RESUMO: O presente artigo analisa a responsabilidade do fornecedor da indústria automotiva nos casos em que o consumidor posterior ao não atendimento do comunicado de recall, vier a sofrer danos em razão do objeto que originou o chamamento. Para isto, em busca da resolução do problema, lança-se na demonstração das doutrinas jurídicas, sobretudo, à luz do Código de Defesa do Consumidor. Com isso demonstra-se a hipótese de excludente da responsabilidade pelo princípio da boa fé objetiva, bem como, a possibilidade de mitigação do valor indenizatório pela concorrência de culpa em analogia ao conceito principiado no Código Civil. Por fim, apresenta-se o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça que uniformiza a sustentação das decisões nos casos desta ordem. Confirma-se com os resultados a preocupação do Direito do Consumidor de sopesar a balança que equilibra as relações de consumo em favor do lado mais vulnerável. Priorizando o homem ante ao mercado, em defesa dos direitos básicos de proteção à sua vida, saúde e segurança.
Palavras Chaves: Recall. Responsabilidade Objetiva. Direito do Consumidor.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A responsabilidade civil e o procedimento de recall. 2.1. O surgimento do recall no Brasil e o aumento nos índices de incidência do setor automotivo. 2.2. Aspectos do procedimento. 3. A responsabilidade civil dos fornecedores. 4. As consequências e discussões acerca do não comparecimento ao chamado de recall. 5. A decisão do Superior Tribunal de Justiça. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O artigo aborda a temática da responsabilidade dos fornecedores automobilísticos nos casos em que os consumidores não atendem ao chamamento do Recall, de forma a propiciar o entendimento acerca do conceito, origem e meandros deste procedimento que está incluso na Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990.
Sempre que um produto novo entra no mercado de consumo, espera-se que dele não resulte nenhum risco, além das possibilidades normalmente aceitáveis para itens da mesma espécie. Caso o fornecedor tome ciência de que o produto disponibilizado apresenta alto grau de periculosidade ou nocividade à saúde ou segurança dos consumidores, este deve agir de modo a tentar prevenir o máximo possível a ocorrência de um dano. Deste modo, deve ser comunicado o fato às autoridades competentes e à população, mediante a elaboração de um plano de mídia, convocando os consumidores que adquiriram o produto defeituoso para que os levem de volta ao local de reparação ou substituição. Este procedimento é denominado como Recall, previsto no artigo 10, § 1º do Código de Defesa do Consumidor.
Mesmo que o instituto do Recall possa ser utilizado em diversos produtos e setores do mercado de consumo, sua origem está intuitivamente associada à indústria automobilística. A prática é recorrente neste setor do mercado devido à necessidade de se produzir em grande escala, a custo competitivo e de forma padronizada, resultando ocasionalmente em imperfeições no produto final. O que é um fator preocupante, devido os eventos danosos envolvendo produtos automotivos representarem uma ameaça maior à coletividade.
Por esse motivo, o conteúdo deste estudo reúne diferentes concepções doutrinárias acerca do sistema de responsabilidade disposto no Código de Defesa do Consumidor, propondo responder ao seguinte problema. Levando em consideração a adoção da responsabilidade objetiva pelo direito consumerista, como fica a situação do consumidor que não atende ao chamamento de Recall, nos casos onde o dano é proveniente de falha na fabricação ou fornecimento de um veículo automotivo?
Diante ao questionamento aludido, parte-se da hipótese de que, tendo o fornecedor responsabilidade objetiva, então a princípio a conduta em propor ou atender o recall não deve ser utilizada como um fator excludente do dever obrigacional de reparação.
Desse modo, justifica-se o tema em voga pelo interesse em oportunizar o diálogo acadêmico acerca da responsabilidade dos fornecedores, frente às situações adversas que as relações consumeristas podem manifestar. Propondo mostrar a necessidade da concepção de mais estudos e ordenanças que vislumbrem formas de aprimoramento da defesa dos direitos básicos dos consumidores.
2. A RESPONSABILIDADE CIVIL E O PROCEDIMENTO DE RECALL
A Constituição Federal de 1988 assenta os fundamentos para a ordem econômica, estabelecendo como norte o dever de assegurar a todos a existência digna, de acordo com os direitos resultantes da justiça social, que resguarda dentre seus princípios; a soberania social, a prosperidade privada, a função social da propriedade, a livre concorrência, e a defesa do consumidor. Porém, oportunamente, em prenúncio ao capítulo que se discorre, complementa-se com as palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 9); ¨ O direito não permanece estático. É dinâmico e evolui avassaladoramente em certos campos. No da responsabilidade civil, este é um fenômeno de fácil constatação¨.
A terminologia do termo Recall é originada da língua inglesa, a definição da palavra Recall dada pelo dicionário Oxford (SIMPSON, 2017), traduzida para o português, significa; lembrar, relembrar, trazer de volta. E é justamente esse o ponto de partida para entender o procedimento previsto no Código de Defesa do Consumidor.
Na prática o procedimento de recall acontece após a constatação da ocorrência de um erro em tese inadmissível, advindo da fabricação ou montagem de um produto ou prestação de um serviço que alcance pessoas em ampla escala. Levando em consideração a abalizada probabilidade de risco, o fornecedor tem o dever de advertir a toda população, incluindo às autoridades competentes, prestando-lhes esclarecimentos e informando-os do perigo. Além de ser obrigado a promover à ação de recolhimento do produto defeituoso com o propósito de repará-lo ou substituí-lo. Ressalta-se que, a explicação é fundamentada no Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 10, §1, 2 e 3, que estabelece o recall nos seguintes termos.
O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.
§ 1º O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.
§ 2º Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço.
§ 3º Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.
Observa-se que o Código de Defesa do Consumidor trata somente em linhas gerais a conduta a ser seguida pelos fornecedores. Portanto, é a Portaria do Ministério da Justiça 487/2012 que detalha os procedimentos a serem adotados. Conforme elucidam Tamara A. Gonçalves e Thaisa Melo:
Dentre outras medidas, os fornecedores devem, imediatamente, comunicar os fatos ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), com todas as informações sobre a empresa e o produto afetado, a especificação do defeito e do risco que o produto apresenta, o modo como os consumidores devem proceder, o plano de mídia, a quantidade total de produtos afetados e a sua distribuição entre os estados da federação, os custos da campanha de mídia, a data e o modo de constatação do defeito, dentre outras. Em caso de demora na comunicação, ou de ausência de informações, o DPDC tem a prerrogativa de dar início a um processo administrativo contra a empresa, o qual poderá culminar na aplicação de multa. (GONÇALVES E MELO, 2015, p. 4).
