 4 do mesmo manual fica claro que o único objetivo do encarceramento é proteger a sociedade da criminalidade e reduzir a sua reincidência, na medida do possível, reintegrando tais indivíduos ao seio social. (CNJ, 2016).
Inclusive, a Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984), dispõe sobre a obrigatoriedade do Estado em prestar assistência ao preso, nos aspectos da vida material, saúde, jurídica, educacional, social, religiosa e, também, ao preso egresso. Todavia, o que se tem é uma falta de aplicabilidade com o que estabelece a lei.
Atualmente os detentos são submetidos a situações precárias, subumanas e ilegais, se analisadas de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984). Os presídios brasileiros são praticamente depósitos de aglomerados de pessoas, com superlotação, ausência de assistência médica básica, falta de higiene pessoal, além de presos com doenças graves. (VIEIRA e PAIVA, 2019, p. 2)
Os detentos tem seus direitos constitucionalmente previstos violados dia após dia, diante da inércia e descaso do Estado em atuar com políticas públicas voltadas ao fornecimento de uma infraestrutura adequada para comportar todos os detentos, fornecer condições dignas a estes, bem como implantar programas de ressocialização.
Salienta-se portanto, que essa temática carrega consigo diversos problemas. Senão vejamos: a ressocialização do infrator torna-se algo praticamente utópico, visto que, não possui programas governamentais a fim de efetivar a reinserção social do preso, e nem condições mínimas para cumprimento da pena, a fim de propiciar seu caráter educativo/pedagógico.
Nestas condições, a prisão torna-se uma “instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia cuja principal característica é a regressão” (ZAFFARONI, 1991, p. 135).
Esta situação demonstra que os presídios brasileiros se tornaram uma realidade violenta e opressiva, servindo como meio de reforçar os valores negativos do condenado e torna-los ainda mais perigosos após o cumprimento da pena. Corroborando com o exposto, Ghisleni (2014, p. 203) expõe que, “os elevados índices de reincidência têm sido um importante demonstrativo acerca do fracasso da pena privativa de liberdade”.
Dessa forma, ante a esses problemas, conclui-se que a pena de prisão não está cumprindo com seu caráter e finalidade inicialmente estabelecido, que é sua função educativa e ressocializadora. Assim, necessário se faz entender que proporcionar um ambiente salubre, seguro, e digno, não é garantia especial para com o preso, mas sim, garantia essencial e constitucional, visto que, propiciando um ambiente humano e agradável, investe-se na reinserção deste indivíduo após o cumprimento da pena, a fim de que não saia pior do que adentrou.
4. ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
O Estado de Coisas Inconstitucionais (ECI), teve sua origem na Corte Constitucional Columbiana no ano de 1997, onde passou a entender que esse Estado de Coisas existe quando se vislumbra um quadro grave de violações a direitos fundamentais, que ocorrem de forma generalizada, a partir da inércia das autoridades públicas. Dessa forma, pode ser entendida como um mecanismo jurídico que busca reconhecer e identificar a violação de preceitos fundamentais.
Com base no entendimento da Corte Columbiana, para que o ECI seja declarado, faz-se necessário a identificação de três pressupostos, que são,
(i) a apuração de um quadro generalizado de violação a direitos fundamentais; (ii) a falha e inércia do Estado e seus órgãos estatais em modificar a situação para a efetivação e garantia dos direitos fundamentais; (iii) a identificação de violação de direitos fundamentais, que exigem do Tribunal ou da Corte a “emissão de remédios para uma pluralidade de órgãos, isto é, a busca de solução é dirigida não apenas para uma autoridade pública ou órgão, mas para vários, que não conseguem restabelecer a normalidade das coisas. (MARQUES, 2015)
O reconhecimento desse quadro generalizado de violação a direitos fundamentais faz com que a Corte declare o ECI, e se destine a proteger e assegurar de forma objetiva a efetivação desses direitos, implicando em ordens de execução. Assim, se encontra legitimado a intervir na atuação dos demais poderes.
Como exemplo, a Corte é legitimada a determinar a criação de leis específicas ao Poder Legislativo para legislar sobre a matéria, ou impor a aplicabilidade de leis já existente; a incumbir o Executivo a implantação de políticas públicas voltadas a destinação de recursos orçamentários e a coordenação de medidas necessárias para sanar esse estado de inconstitucionalidade, que importam no reconhecimento de um “ativismo judicial”; e por fim, a estabelecer o Judiciário a fixar os chamados “remédios estruturais”, atribuindo a responsabilidade aos demais órgãos componentes do poder público, para que juntos, solucionem a temática e adotem medidas necessárias a superar esse quadro generalizado de violação de direitos, que implicam em inconstitucionalidade.
