ANDRÉ LIMA CERQUEIRA[1]
(orientador)
RESUMO: O objetivo do presente artigo, é analisar a compatibilidade do Juiz das Garantias, inserido no Código de Processo Penal, pela Lei nº 13.964/2019 (pacote anticrime), no âmbito do Tribunal do Júri, como um assegurador dos direitos e garantias fundamentais do réu. O artigo parte inicialmente da verificação da sua implementação e efetividade no Chile. Em seguida, considerando a justificativa utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu pela inaplicabilidade do Juiz das Garantias no rito dos crimes dolosos contra a vida, será apresentado, através de pesquisa bibliográfica, diversos atos processuais, constantes no ordenamento jurídico, que são proferidos pelo Juiz de Direito, evidenciando, assim, a necessidade da sua aplicação no Tribunal do Júri.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema Acusatório. Juiz das Garantias. Tribunal do Júri.
ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the compatibility of the Judge of Guarantees, inserted in the Code of Criminal Procedure, by Law nº 13.964/2019 (anti-crime package), within the scope of the Jury Court, as a guarantor of the fundamental rights and guarantees of the defendant. The article is part of the verification of its implementation and effectiveness in Chile. Then, considering a justification used by the Supreme Federal Court, which decided that the Judge of Guarantees was inapplicable in the rite of intentional crimes against life, several procedural acts, contained in the legal system, that are rendered by the Judge of Law, evidencing, thus, the necessity of its application in the Court of the Jury.
KEYWORDS: Acussatory System. Guarantee Judge. Jury Court.
1 INTRODUÇÃO
O Processo Penal brasileiro passou, ao longo dos anos, por diversas modificações legislativas, sobretudo, quando houve a promulgação da Constituição Federal de 1988. Desde então, intensificou-se no Brasil, por diversos juristas, uma construção doutrinaria, a qual resultou na elaboração de projetos de lei que visassem estruturar o sistema processual de acordo com os direitos e garantias fundamentais insculpidos, sobretudo, no art. 5º da Carta Magna. Assim, recentemente, fora aprovada a Lei nº 13.964/2019, que coloca de forma expressa o modelo Acusatório no art. 3-A do Código de Processo Penal, com a devida distinção de quem acusa, defende e julga, vedando a inciativa oficiosa do juiz, na produção de provas e na decretação de medidas reais e pessoais, sem que haja a provocação pelos órgãos de persecução penal.
Na mesma linha, foi instituído no art. 3-B ao 3-F do CPP, a figura do Juiz das Garantias, instituto já implementado no ordenamento jurídico de diversos países, inclusive da américa latina, como a exemplo do Chile. O Juiz das Garantias no Brasil, atuaria perfazendo o controle da legalidade e prestando jurisdição durante a fase pré-processual, ficando impedido de atuar na fase processual, o que evitaria uma possível contaminação cognitiva do magistrado no julgamento da causa.
Ocorre que, o Supremo Tribunal Federal, através de decisão cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), 6.298, 6299, 6300 e 6305, proferida pelo Min. Luiz Lux, em substituição a decisão do Min. Dias Toffoli, suspendeu a aplicabilidade do Sistema Acusatório e do Juiz das Garantias por tempo indeterminado, sob a justificativa de que a norma violaria o art. 96 da CF/88, bem como argumentou pela inaplicabilidade do instituto no rito do Tribunal do Júri, sob o fundamento de que, o veredicto fica a cargo de um conselho de sentença, o que por si só, seria um fator de reforço da imparcialidade.
No entanto, não se pode negar a possibilidade de o Juiz presidente participar direta ou indiretamente do julgamento, como é o caso do art. 492, §1º do Código de Processo Penal, em que ele profere sentença em plenário, caso haja a desclassificação do delito. Além disso, o magistrado é o competente para pronunciar o réu, com base no art. 413 do CPP, submetendo-o a plenário, entregando a pronúncia aos jurados, conforme art. 472, parágrafo único do CPP, o que fatalmente poderá exercer influência e convencer os jurados.