Nota-se pela informação da portaria, sobretudo, pela transcrição textual da lei, que há uma expressa confirmação sobre a responsabilidade objetiva do fornecedor no processo. A interpretação torna-se clara na observação literal do ordenamento ao presumir que o fabricante deveria saber do risco e alto grau de nocividade ou periculosidade resultante da imperfeição de seu empreendimento. O que remete a teoria do risco. Essa concepção é descrita por Ehrhardt Junior e Paula Albuquerque (2017, p.6), ao tratarem sobre a responsabilidade pelo fato do produto superveniente do não atendimento ao Recall. Porém, antes de partir para essa abordagem, faz-se necessário elucidar o surgimento deste procedimento.
De acordo com Afrânio Ferreira Neto e Marcelo Dória (2009, p.2), o procedimento de Recall, originou-se nos Estados Unidos durante os anos sessenta, onde até então prevalecia o entendimento que a responsabilidade dos acidentes era somente do motorista, ou por motivo de caso fortuito ou força maior. As autoridades não pensavam muito sobre a possibilidade de responsabilizar os fabricantes, preocupavam-se unicamente em promover a educação no trânsito e em melhorar as condições das rodovias.
O surgimento do procedimento de recall ter ocorrido naquele tempo, talvez esteja relacionado ao superaquecimento do mercado automobilístico à época, propiciado pelo modelo de consumo norte americano, voltado para o impulsionamento do empreendedorismo desenvolvimentista. Fato é que, conforme a matéria publicada pela CNM (2015), segundo os relatórios da OMS, o Estados Unidos da América sempre esteve entre os países com o maior índice de acidentes de trânsito, estando atualmente em terceiro lugar no ranking mundial. Um paralelo entre essas duas constatações pode ter influenciado os estudos de William Haddon, conforme descrevem Afrânio Ferreira Neto e Marcelo Dória.
Um estudo de William Haddon, que posteriormente viria a ser o primeiro diretor da agência americana de segurança nos transportes, começou a mudar o entendimento sobre a responsabilidade civil nos acidentes de trânsito. O acidente de trânsito passa então a ser estudado em três momentos: o pré-acidente, que acontece devido ao mau tempo, motorista sonolento ou bêbado, pneus gastos etc.; o acidente em si, relacionado ao uso de equipamentos de segurança (cinto, air-bags, apoios de cabeça etc.); e o pós-acidente, que pode ser um incêndio, ou até o recebimento de auxílio médico rápido e eficiente. Partindo de tais premissas, em 1965 o então desconhecido advogado Ralph Nader publicou o livro "Unsafe at Any Speed: The Design-in Dangers of the American Automobile" que, baseado na hipótese do acidente em si próprio, e associado a estudos da Academia Nacional de Ciências americana, apontando que os acidentes de automóveis foram responsáveis por 47 mil mortes naquele ano, influenciou a edição do "Highway Safect Act", criando a "National Highway Traffic Safety Administration" (NHTSA), agência reguladora de segurança nos transportes. (FERREIRA NETO E DÓRIA, p.3, 2009).
A partir dos eventos descritos novas metas foram estabelecidas pelos órgãos de segurança no trânsito, consequentemente elevou-se a perícia técnica e a responsabilidade dos fabricantes, sendo instituído o dever de convocação e reparação dos veículos defeituosos distribuídos no mercado. O Recall deixou de ser um ato atípico de benevolência do fornecedor e passou a ser uma obrigação.
2.1 O SURGIMENTO DO RECALL NO BRASIL E O AUMENTO NOS ÍNDICES DE INCIDENCIA NO SETOR AUTOMOTIVO
Desde então, não demorou muito para que os órgãos reguladores da indústria automotiva brasileira adotassem o procedimento de Recall, porém raríssimos eram os casos antes da edição do Código de Defesa do Consumidor através da inserção da Lei 8.078/1990, mais precisamente, no já mencionado artigo 10, § 1º, 2 e 3.
Não foi mencionado que para além da responsabilidade civil, também existe a definição como crime para os fornecedores que deixarem de comunicar às autoridades competentes e os consumidores sobre o risco descrito na regulamentação supramencionada, conforme previsto no artigo 64 do CDC.
Todavia, antes mesmo da existência destes dois dispositivos, desde a Lei 6.360/1976, já existia a possibilidade de suspensão da fabricação e venda de medicamentos com suspeita de apresentarem efeitos nocivos a saúde dos adoentados. No entanto, distingue-se que, até então não era previsto nenhuma convocação que intentasse substituir ou reformular os fármacos. Buscava-se unicamente prevenir malefícios, o foco não era a recomposição do consumidor. (FERREIRA E DÓRIA, 2015, p. 4).
O primeiro caso de recall registrado em terras brasileiras ocorreu somente no ano de 1970 e foi promovido pela empresa Ford Motor Company Brasil. O motivo decorria de um desgaste excessivo nos pneus dianteiros do automóvel Ford Corcel modelo 1968. O reparo consistia na eliminação de um ajuste na altura da caixa de direção, proporcionando a melhora do alinhamento e evitando a deterioração desmesurada. Na ocasião foram convocados cerca de cinquenta mil compradores do modelo para que houvesse o devido reparo. Pelo que se tem registro, o procedimento foi muito bem sucedido. (RAGASSI, 2019).
Reitera-se que, o chamamento do recall não se restringe somente aos veículos automobilísticos, mas sim a todo e qualquer produto que a lei possa abranger. Ainda que, o alto índice de incidência neste setor de mercado seja um fato. Conforme demonstram os estudos e pesquisas.
