RESUMO: O presente artigo trata da possibilidade jurídica da usucapião pleiteada por herdeiro sobre imóvel objeto de herança. Embora o direito de propriedade seja assegurado pela CF em seu artigo 5º, inciso XXII tal direito é relativo uma vez que a função social age como limitador constitucional e em caso de descumprimento da mesma sob o imóvel, não há que se falar em propriedade plena, podendo o dono do imóvel perder a propriedade em razão de desapropriação por interesse social (art. 182, § 2º, da CF) ou por meio de ação de usucapião. O direito à herança previsto no inciso XXX do artigo 5º da CF também não é tratado como absoluto sendo este passível de limitações, conforme será apresentado ao longo deste artigo. Atualmente não há previsão expressa quanto a possibilidade de o herdeiro pleitear ação de usucapião sobre imóvel objeto de herança, assim como não há norma proibitiva, fazendo com que o tema venha sendo tratado de formas divergentes. Tendo em vista os princípios e garantias fundamentais assegurados na Constituição e a análise do entendimento firmado pelo STJ a respeito do tema, o presente artigo busca a análise e esclarecimento dos requisitos do reconhecimento da usucapião pleiteada por um herdeiro.
Palavras-chaves: Usucapião. Herdeiro. Imóvel. Possibilidade. Superior Tribunal de Justiça.
ABSTRACT: This article deals with the legal possibility of adverse possession claimed by an heir on the property object of inheritance. Although the right to property is ensured by the Federal Constitution in its article 5, item XXII such right is relative since the social function acts as a constitutional limitation and in case of non-compliance with the property, there is no need to speak of full ownership, the property owner may lose property due to expropriation for social interest (art. 182, § 2, of the CF) or through adverse possession. The right to inheritance provided for in item XXX of article 5 of the CF is also not treated as absolute, which is subject to limitations, as will be presented throughout this article. Currently, there is no express provision regarding the possibility of the heir claiming usucapion action on the property that is the object of inheritance, as well as there is no prohibitive rule, causing the issue to be dealt with in divergent ways. In view of the fundamental principles and guarantees guaranteed in the Constitution and the analysis of the understanding signed by the STJ on the subject, this article seeks to analyze and clarify the requirements for recognizing the adverse possession claimed by an heir.
Keywords: Usucapion. Heir. Immobile. Possibility. Higher Justice court
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo a análise da possibilidade jurídica de se usucapir bens imóveis de acervo hereditário por herdeiro, bem como baseado em quais elementos e em quais circunstâncias pode-se obter a posse do imóvel em questão pelo instituto da usucapião, de acordo com os preceitos do Código Civil de 2002 bem como também a luz da constituição Federal de 1988. Para tanto, pretende-se abordar, os conceitos, classificação, efeitos da posse e seus requisitos intrínsecos legais.
Após a análise do instituto possessório, iremos abordar a aquisição de propriedade pelo direito sucessório, sendo este modo derivado de aquisição de posse. Segundo ORLANDO GOMES, 2004, p. 200, “adquire-se a posse por modo derivado quando há consentimento de precedente possuidor, ou seja, quando a posse é transferida – o que se verifica com a transmissão da coisa”, podendo decorrer da sucessão inter vivos ou causa mortis.
Dessa forma, tem-se que o exercício fático da posse não é requisito essencial para que o herdeiro tenha o direito a proteção possessória, em virtude do “direito de saisine”. Independentemente de as partes interessadas expressarem a sua vontade, esta transmissão não será interrompida e prosseguirá de forma cogente.. Isso nos leva a forma de administração do direito hereditário, sob investigação da ótica sucessória nos atuais processos de inventário no Brasil, a fim de que se esclareça como os institutos da sucessão hereditária e da usucapião se encontram.
Tal confluência entre os dois institutos, possessórios e sucessórios, nas decisões judiciais, cabe a análise dos requisitos para seu acolhimento ou não, além dos pressupostos legais que embasam as decisões quanto à possibilidade de usucapir um objeto de herança. Com essas informações, o estudo busca elucidar os requisitos e o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça.
1. DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE NO DIREITO POSSESSÓRIO
1.1 Posse e propriedade
Os institutos da posse e da propriedade causam bastante confusão sobre seus conceitos por serem bastantes confundidos. Ter a posse não caracteriza obrigatoriamente ter a propriedade de um bem, sendo essencial diferenciar os conceitos. Sendo através da posse que podemos dissertar sobre a usucapião que é uma forma de aquisição da propriedade.
A palavra posse refere-se a um poder que se tem sobre uma coisa. A posse trata-se de uma situação fática que acarreta determinados efeitos jurídicos. Conforme menciona CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, a posse refere-se:
“a ideia de uma situação de fato, em que uma pessoa, independentemente de ser ou de não ser proprietária, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a” (PEREIRA, 2014, p. 34).
As delimitações conceituais acima são baseadas sob os seguintes dispostos legais do Código Civil:
“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.
Art. 1.205. A posse pode ser adquirida:
I - pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante;
II - por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (BRASIL, online, 2002)
Desse modo, sob os ensinamentos doutrinários, a norma jurídica extraída da interpretação dos três dispositivos acima é a seguinte: posse é a situação fática (com reflexos jurídicos) na qual alguém exerce, em nome próprio ou por intermédio, as faculdades de usar, gozar, dispor ou reaver a coisa.
Existem diversas teorias que tentam explicar o instituto possessório, mas as duas teorias que mais tiveram influência foram ambas trazidas por Friedrich Carl von Savigny e Rudolf von Ihering.
Sob a teoria subjetiva de Savigny, o mesmo expõe que a característica da posse é uma combinação de dois elementos: animus e corpus. Na verdade, esses elementos são elementos materiais, ou seja, o poder de dispor fisicamente das coisas, e elemento de vontade, ou seja, possuir as coisas como suas próprias intenções. Embora tenha tido uma grande influência no pensamento jurídico no século passado, ela contradiz a teoria de Jelling e é doutrinariamente chamada de "teoria objetiva".
Para Jhering, a intenção de se tornar o dono das coisas será renunciada, sendo suficiente a affectiotenendi, independentemente de querer ser dono. Essa teoria é chamada de objetiva precisamente por dispensar tais intenções.
Diante das duas teorias apresentadas, adotou-se a teoria de Ihering, conforme art. 1.196 do Código Civil. Nesse sentido, é necessário a abordagem sobre o conceito de detenção tendo em vista que é semelhante à posse, pois muito se confunde.
A detenção refere-se a uma situação onde o detentor tem a “posse” sobre a coisa por conta de uma subordinação ou dependência econômica. Dessa forma o detentor não goza do direito de peticionar ações possessórias em nome próprio. Caso uma ação possessória seja proposta eventualmente de forma incorreta ao detentor, este deverá nomear autor, o proprietário ou possuidor. O Código Civil, dispõe que:
“Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.” (BRASIL, online, 2002)
Nesse sentido, a detenção não corresponde a nenhum direito, diferente da posse.
Conceitua-se como propriedade a faculdade de usar, gozar e possuir bens e dispor deles da maneira como quiser, sendo um instituto de Direito Privado que determina o domínio sobre as coisas, caracterizando os direitos e deveres do proprietário, sendo parte do direito das coisas.
Dessa forma, é possível conceituar cada faculdade mencionada no artigo 1.228, CC.
Uso: Uso configura na faculdade que tem o proprietário usar e servir-se da coisa da maneira que achar mais conveniente a si, deletando o intermédio de terceiros, respeitando os limites legais estabelecidos.
Gozo: gozo ou fruir propriedade, basicamente refere-se à extrair do bem benefícios e vantagens. Nesse sentido, um exemplo mais comum é o locação de imóveis
Dispor: Dispor trata-se de dar à coisa a destinação que for conveniente ao proprietário. Portanto, o proprietário pode vender, dar, abandonar, destruir, dar em pagamento ou em garantia.