Em razão disso, evidencia-se a necessidade de estudar, de forma qualitativa e exploratória, o Juiz das Garantias, sob a perspectiva do sistema acusatório, vislumbrando-se, através da pesquisa bibliográfica, os argumentos contrários e favoráveis à sua aplicação nos crimes dolosos contra a vida. Dessa forma, busca-se verificar como o tema é tratado no ordenamento jurídico de países latino-americanos, a exemplo, o Chile, bem como, vê-se necessário analisar quais os atos processuais no rito dos crimes dolosos contra a vida, são decididos pelo Juiz de Direito, concluindo pela sua aplicação efetiva no Tribunal do Júri, que é uma das maiores instituições do Estado Democrático de Direito.
2 JUIZ DAS GARANTIAS E SUA APLICAÇÃO NO TRIBUNAL DO JÚRI
2.1 A EXPERIENCIA CHILENA E A NECESSÁRIA IMPLANTAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS NO BRASIL
A história da América Latina, sempre foi marcada pelo autoritarismo decorrente de uma perversa exploração implementada pelos países europeus, países esses que tornaram diversas nações da américa do sul suas colônias de exploração. Nesse contexto, não foi diferente com o Chile, este vivenciou uma ditadura militar entre os anos de 1973 e 1990, tendo como resultado a morte e prisão de milhares de pessoas. O povo chileno, à época, era governando pelo presidente Salvador Allende, quando este foi duramente deposto e morto, resultando na chegada ao poder, do general Augusto Pinochet. (CARVALHO; MILANEZ, 2020)
O Chile viveu, intensamente, sob um período nebuloso da sua história, com um poder arbitrário que legitimou o Estado autoritário a perseguir e punir diversas pessoas, ocasionando a supressão dos direitos e garantias dos cidadãos. Dentro dessa perspectiva, durante a ditadura, o processo penal chileno, não vislumbrou do seu melhor modelo, pois vigorou o sistema inquisitorial, em que não se tinha a distinção das funções de acusador e julgador. Nesse sistema o Juiz acumula tais poderes, o que permite ao magistrado a busca pelas provas que legitime o seu convencimento, muitas vezes condenando inocentes por mero cunho político.
Com isso, é possível observar que, esta forma de atuação, nitidamente causava uma contaminação cognitiva e, assim, por décadas, resultou no cometimento de injustiças perpetradas pelo Poder Judiciário.
Em síntese, com a derrubada do governo militar e a volta do regime democrático, muitas eram as reivindicações da população, dentre elas, o encerramento do sistema inquisitório, não mais compatível com a Democracia. Assim, com o passar dos anos, foram elaborados diversos estudos pelos juristas, sociedade civil e pelo parlamento chileno, resultando em 12 de outubro de 2000, na publicação do Código de Processo Penal chileno, inclusive como uma forma de legitimar a atividade estatal, sobretudo, o Poder Judiciário, tão descredibilizado pelos acontecimentos que permearam até a década de 1990.
No Chile, a nova legislação trouxe o instituto do Juiz das Garantias, ferramenta de grande valia para a implementação, de fato, do sistema acusatório, ocasionando uma mudança estrutural na justiça criminal, com investimentos financeiros em virtude da criação de instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública, cursos para a capacitação dos magistrados, além da criação específica do cargo de Juiz das Garantias, onde se faz necessária a aprovação em concurso público.
