CARLA TERESA MARTINS ROMAR
(orientadora).
RESUMO: O objetivo deste trabalho é tratar sobre os paradoxos constitucionais em relação aos direitos e garantias previstos na Constituição Federal que tratam sobre o trabalho. A metodologia utilizada será a análise da redação constitucional de proteção legal do trabalho e dos entendimentos filosóficos e doutrinários sobre o tema. A pesquisa se desenvolve em quatro pontos: primeiramente analisa-se as estruturas filosóficas do Direito e do Estado, com especial destaque sobre o seu poder. Em um segundo momento, abordam-se os direitos e garantias fundamentais trabalhistas e os seus paradoxos. Por fim, demonstra-se que a premissa constitucional é de uma promessa de construção de uma sociedade ainda ideal e que, diante da impossibilidade real de concessão do que se declara, o que se pode outorgar é a própria lei.
Da promessa como premissa, na razão constitucional dos direitos fundamentais trabalhistas - uma tentativa de superação dos paradoxos
Roma já preconizava em seu famoso adágio ubi societas, ibi ius, onde está a sociedade, está o Direito. A necessidade do Direito surge como forma de imposição de uma ordem e de um controle sobre os desejos humanos, que são ilimitados frente a escassez dos bens.
Francesco Carnelutti[1] nos ensina que os homens não podem viver no caos e que o estabelecimento de uma ordem é tão necessária como o ar. A paz é obtida por meio do pactum. O contrato objetiva a paz, na medida em que representa um caminhar junto.
A ordem e o contrato é estabelecida e regida pelo Direito, que se sobrepõe ao indivíduo com o emprego da força.
Um sistema jurídico caracterizado por uma intensa atividade regulatória estatal é fruto de uma sociedade em que a moral é insuficiente, o amor é uma aspiração e a liberdade e a solidariedade são delírios.
Infelizmente, a desconfiança é a regra de convivência nesse tipo de sociedade e a má-fé é presumida em todas as relações intersubjetivas, sejam elas privadas ou públicas. O outro não é compreendido como um ser autônomo, emancipado e dotado de racionalidade e boa-fé, mas como um opressor ou oprimido; nunca um igual.
Se em civilizações mais avançadas moralmente, o contrato constitui e é interpretado como um meio de pacificação; nas mais atrasadas, ele é representativo de um acordo de vontades entre exploradores e explorados, cujas assimetrias de poder, que emergiriam da própria natureza jurídica do negócio entabulado, são sobrepostas às vontades e à finalidade do contrato, para servir à revisão e, até mesmo, para a invalidação do pacto.
A má-fé é a regra e prescinde de prova; a boa-fé é a exceção e exige uma atividade probatória robusta e convincente pelo contraente.
A desconfiança, o caos e a guerra são os valores e os efeitos que orientam e traduzem esse tipo de sociedade, ainda que o sistema jurídico possa transparecer, ao leitor, uma evolução comunal dissociada da realidade.
Não é por outra razão que não são raros os casos de comportamentos próximos ao estado de natureza nessas sociedades, tal como retratado por Thomas Hobbes.
O grau de barbárie – e de carência - é maior quanto menor for a presença do Estado e do Direito, em especial pela ausência de políticas públicas efetivas e de agentes de coerção do Estado. A atuação do Estado será máxima ou mínima a depender do estágio de evolução do Direito e da sua efetiva aplicação na sociedade.
A presença efetiva do Estado e do Direito ainda é necessária, como garantia de que, naquela delimitação territorial, impera a ordem e, de certo modo, a segurança de todos os indivíduos, o que exige a restrição legal da liberdade individual.
Em que pese os Estados Democráticos de Direito sejam pródigos em declarar a liberdade como garantia individual fundamental, o único meio de garantir que sejam democráticos e sob o império da lei é pelo dirigismo estatal e pela forte restrição da liberdade.
