RESUMO: O objetivo geral da edição da Lei nº 14.010 de 10 de junho de 2020 foi de intervir nas controvérsias resultantes da excepcional situação de pandemia causada pela Covid-19, incorporando-se ao Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET), no qual se insere a. Com a previsão, em seu art. 8º, de suspensão temporária do direito de arrependimento em compras realizadas pelo sistema “delivery” de produtos essências, houve o contorno voluntário do legislador em relativizar a proteção do consumidor, o qual é uma garantia fundamental. Sendo assim, o presente trabalho objetiva analisar a relativização do direito de arrependimento e consequente aplicação de interpretação extensiva desse direito, com foco em compreender a importância da defesa do consumidor de acordo com a legislação e doutrina pátria, compreendendo que ignorar arbitrariamente direitos do consumidor implica em desrespeito a princípios constitucionais e ferimento ao Código de Defesa do Consumidor. Para isso, o estudo passará pela análise dos conceitos, previsões legais e doutrinárias, bem como de dados teóricos e fáticos que demonstram a importância da defesa do consumidor.
PALAVRAS-CHAVE: Relação de Consumo. Direito do consumidor. Direito de arrependimento. Pandemia. Covid-19. Relativização.
ANALYSIS OF THE APPLICATION OF THE RIGHT OF WITHDRAWAL IN ONLINE PURCHASES OF ESSENTIAL PRODUCTS DURING THE COVID-19 PANDEMIC
ABSTRACT: Law number 14.010 of June 10, 2020, was incorporated into the Emergency and Transitional Legal Regime of Legal Relationships under Private Law (RJET), which sought to determine measures that would mediate problems resulting from the exceptional pandemic situation caused by Covid-19. With the provision, in its article 8, of the temporary suspension of the right of withdrawal for purchases made by the delivery system of essential products, there was a voluntary outline of the legislator in relativizing consumer protection, which is a fundamental guarantee. Thus, this paper aims to analyze the relativization of the right of withdrawal and the consequent application of an extensive interpretation of this right, focusing on understanding the importance of consumer protection according to the legislation and doctrine, understanding that arbitrarily ignoring consumer rights implies in disrespect to constitutional principles and injury to the Code of Consumer Law. To this end, the study will go through the analysis of concepts, legal and doctrinal provisions, as well as theoretical and factual data that demonstrate the importance of consumer protection.
KEYWORDS: Consumer relation. Consumer rights. Right to repent. Pandemic. Covid-19. Relativism.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Do Consumidor; 2.1. O consumidor sob a Perspectiva Constitucional; 2.2. O Código de Defesa do Consumidor e seus Princípios; 2.3. Direitos Básicos do Consumidor e a Teoria da Qualidade; 2.4. O Direito de Arrependimento. 3. Da Pandemia de Covid-19; 3.1. A Pandemia e seus Reflexos na Economia Brasileira; 3.2. Da Lei nº 14.010/2020. 4. Da Relativização de Direito Básico e Garantia Fundamental do Consumidor. 5. Conclusão
1. INTRODUÇÃO
No início do ano de 2020, o mundo se viu assolado pela transmissão global do vírus SARS-CvO-2, que possuía alta volatilidade e fácil transmissão aérea, o que culminou em uma situação pandêmica e acarretou diversas mudanças socioeconômicas, como o distanciamento social, isolamento e suspensão ou restrição de atividades comerciais.
Em 10 de junho de 2020 foi editada a Lei nº 14.010/2020, que objetivava a defesa dos “vulneráveis” durante o período de pandemia, bem como a proposta de um mecanismo que presasse pela preservação das relações jurídicas. Considerando que houve uma suspensão do direito de arrependimento na referida lei, conclui-se que os ditos vulneráveis seriam as empresas afetadas pela crise econômica advinda do isolamento social e consequente fechamento das postar comerciais.
Em suma, no que tange a leis consideradas mais pomposas, houve a preocupação da RJET em estabelecer medidas legislativas de caráter transitório, suspendendo tais dispositivos durante a ocorrência da pandemia para evitar prejuízos financeiros mais profundos.
Ocorre que a restrição imposta sobre o direito de arrependimento, em seu art. 8º, implicou diretamente em relativização de direito adquirido através da própria Constituição Federal de 1988 e pelo Código de Defesa do Consumidor, causando conflito entre a necessidade econômica e o arbitrário desamparo do consumidor ante a seu direito, sendo a proteção deste um direito fundamental constitucional.
Diante disso, em decorrência deste cenário de pandemia, da relevância da proteção dos direitos do consumidor pela Constituição Federal e da relevância da lei que vigorou e transitou por ambas temáticas, o presente trabalho objetivou analisar a implementação da lei nº 14.010/2020, especificamente seu art. 8º, e como a sua interpretação extensiva do direito de arrependimento relativiza o direito protegido pelo Código de Defesa do consumidor e quais as consequências de tal ato, trazendo alternativa que poderia ter sido aplicada sem ferir à garantia fundamental do consumidor.