Esse fenômeno ocorrido no âmbito do processo penal chileno, foi construído sob vários pilares, dentre os quais, pode-se destacar no sistema chileno, a oralidade:
A base deste sistema de garantias é a introdução de um julgamento oral e público como um direito básico do acusado. O julgamento será realizado perante três juízes profissionais que não participam das etapas anteriores do processo. O promotor deve participar do julgamento apresentando as provas que sustentam a acusação e o réu, por sua vez, tem o direito de exercer sua defesa, confrontar as provas contra si e apresentar outras que o favoreçam. (RIEGO, 2000, p. 179)
Assim, o sistema acusatório chileno, que tanto preserva pela imparcialidade do julgador, foi, de forma plena, colocado em aplicabilidade, pois a investigação criminal, conduzida pela Polícia ou Ministério Público, passou a sofrer um controle de legalidade e fiscalização pelo juiz das Garantias, este, que além dessas atribuições, também possuiu o poder de decidir sobre diversas medidas necessárias, a fim de assegurar o bom andamento da persecução penal, seja pelo deferimento de prisões cautelares seja pela quebra do sigilo de dados, entre outros, com a sua atuação de oficio vedada, ou seja, sempre dependendo de provocação das partes, conforme a explicação a seguir:
a atividade das partes permite ao juiz se manter equidistante, alheio à investigação e à decisão sobre as provas que serão usadas no julgamento. Tudo isso concerne às partes, controladas pelo juiz de garantias. Ao juiz incube decidir, como terceiro imparcial. (CARVALHO; MILANEZ, 2020, p. 4)
Esse modelo visa preservar o direito do réu, de ser julgado por um juiz imparcial, que só terá contato com as provas tidas como necessárias ao julgamento da causa, na fase de instrução, o que, de fato, passou a não permitir que o mesmo magistrado que atuasse na fase investigativa, fosse o mesmo que sentenciasse o réu, rompendo com a chamada contaminação cognitiva, fortalecendo a prestação jurisdicional, permitindo um julgamento justo, com o respeito ao contraditório e a ampla defesa.
A evolução não ocorreu de forma instantânea, foi preciso um longo processo de transformação da mentalidade dos julgadores, para que pudessem se adequar as transformações que estavam prestes a serem implementadas no novo ordenamento jurídico, uma vez que, alterações legislativas por si só, não seriam capazes de promover mudanças, sobretudo, a cognitiva daqueles que compunham a máquina estatal. Ainda, é válido tratar que, de acordo com Eduardo Gallardo Frías, Juiz das Garantias no Chile, a mudança pode ser entendida da seguinte forma:
O exposto revela uma exigência fundamental para qualquer país que queira empreender com relativo sucesso um processo dessa magnitude: o maior desafio está em modificar a cultura curiosa. Se uma reforma do processo penal não assume como principal desafio que a transformação cultural é o mais importante, qualquer reforma jurídica, por mais profunda que seja, estará destinada ao fracasso mais absoluto, já que a cultura inquisitiva mais cedo ou depois acaba impondo suas práticas milenares. (FRÍAS, 2020, p. 9, tradução nossa)
Assim, a implementação se iniciou pelas comarcas menores de forma gradativa, sendo ofertados cursos de capacitação e aperfeiçoamento aos juízes e servidores da justiça, bem como, incentivos a planos de aposentadorias, para aqueles que optassem por não fazer parte do novo sistema processual. (MAYA, 2018).
Dessa forma, com a adoção do sistema acusatório e como peça fundamental deste, o Juiz das Garantias, o Chile se tornou referência para diversos países, pois mostrou capacidade de promover mudanças estruturais e romper com a mentalidade inquisitorial, que tanto permeou no país e que ainda insiste em perdurar por diversas nações do mundo.
Não muito divergente da história chilena, o Brasil também sofreu em 1964, um golpe civil-militar que destituiu do poder o presidente João Goulart, resultando em mais de 25 anos de governo ditatorial, perseguindo e torturando, barbaramente, civis que se contrapuseram ao regime, além de suprimir a liberdade do cidadão.
No entanto, através da incansável luta pela volta da Democracia, o país retornou ao período democrático e promulgou em 1988, a Constituição Federal, que significou um marco histórico, pois assegurou, no seu art. 5º, I, XXXVII, LIII, LIV e LVII, respectivamente, isonomia processual, devido processo legal, contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. Além de estabelecer, no art. 129, I, expressamente, a função privativa de acusar ao Ministério Público e consagrou no art. 133, a Advocacia como essencial a Administração da Justiça.
