EDY CÉSAR DOS PASSOS JÚNIOR[1]
RESUMO: O presente trabalho de conclusão de curso tem como o cerne conflito ético e legal decorrente da recusa à terapêutica transfusional sanguínea pelos adeptos da religião “Testemunhas de Jeová”. Objetiva-se, a partir deste, demonstrar, tendo por fundamento a doutrina e a jurisprudência pátrias, utilizando-se da metodologia de pesquisa sociojurídica, a melhor forma de solução desse conflito, baseando-se na ponderação de valores, principalmente quando é percebido o risco de morte do paciente que se nega a receber o sangue pelo método transfusional. Pretende-se, ainda, comprovar a necessidade da atenção a estes casos, não só por parte dos médicos, mas principalmente pelo Estado e sociedade.
Palavras-Chave: Constituição, conflito de direitos, Testemunhas de Jeová, transfusão de sangue.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho de conclusao de curso é apresentado a Faculdade Serra do Carmo, como requisito parcial para conclusão do curso de graduação em Direito, e tem por finalidade discorrer sobre a colisão existente entre o direito de Liberdade e Vida, aplicado à questão relativa aos tratamentos transfusionais em pacientes que se recusam a recebê– lo por convicções religiosas, como é o caso das Testemunhas de Jeová.
De acordo com a lei penal, se o paciente necessitar urgentemente de sangue para que tenha sua vida resguardada, deverá o médico realizar o procedimento. Estes são aconselhados a buscarem um alvará judicial para obter autorização para que o procedimento seja realizado.
Percebe-se, assim, no Brasil, a visível importância conferida à vida como principal interesse da sociedade. O ordenamento pátrio, ao elencar o direito à vida entre os direitos fundamentais e ao colocá-lo no ápice da legislação penal, ratifica a carga valorativa atribuída a esse bem.
Há que se ressaltar que, no Brasil, é do costume médico intervir em caso de iminente risco de morte, com amparo precípuo no juramento hipocrático de promover sempre o bem. Diante desta dicotomia, liberdade de consciência e direito à vida, no caso das Testemunhas de Jeová faz-se necessário pensar, será que realmente deve-se abster da vida em função da religião. Ou submeter alguém a um tratamento que ofenda suas convicções e credos, destruindo, assim, o sentido de vida que determinada pessoa possui
A análise da referida temática dar-se-á sob os ângulos da Bioética e Biodireito, bem como das perspectivas fáticas e teóricas relativas à realidade apresentada por estudos dedicados ao tema. Tais direitos merecem atenção especial por estarem intimamente ligados à recusa ao tratamento médico com transfusão de sangue, expressamente manifestada com base em convicções religiosas.
Confrontar valores éticos e morais não é uma tarefa fácil, mais difícil ainda se tornam quando estes valores são direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Sabe-se que não há possibilidade de se apresentar aqui soluções para todas as problemáticas que cercam a recusa da transfusão de sangue dos adeptos da religião Testemunha de Jeová, nem tampouco deliberar-se sob a égide de julgamento. A polêmica suscitada neste trabalho é o levantamento das questões que permeiam este complexidade na esfera jurídica.
2 PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 PRINCÍPIOS BIOÉTICOS
Os princípios da bioética foram primeiramente discutidos pelo Congresso dos Estados Unidos, por uma Comissão Nacional que se encarrega de identificar os princípios éticos básicos que deveriam guiar a investigação em seres humanos pelas ciências do comportamento e pela biomedicina. Como trabalho resultante dessa Comissão Nacional, foi publicada uma pesquisa denominada Informe Belmont, contendo os três princípios abaixo, que seguem: Autonomia: respeito às pessoas por suas opiniões e escolhas, segundo valores e crenças pessoais; Beneficência: é a obrigação de não causar dano e de extremar os benefícios e minimizar os riscos; Justiça: uso da imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios, não podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra. (BAÚ, 2015, p. 211).
Logo após a publicação desse documento, os autores Tom L. Beuchamp e James F. Childress adicionaram em seu livro Principles of Biomedical Ethics, um quarto principio, o da não-maleficência, que é o ato de evitar o dano intencional ao indivíduo.