Reivindicação: Em relação a esta faculdade, entende-se que o titular pode reaver da pessoa que indevidamente o detém ou possui.
1.2 Classificação da Posse
Classificar a posse é imprescindível posto que sua correta delimitação auxiliará quando se tratar das ações possessórias e tem efeitos práticos, como na questão dos prazos para usucapir e dos frutos e benfeitorias em coisa alheia. A posse pode ser exercida de forma direta ou indireta ou até mesmo de forma simultânea. Também pode ser classificada de Ad Interdicta, Ad Usocapionem, posse nova e velha.
Posse direta refere-se à posse material e temporária do objeto pelo sujeito, a posse indireta ocorre quando o proprietário cede a propriedade a outrem, ou seja, “a posse indireta ocorre quando alguém detém todos os outros direitos, excluindo o de uso já que esse é exercido em nome do possuidor direto” (PARREIRA, online, 2018). Na posse indireta, o proprietário ou a pessoa que deixou o objeto, transferindo-o a terceiros, perde o contato físico, mas não deixa de ser o proprietário. Por outro lado, os sujeitos que estão em contato físico com o objeto têm propriedade direta.
A propriedade direta e a propriedade indireta coexistem harmoniosamente e não entram em conflito uma com a outra, porque o proprietário direto tem a propriedade efetiva e o proprietário indireto é atribuído o direito de possuir. Com esta classificação, possuidores diretos podem mover a liminar perante o possuidor indireto, tanto este pode impetrar liminar contra aquele, e ambos podem impetrar liminar perante terceiro.
O intuito de dividir a posse em direta e indireta é elucidar em relação às pessoas, a extensão da garantia possessória e suas consequências jurídicas. Uma vez que coexistem e não entram em conflito, é lícito aos titulares defendê-la.
Insta salientar que pode haver a posse justa e injusta, considerando a existência ou não de vício, da mesma maneira pode ocorrer o fenômeno possessório de boa-fé e má-fé, de acordo com o conhecimento ou não do possuidor sobre algum vício.
O Código Civil em seu artigo 1.200 define a posse justa como aquela em que não for violenta, clandestina ou precária. Ou seja, posse justa é aquela obtida de maneira lícita. Entende-se que é injusta a posse decorrida de um desses três vícios:
Sendo violenta a posse que é realizada através de constrangimento físico ou moral praticado contra o possuidor ou quem possui em nome dele.
A posse clandestina refere-se a "àquela obtida ou mantida sem o conhecimento público, às escondidas, por meios ardis e sem o emprego de violência” (GOMES, 2009, p. 10). A posse clandestina caracteriza-se bastando que o possuidor esbulhado não tenha ciência desde o início da posse, pois caso tenha sido obtida com publicidade e posteriormente ocultada, não configura em posse clandestina.
Precária é a posse obtida por abuso de confiança, no qual aquele que era comprometido em devolver certo bem, recusa-se a realizar tal bem, ao legítimo proprietário. Na situação desse vício, não cabe a recuperação uma vez que a precariedade jamais cessa, portanto sempre será viciosa.
Não obstante, a posse injusta pode tornar justa se o possuidor que adquiriu o bem pela violência ou clandestinidade vier a comprá-lo ou herdá-lo do esbulhado.
Posse Ad Interdictae Posse Ad Usocapionem; Posse nova e posse velha
No entanto, a posse ainda se qualifica como posse ad usucapionem, ad interdicta posse de boa-fé e má-fé, bem como, posse nova e posse velha. Quanto à posse de boa fé, pode-se dizer que o possuidor está convencido de que a propriedade realmente pertence ou tem justo título. Tendo se convencido de que a coisa lhe pertence, o possuidor, por conseguinte, ignora o vício impeditivo da aquisição do bem. Ao contrário, se o sujeito tem consciência da existência do vício que impossibilita a sua aquisição, e, não satisfeito, a adquire, torna-se possuidor de má-fé. Em síntese, “a aquisição deve ter causa legítima, mesmo aparente, admitindo-se, porém, erro escusável” (GOMES, 2004, p. 54). Contudo, a boa-fé somente acaba a partir do momento em que se instala o litígio em face do possuidor, que o torna ciente dos vícios da posse ou da disputa da coisa.