Ocorre que, o Código de Processo Penal brasileiro é de 1941, não possuindo harmonia com a Carta Magna, por estabelecer formas de atuação ainda arraigadas ao sistema inquisitório. Foi com essa perspectiva de mudança, que a Lei nº 13.964/2019, também conhecida como Pacote Anticrime, trouxe algumas inovações, como o Sistema acusatório, de forma expressa no art. 3-A, e do Juiz das Garantias no art. 3-B ao 3-F, ambos no Código de Processo Penal.
A nova alteração legislativa, prevê que com a nova sistemática processual, será vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da sua atuação probatória ao órgão acusador, em seguida, aborda que o Juiz das Garantias será o responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, e estabelece nos artigos subsequentes, a delimitação de sua atuação.
Para uma melhor compreensão, nas palavras de Lopes (2020, p. 58) o Sistema acusatório “é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive’’
Assim, tanto o modelo acusatório, quanto o Juiz das Garantias se complementam, considerando que o Juiz das Garantias segundo Casara (2010, p. 170) “é o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela das liberdades públicas, ou seja, das inviolabilidades pessoais/liberdades individuais frente à opressão estatal, na fase préprocessual’’.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em decisão cautelar em Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, tomada pelo Min. Toffoli e depois referendada pelo Min. Fux, suspendeu, a aplicabilidade do Juiz das Garantias, alegando que seria necessária uma reorganização da justiça no país, tornando-a inviável realizar-se em tempo hábil, assim, a aplicação do instituto encontra-se até o momento sem surtir efeitos na esfera judiciaria brasileira.
2.2 O PAPEL DO JUIZ NO TRIBUNAL DO JÚRI: POR QUE NÃO APLICAR O SISTEMA ACUSATÓRIO?
Na decisão do Supremo Tribunal Federal, um outro argumento utilizado foi de que o Juiz das Garantias, não deveria ser aplicado no rito do Tribunal do Júri por este se tratar de um órgão colegiado, em que o veredito fica a cargo do conselho de sentença, o que por si só, representaria um reforço da imparcialidade
Esse entendimento, encontra respaldo, até mesmo na doutrina processualista moderna, na qual se entende que não seria necessária a nova regra legislativa no júri, conforme defende Pacelli (2020, p. 1303) “não parece necessária a aplicação da regra de impedimento do juiz da investigação, dado que não caberá ao juiz togado a decisão efetiva sobre a condenação ou sobre a absolvição do acusado’’.
Como mencionado na seção secundária anterior, para que haja uma mudança estrutural, apenas a alteração da lei não se mostra eficaz. Dessa forma, é preciso que os poderes da república sejam ocupados por aqueles que não entendam ser o garantismo, um sinônimo da impunidade, e atuem no sentido de mudar a lógica inquisitorial perpetrada, que transforma o poder judiciário em um sistema com objetivo de apenas exercer a política do encarceramento e a injustiça, não garantindo ao cidadão, o juízo natural e a imparcialidade, que estão insculpidas na legislação brasileira, imprescindíveis no mundo contemporâneo.
A Constituição Federal, no art. 5º, XXXVIII, reconhece a instituição do júri, assegurando a plenitude de defesa; sigilo das votações; a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, como o homicídio, infanticídio, aborto e induzimento, instigação e auxílio ao suicídio ou à automutilação, ambos tipificados no Código Penal, assim, Walfredo Cunha Campos ensina que o Tribunal do Júri:
é um órgão especial do Poder judiciário de primeira instancia, pertencente a justiça comum, colegiado e heterogêneo – formado por um juiz togado, que é seu presidente, e por 25 cidadãos -, que tem competência mínima para julgar os crimes dolosos praticados contra a vida, temporário (porque constituído para sessões, tomadas de maneira sigilosa e inspiradas pela íntima convicção sem fundamentação, de seus integrantes leigos. (CAMPOS, 2013, p. 3)
A Carta Magna, consagrou os direitos e garantias fundamentais os quais não podem ser suprimidos ou retirados do ordenamento jurídico, apenas podem ser objeto de ampliação com o intuito de assegurar aos cidadãos, uma prestação jurisdicional efetiva, assim, diante das inovações legislativas no CPP, tais mudanças devem ser aplicadas no Tribunal do Júri, pois a justificativa daqueles que são contrários, não vislumbram de argumentos sólidos.