A partir desse momento, os quatro princípios passaram a nortear a relação médico- paciente no âmbito da bioética, formando as bases das considerações éticas do “processo de decisão” da conduta terapêutica para o paciente. Embora tais princípios não apresentem filosoficamente caráter absoluto, o fato é que foram rapidamente aceitos como “ferramentas” básicas na elaboração de discussões e decisões de conflitos emergentes na área da Bioética.
O Princípio da Beneficência é o que estabelece que se deva fazer o bem aos outros, independentemente de destes o desejarem ou não. Consiste no dever do médico de promover o bem ao seu paciente. Muitos autores propõem que o Princípio da Não-Maleficência seja um elemento do Princípio da Beneficência, pois, deixar de causar o mal intencional a uma pessoa seria fazer o bem a mesma. Neste sentido, várias propostas de tratamento podem ser avaliadas em sua potencialidade para prevenir ou remover sintomas ou sofrimentos angustiantes, promovendo, assim, o bem estar do enfermo (BULOS, 2018).
Os princípios bioéticos da beneficência e da não-maleficência correspondem às obrigações hipocráticas de atuar sempre tendo em vista o bem estar do paciente (primum, bonumfacere) e de evitar causar-lhe danos (primum, non nocere). O principio da beneficência constitui a essência do ser médico e expressa a obrigação que o profissional da medicina tem de ajudar aos pacientes, para além dos interesses destes, por meio da remoção e prevenção de riscos a saúde. Este princípio é de importância decisiva na pratica médica (DINZI, 2018).
Muitas vezes, o principio de não prejudicar é um pretexto, pois as falhas de omissão, por exemplo, são as mais difíceis de detectar e as mais fáceis de racionalizar e perdoar.
Por definição tem-se que Autonomia – (autos, eu; nomos, lei) é a constituição da vontade da pessoa de fazer leis para si mesmo, escolher, avaliar, dividir, sem restrições.
A autonomia do paciente é o principio que se associa à idéia de respeito pelo próximo. Celso Ribeiro Bastos (2018) a considera como uma extensão ao principio da equidade ou justiça. Ao respeitar o paciente em sua condição humana o médico poderá obter, com facilidade, o consentimento para que realize sua função que se encontra repleta de riscos entendendo os motivos de certas terapêuticas não serem aceitas e viáveis e, a partir daí, procurar alternativas para curá-lo ou amenizar o seu sofrimento.
Esse princípio depende da revelação cuidadosa da verdade sobre o diagnóstico e prognóstico, da troca de informações sobre o estado de saúde atual e real do paciente, sobre as opções de conduta, os planejamentos do tratamento, as implicações de sua decisão e as expectativas futuras. Há uma necessidade de uma relação humana verdadeira, recíproca e dinâmica entre o médico e seu paciente (BULOS, 2018).
Uma atitude paternalista que diz “eu sei o que é melhor pra você” é de grande importância, pois que consiste no oposto do Principio da autonomia. Aqueles que agem com paternalismo médico apresentam principalmente dois argumentos, abaixo explicitados. O primeiro refere-se à ética medica desde os tempos de Hipócrates. O juramento de Hipócrates reza que: “Tomarei a conduta médica que, de acordo com a minha habilidade e julgamento, considero benéfica ao paciente”. Nesse juramento não se faz menção à vontade do paciente, a necessidade de não enganá-lo, de consultá-lo sobre os seus desejos, de informá- lo sobre as prováveis conseqüências das condutas ou mostrar-lhe as alternativas de ação.
O segundo argumento paternalista diz respeito à incapacidade de o paciente tomar suas próprias decisões, porque “medicamente falando”, ele é ignorante e os seus conhecimentos são parciais. A Beneficência no contexto médico é o dever de agir no interesse do paciente.
2.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: VIDA E LIBERDADE
No que concerne ao direito à vida, a Constituição Federal assegura este como sendo o mais fundamental dentre aqueles erigidos em seu texto, haja vista sua importância sinequanon ao homem. O Estado deve priorizar não só este direito como, acima de tudo, mantê-lo digno.