Nesse sentido, é necessário descortinar o véu da ignorância cômoda e assumir que não somos cidadãos livres em sua plenitude, merecendo destaque a arguta sensibilidade de Étienne de La Boétie que já nos alertava por volta do ano de 1.563 ao sentenciar que[2]:
“É incrível ver como o povo, quando é submetido, cai de repente num esquecimento tão profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la. Serve tão bem e tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão.
É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força. Mas os que vêm depois servem sem relutância e fazem voluntariamente o que seus antepassados fizeram por imposição. Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos a não ser os que encontraram. Chegam finalmente a persuadir-se de que a condição de seu nascimento é a natural.”
O povo que se encontra sob o jugo absoluto e imperativo do Estado não consegue enxergar que não há liberdade, tamanha a cegueira causada pela servidão, que é voluntária.
Essa voluntariedade é justificável pelo comodismo de que as instituições estatais preservarão o comportamento subserviente por meio do reconhecimento jurídico dos direitos previstos em lei, quando acionadas em virtude de violações, choques ou insatisfações, ainda que isso possa implicar em uma renúncia a uma liberdade dada pela natureza.
A inexistência de autonomia na vontade individual é evidenciada pela exigência legal e imperativa da autorização do Estado, como pressuposto de existência e validade do contrato. Poucas são as áreas da atividade humana que não tenham sido regulamentadas pelo Direito ou que não possam, por um exercício exegético, se amoldar a qualquer uma das figuras jurídicas já existentes.
“Aplicar uma lei quer dizer confrontá-la com uma situação fática a fim de saber o que se pode e o que não se pode fazer”, vaticinou Francesco Carnelutti[3]. Essa atividade estatal de substituição da liberdade individual, infelizmente, não causa maiores temores na sociedade moderna.
A razão é muito simples: nascemos no Estado e é inconcebível a vida fora dele[4].
Paulo Bonavides foi muito preciso ao vaticinar que[5]:
“A minoria dos que impõem à maioria a sua vontade por persuasão, consentimento ou imposição material forma o governo que, tendo a prerrogativa exclusiva do emprego da força, exerce o poder estatal através de leis que obrigam, não porque sejam ‘boas, justas ou sábias’, mas simplesmente porque são leis, pautas de convivência, imperativos de conduta. Dispõe a autoridade governativa da capacidade unilateral de ditar à massa dos governados, se necessário pela compulsão, o cumprimento irresistível de suas ordens, preceitos e determinações de comportamento social.”
O poder estatal de impor com imperatividade, firmeza e força os comportamentos aceitáveis dentro dos limites territoriais da comunidade que lhe confere o poder de ação e coerção é exteriorizado por meio das normas, leis, Códigos, Consolidações, sentenças, enfim, pelo Direito.
“O Estado, isto é, a estabilidade da sociedade, é um produto e mesmo o produto do direito”[6]. Criador e criatura não apenas se confundem, mas dependem um do outro como condição de existência recíproca.
As palavras, os vocábulos e os signos linguísticos servem à formação do Direito e os significados atribuídos aos seus termos evidenciam um poder e uma violência que são irresistíveis, imperativos e simbólicos.
Nesse diapasão, não é difícil inferir que o poder estatal faz uso do poder da comunicação.
A esse respeito, Tércio Sampaio Ferraz Junior obtemperou com exação que[7]:
“Ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídicas usam palavras, signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. Esse uso oscila entre o aspecto onomasiológico da palavra, isto é, o uso corrente para a designação de um fato, e o aspecto semasiológico, isto é, sua significação normativa. Os dois aspectos podem coincidir, mas nem sempre isto ocorre. O legislador, nesses termos, usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas frequentemente lhes atribui um sentido técnico, apropriado à obtenção da disciplina desejada. (...)”
A professora Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos detecta que o poder jurídico exercido pelo Estado sobre a sociedade revela, por meio da comunicação, uma violência simbólica imperceptível e sem coação mas que, contudo, por manipulação finalística dos conceitos, acaba por provocar a adesão acrítica dos destinatários[8], neutralizando-os:
“ Em outras palavras, violência simbólica é o nome que se dá à capacidade de se impor certos símbolos, de tal maneira que os destinatários daquele que usa o símbolo se identifiquem com um determinado significado. A violência simbólica é, no fundo, uma imposição de significados. É a capacidade de impor significados de tal forma que os destinatários concordem com ele.”