O Tribunal do Júri, é um órgão que, em regra, o veredicto fica a cargo do conselho de sentença, composto por 7 (sete) jurados. Com isso, vale ressaltar que, esse rito especial dos crimes dolosos contra a vida, possui, na maioria das vezes, a fase preliminar, na qual são instaurados o inquérito policial e as autoridades competentes, seja o delegado de polícia ou o promotor de justiça, fazem diversas representações e requerimentos ao magistrado, para que seja decretada, medidas mais invasivas como prisões preventivas, intercepções telefônicas e quebra de sigilos fiscais.
Nesse sentindo, o Juiz do rito especial dos crimes dolosos contra a vida, possui uma atuação fundamental, dotada de atribuições que resultam na busca de provas de grande valor probatório. É válido ressalvar que, o magistrado que atua durante a investigação, é o mesmo que faz o juízo de admissibilidade da denúncia, rejeitando-a ou recebendo-a.
Logo, caso a denúncia seja recebida, será determinada a citação do acusado para a apresentação da resposta a acusação. Dessa forma, o togado conduzirá toda a instrução processual, chamada de sumario de culpa, procedendo, inclusive, com o interrogatório do réu e os depoimentos das testemunhas, e, ao final, ao seu livre convencimento, decidindo por desclassificar (art. 419), absolver sumariamente (art. 415, IV), impronunciar (art. 414) ou pronunciar (art. 413) o réu, o levando ao plenário do júri, onde atuará, como juiz-presidente. (LIMA, 2020).
Posto isso, cumpre analisar de forma mais detalhada as decisões que competem ao juiz de direito. Inicialmente, examinaremos o art. 414 do CPP, em que encerrado o sumário de culpa, e após as alegações finais das partes, o magistrado que não estiver convencido da materialidade ou dos indícios de autoria ou participação, deverá impronunciar o réu. Dessa forma, essa decisão é interlocutória, porque não aprecia o mérito da acusação, portanto, não decide se o réu é culpado ou inocente, somente põe fim a uma fase procedimental, não acarretando a extinção da punibilidade, podendo, a qualquer momento, com o surgimento de novas provas, ser formulada nova denúncia.
Entretanto, em caso de entendimento contrário, o magistrado pode ainda, com base no art. 415 do CPP, absolver sumariamente o réu, se convencido da inexistência do delito, ou provada a negativa de autoria ou participação, essa decisão, produz coisa julgada material e formal, pondo fim ao processo com a consequente extinção da punibilidade. Logo, caso surjam novas evidencias ou provas, após a decisão de absolvição sumária, aquele que respondia a acusação, não poderá ser novamente processado pelo mesmo fato. (LIMA, 2020)
De acordo com Nucci (2020, p. 1215) a desclassificação da infração penal, art. 419 do CPP, “é a decisão interlocutória simples, modificadora da competência do juízo, não adentrando o mérito, nem tampouco fazendo cessar o processo’’. Em síntese, quando o magistrado entende que a prática delituosa não diz respeito aos crimes dolosos contra a vida, este remete os autos ao juízo competente, como a exemplo de uma denúncia por tentativa de homicídio, mas que ao longo de toda a fase instrutória, ficou demonstrado que na verdade se tratava de uma lesão corporal, mas, caso a desclassificação seja a tese acolhida pelo conselho de sentença, conforme art. 492, §1º do CPP, caberá ao juiz-presidente do Tribunal do Júri, proferir a sentença logo em seguida. (LIMA, 2020)
Por fim e, não menos importante, encerrado o sumário de culpa, ou seja, a primeira fase do rito dos crimes contra a vida, tem-se a decisão de pronúncia, prevista no art. 413 do Código de Processo Penal. Essa representa o acolhimento provisório, por parte do magistrado da pretensão acusatória, determinando que o réu seja levado à julgamento pelo Tribunal do Júri, sendo assim, pode ser compreendida como uma decisão que não produz coisa julgada material, uma vez que pode haver desclassificação para outro crime, quando assim, for colocada a tese pela defesa ou acusação, e os jurados proferirem veredicto desclassificando o delito. (LOPES, 2020)
Um outro problema encontrado, não é apenas a fundamentação da decisão de pronúncia, pois além desta ser proferida pelo juiz que presidirá os trabalhos no plenário, é entregue uma cópia aos jurados, os quais, na maioria das vezes, não possuem conhecimento técnico para compreendê-la, além de não ser permitido as partes explicarem aos jurados todos os motivos que ensejaram a decisão interlocutória, conforme Lopes (2020, p. 1252) “especial cuidado deve ter o julgador na fundamentação, para não contaminar os jurados, que são facilmente influenciáveis pelas decisões proferidas por um juiz profissional e, mais ainda, por aquelas proferidas pelos tribunais’’.
