“A história não quer se repetir - o amanhã não quer ser outro nome do hoje –, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia.”
Eduardo Galeno
RESUMO: O objetivo do presente artigo é analisar a articulação entre democracia e direitos humanos na América Latina e a permanência de uma cultura autoritária e uma legalidade repressiva ainda presentes nas instituições, processos e normativas dos países latino-americanos.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Democracia; América Latina; Democracias Iliberais; Anocracias; Hiperpresidencialismo; Constitucionalismo Abusivo.
Sumário: 1. Introdução. 2. Democracia E Visão Contramajoritária Dos Direitos Humanos. 3. Democracias Iliberais, Anocracias, Hiperpresidencialismo E Constiucionalismo Abusivo 4. Processo Democrático Na América Latina: 4.1 Panorama Histórico Político Da América Latina; 4.2 Antecedentes Do Pensamento Latino-Americano Sobre Direitos Humanos. 5. Papel Da Internacionalização E Regionalização Dos Direitos Humanos Na América Latina. 6. Considerações Finais. 7. Referências.
INTRODUÇÃO
A história política demonstra que a tradição democrática sempre foi frágil na América Latina. Sua maior expressividade se deu nos idos da década de 80, quando sob a influência benéfica de um mundo que se avizinhava do fim da Guerra Fria, ruíam diversas ditaduras militares e civis nos países e inauguravam-se regimes constitucionais. Assim, não é novidade que o passado histórico-político da região escancara uma gama de desafios estruturais e emergentes na consolidação de um efetivo processo democrático na atualidade. E, para tanto, a democracia efetiva deve ser compreendida não apenas em seu viés formal, mas principalmente material. Nesse sentido, o estudo do conceito e da história dos direitos humanos é fundamental para reafirmar e solidificar a proteção desses direitos imanentes aos seres humanos, evitando a flexibilização da temática por meio de movimentos autoritários que buscam desvirtuar o vocabulário dos direitos humanos, ao lado da proteção de tais por meio da internacionalização e regionalização dos direitos humanos na América Latina.
2. DEMOCRACIA E VISÃO CONTRAMAJORITÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS
Bobbio define a democracia “(...) como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.” (BOBBIO, 1996, p. 17). E prossegue destacando como condição intrínseca à noção de democracia a consolidação de um feixe de direitos humanos, assim entendidos como instrumentos de poder e consciência aos chamados a decidir:
No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos "invioláveis" do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democrático. As normas constitucionais que atribuem estes direitos não são exatamente regras do jogo: são regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo. (BOBBIO, 1996, p. 19)
Há, por certo, uma inegável interdependência entre o processo democrático e o estado liberal. Tal conclusão decorre do fato de que certas liberdades são indispensáveis para o correto exercício do poder democrático, da mesma forma que o poder democrático é necessário para assegurar a existência e a persistência das liberdades fundamentais.
Os Estados democráticos são caracterizados pela obediência do princípio da maioria, com respeito aos direitos dos vulneráveis. A democracia como método está aberta a todos os possíveis conteúdos, mas é ao mesmo tempo muito exigente ao solicitar o respeito às instituições, exatamente porque neste respeito estão apoiadas todas as vantagens do método. Coaduna-se, assim, com o chamado “direito do povo a governos honestos”, isto é, direito de todas as pessoas que participam da comunidade política a ter suas instituições públicas administradas sob os atributos da honestidade, da boa-fé, da lisura, da impessoalidade, da moralidade e da legalidade (PLATES, 2011, p. 86-87). O combate à corrupção e a defesa dos direitos humanos são interesses harmônicos e convergentes constituindo parte integrante da agenda do Estado Democrático de Direito.