O controle das mentes utilizado pelo Estado, expresso no discurso empregado pelo Direito como instrumento de socialização, possui uma finalidade muito clara, como bem destacou a professora[9]:
“(...) a chamada socialização política, feita através da linguagem (especialmente a linguagem jurídica) é um essencial e conservador processo, que se destina a facilitar a manutenção do ‘status quo’, ou em outras palavras, visa a fazer com que as pessoas aceitem o sistema em que vivem.”
E continua[10]:
“O Direito é, em última análise, um instrumento de controle do comportamento; ele se vocaciona a dirigir o comportamento de seus destinatários, para que eles tenham uma conduta conforme o padrão estabelecido na Norma Jurídica. É para alguns uma prescrição, um comando, um imperativo, um conselho. Na medida em que se dirige ao controle do comportamento, esse comportamento será executado por um homem, uma pessoa, por um grupo.
...
Ou seja, a lei é o símbolo do poder que a fundamenta. A lei simboliza o que deve ser conforme o direito em uma construção de postulados que possuem uma qualidade empírica, uma ‘realidade’ pelo fato de ser lei. Disso resulta a autonomia da lei diante das aspirações subjetivas. O símbolo é independente delas enquanto está em lugar de outra coisa, é uma relação, não um objeto.”
Como destinatários, concordamos e introjetamos voluntariamente todos os símbolos e significados que o Direito nos fornece silenciosamente, mas com imperatividade e violência, pela norma jurídica.
Em nossa sociedade capitalista, o controle do comportamento das pessoas e dos grupos é voltado para reduzi-los à figura do homo faber, na medida em que lhes é negada, nas palavras Hannah Arendt[11], “A suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é elemento indispensável da dignidade humana.”.
E a explicação é fornecida pela própria Hannah Arendt, no sentido de que “... a noção de que os homens só podem viver juntos, de maneira legítima e política, quando alguns têm o direito de comandar e os demais são forçados a obedecer”[12] e destaca com precisão cirúrgica[13]:
“Finalmente, a atividade de pensar – que, fiéis à tradição pré-moderna, omitimos de nossa consideração da victa ativa – ainda é possível, e sem dúvida ocorre, onde quer que os homens vivam em condições de liberdade política. Infelizmente, e ao contrário do que geralmente se supõe quanto à proverbial torre de marfim dos pensadores, nenhuma outra capacidade humana é tão vulnerável; de fato, uma tirania, é muito mais fácil agir do que o pensar. Como experiência vívida, sempre se supôs, talvez erradamente, que a atividade de pensar fosse privilégio de poucos. Talvez, não seja presunçoso demais acreditar que esses poucos são ainda mais reduzidos em nosso tempo – o que pode ser irrelevante ou de relevância limitada, para o futuro do mundo, mas não é irrelevante para o futuro do homem.”
Em suma, a atividade proibida de pensar retira o homem do seu dever de produzir de forma autônoma, livre. A sua vontade não existe, tendo sido substituída e dirigida pelo Estado e pelos demais órgãos que orbitam em torno dele, mas que são, todos, exteriores ao indivíduo; muitas vezes sem qualquer identidade ou representatividade empática.
Thomas Hobbes, em seu livro “Os elementos da lei natural e política”, descreveu o real intento do Estado em impor regras morais irresistíveis e sancionatórias aos seus destinatários, por que não súditos[14]:
“... Pelo que está presentemente constituído num pequeno corpo político, que consiste de duas pessoas, uma soberana, que é chamada o senhor ou amo (master; or lord), a outra o súdito, que é chamado o servo (servant). E quando um homem adquirir direito sobre um grupo de servos, sob um número bem considerável de servos, como eles não podem ser seguramente invadidos por seus vizinhos, este corpo político é um reino despótico.”