Em 1998, a Corte Constitucional Columbiana em uma de suas matérias mais complexas e importantes (Sentencia T-153, de 28 de Abril de 1998) reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional relativo a superlotação do sistema carcerário do país. Nessa oportunidade, debateram sobre o problema da superlotação e as condições desumanas em que se encontravam as Penitenciárias Nacionais de Bogotá e Bellavista de Medellín.
Assim, a Corte Columbiana, apoiada em estudos e dados, identificou a existência de um quadro grave generalizado de violação a direitos fundamentais estabelecidos nas demais instituições carcerárias da Colombia, acusando “a violação massiva dos direitos dos presos à dignidade humana e a um amplo conjunto de direitos fundamentais, o que chamou de “tragédia diária dos cárceres” (CAMPOS, 2015).
Na mesma linha de entendimento da Corte Columbiana, no Brasil o Estado de Coisas Inconstitucional surgiu com a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 347/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, ocorrida em 09 de Setembro de 2015, proposta pelo Partido Socialista e Liberdade (PSOL).
Nessa oportunidade, o PSOL postulou o reconhecimento do ECI em relação ao sistema penitenciário brasileiro, alegando que a superlotação nos presídios e as condições carcerárias desumanas encontradas configuram em um cenário de grave violação sistêmica aos direitos fundamentais, como: vedação de tortura, tratamento indigno, direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos, direito de acesso a Justiça, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana.
O partido em sua postulação, assevera que esse cenário é resultante de múltiplos atos comissivos e omissivos do Poder Público, da União, dos Estados e do Distrito Federal, incluindo também os órgãos de cunho administrativo, judicial e normativa, a não criarem vagas prisionais suficientes para a suportar a população carcerária propiciando condições adequadas ao aprisionamento, a segurança, alimentação, saúde, educação, trabalho, assistência social e o acesso a jurisdição.
A discorrer sobre o cenário fático do sistema carcerário brasileiro, o partido argumenta que as prisões são “verdadeiros infernos dantescos”, elencando as seguintes situações:
celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos, homicídios frequentes, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos, praticadas tanto por outros detentos quanto por agentes do Estado, ausência de assistência judiciária adequada, bem como de acesso à educação, à saúde e ao trabalho. Enfatiza estarem as instituições prisionais dominadas por facções criminosas. Salienta ser comum encontrar, em mutirões carcerários, presos que já cumpriram a pena e poderiam estar soltos há anos. (ADPF 347 MC/DF, p.9)
O ministro relator Marco Aurélio, em seu voto, relembrou a declaração do Ministro de Estado da Justiça, José Eduardo Cardozo, que fez analogia das prisões brasileiras a “masmorras medievais” e alegando que preferiria morrer, a ter que ficar em uma delas. Para o ministro,
A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se “lixo digno do pior tratamento possível”, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as “masmorras medievais. (ADPF 347, MC/ DF, p. 24-25)
Reconhecendo o Estado de Coisas Inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, o Ministro Marco Aurélio ainda salientou que o estado degradante de violação a esses preceitos fundamentais chegou a essa situação não por responsabilidade e culpa de um único órgão, mas sim, pela inércia de todos (Legislativo, Executivo e Judiciário), bem como União, Estados, e do Distrito Federal.
Por fim, o ministro expos que o quadro sistêmico de violação de direitos fundamentais nos presídios provocando a violação a dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, justifica a atuação assertiva do Tribunal.
Assim, para ele,
apenas o Supremo revela-se capaz, ante a situação descrita, de superar os bloqueios políticos e institucionais que vêm impedindo o avanço de soluções, o que significa cumprir ao Tribunal o papel de retirar os demais. Poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados [...] a intervenção judicial mostra-se legítima presente padrão elevado de omissão estatal frente a situação de violação generalizada de direitos fundamentais [...] Nesse cenário de bloqueios políticos insuperáveis, fracasso de representação, pontos cegos legislativos e temores de custos políticos, a intervenção do Supremo, na medida correta e suficiente, não pode sofrer qualquer objeção de natureza democrática. (ADPF 347 MC/DF p. 32 e 35)
Ante ao exposto, o caso fático vem a enfatizar sobre o estado deplorável e caótico em que se encontram os atuais presídios brasileiros, que não possuem a mínima infraestrutura capaz de comportar a quantidade de detentos necessária e a garantir a efetivação de seus direitos constitucionais previstos.