Importante frisar que há a possiblidade do aparte regulamentado, consoante dispõe o art. 497, XII do CPP, ao magistrado que preside os trabalhos, cabe a este regulamentar os debates e intervenções de uma das partes quando a outra estiver com a palavra, podendo vir a conceder até 3 (três) minutos para aparte daquele que tiver requerido, sendo esse tempo acrescido ao tempo de peroração de quem foi aparteado. Sendo assim, esta é mais uma das tantas formas de que o juiz presidente pode exercer influência, ainda que de maneira inconsciente, no plenário e sob os olhares atentos dos jurados.
Assim, a atuação de um único magistrado, durante todo o processo, tomando decisões que muitas vezes servem como referência para os juízes do conselho de sentença, rechaça a tese do STF, de que a absolvição ou condenação, fica totalmente a cargo do conselho de jurados. Caso a decisão do Supremo Tribunal Federal se mantenha, significaria favorecer a ilegalidade, e a até mesmo, a representação de um tribunal de exceção, pois o magistrado no momento de proferir uma decisão em relação ao réu, já estaria com a sua intima convicção contaminada, em virtude da sua atuação ao longo de toda a persecução penal.
2.3 A POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DO JÚRI
De acordo com Paulo Rangel,
o tribunal do júri é um espaço dentro do qual são tratados direitos fundamentais do homem, tais como a vida e a liberdade, para não dizer na dignidade da pessoa humana e do poder que o povo exerce ao julgar, deve merecer uma releitura à luz dos direitos fundamentais que não pode ser despido de tais direitos e, consequentemente, das garantias necessárias à efetivação dos mesmos. (RANGEL, 2018, p. 255)
Com base nisso, levando em consideração o rito bifásico do Tribunal do Júri, dividido em sumário da culpa e plenário, ambos presididos por um juiz de direito o qual desempenha papel fundamental, e as alterações no Código de Processo Penal, no que se refere ao Sistema acusatório e o Juiz das Garantias, outro não seria o caminho da legalidade, senão a aplicação da mudança legislativa a esse rito.
A inserção no Tribunal do Júri se mostra plenamente possível, basta delimitar o momento de atuação dos juízes durante a persecução penal. Incialmente, durante a fase preliminar, em que ocorrem as primeiras diligências em busca da autoria e da materialidade do fato delituoso, teríamos o magistrado das garantias, em que ficaria prevento desde o momento do recebimento do auto de prisão em flagrante ou comunicação da instauração do inquérito, até o recebimento da denúncia.
Após o recebimento da inicial acusatória, o magistrado que atuasse fazendo o controle de legalidade da investigação e tendo contato com diversas provas se afastaria, pois estaria impedido de atuar durante o sumário de culpa, delimitando apenas as provas que fossem imprescindíveis a instrução processual, permanecendo os autos acautelados na secretaria do juízo, conforme Rogério Sanchez Cunha:
Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juiz, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. (CUNHA, 2020, p. 100)
Assim, conforme Queiroz (2020), o art. 75, parágrafo único, e art. 83, ambos do CPP, estariam revogados de forma implícita, pois estes previam a atuação de apenas um único magistrado, o qual ficava prevento para atuar durante a ação penal, sempre que decidisse durante as investigações.