Nada mais irresistível a um soberano do que a criação de um lugar isolado em suas regras (reino despótico), em que os seus cidadãos desfrutam de uma vida controlada em todos os seus aspectos essenciais, caracterizada pela apatia e o domínio de seus instintos e desejos, cujos signos, símbolos e significados são determinados, na comunicação, pelo poder estatal, tal como narrado por Thomas More em Utopia.
É bem verdade que Jean Jacques-Rousseau[15] já evidenciava a inclinação humana para a restrição da liberdade, ao declarar que:
“‘Que penso afinal? Em permanecer tal qual vós me fizestes ser, e a não acrescentar voluntariamente nenhum grilhão aos que me impõem a natureza e as leis. Quanto mais examino a obra dos homens em suas instituições, mais vejo que à força de querer a independência, eles se fazem escravos e empregam sua liberdade mesma em vãos esforços por assegurá-la. Para não cederem ante a torrente das coisas, criam mil liames; assim, quando querem dar um passo não o podem e se espantam de se apegarem a tudo. Parece-me que para se tornar livre nada se tem que fazer; basta não querer deixar de sê-lo. Fostes vós, meu mestre, que me fizestes livre, ensinando-me a ceder ante a necessidade. Que chegue quando lhe agrade, deixarei levar-me sem constrangimento; e como não a quero combater, não me apego a nada que me retenha. Procurei em nossas viagens algum canto da terra onde eu pudesse ser totalmente meu; mas em que lugar entre os homens não se depende das paixões deles? Tudo bem examinado, achei que meu desejo mesmo era contraditório; pois ainda que não me apegasse a nada, ainda me apegaria à terra onde me houvesse fixado; minha vida estaria presa a essa terra como a das dríades estava às suas árvores; verifiquei que império e liberdade sendo duas palavras incompatíveis, eu não podia ser senhor de uma cabana senão deixando de o ser de mim.’ ”
Inobstante o indivíduo seja servo de suas paixões e do meio em que está inserido, é lícito a qualquer agrupamento a eleição de seus valores, a definição de seus objetivos e a elaboração de suas normas.
Como bem citou Jürgen Habermas, em seu livro “Comentários à ética do discurso”, em referência a uma inscrição contida no James-Hall, declarada por Henry James, “A comunidade estagna sem o impulso do indivíduo / o impulso extingue-se sem a participação da comunidade.”[16].
A atrofia, precariedade, censura ou, pior, inexistência de um espaço público destinado à participação popular intensifica a violência simbólica proveniente do Estado e revela o seu pouco apreço pela liberdade individual.
Tal fato foi objeto de lapidar análise de Habermas[17]:
“Em sociedades complexas, as pretensões a uma participação justa nos escassos recursos da sociedade, isto é, os direitos positivos ao bem-estar (à alimentação e à habitação, à saúde, educação e oportunidades de trabalho) só podem ser efetivamente satisfeitas através da mediação de organizações. Assim sendo, os direitos e os deveres individuais transformam-se em direitos e deveres institucionais: quem tem obrigações é a sociedade organizada como um todo – é perante ela que são defendidos os direitos positivos.”
No entendimento de Habermas, “No discurso, tomamos consciência do mundo das vivências subjacentes à prática comunicativa do quotidiano a partir de uma, por assim dizer, retrospectiva artificial; (...)”[18]. Em palavras, deve se dar voz aos indivíduos e aos grupos sociais, em um espaço público que não seja organizado ou institucionalizado pelo Estado, nem mesmo mediado por ele.
Parece-me que a necessária e indeclinável restrição à liberdade individual deve ser compensada com políticas de incentivo à solidariedade entre os indivíduos para a organização da sociedade.
Contudo, a realidade social é bem distinta e o espaço público ainda é dominado ou controlado totalmente pelo Estado, principalmente na produção e execução válida das normas jurídicas, ou encampados por agentes coletivos (empresas, sindicatos, dentre outros).