2. DO CONSUMIDOR
2.1. O consumidor sob a Perspectiva Constitucional
A relação jurídica de consumo é protagonizada pelo consumidor e pelo fornecedor, denominado elementos subjetivos, e envolve a comercialização de produtos e fornecimento de serviços, determinados como elementos objetivos. Diante disso, o Código de Defesa do Consumidor figura como o principal modo de assegurar que direitos e deveres dos envolvidos e do objeto.
Parte-se da premissa de que o consumidor, diante dos aspectos econômicos e sociais, é a parte hipossuficiente e vulnerável da relação de consumo, conforme elucida o próprio art. 4º, inciso I, do CDC, diante disso, visando assegurar o equilíbrio nessa relação jurídica, o texto legal prevê princípios e regras que constituem um sistema crucial de resguardo à figura do consumidor.
Nesse sentido também dispõe o art. 4º, inciso III, do CDC, que, ao prever “a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo”, abre uma maior possibilidade de ocorrência de relações de consumo pautadas na boa-fé e equilíbrio nas relações.
Logo, partindo da premissa de que o consumidor é a parte presumidamente vulnerável e hipossuficiente na relação de consumo, então, para que houvesse o mínimo de equilíbrio nesse tipo de demanda, a doutrina e a legislação se preocupam em abordar princípios e diretrizes que conduzam a um sistema robusto de proteção ao consumidor. Sobre essa particularidade Souza, Werner e Neves lecionam:
[...] o sistema de proteção do Consumidor está orientado por diversos feixes, todos eles radicados no art. 6o do CDC: (i) a garantia da qualidade dos produtos e serviços, tanto no que diz respeito a sua segurança quanto no que diz respeito a sua adequação à funcionalidade e quantidade esperadas; (ii) a garantia da transparência, seja no que tange à educação e informação sobre o consumo adequado e à higidez do processo de escolha do fornecimento, seja no que tange à informação sobre os próprios produtos e serviços e sobre o programa contratual do fornecimento; (iii) a proteção contra práticas abusivas (práticas comerciais desleais, cobranças abusivas, publicidade agressiva e predatória); e (iv) proteção contratual. (SOUZA; WERNER; NEVEZ, 2018, p. 154)
Além disso, a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XXXII, prevê a vulnerabilidade do consumidor sob uma perspectiva absoluta, de forma a dispor os direitos e garantias fundamentais:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
[...] (BRASIL, 1988)
Nesse contexto, estariam garantidos os direitos e proteção, juntamente com os deveres, do consumidor com aplicação de cláusula pétrea, conforme previsão do § 4º, inciso IV do artigo 60 da Constituição.
Nota-se que o texto constitucional é de eficácia limitada, ou seja, mesmo havendo aplicabilidade imediata da norma constitucional, faz-se necessária a intervenção de leis específicas, que limitem os particulares e vigorem sobre suas ações, logo o CDC é o instituto capaz para impor tais limites e regra as relações dessa natureza.
Outro aspecto relevante é o fato de que, de acordo com o que defende Lenza (2015, p.1194), ao passo que o Estado promova a proteção do consumidor, a mesma abordagem advém da ordem econômica, conforme prevê o art. 170 da CF/88, e essa abordagem eleva ainda mais a defesa do consumidor:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
V - defesa do consumidor;
[...]”
É a preocupação de pôr a defesa do consumidor com o princípio basilar do coletivo econômico e, diante dessa abordagem, o Direito do Consumidor se tornou excepcional no contexto do ordenamento brasileiro.
Portanto, as medidas estatais em torno da defesa do consumidor se tornam ainda mais eficazes quando há a abordagem da proteção do consumidor como um princípio norteador nessa relação jurídica, de forma que traga harmonia e equidade entre as partes protagonistas da relação jurídica de consumo.
2.2. O Código de Defesa do Consumidor e seus Princípios
Nesse contexto a figura do fornecedor de produtos, ou prestador de serviço, deverá estar de acordo com o que bem prevê o art. 3º, caput, da Lei nº 8.078/1990:
Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. (BRASIL, 1990)
Entende-se, então, que fornecedor é qualquer pessoa física ou jurídica que que desempenhe atividade mercantil ou civil e que habitualmente ofereça produtos ou serviços no mercado, senda a primeira de forma individual e a segunda em associação.
É necessário destacar que se encaixa como fornecedor o sujeito que desenvolve atividade profissional de fornecimento de produtos ou prestações de serviços mediante remuneração.
Em contrapartida, o sujeito consumidor é determinado como explicita o art. 2º, caput, da Lei nº 8.078/1990, como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990).
O consumidor é o destinatário final da relação e, em linhas gerais, é aquele que adquire um bem ou serviço para si ou para uso de sua família, não havendo abrangência ao comerciante que adquire materiais que contribuem com a produção de seus próprios produtos, por exemplo.