A importância do direito à liberdade de expressão é inegável e indiscutível, notadamente no contexto de análise de aproximação da democracia com os direitos humanos. O direito à liberdade de expressão, em seu caráter bivetorial, compreendendo a liberdade de se expressar e a liberdade de buscar e propagar ideias e informações, além de sedimentar a democracia em determinado governo, contribui para uma maior disseminação de ideias na arena pública. Confere, ainda, uma maior densidade ao princípio da igualdade, de modo a resguardar os grupos vulneráveis de eventual asfixia pelo grupo majoritário e concretizar o direito à diferença. Tanto é assim que a Corte Interamericana entende que o princípio em apreço representa a existência de uma pedra angular de uma sociedade democrática (Caso Granier e outros - Rádio Caracas de Televisão vs. Venezuela. Exceções Preliminares, mérito, reparações e custas, § 140). Nas palavras do eminente ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da ADPF 130 (rel. Min. Carlos Ayres Britto, Plenário, j. 30.04.2009), “a liberdade de imprensa é a irmã siamesa da democracia e esta é a menina dos olhos da Constituição Federal”.
Com efeito, a democracia efetiva deve ser compreendida não apenas em seu viés formal, mas principalmente material. Nesse sentido, Habermas, grande expoente sobre a democracia deliberativa, privilegia a discussão de debates de ideais em um espaço público.
Expoente do pensamento do ‘direito dúctil’, o italiano Gustavo Zagrebelsky, busca ressignificar a compatibilidade da democracia aos direitos humanos ao adaptar o direito ao pluralismo social hodierno.
Nas sociedades pluralistas atuais, marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado, não deve prevalecer um só valor ou um só princípio, ainda que majoritariamente aceitos, mas, sim, aqueles que assegurem a convivência dos mais variados projetos de vida existentes em tais sociedades. Revela-se, então, ‘dúctil’ o direito assim resultante, que, ao invés de amputar potencialidades significativas, busca acolher todas e dar-lhes concordância prática, a fim de que as diversidades possam conviver. Dessa forma, a sociedade democrática não deve massacrar os princípios e valores das minorias, mas, antes, contemplá-los nas normativas, a fim de que todos os projetos de vida possam conviver, sem qualquer predefinição constitucional.
A adoção por uma igualdade integral proposta por Nancy Fraser, Charles Taylor e Axel Honneth, no contexto do tema das “Políticas do Reconhecimento”, em superação à clássica concepção aristotélica de igualdade, dá propulsão à efetivação da democracia material, isso porque a célebre distinção entre igualdade na lei e igualdade perante a lei é insuficiente para resolver questões de determinados grupos vulneráveis. Nesse raciocínio, os autores retrocitados trabalham a questão da injustiça e da desigualdade como questões que envolvem basicamente três fronts de batalha, quais sejam, redistribuição, reconhecimento e representação. Os problemas de reconhecimento estariam atrelados a questões precipuamente culturais, uma vez que retratam o modo como determinados grupos vulneráveis são enxergados no contexto social. Já os problemas de distribuição dizem respeito à seara econômica, uma vez que decorrem de uma partilha não equitativa das riquezas e recursos na sociedade, o que pode vir a causar certa estigmatização nos integrantes dessas minorias. Nesse sentido, inclusive, há quem reconheça os problemas de reconhecimento também como uma questão correlata ao princípio da dignidade da pessoa humana. Especificamente sobre a teoria de justiça e igualdade elaborada por Nancy Fraser, não se desconhece que posteriormente a autora agregou a sua teoria de justiça mais um front na busca pela concretização da igualdade, qual seja: a representação dos grupos vulneráveis e estigmatizados nas instâncias de poder. Assim, a compreensão da igualdade deve permear a compreensão do direito à diferença, de tal modo que as pessoas e os grupos vulneráveis tenham o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.
Para Dworkin, os direitos fundamentais constituem normas protetivas para todos os membros da sociedade, atingindo-os de maneira igualitária. Assim, os direitos fundamentais trazem um interesse universalizante, ou seja, aqueles racionalmente aceitos por todos da sociedade, razão pela qual derrubam decisões que veiculem apenas benefícios parciais.