Independentemente do sistema jurídico adotado pelo Estado, se pertencente à commom law ou a civil law, o exercício do poder segue a mesma orientação[19]:
“As normas jurídicas são um produto do homem: a fim de que tais normas sejam produzidas, é necessário que o próprio ordenamento atribua a certos indivíduos o poder de produzi-las. Portanto, a existência de um ordenamento jurídico não pode prescindir do cumprimento de certos atos, nos quais consiste o poder jurídico.”
Com esteio na visão kelseniana, Norberto Bobbio conceitua esse real poder jurídico que o direito positivo confere a algumas pessoas:
“..., desde as primeiras páginas da obra do fundador da Teoria Pura do Direito, fica claro que num certo sentido final, por ‘poder jurídico’ deve-se entender, em sentido técnico, o poder de propor e aplicar as normas do sistema que atribui a certos indivíduos um determinado ordenamento normativo, que regula a própria produção de normas e se vale de atos coercitivos, isto, do recurso à força para obter o respeito das normas produzidas pelo próprio ordenamento (duas características próprias do ordenamento jurídico).”
Por “norma jurídica”, Kelsen entende não só as normas gerais, mas também as individuais, como as sentenças dos juízes; não só as normas de direito público, como as leis ou os atos administrativos, mas também as normas de direito privado, como os contratos[20]. Para Kelsen, é preciso partir das normas para justificar o poder[21], o Direito, para ele, é uma técnica de organização social[22] e, dentro do sistema kelseniano da Teoria Pura do Direito, para que uma norma receba o qualificativo de jurídica “é necessário que seja produzida em conformidade com outra norma jurídica”[23].
A resposta metodológica fornecida pela Teoria Pura do Direito de Kelsen na análise científica do Direito, ou seja, isento da “contaminação” dos elementos extrajurídicos na consciência do cientista, confere uma visão parcial sobre o estudo da relação existente entre o direito e o poder.
A Teoria Pura do Direito sempre foi interpretada como uma teoria positivista do direito[24]. Positivista é aquela que acredita firmemente que o direito não existe in natura, não existe na sociedade e, portanto, não se trata de descobri-lo e de revelá-lo, mas é sempre a expressão de uma atividade humana consciente (mas também inconsciente), e se trata no máximo de interpretá-lo, tendo presente de todo modo que também a interpretação é, por sua vez, uma obra de criação ou de recriação permanente. A característica de um ordenamento jurídico é que ele regula a própria produção[25].
Para Kelsen, o Estado ganha existência somente quando se exprime na lei, constituindo-se, nesse enfoque, pelo somatório e complexo das suas próprias leis, portanto idealizado para uma sociedade centrípeta, ou seja, voltada para um único centro de poder, que emana do Estado[26].
A diversidade de entendimentos dos juristas em saber se todo o direito se reduz ao direito positivo e se há equivalência ou hierarquia entre todas as expressões do direito[27] fez surgir duas linhas filosóficas antagônicas: a monista (é o sistema legal determinado pelos órgãos estatais, não existindo positividade fora do Estado e sem o Estado[28]) e a pluralista. Percebeu-se que, apesar de prestigiosos defensores do monismo[29], a corrente majoritária estabilizou-se na defesa do pluralismo jurídico[30].
Não é por outra razão que, voltando-se agora para a análise empírica, a Constituição Federal do Brasil de 1988 realça a sociedade pluralista (político, jurídico, social, cultural, étnico) como medida de pacificação social[31].
Nesse contexto, o Direito do Trabalho ocupa um papel de destaque e de protagonismo, na medida em que, desde os seus primórdios, insere-se no contexto do pluralismo jurídico[32].
Isso porque, entre os centros de produção do Direito do Trabalho destacam-se o Estado (leis e atos normativos), a comunidade (os costumes), a autonomia provada coletiva (acordos e convenções coletivas), organismos internacionais (OIT, ONU, OEA, com seus tratados e convenções), a empresa (regulamento interno), os sujeitos da relação de trabalho (empregados e empregadores – contrato de trabalho), os tribunais (jurisprudência).