Sem vida humana, não se pode falar em pessoa, ao passo que, em decorrência disso, não há direito. Assim, a vida é delineada por Fabriz (2013, p. 267) como, antes de ser um direito, pressuposto e fundamento maior de todos os demais direitos, configurando-se, no âmbito do direito constitucional brasileiro, como um princípio que deve ser observado e respeitado por todos, de modo que seus titulares são todas as pessoas que se encontram submetidas ao ordenamento jurídico brasileiro. Todos têm o direito à vida e o dever de respeitá-la.
No mesmo sentido, Marconi do Ò Catão (2014, p. 159) acredita estar, o direito à vida, inserido entre os direitos da personalidade de ordem física, ocupando posição de máxima importância como bem maior no âmbito jurídico, e estando todos os demais bens gravitando em torno de sua existência.
Para este autor, o direito à vida apresenta o aspecto da indisponibilidade. Por este motivo torna-se ineficaz qualquer declaração de vontade de seu titular que implique negação a este direito, haja vista que não se pode dispor da vida nem por si nem por intermédio de outrem, mesmo sob consentimento, porque a vida possui caráter supremo, sendo consagrada pela ordem jurídica vigente.
Maria Helena Diniz (2018), refere-se ao direito à vida como essencial ao ser humano, significando integridade existencial e constituindo objeto de direito personalíssimo, condicionando a este os demais direitos da personalidade.
As liberdades são apresentadas partindo-se da perspectiva da pessoa como ser em busca da manifestação de autonomia individual responsável pela liberdade de atuação de cada um e escolha dos meios aptos para realizar as suas potencialidades.
O Estado democrático tem a obrigação de assegurar que essas liberdades sejam resguardadas e estimuladas, inclusive por meio de medidas que assegurem a igualdade entre eles e solucione conflitos de pretensões que eventualmente venham a colidir em razão dessas liberdades. O direito fundamental à liberdade, em ampla acepção, engloba os direitos fundamentais a liberdades especificas, sendo uma delas o objeto de estudo da presente pesquisa, qual seja, a liberdade de crença e culto (DINIZ, 2018).
Sob esta ótica, a liberdade religiosa abarca também o direito de exercer seu credo religioso em qualquer lugar e sendo este lugar protegido pela Constituição, desde que não atrapalhe o mesmo direito de outrem, ou que tal conduta seja usada para acobertar práticas ilícitas. Sobre a liberdade de religião, Celso Ribeiro Bastos (2018, p.499) assim compreende:
Não haverá verdadeira liberdade de religião se não for reconhecido o direito de orientar-se livremente de acordo com as posições religiosas estabelecidas, ou seja, o direito à liberdade religiosa pressupõe a sua livre manifestação.
Assim sendo, a Constituição Federal, no artigo que trata das garantias constitucionais, prevê que ninguém será privado de seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo, se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir com prestação alternativa, fixada em lei, pois, a liberdade de consciência constitui núcleo do qual derivam as demais liberdades do pensamento, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;
(...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Assim, a liberdade religiosa deve ser estudada como um direito fundamental, previsto na Constituição Federal no rol dos direitos fundamentais, o que, por si só, já configura premissa que permite a todos a livre escolha do seu credo religioso, ou, até mesmo, não escolher nenhum.
3 TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: ASPECTOS JURÍDICOS ACERCA DA RECUSA DE TRANSFUSÃO DE SANGUE
No Brasil há vários adeptos da religião Testemunha de Jeová, que não aceitam transfusão de sangue em hipótese alguma, e esse número tem crescido a cada dia. Daí a relevância do tema aqui abordado e a necessidade de seu estudo.
Conforme a crença desse grupo religioso, a transfusão de sangue é proibida pela Bíblia. Em decorrência desta convicção surgem situações de impasse, em que o doente recusa o sangue e proíbe o tratamento transfusional, mesmo que a morte seja conseqüência inevitável de tal ato.
Nesse sentido citamos o Código de Ética Médica, que assim prescreve:
Art. 22. (É vedado ao médico) Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Art. 31. (É vedado ao médico) Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
O que fazer se um seguidor de determinada religião, como é o caso da Testemunha de Jeová, recusar uma transfusão de sangue, quando este é o único recurso para salvar-lhe a vida? Os médicos enfrentam um grande desafio quando têm de salvar uma vida em iminente perigo e de respeitar um sentimento religioso (BULOS, 2018).