Portanto, a posse de má-fé é aquela em que o possuidor está ciente que seu fenômeno possessório sobre a coisa é ilegítimo, em decorrência do vício ou obstrução à aquisição, mas ainda assim mantém a posse. A posse justa e a posse de boa-fé não devem ser confundidas. Um possuidor de boa-fé pode ter posse injusta caso tenha adquirido de quem obteve de forma violenta, clandestina ou precária, ignorando o vício. O contrário também, ou seja, um sujeito pode ter posse de má-fé sem ter sido adquirido pela violência, pela clandestinidade ou precariedade.
Em contrapartida, os efeitos da posse podem ser classificados em ad usucapionem e ad interdicta, posto que a primeira é aquela em que possuidor poderá adquirir a propriedade por meio de usucapião, desde que observados os requisitos dispostos em lei.
Dessa forma, é notável que qualquer posse possui algum tipo de proteção, apesar de sua qualidade. Conforme abordado, mesmo a posse injusta terá um impacto normal sobre terceiros. Nesse sentido, além da posse injusta, também a de má-fé se insere na chamada posse ad interdicta, que é uma ação que pode ser utilizada para opor um terceiro por dos interditos possessórios, ou seja, uma ação que visa tutelar a posse. A posse ad usucapionem é muito importante, tendo em vista que a partir de seu efeito pode gerar a aquisição da propriedade.
Diferenciar a posse nova da posse velha é imprescindível, visto que é necessário entender ambas de maneira correta para o ajuizamento da Ação de Reintegração de posse. A diferença entre os conceitos têm relação com tempo da posse, para que se possa analisar o caso concreto em si e quando houve os vícios.
1.3 Efeitos da posse e sua proteção
1.3.1 Usucapião
A usucapião refere-se ao modo de aquisição de propriedade de bens móveis ou imóveis, através do exercício da posse pelos prazos e critérios estabelecidos no código civil de 2002, nos artigos 1.238 a 1.244.
Os requisitos para a usucapião de forma geral são: coisa hábil (res habilis), posse (possessio) e decurso do tempo (tempus), havendo possibilidades diferentes de modalidades de usucapião com especificidades próprias, além dos requisitos citados.
A possibilidade de que a posse continuada gerar a propriedade, justifica-se pelo sentido social e axiológico das coisas. Favorece aquele que garante ao bem, sua função social, em detrimento daquele que apesar de proprietário, deixa escoar o tempo, sem dele utilizar-se.
Isso se deve ao fato de que o possuidor em debate, garante à propriedade função social, contribuindo assim com a coletividade, gerando contribuições, tributárias, econômicas, garantia de direitos…
Nesse sentido, na obra “Curso Didático de Direito Civil” Elpídio Donizetti e Felipe Quintella, versam:
“A palavra função nos remete à causa final, ou o “para que” da propriedade. A função social da propriedade, genericamente, consiste na manutenção do bem-estar social, na dinâmica dos bens e na circulação de riquezas. Em outras palavras, a propriedade deve servir para que a sociedade se mantenha saudável, para que as pessoas tenham acesso aos bens de que necessitam e para que a economia seja impulsionada, gerando emprego e renda. Em termos específicos, será necessário examinar cada bem, para então descobrir qual é sua função social.”(DONIZETTI, Elpídio, QUINTELLA, Felipe, 2013, p.734)
Dessa forma, o instituto da usucapião, age de forma a favorecer o possuidor do bem, em defasagem do proprietário, por garantir à propriedade função social, dando melhor utilização ao bem.
1.3.2. Modalidades de usucapião
A usucapião de bens imóveis divide-se entre três espécies, como extraordinária, ordinária e a especial, também chamada de constitucional, dividindo-se essa última em rural (pro labore) e urbana (pró moradia ou pro misero e familiar).