O modelo idealizado de sociedade democrática é, nesse contexto e sob o prisma justrabalhista, centrífuga, ou seja, com múltiplos centros de poderes normativos.
O pluralismo jurídico provocou o esgotamento do modelo monista e revelou a insuficiência das fontes jurígenas clássicas do direito estatal como respostas normativas à complexa conflituosidade social, notadamente porque a estrutura rígida e inflexível do modelo estatal de poder atendia com atraso às aspirações jurídicas e concretas da sociedade[33].
Inspirado nesse sentimento, o legislador constituinte adotou expressamente o pluralismo jurídico no direito do trabalho, permitindo a criação de normas jurídicas pelos grupos sociais e seus representantes, o que se constata pelo reconhecimento constitucional das convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 8º, incisos VI e XIV) e da autonomia privada coletiva (art. 7º, incisos VI, XIII e XXVI).
Extrai-se pela leitura e interpretação da Constituição Federal a existência de uma redução e de um verdadeiro desestímulo à autonomia privada individual, causado por uma hipertrofia ou superposição das normas estatais e coletivas, que condicionam – quando não muito – tornam ineficazes a primeira, por força do próprio dirigismo contratual exercido pelo Estado.
Em que pese a concepção multiforme (mas desequilibrada) do Direito do Trabalho e do desestímulo à liberdade ou autonomia individual, são os direitos e as garantias fundamentais interpretados sob o prisma dos direitos sociais que determinam, regem, delimitam, ampliam e restringem os atores na produção das normas justrabalhistas (Estado, sindicatos, empregados e empregadores).
A relação dos direitos fundamentais do trabalho é extensa, contemplando a proibição ao trabalho escravo, o respeito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem e aos direitos à livre manifestação de pensamento, à liberdade de consciência e de crença, à liberdade de expressão e informação, ao sigilo de correspondência e telefônica, à igualdade e à solidariedade.
Em que pese a existência de normas jurídicas avançadas na proteção do trabalhador, por qual razão o seu protagonismo e evolução não ressoam na realidade do trabalho?
Parece que, mesmo após 33 (trinta e três) anos, desde a declaração de que um dos fundamentos de sua República Federativa é a valorização social do trabalho (artigo 1º, IV) e que a ordem econômica encontra-se fundada na valorização do trabalho humano (artigo 170, caput) e no princípio da “busca do pleno emprego” (artigo 170, inciso VIII), ainda estamos distantes dessas bases.
Qual será o motivo, ou melhor, quais seriam eles?
Uma das hipóteses capaz de explicar esse fenômeno da desarmonia entre as garantias, direitos e princípios declarados na lei e da realidade foi explicada com maestria por Ino Augsberg, em seu artigo intitulado “Promise as premise: rewriting the paradoxo constitucional reasoning” e publicado no livro “Sociology of Constitutions – A paradoxical perspective”, editado pelos professores Alberto Febrajo e Giancarlo Corsi.
Segundo o professor de filosofia jurídica e direito público da Universidade de Kiel, a Constituição representa, na verdade, uma promessa e que, como tal, ela está sempre (talvez muito) à frente de si mesma (e da própria sociedade).
A premissa do raciocínio legal é a de que a redação do texto constitucional possui uma estrutura hiperbólica, ou seja, caracterizada pela ênfase expressiva resultante do exagero na expressão linguística (hipérbole).
A Constituição seria, assim, um contrato com força vinculativa, por meio do qual[34]:
“Uma sociedade descreve a si própria na sua Constituição, sem que aquele senso de ‘ser’ já o preceda no ato de descrição. A sociedade é constituída no processo de descrição de si própria na sua Constituição. Essa descrição mediada (pela linguagem) desvenda a dicotomia (ser – dever-ser) de dentro para fora, não reunindo os opostos a um nível superior, mas revelando o sujeito correlato a ser necessariamente dividido pela prática linguística”
Segundo ele, a forma particular de normatividade da Constituição se faz por meio da promessa. A promessa tida como um contrato social mínimo e como um ato de reconhecimento, de alteridade da lei prescrita, em que a principal coisa a ser dada é a própria lei; só esta lei é o ato de dar possível, haja vista a impossibilidade de entrega real do direito, princípio ou garantia previsto.