A maior concentração de recalls ainda se refere a veículos, congregando 60,89% de automotores, 14,25% de motociclos e 2,79% de automotivos. A indústria automobilística está mais habituada aos procedimentos de recall e, muitas vezes, realiza, no Brasil, campanhas de chamamento que ocorrem em diversos países do mundo. Ao mesmo tempo, veículos são produtos com maior valor agregado e a população tende a atender mais prontamente aos recalls dessa modalidade. Muitos consumidores, por exemplo, no caso de produtos de baixo valor, preferem simplesmente descartá-lo do que entrar em contato com o fornecedor e deslocar-se até algum local para a troca/reparo. Esse tipo de comportamento do consumidor brasileiro resulta em índices de atendimento para produtos de pequeno valor agregado a níveis baixíssimos. É o caso, por exemplo, de alguns brinquedos, medicamentos, preservativos etc. (GONÇALVES E MELO, p. 9, 2015).
Embora se trate de um evento fatídico, o procedimento tornou-se recorrente, por causa do crescimento industrial acarretado pela demanda do setor automotivo. Constata-se que no ano de 2019, houve cinquenta e oito recalls no Brasil, contabilizando aproximadamente um milhão e cem mil automóveis convocados. Com base nos últimos cinco anos, o valor de campanhas estende-se a importância de setecentos e uma, entre as quais cento e oitenta e nove tiveram atendimento abaixo de 10%, e outras cento e três entre 10% e 40%. A informação está de acordo com a publicação do jornal Gazeta do Povo, embasada pelos dados fornecidos no boletim publicado pela Secretaria Nacional do Consumidor. (GAZETA DO POVO, 2019; BOLETIM RECALL EM NUMEROS, 2019).
Apesar de não haver a publicação do mesmo informativo detalhado referente ao ano de 2020, o que se encontra é a informação através do aplicativo Papa Recall, que aponta a ocorrência de oitenta e cinco chamados monitorados ao decorrer do ano, dos quais envolvem vinte e seis montadoras e duzentos e cinco modelos automotivos. Isso apresenta um aumento de 4% a mais de montadoras e 6,77% a mais de veículos se comparado com 2019. (PORTAL DANA, 2021).
Nesta perspectiva, o jurista Paulo Roque (2018) em sua explanação, faz um apontamento interessante. Ele parte da constatação de que a cada dez recalls realizados no Brasil, apenas três são atendidos. Isso significa que muitos consumidores estão rodando com seus veículos em risco, logo, presume-se a colocação de terceiros em risco. Por conseguinte, em sua análise, a solução estaria na importação daquilo que vem sendo feito nos Estados Unidos da América. O governo norte americano elaborou um plano para a prevenção da colocação de veículos defeituosos no mercado de consumo. No qual, exige dos fabricantes maior pericia técnica, impondo multas severas para aqueles que expuserem os consumidores a falhas nitidamente evitáveis.
As pesquisas demonstram o crescimento e relevância do procedimento a partir de sua completa incorporação dentro da indústria nacional. Que, no entanto, ainda encontra grande resistência por parte dos consumidores, talvez por acreditarem tratar-se de um atestado de má qualidade do produto. Essa percepção gera desconhecimento e pode refletir na perda de direitos por falta de arguição. Constatação que escancara a relevância do estudo social e jurídico acerca do assunto, não só doutrinariamente, mas também ao conhecimento prático dos atos.
2.2 ASPECTOS DO PROCEDIMENTO DE RECALL
Como o Código de Defesa do Consumidor não elabora com detalhamento o procedimento de recall torna-se importante ressaltar alguns aspectos desconhecidos por grande parte dos consumidores. Dentre eles, por exemplo, a questão quanto ao prazo de atendimento. Pelo dispositivo legal, é determinado que os responsáveis pelo chamamento são obrigados a realizar os reparos durante todo o período de vida útil do produto.
De acordo com a informação disponibilizada no portal de serviços do Denatran (2021), que é específica aos casos envolvendo veículos automotivos. Determina-se que, às campanhas de recall não atendidas no prazo de um ano serão lançadas no sistema RENAVAM, conforme estabelece a portaria conjunta nº 69, promulgada em 15 de dezembro de 2010, pela Secretária de Direito Econômico Interino do Ministério da Justiça.
Além disso, recentemente foi promulgada a portaria conjunta nº 3, de 1º de julho de 2019, determinando que a necessidade de atendimento ao recall passe a constar no Certificado de Registro e Licenciamento de Veiculo (CRLV), até que o atual proprietário atenda ao chamamento e realize o reparo na rede autorizada pelo fornecedor. Sendo inclusive, um requisito obrigatório para quem pretenda realizar a transferência do veículo.
Resta salientar, que, principalmente em transações negociadas antes da promulgação da portaria conjunta supradita, caso o atual proprietário não tenha adquirido o veiculo diretamente do fornecedor de origem, ele ainda assim detém o direito a reparação. Sendo assim, depois de efetuado o reparo, a concessionária informa à entidade, que por sua vez registra a baixa do recall no RENAVAM.
Na hipótese do proprietário ter constatado e custeado os reparos do problema antes que houvesse o chamamento de recall, fica-lhe resguardado o direito de ressarcimento monetário pelas despesas, sendo necessário comprovar que foi realizado o mesmo serviço anunciado oficialmente.
É importante mencionar que mesmo não existindo hipótese de prescrição do direito, ainda assim, o PROCON recomenda ao consumidor atender ao chamamento o mais rápido possível. O motivo da recomendação não é mera temeridade, mas sim uma medida de extrema importância. Porque, embora muito se fale em reparação, sobreleva-se como sendo o objetivo primordial do recall, resguardar a saúde e segurança dos consumidores e de terceiros. (PROCON-SP, 2021).
Conforme Afrânio e Dória (2015, p. 2) afirmam, o tema da saúde e segurança do consumidor deve ser o incipiente jurídico fundamental de todo cidadão que se envolve em uma relação de consumo. O próprio Código de Defesa do Consumidor sugere esse entendimento, em seu artigo 6 º, inciso I, ao predispor ser a “proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos”, o primeiro direito básico relacionado dentre todos os outros. Menciona-se também que, concernente à responsabilidade civil, o Código de Defesa do Consumidor equipara todos os integrantes da cadeia de consumo. Essa constatação fortalece a noção da responsabilidade solidária e objetiva que entrepõe-se por todo o ordenamento jurídico consumerista.