Quando se trata de organização judiciária, para a implementação do juiz das garantias, isso poderá ser resolvido caso haja vontade política por parte daqueles que ocupam os cargos públicos nos três poderes da república. Conforme Moreira (2020), o juiz das garantias seria designado de acordo com as normas de organização judiciária, tanto da União, como dos Estados e do Distrito Federal, com base em critérios objetivos que seriam divulgados frequentemente pelo respectivo tribunal competente.
Ademais, nas comarcas que possuem apenas um magistrado, seriam criados um sistema de rodízio de juízes, com o intuito de pôr em prática a nova sistemática. É válido ressaltar que, essa forma de rodízio não enfrentaria grandes barreiras, considerando a globalização tecnológica e a virtualização cada vez maior dos processos nos diversos tribunais do país.
Desta feita, para o sumário de culpa, seria designado um novo magistrado e, ao final, após as alegações finais, o magistrado tomaria uma das decisões relatadas no capítulo anterior e, caso pronunciasse o réu, presidiria os trabalhos no plenário do júri, evitando que a função fosse exercida por um juiz contaminado pelo inquérito, rechaçando o famigerado modelo inquisitório, e reafirmando no Processo penal brasileiro, o Sistema acusatório.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base em tudo que foi exposto, é de se concluir que, o ordenamento jurídico, sobretudo, o Código de Processo Penal brasileiro, possui uma dissonância com a Constituição Federal e, consequentemente, com os direitos e garantias fundamentais que todo cidadão faz jus, isso se justifica muito em virtude da mentalidade inquisitorial decorrente de períodos conturbados da história brasileira.
Assim, faz-se necessário levar adiante as alterações promovidas pela Lei. nº 13.964/2019, onde de forma expressa foi inserido no nosso sistema processual, o Sistema Acusatório e o instituto do Juiz das Garantias, seja nos ritos comuns, seja nos ritos especiais, sobretudo, nos crimes dolosos contra a vida, objetivando, sempre que possível, assegurar o contraditório e a ampla defesa, com o intuito de que o princípio da imparcialidade seja o norteador das decisões dos órgãos julgadores, diminuindo dessa forma, a possibilidade de que o juiz presidente funcione como uma espécie de oitavo jurado no plenário do Júri e, consequentemente, a probabilidade de que a sua postura influencie na decisão do conselho de sentença.
Desta feita, com as mudanças no Código de Processo Penal, é preciso que essas vigorem, com a sua urgente aplicação durante toda a persecução penal, tanto na fase investigativa, quanto na fase instrutória e de julgamento no Plenário do Tribunal do Júri, para que a aplicação da lei esteja em consonância com o princípio da imparcialidade, e de fato, o sistema inquisitorial e punitivista seja rechaçado, fazendo imperar no Brasil, o sistema acusatório.
Ressaltando-se, que a implementação no Brasil, assim como fora feita no Chile, haverá de ser gradativa, pois não basta apenas a mudança legislativa, é imprescindível que a mentalidade dos atores processuais que atuam e compõe a justiça criminal no país, passe por uma mudança profunda, em que estes operem para preservar os direitos frente ao Estado, pois caso contrário, teremos apenas uma legislação moderna, mas que não exerce imperatividade.
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[1] Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Professor da Faculdade de Petrolina – FACAPE.
Defensor Público do Estado da Bahia. Contato: [email protected]
Bacharel em Direito pela Faculdade de Petrolina - FACAPE
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Alexandre José Neves. Juiz das garantias e sua aplicação no Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57892/juiz-das-garantias-e-sua-aplicao-no-tribunal-do-jri. Acesso em: 23 dez 2024.
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