Por essa razão, a postulação constitucional positiva e fictícia se caracteriza por ser paradoxal, na medida em que ao declarar que todos são iguais, sem qualquer discriminação, e que o trabalho é valorizado e pleno, a lei reconhece, ao mesmo tempo, que a sociedade por ela refletida é desigual e discriminatória, bem como que a valorização do trabalho e a plenitude do emprego ainda é uma aspiração e não um dado concreto da realidade.
O paradoxo resulta justamente no fato de que, se a imperatividade e a coerção do Direito só são necessárias para reger os fatos sociais que a própria coletividade não cumpre de forma natural e espontânea, ao impor um comando, ainda que principiológico, é porque ele não é encontrado concretamente naquela sociedade.
Essa visão sistêmica do Direito permite que enxerguemos as normas constitucionais não como uma declaração de direitos, mas como um contrato em que cada cidadão, ou melhor, cada trabalhador e empresário, assumiu o compromisso de cumprir e respeitar em nome da pacificação de toda a coletividade.
Isso significa dizer que, transportando esses conceitos para o nosso Direito Constitucional do Trabalho, se estivermos diante de um impasse ou de uma incerteza quanto ao vínculo decorrente de uma relação de trabalho ou a uma obrigação a ser exigida do trabalhador ou do empregador, necessário se faz repensá-la no campo do dever e em âmbito coletivo (princípio da solidariedade).
Em uma sociedade de dados como a nossa, em que mesmo antes da substituição da mão de obra assalariada por robôs e pela inteligência artificial, os números de desempregados e de trabalhadores informais superam os de empregados, a interpretação das novas formas de trabalho sob a lente da relação de emprego (subordinação) prevista nos artigos 2º e 3º da CLT não pode culminar com uma solução que torne impossível ou financeiramente inviável aquela fonte de trabalho.
O princípio da dignidade da pessoa humana não deve ser interpretado com os olhos voltados para a solução de uma situação individual, mas, ao revés, ela deve ser inserida e contextualizada em um cenário bem mais amplo, qual seja, àquele voltado para a sobrevivência coletiva e digna de toda a sociedade.
A superação dos paradoxos somente pode ser alcançada com o recurso ao princípio constitucional da solidariedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Como nasce o direito. Tradução: Roger Vinicius da Silva Costa. São Paulo : Editora Pillares, 2015, p. 35. “O segredo do direito está precisamente nisto: que os homens não podem viver no caos. A ordem lhes é tão necessária como o ar que respiram. Como a guerra corresponde à desordem, a ordem corresponde à paz. Os homens fazem a guerra, porém necessitam viver em paz. A guerra, pois, não termina com a paz, mas tende a esta. O que põe fim é o pactum, e a raiz de pacto é pax. Outra palavra expressiva é contrato, que, no fundo, quer dizer o mesmo: colocando fim à guerra, os homens, ao invés de estarem uns contra os outros, tratam de ficar juntos”.
[2] Discurso da servidão voluntária. Tradução Casemiro Linarth – São Paulo : Martin Claret, 2009, p. 44/45 – (Coleção a obra-prima de cada autor, 304)
[3] Ob. cit, p. 23.
[4] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18ª ed., São Paulo : Malheiros Editores, 2011, p. 116.
[5] Ob. cit., p. 117.
[6] CARNELUTTI, Francesco. Ob. cit., p. 88.
[7] Introdução ao estudo do direito : técnica, decisão, dominação. 5 ed. – São Paulo : Atlas, 2007, p. 255.
[8] Poder jurídico e violência simbólica. 1ª ed., São Paulo : Cultural Paulista, 1985, p. 150.
[9] Idem, p. 160.
[10] Ibidem, p. 172 e 176.