Nesse sentido, o referido estudo terá enfoque na modalidade da usucapião na modalidade extraordinária e ordinária, para que posteriormente possamos chegar a modalidade de Usucapião Hereditária, objeto deste artigo.
A usucapião extraordinária, como forma de aquisição originária de propriedade, não é a mais comum, por isso chamada de extraordinária. Prevista no art. 1.238 do código civil, possui como requisitos a posse de quinze anos, que pode ser reduzida caso o possuidor do imóvel tenha estabelecido no local a sua moradia habitual ou esteja realizando no local obras de caráter produtivo que supram melhor a função social do local. Ainda, deve possuir o ânimo de dono, de forma contínua, mansa e pacífica.
Ainda, cumpre salientar que o usucapiente não necessita de justo título nem de boa-fé, pois não se tratam de requisitos exigidos. O título, se existir, será apenas reforço de prova, e nada mais. No entanto, é importante enfatizar que a permissão legal que possibilita a ausência de boa-fé para prescrição aquisitiva ainda exige que o bem seja coisa sem dono ou abandonada.
Por tal motivo, a modalidade é meio viável para proposição da ação de prescrição aquisitiva sobre o acervo hereditário.
Outro aspecto que merece atenção se dá pelos meios de obtenção e exercício dessa posse conforme já explicado anteriormente. Contudo a usucapião não se representa um ataque ao direito de propriedade, mas um tributo à posse, pois só é possível a usucapião através da exigibilidade do possuidor posse por longo período, exercendo-se esse direito contra quem embora fosse dono e possuísse o título de propriedade, abandonou o imóvel.
Diferentemente da usucapião extraordinária, a usucapião ordinária depende de justo título e boa-fé, com prazo igual ou superior há dez anos, e em caso de moradia ou sustento, cinco anos. Tal redução para cinco anos, ocorre quando o possuidor tiver adquirido o imóvel onerosamente com registro cancelado posteriormente e houver realizado investimentos de interesse social, conforme anteriormente preceituado.
Dispõe, com efeito, o art. 1.242 do Código Civil:
“Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”. (BRASIL, online, 2002)
Preceitua o art. 2.029 das “Disposições Transitórias” que:
“Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916”. (BRASIL, online, 2002)
Portanto, tem-se como a usucapião extraordinária como embasamento jurídico, baseada no fator da posse, para obtenção do domínio do bem.
2. DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE NO DIREITO POSSESSÓRIO
2.1 Da sucessão como forma derivada de aquisição da propriedade
No que tange a sucessão como forma derivada da aquisição da propriedade, sabemos que trata-se de um instituto que tem seu início a partir da morte de um indivíduo que tenha constituído ordem sucessória, ou seja que tenha deixados bens que podem ser transferidos a outrem – herdeiros - em razão do falecimento do autor da ordem sucessória, por isso sucessão causa mortis. (VENOSA, 2017, p.697)
Esta é a forma de aquisição da propriedade quando aberta a sucessão transmitem-se o domínio e a posse dos bens de herança para os herdeiros, tornando-os assim co-proprietários de um mesmo bem até que seja realizada a partilha entre eles. (ITO, 2018, online)
Os herdeiros se dividem entre legítimos e testamentários. Os legítimos são aqueles previstos por lei, seguindo a chamada ordem de vocação hereditária, conforme artigo 1.829, do Código Civil. Entre os herdeiros legítimos, podem existir os herdeiros necessários, que obrigatoriamente herdarão pelo menos a metade do patrimônio do de cujus. A outra metade da herança incumbirá aos herdeiros testamentários – se houver – conforme artigo 1.857 e seguintes, do Código Civil, os quais são elencados através da vontade do de cujus.
Ressalte-se que o herdeiro fica com a propriedade da herança, independente da transcrição, ou seja, desde o início da sucessão. No entanto, é importante ressaltar que o formal de partilha exige o registro para disponibilizar o imóvel. Portanto, o registro formal de partilha manterá a continuidade do registro do imóvel e tornará regular a cadeia sucessória.