Apesar de seus defeitos, a democracia permite a esperança, pois pode ser melhorada. Habermas já afirmava que os direitos humanos têm sua origem na resistência, aos despotismos, às opressões e às humilhações. Os direitos humanos constituem assim essa utopia realista que convida à construção de sociedades mais inclusivas, democráticas e igualitárias. O pensamento habermasiano permite, em nível ético-político, sustentar o que em nível jurídico internacional vem sendo consagrado: o vínculo indissociável entre os direitos humanos e a democracia. Sem o reconhecimento e observância dos direitos humanos, em sua universalidade, indivisibilidade e interdependência, não há verdadeira democracia. (TRINDADE, 1997, p. 222).
Nesse contexto, Jürgen Habermas propôs um modelo democrático denominado de patriotismo constitucional que tem como característica o reconhecimento das diferenças entre os cidadãos, de modo a fomentar o respeito à diversidade, pluralismo e multiculturalidade. Nessa linha, é a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:
A adesão do cidadão aos princípios constitucionais básicos, ligados sobretudo à democracia e aos direitos fundamentais, tem sido chamada de “patriotismo constitucional”. O patriotismo constitucional é hoje concebido como modelo democrático para a integração das sociedades plurais contemporâneas, em substituição ao antigo nacionalismo e a outros vínculos identitários particulares. (SARMENTO; NETO, 2015, p. 41-42)
3. DEMOCRACIAS ILIBERAIS, ANOCRACIAS, HIPERPRESIDENCIALISMO E CONSTIUCIONALISMO ABUSIVO
O estudo do conceito e da história dos direitos humanos é fundamental para reafirmar e solidificar a proteção desses direitos imanentes aos seres humanos, evitando a flexibilização da temática por meio de movimentos autoritários que buscam desvirtuar o vocabulário dos direitos humanos. Nesse contexto, a insuficiência de tal estudo contribui para o crescimento de pautas conservadoras e antidemocráticas.
O fenômeno da transição democrática remonta aos anos 80, época em que países como o Brasil faziam a passagem de um governo militar para um regime político aberto. A última onda desse processo, que coincide com um novo ciclo de fracasso da democratização, ocorreu nos países que promoveram a Primavera Árabe nos idos do final do ano de 2010. O fim desse processo contínuo de ampliação de democracias no mundo foi denominado de “recessão democrática” pelo cientista político Larry Diamond.
O estado despótico é o tipo ideal de estado de quem se coloca do ponto de vista do poder; no extremo oposto encontra-se o estado democrático, que é o tipo ideal de estado de quem se coloca do ponto de vista do direito. Em tempos de burocratização, corporativismo desenfreado e assembleísmo, nada mais difícil que fazer respeitar as regras do jogo democrático.
Pode-se definir a democracia das maneiras as mais diversas, mas não existe definição que possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade ou transparência do poder. O ausente crescimento da educação para a cidadania, segundo a qual o cidadão investido do poder de eleger os próprios governantes acabaria por escolher os mais sábios, os mais honestos e os mais esclarecidos dentre os seus concidadãos, pode ser considerado como o efeito da ilusão derivada de uma concepção excessivamente benévola do homem como animal político: o homem persegue o próprio interesse tanto no mercado econômico como no político. Mas ninguém pensa hoje em confutar a democracia sustentando, como se vem fazendo há anos, que o voto é uma mercadoria que se cede ao melhor ofertante.
O nazifascismo desenvolvido no bojo de uma sociedade dotada de consagrados valores libertários e igualitários demonstra como o processo democrático deve ser constantemente revisitado. Tanto é assim que hodiernamente observa-se um fenômeno mundial de crescimento da extrema direita que, motivada por insatisfações da população, questiona princípios caros de cooperação, não discriminação, solidariedade e democracia, retomando discursos nacionalistas, de controle das fronteiras e de protecionismo econômico.
Não se desconhece a citação de Bobbio em sua primorosa obra “O futuro da democracia” para quem “a direita reacionária perene, que ressurge continuamente sob as mais diversas vestes mas com o mesmo rancor de sempre contra os "princípios imortais.” (BOBBIO, 1996, p. 14).