3. A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS FORNECEDORES
O Código de Defesa do Consumidor adota um sistema de responsabilidade civil diferente dos demais ramos do direito, por assumir o modelo da responsabilidade objetiva. Sobre essa questão, Nelson Nery Junior elabora.
O sistema da responsabilidade civil do Código de Defesa do Consumidor modificou sobremodo o direito brasileiro no que pertine à matéria, conclamando a atenção do intérprete para que não sejam transportadas, indevidamente, as regras da responsabilidade subjetiva do Código Civil que, à evidência, não se aplicam às lides de consumo por completa incompatibilidade entre os dois sistemas, diametralmente opostos. (NERY JUNIOR, 2011, p. 8).
Isso ocorre pela adaptação do ordenamento jurídico consumerista a teoria do risco da atividade, que por certo, se mensurável fosse, poderia enquadrar-se com ainda mais veemência no setor automobilístico, dado o elevado grau de periculosidade existente nesta atividade. Conforme muito bem explicam Tamara Gonçalves e Thaisa Melo.
Embora o recall de quaisquer produtos envolva sempre riscos sérios para os consumidores, no caso dos veículos automotores o assunto reveste-se de ainda maior preocupação. O risco envolvendo defeito desse tipo de produto pode atingir muitos outros cidadãos além do proprietário do bem, na medida em que podem resultar em graves acidentes de trânsito. (GONÇALVES E MELO, p. 5, 2015).
Neste sentido, novamente fundamentando-se nos estudos de Nelson Nery Junior, afirma-se a correlação entre a atividade lucrativa e o dever de responsabilidade do fornecedor como sendo algo intrínseco ao objeto da relação.
O Código adotou a teoria do risco da atividade como postulado fundamental da responsabilidade civil ensejadora da indenização dos danos causados ao consumidor. A simples existência da atividade econômica no mercado, exercida pelo fornecedor, já o carrega com a obrigação de reparar o dano causado por essa mesma atividade. (NERY JUNIOR, 2011, p.8).
Pretende-se proteger a vulnerabilidade e hipossuficiência dos consumidores, fator que fundamenta o caráter obrigacional do dever de reparação dos danos, independente da comprovação de culpa. Feito que se distingue com nitidez nesta matéria, por tratar-se de um setor onde a fabricação e a montagem do produto passam por um trabalho laboral de extrema tecnicidade.
Para Ehrhardt Junior e Albuquerque (p.6, 2017), é preciso analisar o evento sobre duas perspectivas. A primeira é a relação entre o problema existente no automóvel e sua correlação com a expectativa do consumidor. Isso significa que não se analisa se há inaptidão para o uso, mas sim, se há primordialmente a segurança que se poderia legitimamente esperar. Ou seja, deve-se levar em consideração o nível de segurança do produto e seu funcionamento esperado, desde que a prática usual não extrapole a normalidade. Outro ponto indispensável para a configuração da responsabilidade pelo fato do produto, é que a repercussão do defeito tem que ser externa. Quando é ocasionado o dano na esfera de interesse juridicamente protegido do consumidor, é a chamada causa objetiva.
O recall também pode ser compreendido como uma espécie de arrependimento eficaz, sua aplicação devolve a confiança ao consumidor de usufruir do produto. Outro fato é que o chamamento quando espontâneo também descaracteriza a hipótese de infração. Portanto, isso não exclui que sejam investigadas as causas da falha, tendo como parâmetro as práticas usuais do mercado. (FERREIRA NETO E DÓRIA, 2015, p. 7).
Contudo é preciso deixar claro que a simples convocação para um recall não traz ao consumidor o direito de dano moral indenizável. O mero aborrecimento e o dissabor não são motivos suficientes para o reconhecimento da indenização, sendo necessário que se demonstre a efetiva violação de direitos da personalidade.
4. AS CONSEQUÊNCIAS E DISCUSSÕES ACERCA DO NÃO ATENDIMENTO AO CHAMADO DE RECALL
O fornecedor tem responsabilidade civil e consequentemente obrigação de reparar o prejuízo causado ao consumidor, independente da imperfeição ter sido em detrimento do projeto, fabricação, construção, montagem, formulação, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos. Desde que, constatado os pressupostos da ausência de segurança, dano e nexo de causalidade. Conforme previsão legal dos artigos 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor.
Mesmo que sedimentado o entendimento quanto à responsabilidade da relação, existem outros obstáculos para a realização completa do procedimento. Dentre eles, talvez um dos mais importantes, seja a comunicação.
O fornecedor tem o dever de formular um plano de mídia que comunique o fato para todos os consumidores afetados. Essa divulgação, conforme a lei prevê, além de imediata, deve ser feita mediante anúncios publicitários vinculados à imprensa, rádio, televisão e demais meios de transmissão. O anúncio precisa ser direcionado à coletividade, partindo do pressuposto que o chamado tem por objetivo principal garantir à informação clara e ostensiva. Porém, esse direcionamento extensivo de massa apresenta alguns problemas, como a dificuldade de identificar que todos foram informados.
A informação é direcionada a toda a população, na medida em que, em uma sociedade de consumo de massa, a identificação precisa de todos os consumidores que potencialmente possuem determinado produto é praticamente impossível. Se o consumo é de massa, a comunicação também deve ser, de modo a abranger o maior número de pessoas possível. (GONÇALVES E MELO, 2015, p.3).
Ou seja, conforme a transcrição acima, ¨se o consumo é de massa, a comunicação também deve ser, de modo a abranger o maior número de pessoas possível¨. Logo, alude-se que a possibilidade de não conseguir comunicar a todos é concebível. E isso implica um grande problema, essencialmente quando se lê ou sabe-se por alguém que existe o alerta de que depois de feito o recall em caso de não comparecimento do consumidor, este não poderá mais exigir a reparação do fabricante. Tal informação além de embasar teses jurídicas é vinculada em sites e páginas automotivas e publicitárias como uma determinação indubitável. É o caso da revista digital Ideia de Marketing (2019), onde Flávia Guimarães diz que; ¨o consumidor, deixando de responder ao recall, está assumindo por sua conta e risco os danos que poderá sofrer¨. Entretanto, existem aspectos mais profundos a serem analisados, além de decisão contrária a esse entendimento, trazendo para a discussão uma compreensão completamente oposta.