Infelizmente nem sempre é possível tal conciliação. A legislação penal pátria, em seu artigo 135, admite como crime deixar de prestar assistência à pessoa em grave e iminente perigo de morte. Neste caso, o médico deve agir porque está amparado no exercício regular de seus direitos e no cumprimento de seu dever legal.
É o que determina a Resolução CFM nº 1.021, de 26 de setembro de 1980, que tratou especificamente sobre a questão da transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová. Tal dispositivo garante o respeito à autonomia do paciente até o limite do risco de vida; atingindo esse limite, deve o medico intervir, utilizando-se da Beneficência ou do seu dever de salvar a vida do paciente.
O Código de Ética Médica, instituído por meio da Resolução CFM nº 1.246/88, de 08 de janeiro de 1988, publicada no D.O.U de 26 de janeiro do mesmo ano, por sua vez, estabelece:
É vedado ao médico:
Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.
Art. 56: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.
Art. 57 - Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnósticos e tratamento a seu alcance em favor do paciente.
Como alternativa ao método transfusional, existem outros procedimentos que podem não envolver o armazenamento do sangue. No texto de Celso Ribeiro Bastos intitulado “Direito de recusa de pacientes submetidos a tratamento terapêutico às transfusões de sangue por razoes cientificas e convicções religiosas”, o autor descreve alguns desses procedimentos. Certos fluidos, por exemplo, são usados para manter o volume do sangue no corpo, evitando-se, por assim dizer, o choque hipovolêmico, ou seja, a perda maciça de sangue. Em alguns laboratórios de investigação estão sendo testados alguns fluidos que podem transportar oxigênio.
Todavia, nos artigos 7º e 11, do ECA normatiza, tal qual o fez a Constituição Federal, que toda criança e adolescente têm o direito à proteção integral à saúde e à vida.
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
(...)
Art. 11. É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
Neste caso, devem ser analisadas as regras jurídicas traçadas pela Lei Federal nº 8.069/90- Estatuto da Criança e dos Adolescentes (ECA). A referida Lei garantiu às crianças e adolescentes, como não poderia deixar de ser, o direito à liberdade de crença e religião.
4 DIREITO À VIDA VERSUS DIREITO À LIBERDADE NA QUESTÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE
4.1 Classificação das colisões de Direitos Fundamentais
Desenvolvendo este trabalho a partir do citado anteriormente, encontra-se a questão da colisão existente entre os direitos fundamentais abordados, esta colisão acontece pois os dois direitos previstos e protegidos na Constituição Federal (Liberdade e Vida) se contradizem, pois a esfera de proteção de um interfere diretamente no outro.
Gilmar Ferreira Mendes nomeia os tipos de colisão ao acrescentar ensinamentos da doutrina. Sobre o tema ele afirma:
A doutrina cogita de colisão de direitos em sentido estrito ou em sentido amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas àqueles conflitos entre direitos fundamentais. As colisões em sentido amplo envolvem os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade (MENDES, 2016, p 78).
Segundo Robert Alexy (2015), as colisões de sentido estrito ocorrem quando a concretização do direito fundamental de um titular repercute negativamente sobre direitos fundamentais de outros titulares. Nesse caso, os direitos fundamentais podem ser idênticos ou diversos e a colisão se dá exclusivamente entre direitos fundamentais. Por outro lado, nas colisões de direitos fundamentais em sentido amplo, apresentam-se colisões entre direitos fundamentais e qualquer outra norma ou princípio que regule bens coletivos.
O mesmo autor também afirma que, as colisões em sentido estrito de direitos fundamentais se concretizam de quatro formas. O primeiro, quando afetado um mesmo direito como direito de defesa; o segundo, quando afetado um mesmo direito, por um lado como direito de defesa e por outro como direito de proteção; o terceiro, quando afetado um mesmo direito, por um lado em sua concepção positiva e por outro em sua concepção negativa; e por fim, o quarto tipo, quando a colisão do mesmo direito apresenta, em um dos seus lados, um acréscimo de realidade fática.