Observa-se, dessarte, um questionamento bastante incisivo da gramática dos direitos humanos por tais governos. As práticas autoritárias que emergem na América Latina vêm se irradiando nos últimos anos no sistema interamericano de direitos humanos. Alguns grupos vinculados a pautas conservadores têm tentado atuar na Corte Interamericana de Direitos Humanos como amicus curiae em temas especialmente sensíveis, tais como igualdade de gênero.
A corrupção, como forma de violação de direitos humanos, é um fenômeno complexo que afeta não só os direitos humanos em seu aspecto civil, político, econômico, social, cultural e ambiental, como também enfraquece as instituições democráticas e o desenvolvimento do Estado. A Resolução nº1/2018 da Comissão Americana de Direitos Humanos estabelece, no mesmo sentido, que a corrupção exacerba a desigualdade e mina o estado de direito, gerando um impacto desproporcional no gozo dos direitos humanos por parte de grupos minoritários historicamente discriminados.
No bojo de tais regimes de governo, cujo ambiente político se reveste de inegável caráter autoritário, recorre-se com frequência ao expediente punitivo, traduzido naquilo que o juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, García Ramírez, convencionou denominar de “tendência de governar com o Código Penal na mão” em seu voto no Caso Herrera Ulloa (PAIVA; HEEMAN, 2020, p. 128). O Direito Penal passa a ser utilizado como efeito resfriador (chilling effect) do direito à liberdade de expressão dos indivíduos.
Com efeito, o princípio da proibição do abuso do direito fundamental, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos e na Declaração Universal de Direitos Humanos, revela a importante lição de que os direitos fundamentais não podem ser utilizados para fins ilícitos, até porque existem justamente para promover o bem estar e a dignidade do ser humano.
4. PROCESSO DEMOCRÁTICO NA AMÉRICA LATINA
4.1 PANORAMA HISTÓRICO POLÍTICO DA AMÉRICA LATINA
A história política latino-americana é revestida de importantes momentos em que o debate sobre a articulação entre democracia e direitos humanos explicita o entendimento acerca da permanência de uma cultura autoritária e uma legalidade repressiva que ainda se manifesta em instituições, processos e normativas de muitos países. Pode-se afirmar que a tradição democrática sempre foi frágil na América Latina. Sua maior expressividade se deu nos idos da década de 80, quando sob a influência benéfica de um mundo que se avizinhava do fim da Guerra Fria, ruíam diversas ditaduras militares e civis nos países e inauguravam-se regimes constitucionais.
Assim, não é novidade que o passado histórico-político da região escancara uma gama de desafios estruturais e emergentes na consolidação de um efetivo processo democrático. A América Latina ostenta o maior grau de desigualdade do mundo, sendo 6 dos 20 países mais desiguais do mundo localizados na América Latina. Segundo Rachel Fajardo, a falta de ações que contemplem a diversidade dos Estados na América Latina cria um déficit de legitimidade da institucionalidade jurídica oficial. Esse é um tema que precisa ser enfrentado pelas democracias latino-americanas com muita cautela já que a maioria dos países é formada por um contingente populacional expressivo de indígenas e negros, além de outras minorias importantes, alijadas de seus direitos de reconhecimento.
A região não é somente a mais desigual do mundo como também é a mais violenta do mundo. A América Latina possui 8% da população mundial, contudo, carrega 38% dos homicídios no âmbito mundial. Destaca-se que, 8 dos 10 países com mais elevadas taxas de homicídio estão na região, assim como 42 das 50 cidades mais violentas.
Outro desafio estrutural aponta as debilidades do Estado de Direito. A pesquisa Latinobarômetro de 2018 sobre apoio da democracia revelou que na América Latina, 48% dos entrevistados consideram a democracia preferível a qualquer outra forma de governo. Há um constante declínio nesses últimos 7 anos do apoio às democracias, um aumento dos considerados indiferentes à política, que eram 16% em 2010 e passaram a ser 28% em 2018. Desse modo, aqueles que não acreditam mais na coletividade e aqueles que se refugiam no individualismo acabam fomentando o populismo. Com relação à confiabilidade nas instituições, indicadores dessa mesma pesquisa apontam que as igrejas e as forças armadas são as duas instituições mais confiáveis, contando, respectivamente, com 63 e 44%. Por outro lado, o Poder Legislativo e os partidos políticos, possuem 20 e 13%, nessa ordem. Outros indicadores como Rule of law e da Transparency International Corruption Perceptions Index, nos permitem perceber que os nossos países são sempre concentrados da metade para baixo, ou seja, tendo índices bastantes precários com relação à debilidade da institucionalidade democrática.