Uma questão que precisa ser novamente mencionada é que mesmo sendo vinculado ao anúncio do chamamento um prazo estipulado para a sua realização, a portaria 69/2010, elaborada pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, conjuntamente com o Departamento Nacional de Trânsito, regulamenta que as fábricas e concessionárias são obrigadas a realizar o reparo durante todo o período de vida útil do produto. A mesma portaria ainda predispõe que a informação sobre o eventual não atendimento ao recall conste na documentação do veículo, de modo que a informação possa chegar ao proprietário posterior com a possibilidade resguardada dele arguir a solução para o risco do produto. De acordo com Tamara Gonçalves e Thaisa Melo (2015, p.3), a implementação desta medida é, sobretudo, uma afirmação de que os fornecedores serão sempre responsáveis enquanto o risco estiver no mercado.
Neste sentido, o fornecedor estaria apenas cumprindo com a lei ao proceder com o recall. Mas, então, persiste a dúvida se o recall exime ou não a responsabilidade do fornecedor. Sobre isso, Priscila Marques Degani (2014) diz que; ¨para os que assim entendem, explicam que com o “chamamento” advém a ruptura do defeito (fato) com o dano, havendo a excludente de causalidade por culpa exclusiva da vítima¨.
Existem ainda dois pontos apresentados por Ehrhardt Junior e Albuquerque (2015, p. 8), que em suma, poderiam embasar a tese de exclusão ou paliativo da responsabilidade pelo fato do produto quando do não atendimento ao recall. A primeira reflexão que os autores elaboram parte da premissa de análise da boa fé objetiva do consumidor e do livre arbítrio diante da recusa injustificada. A segunda proposição trata-se da possibilidade de fato concorrente do consumidor como atenuante da responsabilidade dos fornecedores e prestadores de serviço.
Contudo, salienta-se que, a questão principal da abordagem gira em torno da atitude injustificada do consumidor em não comparecer ao chamamento do recall, e consequente a isso vir a sofrer danos em razão dos elementos perigosos ou nocivos provocados pela falha dos fornecedores.
Dentre os princípios que estabelecem os fundamentos do Código de Defesa do Consumidor está o princípio da boa fé objetiva. Menciona-se que, para além das relações consumeristas, o princípio da boa fé é importantíssimo para todo o direito privado, é a partir dele que se constroem as regras de conduta entre as partes nas mais diversas relações.
A boa fé objetiva está prevista no artigo 4º, inc. III, do Código de Defesa do Consumidor, ao impor que as relações entre fornecedores e consumidores devem sempre ser fundamentadas na boa fé e equilíbrio, pautados pela justiça social.
Compreende-se a extensão desta disposição geral de boa fé para além da interpretação das clausulas contratuais. Isso significa a necessidade da interpretação dos deveres jurídicos não expressos, ou seja, que não estão estabelecidos em lei. Em outras palavras, está relacionado à conduta do individuo que pactua em uma relação o dever de guardar fidelidade com a palavra dada e não quebrar ou abusar da confiança que lhe foi conferida. (MIRAGEM, p. 133).
Sendo assim, o princípio da boa fé representa uma espécie de sustentáculo das relações mercadológicas, pressupondo o conjunto de valores que determinam a forma honesta, leal e justa de agir. Conforme argumenta Fabricio Bolzan de Almeida (2015, p. 367), quando o enfoque é na boa fé objetiva, não se deve preocupar com aspectos subjetivos, de caráter pessoal ou de um estado psicológico, mas sim com o conjunto de regras de conduta social, pela qual se analisará a relação no plano dos fatos. Portanto, destaca-se que, ela abarca todos os sujeitos da relação, tanto os fornecedores quanto os consumidores.
Apesar da natureza protetiva do Código de Defesa do Consumidor, ocorre que em relação à determinação legal de agir com boa fé, presume-se com igualdade o cumprimento de ambas as partes. Desta forma, quando o fornecedor promove a convocação para a realização do recall, seguindo corretamente todo o protocolo dos órgãos de regulação, julga-se, ao menos que ele agiu de forma honesta na tentativa de minimizar possíveis danos decorrentes da imperfeição do produto colocado no mercado.
Nesta mesma perspectiva, o consumidor que não atende ao chamamento, sem substancial justificativa, poderia estar agindo de forma contrária aos pressupostos que compõem o princípio da boa fé objetiva.
A ausência de justificativa, ou seja, não comparecimento sem motivo relevante ou qualquer oposição, demonstra a aceitação da utilização do produto com os riscos que o acompanham. A recusa injustificada para a realização do recall pode ser entendida como violadora do princípio em comento no instante em que o consumidor se esquiva, conscientemente, de adotar uma conduta apta a prevenir danos, tanto em relação a si quanto, principalmente, em relação a terceiros que não puderam, como mencionado anteriormente, opinar acerca do atendimento ao chamado. Ou seja, o consumidor, com as informações suficientemente precisas sobre o produto, passa a assumir os riscos noticiados pelo fornecedor quando da convocação para análise e reparo no produto inadequadamente posto no mercado. (EHRHARDT JUNIOR E ALBUQUERQUE, 2015, p. 9).
Seguindo este raciocínio, entende-se que o consumidor em desfrute de suas plenas faculdades mentais, tendo o conhecimento das consequências do não atendimento ao recall, estaria assumindo para si o risco iminente de usar um produto defeituoso, o que pode embasar tese jurídica para arguir o afastamento da responsabilidade do fornecedor. É um entendimento controverso que, porém, ainda se aprofunda.
Ora, no instante em que o consumidor toma conhecimento dos danos que a utilização do produto sem reparo pode ocasionar e, mesmo assim, opta pela permanência no uso de tal bem, ocorre uma interrupção da expectativa legítima relativa à segurança do produto, afinal o defeito que gera acidente, comumente chamado de vício por insegurança, relaciona-se não propriamente à capacidade intrínseca ao produto – de provocá-lo –, senão à sua desconformidade com uma razoável expectativa do consumidor, baseada na natureza do bem ou do serviço e, sobretudo, nas informações veiculadas, particularmente exigidas quando os possíveis efeitos danosos não são naturalmente percebidos. Tem-se, portanto, que, a partir do momento em que a expectativa da segurança deixa de existir, não se cogita em responsabilização do fornecedor, já que não há que se falar em vício por insegurança, nem produto defeituoso. (EHRHARDT JUNIOR E ALBUQUERQUE, 2015, p. 10).