Na colisão em sentido estrito entre direitos fundamentais diferentes é muito comum tratar-se de direitos de liberdade, em que se contrasta a liberdade de exercer o direito com o ofendido pelo exercício dessa liberdade. Contudo, esse tipo de colisão é possível entre direitos de qualquer tipo, especialmente entre os direitos de liberdade e igualdade (DINIZ, 2018).
As colisões de direitos fundamentais no sentido amplo denotam uma vertente diferente, em que o confronto se da entre o direito fundamental de um particular e bens coletivos, bens esses que, em muitos casos, não se apresentarão como contrários e concorrentes dos direitos individuais, mais sim uma forma de concretização de direitos; e entrarão em colisão com os direitos individuais daqueles que o ameaçam.
4.2 A ponderação como solução para a colisão entre os direitos fundamentais
A solução para a colisão entre direitos fundamentais constitui na harmonização entre estes e se necessário, na prevalência de um direito ou bem sobre outro. Para considerar-se, no entanto, que um direito tem um peso maior que outro é necessário que a análise de prevalência seja feita no caso concreto por meio de um juízo de ponderação, ou seja, apenas em face das circunstâncias de um caso concreto pode-se dizer que um direito prefere a outro.
A primeira prevê a declaração de pelo menos uma das normas em colisão como não-vinculativa; a segunda opta pela declaração de pelo menos uma dessas normas como não- aplicável, e a terceira consiste em livre ponderação a fim de encontrar uma exceção e uma das normas.
Assim como forma de solucionar esses conflitos, Barroso (2019) definiu a ponderação como uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas.
Conclui o mesmo autor “que o raciocínio ponderativo está sempre associado às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas” (BARROSO, 2019, p. 346)
De acordo com a lei da ponderação, essa deve se dar em três fases distintas, em que na primeira é estabelecida a intensidade da intervenção; na segunda, determina-se a importância das razões que justificam a intervenção; e somente na terceira fase, por fim, procede-se á ponderação propriamente dita (ALEXY, 2015, p.67-69).
Com isso, afim de, solucionar os conflitos existentes causados pela recusa às transfusões de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, deve-se utilizar a técnica da ponderação, pautado no principio da Proporcionalidade. Principio esse que é utilizado na colisão de direitos através da ponderação entre bens em conflito.
O principio da proporcionalidade pode ser melhor compreendido pela analise de s requisitos. A adequação é o primeiro elemento a ser considerado na observância do princípio da proporcionalidade, devendo-se analisar, no tocante à adequação, simplesmente se o meio utilizado alcança o resultado desejado, ou seja, se foi utilizado um meio eficaz, independente de ser ou não o melhor. Dessa forma o juízo de adequação trata de investigar apenas se a medida é apta, útil, idônea, apropriada para atingir o fim desejado, nada dizendo sobre qual medida deve prevalecer (DINIZ, 2018).
A necessidade, diferentemente da adequação, leva em consideração não apenas a eficácia, mas também a eficiência dos meios utilizados, ou seja, se estes são os mais adequados para se alcançar o resultado desejado.
Uma medida legislativa restritiva completamente inadequada quando se questiona a sua duração no tempo pode ser considerada apta em relação ao modo de restrição conducente ao resultado a ser obtido, motivo pelo qual, para evitar que isso ocorra, a aferição da necessidade de uma restrição a direito fundamental deve se dar tanto qualitativa como quantitativamente.
Nem sempre um juízo de adequação e necessidade será suficiente para determinar a justiça da medida restritiva adotada em uma determinada situação, principalmente devido ao fato de que desta medida pode resultar uma sobrecarga ao atingido que não se compadece com a idéia de justa medida. Dessa forma, complementando os princípios da adequação e da necessidade, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito é de suma importância na aferição se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim desejado (BARROS, 2018).