Além disso, não apenas a pessoa física pode ser um consumidor, como, também, aquelas previstas no art. 2º, parágrafo único, 17 e 29, da Lei 8.078/1998, quais sejam “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo na relação de consumo”; as vítimas de um evento, ainda que não tenham participado da relação jurídica, bem como aquelas pessoas determináveis ou não, expostas às práticas comerciais.
Por conseguinte, faz-se necessário determinar o elemento objetivo que figura na relação consumerista: o produto fornecido, ou o serviço prestado. Nesse sentido, conceitua o nos §§1º e 2º, do art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 3° [...]
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (BRASIL, 1990)
Nesse ínterim, existe a relevância vital em abordar os princípios basilares que regem a relação jurídica de consumo, tornando-a mais harmônica e equânime entre o consumidor e o fornecedor.
Em primeiro plano há o Princípio da Boa-fé, que é o instituto capaz e responsável pela busca por lealdade e cooperação entre os sujeitos da relação de consumo, com o intuito de evitar que haja onerosidade à atividade ou que ocorram expectativas excessivas da contraparte por meio de imposição de cláusulas abusivas. Esse princípio é disciplinado pelo art. 4º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 4º [...]
[...]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; [...] (BRASIL, 1990):
Por conseguinte, decorrente do princípio supracitado, há o Princípio da Proporcionalidade, o qual tem por direcionamento reforçar a garantia de que haja reciprocidade entre as partes e suas respectivas prestações contratuais, preceituando que o consumidor possui como direito básico a possibilidade de alterar cláusulas proporcionais ou excessivamente onerosas, conforme prevê o art. 6º, inciso V do CDC.
Então, há o Princípio da Transparência, que garante cristalinidade às partes contraentes na forma de cláusulas contratuais claras e específicas, sobre as quais não s pode haver dúvidas, conforme disciplina o art. 4°, caput, do CDC:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
[...] (BRASIL, 1990)
Portanto, é de suma importância que haja a aplicação destes princípios, juntamente com os demais que são responsáveis por reger a relação de consumo, para que haja o fornecimento de condições justas entre as partes, alicerçadas em uma relação dinâmica, límpida e harmônica.
2.3. Direitos Básicos do Consumidor e a Teoria da Qualidade
A partir da cristalina visão de que a relação de consumo equilibrada é de previsão constitucional e infraconstitucional, passa-se a tratar sobre os direitos basilares do consumidor.
Neste contexto, para se iniciar as considerações sobre os direitos básicos dos consumidores, é necessário partir dos princípios legais, como o da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida, saúde e segurança, da transparência, da vulnerabilidade, da liberdade de escolha, da intervenção do Estado, da boa-fé objetiva, do equilíbrio, da igualdade nas contratações e do dever de informação.
Destaca-se a relevância bastante apropriada do princípio da dignidade da pessoa humana, uma garantia fundamental advinda diretamente da Constituição Federal, a qual influencia diretamente na manutenção da premissa de respeito ao ser humano e suas necessidades, servindo de guia vital para os princípios da proteção à vida, à saúde e à segurança do consumidor.
Diante disto, entende-se que a proteção à vida, saúde e segurança são direitos que surgem diretamente ligados ao princípio da dignidade, sendo este uma base vital. Logo, com o intuito de assegurar que a qualidade de vida e a segurança do consumidor recebessem a devida atenção, o Código de Defesa do Consumidor, previu, em seu art. 6º, inciso I, “a proteção da vida”, “saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos”. Iniciando o rol de direitos básicos do consumidor.
Na mesma oportunidade, quanto ao princípio da harmonia, com previsão no artigo 4º, inciso III, do CDC, trata-se de uma segurança contratual presente na relação de consumo, baseada em princípios constitucionais, como a isonomia, a boa-fé, a solidariedade e os princípios gerais da atividade econômica.
E, dentre os princípios mais relevantes, está o princípio da boa-fé previsto no artigo 4º do CDC, possuindo a função precípua de tornar exequível a imperatividade constitucional quando se trata de ordem econômica, tornando a relação mais equalitária, equilibrando os interesses opostos de desenvolvimento econômico e proteção do consumidor em sua forma paternalista, por exemplo. Assim, a boa-fé é apta para servir para a defesa daquele que está em óbvia desvantagem econômica e, também, como parâmetro para a interpretação das garantias de ordem econômica.
Nesta senda, a partir de princípios norteados, notam-se os demais direitos basilares do consumidor como o ponto de partida para a construção de toda e qualquer relação de consumo para o que prega o art. 6º do CDC.
Neste sentido, é notória a preocupação com os princípios norteadores, observando os primórdios justificativos da criação da norma consumerista e abrangendo a intervenção do Estado no domínio econômico, com o intuito de proteger o consumidor quando este adquire produtos e contrata serviços para si.
Sendo assim, o inciso II do art. 6º traz a necessidade de haver transparência na relação de consumo, o que, em resumo, obriga ao fornecedor oferecer a oportunidade de que o consumidor conheça previamente os produtos e serviços oferecidos, conforme determinações contratuais.