É notório que a justaposição das afirmações que elaboram o argumento supramencionado é plausível, portanto, suscetível ao surgimento de teses doutrinárias concordantes. Porém, confronta às ultimas decisões do Superior Tribunal de Justiça, conforme será analisado no último tópico. Mas, de antemão, reitera-se a sustentação das decisões dos tribunais perante aquilo que predispõe o Código de Defesa do Consumidor, que essencialmente visa à proteção do consumidor, por considerar aspectos de sua vulnerabilidade e hipossuficiência.
Existe também a tese de utilização do fato concorrente como atenuante da responsabilidade pelo fato do produto, trata-se de uma hipótese doutrinária e conforme se apresenta, não é algo pacificado nem mesmo no campo dos estudos. Um dos fatores que fazem desta uma questão de difícil consenso é o fato de não estar incluída no Código de Defesa do Consumidor.
O artigo 12, § 3º do CDC, predispõe somente três hipóteses capazes de excluir a obrigação de indenizar dos fornecedores pela responsabilidade por fato do produto, são elas; a não colocação do produto no mercado; a inexistência de defeito e a culpa exclusiva da vítima.
A intervenção da vítima em um evento danoso constitui uma circunstância relativamente frequente. Por esse motivo, com relação à possibilidade de imputação de excludente ao tema estudado, é preciso atentar-se à hipótese de culpa exclusiva. Portanto, Fabricio Bolzan de Almeida explica.
Se nota que as hipóteses de culpa exclusiva do consumidor ou a culpa exclusiva de terceiro (fato de terceiro), são circunstâncias que para se caracterizarem como excludentes da responsabilidade do fornecedor exigem que não exista, com relação às mesmas, nenhuma espécie de participação da cadeia de fornecedores, a qualquer título. Da mesma forma, que o fato ou comportamento do consumidor ou do terceiro seja suficiente para, por si só, dar causa ao evento danoso, razão pela qual se configura como excludente. (ALMEIDA, 2020, p. 499).
Existe certo consenso jurisprudencial que previamente afasta a possibilidade de imputação da excludente por culpa exclusiva do consumidor, nos casos onde o dano seja originado por produto vicioso, após o não atendimento ao recall, conforme também será abordado no próximo tópico.
Por conseguinte, nada impede de prosseguir, porém, não sem antes reiterar que inexiste previsão legal da culpa concorrente no Código de Defesa do Consumidor. Na verdade, trata-se de uma interpretação jurídica análoga ao Direito Civil. O conceito origina-se do artigo 945 do Código Civil, por estabelecer o seguinte: ¨Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano¨.
Diante a alternativa de configuração da culpa concorrente, vale destacar não tratar-se de uma excludente de responsabilidade, mas sim de uma atenuante. Sobre o tema, Bruno Miragem esclarece:
Não há de se referir, portanto, de culpa concorrente do consumidor como causa de exclusão de responsabilidade, ainda que se possa admitir, no caso concreto, a possibilidade de redução do quantum da indenização. Da mesma forma não afasta a responsabilidade do fornecedor o fato meramente acidental do consumidor, exigindo-se, para tal finalidade, que o ato seja exclusivo e que seja praticado culposamente, ou seja, movido por dolo, negligência ou imprudência. (MIRAGEM, 2020, p. 499).
Para aqueles que procuram contrapor as últimas decisões do Superior Tribunal de Justiça, restaria supor a hipótese de contribuição do consumidor ao resultado do evento danoso. Logo, haveria a possibilidade de ser considerada a atenuante do valor indenizatório, mediante o não comparecimento injustificado ao recall.
Apesar de a legislação brasileira e a doutrina serem enfáticas ao cuidar da responsabilidade objetiva dos fornecedores quando da existência de acidente de consumo, ao utilizar o diálogo das fontes (em especial art. 945 do CC), alguns autores entendem pela aplicação da culpa concorrente quando do descumprimento do recall pelo consumidor. Para eles, no instante em que o consumidor se nega ao atendimento ao recall, agiria com culpa concorrente e, por consequência, deveria ter sua indenização reduzida. (EHRHARDT JUNIOR E ALBUQUERQUE, 2015, p. 7).
Entretanto, como foi dito no início deste tópico, a questão é passível de ampla discordância no meio jurídico, alcançando posicionamentos diametralmente opostos. A desconformidade, sobretudo, origina-se pelo teor da legislação consumerista, que além da não predisposição desta excludente, também adota a responsabilidade objetiva e a teoria do risco integral. Nesta perspectiva, Simardi diz que:
É irrelevante à responsabilidade objetiva o exame da ocorrência de culpa concorrente da vítima à do causador do dano, pois não há prequestionamento da "culpa" ou "não culpa" do agente. Se este elemento subjetivo sequer é considerado para a imputação da responsabilidade objetiva do agente, impossível conjugá-lo à conduta da vítima. Seria totalmente ilógico excogitar-se da concorrência da conduta do causador do dano à da vítima se reconhecida sua responsabilidade objetiva, que, como vimos, desconsidera toda e qualquer análise do elemento subjetivo do agente. Logo, se não há aferição da "culpa" do agente, não pode esta concorrer com a intenção da conduta da vítima. (SIMARDI, 1993, p. 6).
Neste sentido, o argumento se ampara nos princípios do Código de Defesa do Consumidor, ao preocupar-se essencialmente em nivelar a relação de consumo por meio da defesa do elo mais fraco.
Considerando-se o consumidor como a parte fraca na relação de consumo, a efetiva proteção e reparação dos danos a ele causados não poderiam prescindir do elemento "culpa" dos fornecedores, sob pena de todo o sistema de proteção se desestruturar, face à dificuldade da concreta aplicação quando se exige a comprovação da intenção. Todos os princípios protetivos dispostos no art. 6.º, em especial o § 6.º, seriam de difícil incidência prática se não se fizer a interpretação teleológica de todo o sistema. (SIMARDI, 1993, p. 8).