Contudo, pode-se concluir que existem muitas formas de aquisição da propriedade, inclusive por meio sucessório, onde os herdeiros possuem parte da mesma propriedade, sendo assim faz-se necessário que haja a partilha para que estes recebam o quinhão pertencente ao final da sucessão.
2.2 Relação entre usucapião e instituto sucessório
Conforme já abordado anteriormente, usucapião é o modo de aquisição de propriedade de bens móveis ou imóveis, através do exercício da posse pelos requisitos estabelecidos em lei. Sabemos que não há proibição propriamente dita de que o herdeiro pleiteasse a aquisição do acervo hereditário mediante a ação de usucapião. Estando vedado apenas usucapir imóveis públicos, não incluindo imóveis pertinentes a herdeiros, percebendo-se assim uma lacuna acerca da ação de usucapião ser pleiteada por herdeiro.
Dessa forma, o acervo hereditário pode ser objeto de ação de usucapião, uma vez que o direito à herança vem do direito de propriedade, podendo ser usucapido. Embora o direito à herança ser assegurado no inciso XXX do artigo 5º da Constituição da República de 1988, a garantia constitucional não é absoluta, uma vez que a herança não se trata da inércia não decadencial dos herdeiros, sendo possível ser usucapido da mesma forma qualquer outra propriedade particular. Existe uma limitação expressa acerca do direito de herança no próprio Texto Constitucional em seu inciso XLV do artigo 5º que dispõe que a obrigação de reparação dos danos e o decreto da perda de bens podem ser expandida aos herdeiros e oponíveis a eles, limitada ao valor dos bens transferidos, o que reforça a teoria de que o direito à herança não é uma garantia intocável. Portanto o direito do herdeiro sobre seu quinhão hereditário também não é absoluto, podendo ser usucapido por co-herdeiro que exerce a posse sobre a totalidade da herança, posto que não há vedação dos imóveis deixados pelo falecido para serem usucapidos.
O Superior Tribunal de Justiça recentemente, após o tema desse artigo ser discutido, vem admitindo o instituto da usucapião entre os condôminos, concedendo ao condômino a legitimidade para usucapir, em nome próprio, imóvel deixado pelo “de cujos”. A tese é que ele próprio exerça a posse no imóvel, assim como a posse exclusiva como efetivo animus domini pelo prazo previsto em lei, sem oposição dos demais proprietários/herdeiros.
3. DO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça julgou o caso em que a recorrente teria ajuizado uma ação de usucapião sobre imóvel que fazia parte do acervo hereditário. O principal argumento do recurso especial era que, apesar da propriedade do imóvel ser transmitida aos herdeiros após o falecimento da de cujus, deveria ser reconhecida a propriedade pertencente somente à recorrente, pois essa teria adquirido esse direito através do instituto da usucapião.
O juiz de primeira instância deste caso entendeu que a ação deveria ser extinta sem resolução do mérito, uma vez que o herdeiro não possuía o direito de pleitear usucapião sobre o imóvel do acervo. O argumento utilizado foi que “havendo herdeiros a serem contemplados numa mesma herança, não é dado a um deles utilizar-se da usucapião, pois a herança é uma universalidade de coisas, achando-se em comum os bens do acervo hereditário, até a ultimação da partilha, onde teremos o condomínio de direito”
A recorrente apelou dessa decisão, mas também não obteve êxito em segunda instância, tendo o colegiado negado provimento à apelação interposta sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.
Sendo este o caso, a recorrente decidiu apelar ao STJ em face de recurso especial. O Recurso Especial n°1.631.859 - SP foi julgado em 2016 tendo como relatora a ministra Nancy Andrighi e este foi favorável à recorrente. Foi sustentado que haveria ocorrido o dissídio jurisprudencial uma vez que não foi dada à recorrente a oportunidade de provar ter o direito à usucapião e foi evidenciado que a justiça não pode “afastar o animus domini exercido unicamente por um dos condôminos, sem antes examinar detidamente os fatos ocorridos, bem como as provas e peculiaridades do caso concreto”.