Por conseguinte, como regra, o consumidor tem direito à igualdade nas contratações com fundamento no artigo 5º, caput, da CF/88, que trata especificamente do princípio da igualdade, abrangendo o dever de informar. Ambas as previsões encontram base no art. 6º, inciso III, do CDC, dispositivo que trará a obrigação do fornecedor informar, de todas as formas necessárias, as características, qualidades, riscos preços e todas as particularidades de seus serviços ou produtos, de maneira clara e precisa, não sendo admitido falhas ou omissões.
Indo além, e extremamente importante, o Código de Defesa do Consumidor veda, ainda, a publicidade enganosa ou abusiva no artigo 6º, inciso IV. Pondo, de forma autoexplicativa, o fator prejudicial desta desleal atitude do fornecedor ante o consumidor. Sendo assim, a legislação pátria é ativa no controle da publicidade enganosa e abusiva, exercendo sua autoridade por meio de normas específicas, tais quais os artigos 36 a 38 do mesmo diploma.
Ademais, a publicidade enganosa é vista como um ato de extrema aleivosia, e, portanto, possui punições próprias para o caso de sua ocorrência, tal qual se verifica pelos artigos 67 a 69 do CDC:
Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança:
Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa.
Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade:
Pena Detenção de um a seis meses ou multa. (BRASIL, 1990)
Nesta senda, os direitos que são primordiais e inerentes aos consumidores incluem a possibilidade de reforma de cláusulas que estabeleçam prestações desequilibradas, além do direito de requerer revisão de cláusulas contratuais que sejam excessivamente abusivas, onerosas ou restritivas; existem, também, o direito do consumidor à prevenção e reparação de danos materiais e morais, bem como a reparação integral de danos que lhes acometam.
Tais direitos, como é cristalina a observação, advêm diretamente dos princípios da boa-fé, do equilíbrio e da vulnerabilidade do consumidor, implicando na aplicação concreta do princípio constitucional da isonomia.
Importante salientar que, quando se trata do direito do consumidor de prevenção de direitos morais e materiais, existe a previsão legal de que o consumidor pode, e deve ir à juízo requerer medidas jurídicas para o ressarcimento dos danos, mas, também, requerer medidas cautelares, com o intuito de evitar os danos, como se nota pelos artigos 83 e 84 do CDC:
Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (BRASIL, 1990)
Acerca disto, é notória a importância de abordar a teria da qualidade e seus dois aspectos e como ela é capaz de ser tão influente na relação jurídica de consumo, posto que é serve como principal proteção do consumidor contra vícios de qualidade. Nota-se que a teoria da qualidade se divide em dois aspectos: o primeiro é a proteção da segurança econômica e patrimonial do consumidor, diz respeito à possibilidade de danos e incidentes ao patrimônio do consumidor, sobre o qual podem incidir vícios de qualidade por inadequação; e o segundo é a proteção físico-psíquica do consumidor, no existe a figura do fato do produto.
É de grande valorosidade ressaltar que ambos os aspectos da teoria da qualidade não podem ser dissociados um do outro de forma completa quando aplicados ao campo fático, cabendo o estudo da harmonia dos traços mais relevantes de cada aspecto da teoria da qualidade, não havendo como afirmar de forma absoluta que a existência de um aspecto implique, taxativamente, na inexistência do outro.
Diante disso, tem-se que os vícios de qualidade por inadequação são aqueles em que existe a “inaptidão ou inidoneidade do produto para a realização do fim a que se destina”. Esses vícios são esboçados e abordados de acordo com a perspectiva econômica e a responsabilidade dos fornecedores quanto a esse aspecto da teoria da qualidade é abordado nos artigos 18 a 25 do CDC.
Nesse ínterim, o outro aspecto da teoria apresenta os vícios de qualidade por insegurança, ou por fato do produto. Esses vícios são aqueles que são comumente denominados de “acidentes de consumo”, isto é, o vício do produto ultrapassa os limites da coisa em si, em uma abordagem econômica, causando danos físico ou psíquico ao consumidor. Esse aspecto é primorosamente abordado pelo CDC nos artigos 12 a 17.
Para mais, a teoria da qualidade traz esclarecimento acerca da carência de compreensão sobre as duas formas de vícios contra a incolumidade econômica do consumidor: os vícios de qualidade stricto sensu e os vícios de quantidade.
O art. 18 do CDC aborda os vícios de qualidade stricto sensu, conforme podemos notar:
Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. (BRASIL, 1990)
A partir da interpretação do dispositivo se entende que os vícios de qualidade stricto sensu são aqueles que tornarem os produtos indevidos ao consumo a que são reservados e ensejou a sua comercialização, além daqueles em que existem discrepâncias quando da análise do que se informa nas embalagens, rotulagens e afins, e os próprios conteúdos de fato dos produtos.