Além disso, é válido salientar que uma das funções da jurisprudência é tornar uniforme o entendimento entre os tribunais. Portanto, mesmo que o Superior Tribunal de Justiça não impeça outras interpretações de excludentes, além das não previstas no Código de Defesa do Consumidor, fato é que, neste caso, também não há o que as determine. Por esse motivo, é importante atentar-se ao que se tem de conclusivo sobre a questão.
5. A DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Por todo o exposto, é indispensável reiterar a função do Direito do Consumidor como um instrumento de equilíbrio das relações econômicas, principalmente por meio do desvelo e proteção daquele que está em condição de vulnerabilidade.
É neste sentido que o Superior Tribunal de Justiça tem elaborado suas decisões, justificando-se na necessidade de defesa do elo mais fraco. De modo a determinar que as circunstâncias do não comparecimento ao recall, não desobriga o fabricante de sua responsabilidade objetiva.
CIVIL. CONSUMIDOR. REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIDADE. RECALL. NÃO COMPARECIMENTO DO COMPRADOR. RESPONSABILIDADE DO FABRICANTE. - A circunstância de o adquirente não levar o veículo para conserto, em atenção a RECALL, não isenta o fabricante da obrigação de indenizar. (STJ - REsp: 1010392 RJ 2006/0232129-5, Relator: Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data de Julgamento: 24/03/2008, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 13.05.2008 p. 1)
A ementa supramencionada refere-se a um acórdão do Superior Tribunal de Justiça que por unanimidade não reconheceu o recurso especial proposto pela empresa Fiat Automóveis S/A, optando por manter a decisão de reparação por danos morais.
Diante disso, a fim de esclarecer o processo, transcreve-se o complemento do voto do relator.
A recorrente alega que a negligência dos recorridos no atendimento ao chamado do recall feito e em não efetuar a manutenção do veículo, rompe o nexo causal. Não houve ofensa ao Art. 13, § 3º, III, do Código de Defesa do Consumidor. Houve defeito na fabricação do produto, publicamente reconhecido pela recorrente, ao chamar para o recall. No mais, o perito do juízo concluiu que um curto-circuito no sistema do airbag causou a abertura inoportuna da bolsa de proteção (fl. 376). Houve defeito do produto fabricado pela recorrente e nexo causal entre este defeito e o dano sofrido pelos recorridos consumidores. Na terminologia da Turma, não conheço do recurso especial. (BRASIL, 2008).
Salienta-se, conforme constante nos autos, que o evento danoso foi provocado por um curto circuito no sistema de segurança, ocasionando a abertura da bolsa de proteção. Subscreve-se que ao ser dada a partida no motor a vítima foi atingida abruptamente no rosto, pescoço e na parte superior do corpo. Sua esposa e filha também estavam no interior do veículo, porém, conseguiram sair correndo sem que sofressem lesões corporais.
Um ponto a se destacar é a constatação de que o consumidor não sabia do defeito que ensejou o chamamento do recall. Essa é uma questão muito importante, porque pelo desígnio da vulnerabilidade informacional, descrita por Fabricio B. de Almeida (p. 346, 2015) presume-se a insciência dos consumidores quanto à dimensão de procedimentos técnicos. Por esse motivo, para supor a excludente, seria indispensável comprovar que a informação preventiva fora suficiente. Em uma tese de defesa, isso pode representar algo de difícil comprovação.
Sem demora, conforme prometido no tópico antecedente, apresenta-se outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, posterior à decisão supracitada.
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS - DECISÃO MONOCRÁTICA NEGANDO SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL - INSURGÊNCIA RECURSAL DA RÉ. 1. Não subsiste a alegada ofensa ao artigo 535 do CPC, pois o Tribunal de origem enfrentou as questões postas à apreciação, não havendo no aresto recorrido omissão a ser sanada. Precedentes. 2. A circunstância de o veículo não haver sido vistoriado periodicamente e não ter sido levado para conserto pelo proprietário anterior, em atenção a RECALL, não isenta o fabricante da obrigação de indenizar, sobretudo porque se trata de veículo de revenda. Responsabilidade objetiva. A aferição de culpa exclusiva da vítima enseja reexame de provas não condizente com a via especial. Súmula 7-STJ. 3. A incidência da Súmula 7/STJ sobre o tema objeto da suposta divergência impede o conhecimento do recurso lastreado na alínea c do permissivo constitucional ante a inexistência de similitude fática. 4. Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg no REsp: 1261067 RJ 2011/0074432-1, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 17/11/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/11/2015)
Desta vez, embora permaneça o entendimento de que a atenção do fabricante ao recall não o isenta de suas obrigações indenizatórias. Há também outro fator que importa ao problema levantado, que é a possibilidade de aventar culpa exclusiva da vítima. Entretanto, sobre o tema, o ministro relator Marco Buzzi delimitou o seguinte em seu voto.
No que se refere à alegada violação ao art. 12, §3º, III, do Código de Defesa do Consumidor, não assiste razão à recorrente, tendo em vista que a análise da pretensão recursal referente à eventual culpa exclusiva da vítima, apta a afastar a sua responsabilidade objetiva, demandaria a alteração das premissas fático-probatórias estabelecidas pelo acórdão recorrido, com o revolvimento das provas carreadas aos autos, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos do enunciado da Súmula 7 do STJ. (BRASIL, 2015).
Assim sendo, neste caso, pela análise do conjunto fático probatório averiguasse a inépcia da imputação de culpa exclusiva do consumidor. Porém, reitera-se não ter sido tratado a possibilidade de aplicação da concorrência de culpa mediante o não comparecimento do consumidor para a realização do recall.
A desconsideração jurisprudencial sobre a matéria aumenta a discussão doutrinária sobre a imputação análoga da culpa concorrente, principalmente no que se refere a casos similares.
No entanto, conforme defende Simardi (1993, p. 5), deveria ser irrelevante o prequestionamento de culpabilidade. Porque se o elemento subjetivo sequer é considerado para a imputação da responsabilidade objetiva do agente, seria no mínimo incoerente conjugá-lo à conduta da vítima.