Praticando esses princípios acima, deve-se ressaltar que o prejuízo de ponderação deve sempre visar o sacrifício mínimo dos direitos contrapostos para solucionar a colisão sobre as decisões, aos médicos imposta, em relação à transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová. A fim de demonstrar a relevância jurídica do assunto em questão, faz-se necessária a transcrição de algumas decisões proferidas em sede de tribunais superiores pátrios.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 595000373. CÂMARA CÍVEL RELATOR.Des. SERGIO GISCHKOW PEREIRA. CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR ALTAS HOSPITALARES E AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTOS MÉDICOS-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital é demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art. 146, §3°, inc. I, do CP). Caso concreto em que não se verifica tal urgência. O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar pela sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a Carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la.
Do contrário, a intervenção estatal se faz necessária, até mesmo como medida de garantia da ordem pública. Neste sentido, sobretudo com fundamento nos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, colha-se decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
APELAÇÃO CÍVEL Nº. 20031020001556 RELATOR. Des. Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA. DIREITO A VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE, TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE INDEFERIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. O recurso de agravo deve ser improvido porquanto à denunciação da lide se presta para a possibilidade de ação regressiva e, no caso, o que se verifica é a responsabilidade solidária dos entes federais, em face da competência comum estabelecida no art. 23 da Constituição federal, nas ações de saúde. A legitimidade passiva da União é indiscutível diante do art. 196 da Carta Constitucional. O fato de a autora ter omitido que a necessidade da medicação se deu em face da recusa à transfusão de sangue, não afasta que esta seja a causa de pedir, principalmente se foi também o fundamento da defesa das partes requeridas. A prova produzida demonstrou que a medicação cujo fornecimento foi requerido não constitui o meio mais eficaz da proteção do direito à vida da requerida, menor hoje constando com dez anos de idade. Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. No caso concreto, a menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação pata decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue. Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida. A restrição à liberdade de crença religiosa encontra amparo no princípio da proporcionalidade, porquanto ela é adequada à preservar à saúde da autora: é necessária porque em face do risco de vida a transfusão de sangue torna-se exigível e, por fim ponderando-se entre vida e liberdade de crença, pesa mais o direito à vida, principalmente em se tratando não da vida de filha menor impúbere. Em conseqüência, somente se admite a prescrição de medicamentos alternativos enquanto não houver urgência ou real perigo de morte. Logo, tendo em vista o pedido formulado na inicial, limitado ao fornecimento de medicamentos, e o princípio da congruência, deve a ação ser julgada improcedente. Contudo, ressalva-se o ponto de vista ora exposto, no que tange ao direito à vida da menor.
A Constituição Federal garante, indubitavelmente, no capítulo das garantias constitucionais fundamentais, a liberdade de consciência, mas legislações específicas excluem esta garantia quando se deparam com situações de iminente risco de morte, e é com este amparo que os médicos decidem por seus pacientes. Tem-se, então, que os direitos fundamentais estão ligados uns aos outros, apesar de serem autônomos, não devendo, por esta razão, serem interpretados isoladamente, mas de forma conjunta, a fim de alcançar os objetivos previstos (BARROSO, 2019).
Além disso, o Conselho Federal de Medicina prevê e indica procedimentos para o médico que se deparar com este tipo de conflito. A regra impõe que o profissional da saúde analise o quadro clínico do paciente e conclua se uma transfusão sanguínea é de fato necessária ou não.
Se a resposta for negativa, ou seja, não existindo caráter emergencial, o médico deverá respeitar a vontade declarada pelo paciente e seus familiares, e se assim não o fizer, poderá ser penalizado de acordo com a legislação vigente pelo crime tipificado no artigo 146 do Código Penal Brasileiro (constrangimento ilegal). Nesses moldes, a transfusão determinada pelo médico, em situações em que não houver outra forma de salvar a vida do paciente, está igualmente amparada pelo disposto no artigo 146, §3º do Código Penal. Eventual violação da liberdade de consciência ou da liberdade religiosa cede ante a um bem jurídico superior, que é a vida, na inevitável relação de proporcionalidade entre os bens tutelados (BARROS, 2018).