Por conseguinte, o art. 19 do CDC apresenta o vício por quantidade:
Art. 19. Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: [...]” (BRASIL, 1990)
O dispositivo supracitado traz a cristalina previsão de que se configura o vício de quantidade quando um produto, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, após a sua comercialização, apresente conteúdo líquido inferior ao que é informado na sua embalagem ou recipiente equivalente, ou mesmo ao que se informa em propaganda referente ao produto adquirido.
É fulcral que se torne clara a diferença entre o vício sobre o qual versa o Direito do Consumidor e o vício estudado no Direito Civil. Nota-se que são institutos que não devem ser confundidos, haja vista que acarretam consequências jurídicas divergentes entre si justamente por pertencerem a diplomas diversos.
Nesse sentido existe óbvia diferenciação entre os conceitos de vício e defeito, principalmente no que concerna à doutrina pátria. Logo, o vício é analisado como uma característica pertencente ao produto em si, intrínseco; em contrapartida, o defeito deve ser abordado como um problema extra, ou seja, algo extrínseco ao produto, o qual é responsável por causar dano ao consumidor, sendo denominado fato do produto (RIZZATO NUNES, 2011).
2.4. O Direito de Arrependimento
Diante desta temática, o CDC traz ao consumidor várias formas de proteção de sua vontade e inerente vulnerabilidade ante ao fornecedor e ao mercado de consumo.
Logo, um dos dispositivos que preveem essas proteções é o art. 49 do CDC, que contextualiza a possibilidade do consumidor se arrepender de uma compra realizada por determinados meios:
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. (BRASIL, 1990)
Ademais, o parágrafo único inerente ao dispositivo supra é explícito que, na ocorrência de o consumidor exercer o direito de arrependimento, “qualquer valor pago por qualquer título, durante o prazo de reflexão, será devolvido imediatamente, com justa correção monetária”.
Salienta-se que os 7 (sete) dias constantes no texto da lei, conferem a oportunidade ao consumidor de refletir sobre o contrato realizado, podendo desistir de compra realizada por impulso, seja para testar um produto ou por mera faculdade; além de permitir comparar produtos ou serviços, marcas e modelos e elucidar dúvidas de uso sobre um produto ou serviço. Além disso, ressalta-se que não há uma penalidade por recorrer ao direito de arrependimento por ser uma garantia consumerista legal.
Acerca do exposto, Flávio Tartuce comenta:
Tal direito de arrependimento, relativo ao prazo de reflexão de sete dias, constitui um direito potestativo colocado à disposição do consumidor, contrapondo-se a um estado de sujeição existente contra o fornecedor ou prestador. Como se trata do exercício de um direito legítimo, não há necessidade de qualquer justificativa, não surgindo da sua atuação regular qualquer direito de indenização por perdas e danos a favor da outra parte. Como decorrência lógica de tais constatações, não se pode falar também em incidência de multa pelo exercício, o que contraria a própria concepção do sistema de proteção ao consumidor. (TARTUCE, 2013, p. 275)
Neste diapasão, o direito de arrependimento possui justificativas de sua existência embasadas na necessidade de se obter informações acerca das compras à distância, ou seja, se tais dados são suficientes, insuficientes, ou mesmo inexistentes para que os consumidores possuam conhecimento dos produtos adquiridos diante da impossibilidade de averiguação física.
Logo, o previsto no artigo 49 do CDC se torna o centro de um debate sobre a necessidade de existência de um meio eficaz para que as partes estabeleçam um diálogo ao adquirirem um contrato de compra e venda, de tal forma que impeça e puna dados errôneos e não confiáveis. A eficiência desse dispositivo deveria ser equiparada aos previsto nos artigos 6º, 30 e 37 do CDC, que se preocupam em obstar a indução do consumidor ao erro quando do adquirimento de produtos e serviços comercializados através de propagandas falsas ou enganosas, através da proteção do direito de informação.
Os autores Claudia Lima Marques, Herman Benjamin e Bruno Miragem são bastante enfáticos nesse sentido, prevendo que “tal direito existe para proteger a declaração de vontade do consumidor, possibilitando que ele reflita com calma nas agressivas situações de vendas a domicílio”. (Marques; Benjamin; Miragem, 2010, p. 911).
Embora o fato de realizar compras pela internet fosse um advento ainda não fatual na época da edição do dispositivo, a jurisprudência[1] pátria já aborda a possibilidade desses tipos de aquisições serem abrangidas pelo art. 49 do CDC.
Nesse ínterim, o prazo sobre o qual versa esse dispositivo deve ser interpretado de acordo com o previsto no art. 132 do Código Civil:
Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento.
§ 1º Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil.
§ 2º Meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia.
§ 3º Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência.
§ 4º Os prazos fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto. (BRASIL, 2002)
Por fim, o direito de arrependimento independe da existência de vício ou defeito no produto comprado, ou no serviço contratado, para ser exercido em sua plenitude, bastando apenas que a aquisição tenha se dado de forma remota, isto é, fora do estabelecimento comercial.