Por fim, complementa-se tudo que fora abordado até aqui, com a concepção de Antônio Herman V. Benjamin (1991, p. 2), de que o direito consumerista funda-se no princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor dentro da dinâmica do mercado. Por esse motivo, se por algum momento a disciplina precisar abrandar sua aplicabilidade, o fará em favor do consumidor. Porquanto, afirma; ¨o homem antecede o mercado¨. Esta afirmação apresenta uma questão que se eleva para além do aspecto indenizatório, pois, a vida é o direito mais importante dentre todos os outros direitos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O procedimento de recall muito além da recomposição material é uma forma de proteção à vida, saúde e segurança dos consumidores. Ao desvelar os aspectos da responsabilidade civil das fabricantes, montadoras e revendedoras diante o não comparecimento do consumidor ao chamamento, demonstrou-se a necessidade de uma proteção branda em defesa do elo mais frágil.
Conforme visto o Recall está previsto no artigo 10, § 1º do Código de Defesa do Consumidor, que delimita os atos que o compreende. Muitos estudos abordados o defendem como uma prática eficiente em sua atuação, ao possibilitar a reparação de produtos industrializados em grande escala, setores dos quais não seria ilógico presumir a ocorrência de defeitos.
Por essa concepção, mostrou-se importante a atenção em especial ao setor automobilístico. Apesar do recall de quaisquer produtos serem provenientes do risco para os consumidores, nos casos dos veículos a preocupação merece ser ainda maior. A falha de segurança em um veículo quando em trânsito apresenta elevado grau de ameaça, não somente ao proprietário como também a outras pessoas, podendo levá-las à fatalidade.
O Direito do Consumidor desde seus princípios básicos desenvolveu toda a sua composição para a defesa do consumidor. Ao se falar na disposição de equilíbrio e equivalência das relações do mercado de consumo, seria impossível não sopesar a lei para o lado que tem nítidas desvantagens.
A legislação consumerista é enfática ao tratar sobre a responsabilidade objetiva dos fornecedores. A fundamentação concerne à teoria do risco, que se refere ao fato de que o empreendedor ao dispor à prática de qualquer atividade, já carrega consigo a obrigação de responder aos eventuais vícios ou defeitos mediante o uso que não extrapole a prática daquilo que se espera do produto, independe de haver culpa ou não.
Para a formação da dialética além da análise jurisprudencial, foram apresentadas duas teses doutrinárias em defesa da exclusão e mitigação da responsabilidade pelo fato do produto quando do não atendimento ao recall. A análise da boa fé objetiva do consumidor diante a recusa injustificada. E a hipótese atenuante de imputação da concorrência de culpa.
Na primeira tese demonstrou-se a ausência injustificada ou qualquer oposição ao chamamento, como sendo um fator de aceitação da utilização do produto defeituoso. De modo que, supor-se-ia a violação do princípio da boa fé objetiva pela conduta omissiva, principalmente pela possível colocação de terceiros em risco. Ensejando ao consumidor o empeço de arcar com a responsabilidade dos danos, por sua conta em risco.
Na hipótese da atenuante sobrelevou-se uma interpretação jurídica análoga ao Direito Civil, que ao estipular a indenização dever-se-ia levar em conta a gravidade da culpa da vítima em confronto com a do autor do dano.
Ambas as teorias ainda são discutidas e apresentam-se em fase de debate doutrinário. Mesmo que essa divergência possa demonstrar uma lacuna na legislação, fato é que, boa parte da doutrina sustenta o mesmo argumento utilizado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, motivo suficiente para a sinalização de outra importante alternativa.
Desta pluralidade doutrinária reafirmou-se a convicção sobre a controvérsia envolta do assunto. A problemática questionou os aspectos para a responsabilidade dos fornecedores da indústria automotiva, mediante aos consumidores que sofrem danos ocasionados pelo defeito objeto de recall, mesmo quando constatado o não comparecimento ao chamamento.
Os dois acórdãos do Superior Tribunal de Justiça apresentados, em conformidade mantiveram a decisão de que a circunstância de o adquirente não levar o veículo para o conserto, em atenção ao recall, não isenta o fabricante da obrigação de indenizar. Elaborando também a constatação de que a pretensão de contrapor culpa exclusiva da vítima, em casos análogos, demandaria dificuldade comprobatória.
Fica, portanto, notório ser um dever do fabricante, montador ou revendedor, informar eventuais riscos sem que isto lhe exima do dever de indenizar os danos decorrentes. O que representa aplicação clara à luz do Código de Defesa do Consumidor, sobre o cumprimento da responsabilidade objetiva e a teoria do risco integral. De modo a manterem-se os princípios protetivos que possibilitam a incidência prática deste sistema jurídico.
As pesquisas também demonstraram que durante os últimos anos têm se intensificado o número das campanhas de recalls no setor de automóveis. Dos quais, apresenta-se um índice de atendimento muito baixo. Dentre os motivos encontrados para o problemático número de casos solucionados, justifica-se, primeiro, na resistência cultural dos consumidores, que de antemão resistem à própria publicidade devido ao preconceito, por acreditarem tratar-se de um atestado de má qualidade do produto. Outro motivo ainda mais importante percebido é a dificuldade dos fabricantes de direcionar a informação a toda a população através do plano de mídia, na medida em que, a comunicação perfeita é praticamente impossível.
Porquanto, mostra-se necessário que o governo aumente seu poder de regulamentação sobre as indústrias automobilísticas, de modo a cooperar para a identificação do risco em antecipação à colocação do produto no mercado de consumo.
Por todos os fatores evidenciados, o tema torna-se ainda mais abrangente e importante, transmitindo a possibilidade de pesquisas futuras que possam apresentar novas soluções, a procurar práticas que resultem em ações cada vez mais justas e equitativas.
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Bacharelando do curso de direito do Instituto Luterano de Ensino Superior de Itumbiara-GO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Mateus Gouveia da. A responsabilidade civil e o procedimento de recall no setor automotivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2021, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57616/a-responsabilidade-civil-e-o-procedimento-de-recall-no-setor-automotivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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