Não é de se estranhar, dessarte, a perpetuidade de um populismo autoritário na região, consubstanciada em uma agenda contemporânea de incremento da militarização. Por consequência, um fortalecimento do protagonismo dos grupos mais conservadores do tecido social contra direitos sexuais reprodutivos, por exemplo.
4.2 ANTECEDENTES DO PENSAMENTO LATINO-AMERICANO SOBRE DIREITOS HUMANOS
Ainda que esteja defendendo que a Carta da ONU e a Declaração Universal sejam marcos fundantes de um novo momento, eles dialogam com antecedentes anteriores. Antes mesmo da Conferência de São Francisco (onde foi discutida a Carta da ONU) já havia sido solicitado nesse âmbito regional um projeto de declaração de direitos humanos no Comitê Jurídico Interamericano em 1945.
Um outro elemento ainda mais forte para mostrar que na América Latina tinha uma produção teórica e jurídica sobre direitos humanos é o fato de que o projeto original que a Comissão mais se baseou foi um projeto elaborado por um chileno chamado Alejandro Alvarez.
A contribuição dos países latino-americanos na elaboração da Carta da ONU já demonstra um consciente jurídico de alinhamento regional dos direitos humanos, o que denota a força intelectual da região no tema. Destaque-se, assim, o artigo 8º da Declaração Universal de Direitos Humanos o qual prevê a efetivação do acesso à justiça, pauta eminentemente relacionada à colaboração latino-americana, ou ainda os dispositivos protetivos dos direitos econômicos e sociais. A argumentação, inclusive, da inclusão dos direitos econômico-sociais no bojo da Declaração pelo delegado chileno Hernán Santa Cruz esteve enraizada na necessidade em combater o movimento fascista. Nesse sentido, as lições de Celso Lafer:
Hernán Santa Cruz, situado politicamente à esquerda, empenhou-se em assegurar a presença, na Declaração, dos direitos econômicos e sociais, lado a lado com os direitos civis e políticos. Articulou, no processo negociador, com o apoio do lastro latino-americano, o ponto de vista dos países em desenvolvimento. (MAGNOLI, 2008, p. 310)
Cada vez mais nos anos que seguiram a Declaração Universal houve a emergência de governos autoritários e a difusão de práticas de violações de direitos humanos, genocídio, tortura, desaparecimento forçado e extermínio intencional de grande número de pessoas. Nada obstante, esse cenário não impediu a realização de inovações na área dos direitos humanos, de modo que se afere a coexistência entre movimentos despóticos e progressistas. Exemplo disso é a criação do sistema regional no marco das Américas. Em 1959, surge a CIDH encarregada de promover o respeito aos direitos humanos mesmo no momento de diversas violações sistemáticas e o movimento pioneiro de reivindicação de direitos que são as Mães da Praça de Maio (associação argentina de mães que tiveram seus filhos assassinados ou desaparecidos durante o território de Estado da ditatura militar). A cascata de justiça, termo cunhado pela Kathryn Sikkink, na qual ela identificou o momento através do qual começou a ser difundido que uma norma que indica indivíduos responsáveis pelas violações de direitos humanos precisa ser individualmente responsabilizada numa dimensão penal e não só a figura do Estado é outro exemplo do alinhamento progressista dos direitos humanos na América Latina.
5. PAPEL DA INTERNACIONALIZAÇÃO E REGIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA
O Direito Internacional dos Direitos Humanos busca sempre questionar nos Estados Democráticos as decisões das maiorias que gera um desconforto local, porque nem sempre tais decisões majoritárias respeitam esses precedentes internacionais. A proteção internacional dos Direitos Humanos é um importante instrumento, notadamente diante de sua dupla perspectiva, qual seja, perspectiva pré-violatória e pós-violatória.