Dessa forma, não há um impedimento para o consumidor no que concerne a apelar para o direito de arrependimento nesses parâmetro, haja vista que, por ser um direito devidamente legislado, o fornecedor deve, presumidamente, ter conhecimento sobre ele e estar preparado para absorver qualquer prejuízo proveniente desse ato, levando em consideração o risco pela atividade comercial.
3. DA PANDEMIA DE COVID-19
3.1. A Pandemia e seus Reflexos na Economia Brasileira
O vírus SARS-CvO-2, denominado Covid-19, surgiu em meados de dezembro de 2019, na província de Hubei, China e se alastrou por todo o globo em velocidade alarmante, criando diversas problemáticas em níveis mundiais no âmbito socioeconômico e salubre. Neste contexto, o Brasil se tornou apenas mais uma nação acometida pelas diversas consequências causadas pela Pandemia de Covid-19.
Tão severa foi a situação imposta pela Pandemia que até início de 2020 existiam poucas previsões que seriam otimistas sobre o prazo final do distanciamento social e uso obrigatório de máscaras e álcool em gel em locais públicos, impostos por conta da extrema volatilidade e transmissão do vírus.
Nessa fase da crise, os analistas especialistas projetavam que as recuperações econômicas poderiam ocorrer em torno de uma queda brusca na economia seguida por uma recuperação igualmente acentuada.
Contudo, com o decorrer dos meses e avanços e consequentes variações do vírus, a abordagens sobre recuperações econômicas começou a ser muito menos otimista, ocorrendo a conclusão de análise que previam recuperação lenta ou mesmo não haver recuperação por um longo período de tempo, existindo os estudos ainda mais pessimistas que ousavam prever uma queda profunda na economia, sem previsões de recuperação no cenário econômico mundial. (JUNIOR; RITA, 2020).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE apontou uma previsão de queda do PIB brasileiro no primeiro e segundo trimestres, sendo a previsão para o segundo fora com índice negativo de 9,6.
Essa queda bruta culminou em um índice recorde de desemprego e uma consequente crise econômica neste país. Já no terceiro trimestre, houve um crescimento grande, de 7,7%.
Por conseguinte, o PIB avançou 3,2% no quarto trimestre de 2020, entretanto isso significou uma queda total de 4,1%. Trata-se de um recuo magistral que suprimiu um crescimento do PIB que já acumulava alta de 4,6% entre o período de 2017 a 2019, segundo o Sistema de Contas Nacionais Trimestrais do IBGE.
Diante de todo esse cenário, traz-se a necessidade de abordar como os fornecedores precisaram se adaptar para abrangerem a brusca mudança de realidade de vendas antes, durante e depois pandemia.
Observando a mudança dos hábitos consumeristas é possível notar uma tendência em buscar meios de compra que possibilitem cada vez mais mobilidade, mesmo antes da pandemia. Embora a busca por novas modalidades de compra e venda traga limitações físicas e dificulte a geração de receita paras as empresas, traz um alavanque para o comércio digital, principalmente do fornecimento de alimentos, medicamentos e demais produtos considerados essenciais.
Tendo em vista, então, os acontecimentos e a evolução magistral da pandemia no Brasil, é possível verificar que o setor de comércios e serviços foi o mais prejudicado diante da sua, até então, limitação de venda atrelada ao tratamento físico.
Não obstante, as empresas que atuavam e atuam nesses ramos, seja se tratando de comércio de produtos ou prestação de serviços essenciais ou não-essenciais, viram-se na posição de mudança súbita de paradigmas, com o intuito de recuperar o caixa que começara a se perder no início da pandemia.
Logo, houve uma carência em acompanhar a mudança repentina dos hábitos de consumo, migrando e se adaptando à expansão do comércio eletrônico. De fato, esse tipo de comercialização digital se consolidou conforme houve o avanço do período de distanciamento social na pandemia.
As grandes redes varejistas e atacadistas acabaram por ter uma enorme vantagem na sua própria manutenção e de seus funcionários, haja vista a óbvia capacidade econômica suficiente para tomadas de medidas e aderências de novos meios de comercialização de mercadoria.
Ora, a capacidade de comprar e vender em larga escala é acompanhada pela capacidade de trabalhar com preços mais competitivos, com maior variedade de produtos, melhores localizações para filiais e maior capacidade de investimento em marketing. Todo esse aglomerado de benefícios culmina em maior margem de lucro e consequente crescimento em pleno período de pandemia.
Apenas para corroborar a notória concentração de mercado, nota-se que as pequenas e médias empresas foram, de fato, as mais afetadas por toda a problemática da pandemia, tendo em vista suas necessidades mais particulares, como pagamento de aluguéis por espaço, pouca capitalização, menor escala e abrangência, bem como menor grau de gestão profissional.
Indo além, diante das medidas de restrição durante a pandemia, os consumidores se habituaram a permanecer em suas residências, evitando permanecer ou mesmo se aproximar de aglomerações, decisão que desencadeou quedas nos faturamentos dos pequenos negócios, estando, estes, impossibilitados de arcar com uma crise dessa magnitude sem danos estrondosos, mesmo com ajuda financeira oferecida pelo governo.