O objetivo do recurso especial era o de determinar a possibilidade de obtenção de bem imóvel objeto de herança através do instituto da usucapião. O relatório diz que “cabe a esta Corte, tão somente, determinar se é possível à herdeira recorrente ajuizar a presente ação de usucapião, a fim de ver reconhecida, em seu favor, propriedade de imóvel objeto de herança”.
À luz do direito sucessório, a partir da morte do progenitor o imóvel será transmitido aos seus herdeiros. O artigo 1.784 do Código Civil prevê que essa transmissão é imediata:
“Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.” (BRASIL, online, 2002)
De acordo com o entendimento do STJ a partir dessa transmissão é automaticamente instaurado um “condomínio pro indiviso” sobre o acervo hereditário, como previsto no artigo 1791 do Código Civil:
“Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.” (BRASIL, online, 2002)
Vale ressaltar sobre este caso que o próprio STJ, em outra oportunidade, julgou que o condomínio poderia usucapir em nome próprio, caso preenchidos os requisitos necessários para a usucapião.
AÇÃO DE USUCAPIÃO. HERDEIRA. POSSIBILIDADE. LEGITIMIDADE. AUSÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO PELO TRIBUNAL ACERCA DO CARÁTER PÚBLICO DO IMÓVEL OBJETO DE USUCAPIÃO QUE ENCONTRA-SE COM A CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. 1. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários. (STJ, REsp: 668.131/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª Turma, DJe 14/09/2010)
Além do entendimento anterior, o STJ elenca duas decisões anteriores acerca do assunto, em que entendem que é possível a usucapião do condomínio.
Relacionando a jurisprudência anterior com o presente caso, o tribunal entendeu que aquele que é condômino por direito pode sim ter a pretensão de exigir o imóvel do outro, caso atendidos os requisitos da usucapião extraordinária prevista no artigo 1238 do Código Civil. Assim redige a relatora:
“Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão – o outro herdeiro/condômino –, desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem”.(STJ, REsp 1.631.859/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3º turma, DJe 29/05/18)
Por fim, a decisão final do Superior Tribunal de Justiça conclui o caso da seguinte forma:
“Conclui-se, portanto, que a presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta, sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária”. (STJ, REsp 1.631.859/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3º turma, DJe 29/5/18)
4. CONCLUSÃO
Ante o exposto, pode-se concluir que a usucapião pleiteada por herdeiro sobre bens do acervo hereditário é plenamente possível, desde que observados os requisitos para a configuração extraordinária, previstos no artigo 1.238 do Código Civil e o requisito estabelecido pelo STJ, isto é, o exercício da posse exclusiva com animus domini pelo prazo de 15 anos, sendo necessária a realização de uma análise do caso concreto antes de chegar à conclusão sobre o início da contagem do prazo. O argumento de que o imóvel adquirido através da herança seja impossível de ser usucapido é questionável, tendo em vista que conforme abordado anteriormente não há proibição propriamente dita da usucapião sobre imóvel adquirido por herança, exceto para imóveis públicos qualquer outro imóvel pode ser usucapido desde preenchido os requisitos legais.
A usucapião serve somente para a pacificação sobre a titularidade da propriedade o imóvel, mas também é usada como instrumento para conceder função social à propriedade. Dessa forma, o herdeiro que confere função social ao acervo hereditário, enquanto os demais herdeiros ficaram inertes. Sendo recompensado com o título de propriedade sobre a totalidade do acervo deixado pelo de cujus.
Contudo, para que seja reconhecida a usucapião pleiteada por herdeiros sobre o imóvel objeto de herança é imprescindível comprovar a posse exclusiva do imóvel, com animus domini; o lapso temporal exigido pela legislação vigente e a função social ao imóvel.
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Artigo publicado em 26/11/2021 e republicado em 03/04/2024.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Una.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUNHA, Glenda Isabelle Souza da. Usucapião entre herdeiro sobre bens imóveis do acervo hereditário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2024, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57641/usucapio-entre-herdeiro-sobre-bens-imveis-do-acervo-hereditrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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