Neste sentido, o Cardeal D. Eusébio Oscar Scheid, Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro, no artigo intitulado “O Dom da Vida”, assim considera:
A Deus pertence a ciência da vida, que Ele compartilha com o homem. O Livro de Eclesiástico introduz profundas considerações sobre este tema, que considero o maior elogio que os médicos e outros profissionais da saúde poderiam receber: “O Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas. Meu filho, se estiveres doente não te descuides de ti, mas ora ao Senhor, que te curará. Em seguida, dá lugar ao médico, pois ele foi criado por Deus; que ele não te deixe, pois sua arte te é necessária” (ECLO. 38, 6.9.12).
Há, pois, que se questionar até que ponto os adeptos desse posicionamento contrário à técnica transfusional simplesmente abrem mão de suas vidas e não mais agem para preservá- la. Reitere-se, neste contexto, que, como garantia fundamental, o direito à vida plena, justa e digna, é irrenunciável, não cabendo ao particular, sob a influência de dogmas religiosos, se abster da mesma (DINIZ, 2018).
A vida é santa em si e em sua finalidade. Somente Deus pode e tem o direito de dar a vida e tornar a tirá-la. O dever médico essencial reside no fato de aliviar o sofrimento das pessoas por intermédio de todas as técnicas que estiverem ao seu alcance e não tirar-lhes a vida, deixando de proceder à técnica salutar da transfusão sanguínea.
Sopesar valores jurídico-constitucionais, diante de tão conflituosas questões, é dever primordial do jurista, ao passo que, ausentes tais situações no mundo moderno e auto- aplicável a legislação ora vigente, não seria necessária, nem mesmo, a formação acadêmica do profissional de Direito.
Como foi possível observar diante dos dados apresentados na presente pesquisa, trata- se de temática árida, que propõe diversas controvérsias legais, científicas, religiosas e éticas. Quando um direito fundamental colide com outro, juridicamente designa-se esse fenômeno como colisão de direitos fundamentais. Ao Judiciário cabe analisar e decidir o caso concreto e estabelecer quais parâmetros deverão ser utilizados, para que se estabeleça um equilíbrio entre os dois direitos em conflito.
Usando de instrumentos processuais adequados, cabe ao magistrado a árdua tarefa de julgar o caso concreto, atuando de maneira considerada mais ou menos avançada ou conservadora, mais jamais como elemento de ruptura das instituições ou das liberdades. Não resta dúvida, diante do que aqui se analisou, de que o conflito mais recorrente diz respeito ao embate entre direito à vida e direito à liberdade. Como, hodiernamente, os dois são espécies integrantes do rol de direitos fundamentais, a dificuldade se estabelece justamente em delimitar as fronteiras entre um e outro.
Assim sendo, na tarefa de estabelecer as fronteiras entre os direitos acima identificados, as intervenções devem ser justificadas em conformidade com o critério da proporcionalidade, de forma que a essência de nenhum direito venha a ser maculada.
Portanto, já que inexiste um critério dogmático preliminar que informe qual direito deve prevalecer, até mesmo porque ambos são tutelados com o mesmo grau de importância, a despeito de a vida ser a causa primordial dos demais, deve-se tentar alcançar o critério da proporcionalidade a partir da articulação e do respeito aos Princípios da Unidade da Constituição, da Concordância Prática e da Proporcionalidade, respeitando, obviamente, o núcleo essencial dos direitos envolvidos.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado democrático de direito. Ri ode Janeiro: RDA, 2015.
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2018.
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[1] Bacharel em Direito pela Faculdade Serra do Carmo - FASEC. Advogado militante nas áreas de Direito Civil ,Trabalho e Direitos Humanos. Pós-graduado em Gestão Pública pela Faculdade Suldamerica. Mestre em Gestão de Politicas Públicas pela Universidade Federal do Tocantins-UFT. Professor de graduação e pós-graduação na área de Gestão Pública e Direito. Servidor público federal. Assessor do Comité de Ética e Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal do Tocantins. Membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos.
Bacharelando em Direito pela Faculdade Serra do Carmo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, DIEGO FONSECA. O direito à vida frente à liberdade do paciente na recusa de transfusão de sangue Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2021, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57771/o-direito-vida-frente-liberdade-do-paciente-na-recusa-de-transfuso-de-sangue. Acesso em: 23 dez 2024.
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