É indubitável que as empresas, para que continuem em atividade diante do período de pandemia, necessitam se adaptar à nova era digital e se adequar às novas demandas dos consumidores. Diante disso, ambas as empresas, de pequeno, médio e grande porte, recorreram às entregas por meios de aplicativos, através da contribuição de trabalhadores autônomos.
3.2. Da Lei nº 14.010/2020
Diante de todas as mudanças que o período de pandemia acarretou, existiram nuances sociais e econômicas bastante particulares e inerentes ao período de distanciamento social. Tais nuances impactavam nas relações jurídicas de natureza possessórias, consumerista e afins.
Logo, com o intuito de intermediar essas relações, na data de 12 de junho de 2020 a Lei nº. 14.010 fora publicada, com o intuito de contribuir com o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) durante o hiato econômico causado pela pandemia do coronavírus.
Neste interim, o art. 8º da referida lei dispõe sobre as relações de consumo que é o assunto:
Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. (BRASIL, 2020)
Tratou-se de uma medida paliativa, tendo em vista o aumento repentino nas compras realizadas pela internet durante o período de pandemia por conta dos estabelecimentos fechados e o distanciamento social; a opção por compras através de sistema “delivery” foi a medida mais adotada pelos consumidores de alimentos e medicamentos.
Por conta de todas as todas as adversidades enfrentadas pelos fornecedores de alimentos e medicamentos durante a pandemia, a Lei nº. 14.010 buscou proporcionar mais segurança jurídica à classe através do art. 8º do RJET, o qual apresentou uma compreensão extensiva do art. 49 do CDC.
Ademais, nota-se que a Lei, diante da abrangência do direito de arrependimento, suspende tal direito no que tangeria apenas à produtos de consumo imediato, em se tratando apenas de produtos perecíveis e de medicamentos, não obstante, os produtos que não se encaixassem nessas categorias poderiam ser objetos da manifestação do direito de arrependimento do consumidor.
4. DA RELATIVIZAÇÃO DE DIREITO BÁSICO E GARANTIA FUNDAMENTAL DO CONSUMIDOR
Entende-se que, deveras, aqueles que são conhecidos e configurados como fornecedores enfrentam inúmeras dificuldades econômicas em virtude de todas as mudanças bruscas advindas do período de pandemia, e que medidas governamentais foram necessárias para que eles obtivessem impulso em suas vendas, em busca de se manter em funcionamento durante e após esse período, tal qual o Auxílio Emergencial.
Entretanto, nota-se facilmente que todo e qualquer direito do consumidor está inserto no CDC que tem previsão legal diretamente pela Constituição Federal, especialmente no art. 5º, inciso XXXII da Carta Magna, logo trata-se de um direito ou garantia fundamental.
Relativizar ou mesmo impor uma leitura mais abrangente de um direito que tem proteção constitucional implica em ignorar a natureza de tal direito e consequente abertura de precedentes para que mais direitos do consumidor possam ter mais leituras estendidas e modeladas para beneficiar os fornecedores, trazendo onerosidade aos consumidores.
A onerosidade proveniente da imposição de não poder mais desistir da compra de medicamentos, por exemplo, caberia totalmente ao consumidor, e mesmo que os fornecedores microempreendedores estivessem em situação de vulnerabilidade passageira, a lei prevê que o consumidor é a parte a ser defendida justamente por sua vulnerabilidade perene, conforme prevê o art. 4º em seu inciso I, do CDC:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; [...] (BRASIL, 1990)
Acerca disso, Carlos Maximiliano afirma:
Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica. […] As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de ser de toda a evolução jurídica; e o direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social. (MAXIMILIANO, 1997:157)
É notória a periculosidade existente no ato de suspensão de um direito do consumidor, mesmo que temporariamente e de forma relativa e limitada, porque existe a enorme possibilidade de futuras decisões que relativizem outros direitos dessa classe, direitos esse que são protegidos e regidos como fundamentais diante da CF. Há a ocorrência, até mesmo, de regressão a uma fase jurídica em que o consumidor não era tratado em harmonia ao fornecedor, sendo este privilegiado pelo direito por já ser privilegiado economicamente.
Portanto, há exposição de dados que demonstram ser indubitável a importância da defesa do consumidor perante a Carta Magna, não havendo qualquer hiato que possibilite ignorar uma proteção dada pela legislação superior deste ordenamento apenas para beneficiar a parte mais abastada da relação de consumo, principalmente por se tratar de abrir precedentes para outros diretos sejam tratados com desdém e postos de lado para que uma classe se beneficie com a falta de atenção aos direitos de outra classe.
5. CONCLUSÃO
A presente pesquisa tratou de estudar a natureza da relação de consumo, as partes que são envolvidas e as premissas e princípios que a rege. Especificamente, houve a explicação conceitual do direito de arrependimento, previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, e sua importância nas relações de consumo que envolvem a compra de produtos de forma remota, por possibilitar ao consumidor renunciar a compra, sendo essa renúncia exercida no prazo de 7 dias da assinatura do contrato ou da entrega do produto.