Por sua vez, o Sistema Interamericana de Direitos Humanos presta uma extraordinária contribuição no fortalecimento da democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos na região mais desigual e mais violenta do mundo. A Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, nesse giro, são mecanismos essenciais aptos a possibilitar a unificação de entendimentos sobre matérias de direitos humanos no plano regional, permitindo auxiliar os Estados-Partes na condução de suas políticas públicas de forma consentânea com a jurisprudência internacional sobre o tema, conferindo assim uma paulatina pacificação e segurança jurídica globais. Em uma região de democracias fragilizadas e massivas violações de direitos, tais órgãos podem contribuir positivamente para moldar a conduta dos Estados, tendo, de fato, dado resposta a várias vítimas por meio do sistema de petições previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Além disso, têm fixado parâmetros que orientaram algumas reformas jurídicas e políticas importantes nos países da região.
Há, no entanto, algumas discussões sobre o funcionamento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH) que incluem a preocupação central da questão da efetividade do Sistema. Para muitos estudiosos, os recursos humanos e financeiros do SIDH são insuficientes e ineficazes para combater as violações de direitos perpetradas sistematicamente. Outros destacam a ausência de mecanismos formais ou de práticas consolidadas que assegurem a implementação pelo Estado-Parte acerca das decisões do SIDH.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, a internacionalização e regionalização dos Direitos Humanos demonstram que a história não quer se repetir. A história dos direitos humanos remonta à ideia de não progressividade linear. É importante enxergar as diferentes abordagens e perspectiva da história. Se há múltiplas forças, policêntrica a elaboração teórica e propositiva de direitos humanos, mesmo em contextos de emergências de grupos conservadores e autoritários podem coexistir outros pontos de elaboração normativa que podem representar avanço, inovação e proteção de direitos humanos. O movimento de elaboração de normativas de direitos humanos é de rupturas e continuidades. Existem múltiplos pontos e perspectivas que possibilitam um otimismo no futuro do resguardo dos direitos humanos na América Latina.
7. REFERÊNCIAS
BBC. Brasil. Estas são as 50 cidades mais violentas do mundo (e 17 estão no Brasil). Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43309946> Acesso em: 05 de agosto de 2021.
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
CASTRO, Marcus faro de (orgs) et alli. Sociedade Democrática no Final do Século XX. Brasília: Paralelo 15, 1997.
FAJARDO, Raquel Yrigoyen. Pautas de coordinación entre el derecho indígena y el derecho estatal. Guatemala: Fundación Myrna Mack, 1999.
Latinobarómetro. Informe Latinobarómetro 2018. Disponível em: <http://www.latinobarometro.org/lat.jsp> Acesso em: 16 de agosto de 2021.
MAGNOLI, Demétrio (org.). História da paz. São Paulo: Contexto, 2008, p. 310.
PAIVA, Caio. HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3ª ed. Belo Horizonte. CEI, 2020.
PLATES, José Rubens. Direito Fundamental ao governo honesto. Escola Superior do Ministério Público da União. Boletim Científico n. 36 – Edição Especial – 2011, p. 86-87.
SARMENTO, Daniel e NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional. Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Forum, 2015. pp. 41-42.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. "Relações entre Direitos Humanos e a Democracia: desenvolvimento no plano internacional no final do século XX. In: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; CASTRO, Marcus faro de (orgs) et alli. Sociedade Democrática no Final do Século XX. Brasília: Paralelo 15, 1997.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, derechos, justicia. Trad. de Marina Gascón. Madrid: Trotta, 3a ed., 1999. p. 13.
Pós Graduada em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos na Internet (CEI). Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016). Advogada na cidade de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVICHIOLI, Mirela. Anocracias, democracias ileberais e direitos humanos na América Latina: a história não quer se repetir Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 dez 2021, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57789/anocracias-democracias-ileberais-e-direitos-humanos-na-amrica-latina-a-histria-no-quer-se-repetir. Acesso em: 23 dez 2024.
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