A inércia do Estado em fornecer políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da infraestrutura carcerária vem a resultar nesse quadro sistêmico de grave violação aos direitos fundamentais dos detentos no cumprimento de suas penas, bem como a aferição ao princípio da dignidade da pessoa humana.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consoante, a pena de prisão tem um histórico muito extenso, estando presente desde o período Antigo, onde as penas possuíam apenas um caráter vingativo, a fim de penalizar o infrator pelo mal causado, não observando o aspecto de proporcionalidade entre o ato praticado e a sanção imposta, resultando em penas cruéis, como a pena de morte.
Observa-se que ao longo da história, a pena de prisão foi se modificando, até que em meados do século XVI, começou a surgir um novo aspecto no que tange a finalidade das penas. Assim, houveram modificações nas penalidades impostas, introduzindo-se a pena privativa de liberdade no seio social.
No Brasil, foi tão somente com a Proclamação da República e a criação do Código Penal de 1980, em que houve a modificação quanto a finalidade da pena. Com isso, estabeleceu-se a ótica de reeducar o infrator, e não só o punir.
Atualmente, a pena de prisão tem por objetivo punir o infrator, e o ressocializar, a fim de que não cometa novamente o ato ilícito, tendo assim o caráter punitivo/preventivo e reeducativo/ressocializador.
Entretanto, o que se retira ante a realidade do sistema prisional brasileiro, é que este não tem atingido sua real finalidade, em decorrência da superlotação dos presídios, resultantes da inatividade do Estado na atuação de uma infraestrutura adequada a comportar os detentos, e atividades que promovam a ressocialização.
No que tange ao sistema prisional, notório se faz perceber que esse se encontra em total descaso, diante de um quadro de superlotação carcerária, resultando em celas insalubres, sem acesso a ventilação, proliferação de doenças, que levam a uma grave aferição aos princípios constitucionais ora estabelecidos, como direito a vida, a saúde, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de ser um direito universal inerente a todo indivíduo, se encontra em ineficiência e desuso no que tange ao dia a dia dos detentos no cumprimento de suas penas, possuindo um tratamento desumano dia após dia.
Se percebe ainda mais a veracidade desse quadro fático de violabilidade ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao observar a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n° 347/DF, que trouxe para o Brasil o conceito do Estado de Coisas Inconstitucional, ao observar as condições carcerárias brasileiras.
Assim, o relator da referida ADPF, reconheceu a grave violação aos preceitos fundamentais no cárcere brasileiro, reforçando a analogia de que as prisões brasileiras são como “masmorras medievais”. Ainda salientou que esse grave quadro é resultante da inércia de todo o sistema estatal.
Destarte, observa-se que a aferição aos princípios constitucionais inerentes aos presos são um fato, e que o próprio Estado atua por infringir os preceitos constitucionais, a não fornecer um ambiente humano e digno para com os presidiários. O resultado tende a prejudicar a própria sociedade, que não consegue receber indivíduos ressocializados, mas sim, insatisfeitos e revoltados com o sistema estatal ante ao quadro desprezível em que se encontram nos presídios.
Com efeito, é necessário que se invista em um sistema penitenciário humanizado, com tratamento digno e humano, para que as penas atinjam seu real objetivo e finalidade que é a ressocialização dos indivíduos.
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[1] Orientadora do Curso de Direito: Bacharela em Sistemas de Informação(2010) pela Uneouro; Bacharela em Direito (2017) pela Ceulji-ULBRA; Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade Dom Alberto( 2019); Mestre em Direitos Humanos pela UNIR (2020).
[2] Artigo apresentado no curso de graduação em Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Lucas de Ji-Paraná como Pré-requisito para conclusão do curso em 2021/2, sob orientação da professora Me. Renata Miranda de Lima. E-mail [email protected].
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário São Lucas/AFYA JI – Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Maria Julia Santos. A violabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana no ambiente carcerário brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2021, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57489/a-violabilidade-do-princpio-da-dignidade-da-pessoa-humana-no-ambiente-carcerrio-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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