Ademais, houve a análise do art. 8º da lei 14.010 de 10 de junho de 2020 que estabeleceu que o direito de arrependimento fosse detido, ou melhor, relativizado, durante o período compreendido pela publicação da lei até a data de 30 de outubro de 2020 no que tangeria a entregas a domicílio de produtos perecíveis ou de consumo imediato, além de medicamentos.
É incontroverso que o objetivo do legislador foi proteger a parte que se tornaria vulnerável às consequências do exercício de arrependimento, o fornecedor, uma vez que não estaria apto a revender alimentos ou medicamentos que fossem eventualmente devolvidos.
Notório, ainda, que a releitura do art. 49 do CDC, através do art. 8º da lei nº 14.010 não trouxe malefícios duradouros aos consumidores justamente por se tratar de medida temporária e com prazo findo. Mas a preocupação por se iniciar um precedente que abra portas para futuras relativizações de direitos do consumidor é o âmago da questão levantada pelo presente estudo.
Essa preocupação se embasa no fato de que a proteção consumerista é de suma importância para que o consumidor fique em par de harmonia e equidade com o fornecedor, sendo este detentor de maiores capacidades técnicas, jurídicas e econômicas que a sua contraparte na relação jurídica de consumo.
Sendo assim, paralelamente, para que o direito de arrependimento, inerente ao consumidor não fosse atingido por uma suspensão, o legislador precisaria tomar providências para que nenhum direito previsto no CDC que vise a proteção do consumidor, cerne desse Código, fosse suspenso ou recebesse qualquer releitura para beneficiar o fornecedor.
Por fim, é definitivamente necessário alertar que a pandemia e suas consequências são muito recentes para que haja mudanças bruscas no CDC, seja para proteger mais o consumidor, presumivelmente vulnerável, ou o fornecedor, presumivelmente mais amparado tecnicamente e economicamente. Em via alternativa, seria preferível que se revisassem o direcionamento tomado pelo exercício do direito de arrependimento.
Isso implicaria em determinar que o direito de arrependimento não abrangesse as compras de alimentos prontos, especificamente refeições e lanches, tendo em vista a natureza desses produtos altamente perecíveis, havendo um investimento em conscientização do consumidor quanto às consequências do desperdício alimentício.
Outrossim, no caso de manutenção do direito de arrependimento, se exercido em compras de alimentos e medicamentos, uma alternativa viável seria a aplicação da política de “cashback”.
Em suma, o “cashback”, que em inglês significa “dinheiro de volta”, em tradução livre, funcionaria, no sistema de compras à domicílio por aplicativo, de forma a oportunizar ao consumidor que fez uma compra, obter parte de seu investimento de volta. A quantidade desses valores que retornaria aos consumidores poderia variar de 5% até em 100%, dependendo bastante do intuito e magnitude financeira dos fornecedores.
As empresas que intermediam o funcionamento do “cashback” seriam responsáveis pelo cadastramento dos consumidores no programa, facilitando que o consumidor, após confirmada sua compra, obtenha o dinheiro de volta através de transferência para sua conta corrente, ou em forma de criptomoeda, adquirindo a possibilidade de realizar compras futuras no mesmo estabelecimento.
Ambas as possibilidades seriam vantajosas para as partes que figuram na relação de consumo, haja vista ocorrer a captação de clientes para os fornecedores e consequente aumento nas vendas; a satisfação dos clientes em terem parte de seus investimentos de volta e o emprego de empresas terceiras que crescem através das comissões referentes às transações financeiras.
Aliado ao programa de “cashback”, existe a possibilidade de integrar programas sociais, para que as compras canceladas, em se tratando de alimentos e medicamentos, fossem direcionadas àqueles que mais necessitassem, incluindo até mesmo os próprios entregadores terceirizados das plataformas de compra, incluindo mais uma parte beneficiada no trâmite.
Dessa forma, os fornecedores aliados às plataformas não seriam inteiramente prejudicados pelos cancelamentos de pedidos, devido à quantidade de consumidores que seriam mais adeptos às compras nas plataformas, logo, na ocorrência de um cancelamento, o prejuízo seria mínimo.
Além disso, o consumidor ficaria satisfeito em receber seu valor compra de volta em seus pedidos, cancelados ou não, e o produto não seria desperdiçado, sendo encaminhado com segurança para ser útil em ações sociais que visassem a doação de alimentos e medicamentos à população mais desabastada.
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Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMORIM, Mayene Chaul. Análise da aplicação do direito de arrependimento nas compras online de produtos essenciais durante a pandemia de covid-19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2021, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57779/anlise-da-aplicao-do-direito-de-arrependimento-nas-compras-online-de-produtos-essenciais-durante-a-pandemia-de-covid-19. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Erick Labanca Garcia
Por: Erick Labanca Garcia
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