[11] A condição humana. Tradução: Roberto Raposo – 10 ed., Rio de Janeiro : Forense Universitário, 2008, p. 223.
[12] Idem, p. 234.
[13] Ibidem, p. 338.
[14] HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política : tratado do corpo político. Tradução e notas: Fernando Dias Andrade – São Paulo : Ícone Editora, 2002, p. 154.
[15] Emílio; ou, Da educação. Tradução de Sérgio Milliet – 3 ed. – Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1995, p. 570.
[16] HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Tradução: Gilda Lopes Encarnação. Lisboa : Instituto Piaget, 1999, p. 77.
[17] Idem, p. 170.
[18] Ibidem, p. 39.
[19] BOBBIO, Norberto. Direito e poder. São Paulo : Editora UNESP, 2008, p. 185.
[20] Ob. cit, p. 189.
[21] Idem, p. 158.
[22] Ibidem, p. 115.
[23] Ibidem, p. 159.
[24] Ibidem, p. 124.
[25] Ibidem, p. 158.
[26] SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das normas coletivas. 2. Ed. – São Paulo : LTr, 2009, p. 85
[27] REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. São Paulo : Saraiva, 2000, p. 219.
[28] MARTINS, Sergio Pinto. Pluralismo do direito do trabalho. 2 ed. – São Paulo : Saraiva, 2016, p. 33.
[29] Segundo Ronaldo de Lima dos Santos (p. 30 e 34), “O monismo, em si, identifica-se com a teoria que considera como válida apenas uma ordem jurídica, seja o direito natural ou universal (monismo jurídico universal), seja o direito estatal (monismo jurídico estatal).”. Entre os primeiros, podem ser citados Hugo Grócio, Baruch Spinoza, Samuel Pufendort, Christian Thomasius, Jean Barbeyrac, Christian Woff, dentre outros. Entre os segundos, destacam-se Nicolau Maquiavel, Giovanni Bodin, Thomas Hobbes, Benedito Spinoza, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Friederich Hegel, Rudolf von Lhering, George Jellinek, Hans Kelsen, John Austin, dentre outros.
[30] Podem ser citados: Friedrich Carl Von Savigny, Gustavo Hugo, Friedrich Whilhelm, Joseph Schelling, Edmundo Burke, Jeremy Benhtam, Leon Duguit, Maxime Leroy, Paul Boncour, Enrico Leone, Arturo Labriola, Roger Bonnard, Sergio Panunzio, Walter Heinrich, François Perroux, Mihail Manoilesco, Othmar Spann, Guido Bortolotto, Oliveira Vianna, Tasso Silveira, Maurice Hauriou, Georges Renard, Leon Le Fur, Norberto Bobbio, Giorgio Del Vecchio, Miguel Reale, dentre outros.
[31] Pluralismo político (art. 1º, inciso V), pluralismo partidário (art. 17), pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (art. 206, inciso III), pluralismo econômico (art. 170), pluralismo cultural (arts. 215 a 217), pluralismo dos meios de informação (art. 220, §5º). Trecho extraído da obra de Ronaldo Lima dos Santos, ob. cit., p. 75
[32] Idem, p. 87.
[33] Wolkmer, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo : Alfa-Omega, 1997, p. 138.
[34] AUGSBERG, Ino. Promise as premise: rewriting the paradoxo constitucional reasoning : Sociology of Constitutions – A paradoxical perspective. Routledge : London, p. 50.
Artigo publicado em 10/12/2021 e republicado em 28/03/2024
advogado e mestrando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito de Energia e Regulação de Infraestrutura e Energia pelo Instituto Brasileiro de Estudos do Direito de Energia-IBDE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EDUARDO ORDOñO, . Da promessa como premissa na razão constitucional dos direitos fundamentais trabalhistas – uma tentativa de superação dos paradoxos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2024, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57876/da-promessa-como-premissa-na-razo-constitucional-dos-direitos-fundamentais-trabalhistas-uma-tentativa-de-superao-dos-paradoxos. Acesso em: 22 nov 2024.
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