DÁRLET AZEVEDO DE ASSIS[1]
(coautora)
RESUMO: O trabalho a seguir pretende refletir sobre os reflexos do reconhecimento da multiparentalidade no direito sucessório, com base na Tese 622, fixada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 898.060/SC. Objetiva-se, pois, verificar se há prevalência da paternidade socioafetiva sobre a paternidade biológica no âmbito do direito sucessório, considerando que, segundo o conceito moderno de família, esta é constituída, precipuamente, sobre vínculos de afetividade. Busca-se, inicialmente, entender o conceito de multiparentalidade, bem como apresentar os fundamentos legais e jurídicos, e, ainda, estudar como funciona a sucessão em casos em que a multiparentalidade fora reconhecida, diante da omissão da legislação vigente sobre a matéria. Será realizada uma pesquisa exploratória, de caráter bibliográfico, com análise da Constituição Federal de 1988, leis, doutrinas, jurisprudências e artigos científicos, valendo-se do método dedutivo, a fim de delimitar que, mesmo que a inclusão do pai biológico tenha finalidade puramente financeira, todos os ascendentes, socioafetivos e biológicos, devem figurar na ordem de vocação hereditária prevista no Código Civil vigente, não havendo hierarquia entre as paternidades na hipótese de multiparentalidade, devendo ser realizada a partilha igualitária do patrimônio entre os herdeiros.
Palavras-chave: Multiparentalidade; Paternidade socioafetiva; Paternidade biológica; Direito sucessório.
ABSTRACT: The following work intends to reflect on the reflexes of the recognition of multiparentality in the succession law, based on Thesis 622, established by the Federal Supreme Court in the judgment of Extraordinary Appeal nº 898.060/SC. The objective is, therefore, to verify whether there is a prevalence of socio-affective paternity over biological paternity in the context of inheritance law, considering that, according to the modern concept of family, it is mainly constituted by bonds of affection. The aim is, initially, to understand the concept of multi-parenting, as well as to present the legal and legal foundations, and also to study how the succession works in cases where multi-parenting has been recognized, given the omission of the current legislation on school subjects. An exploratory bibliographical research will be carried out, with analysis of the Federal Constitution of 1988, laws, doctrines, jurisprudence and scientific articles, using the deductive method, in order to delimit that, even if the inclusion of the biological father has purely financial purpose, all ascendants, socio-affective and biological, must figure in the order of hereditary vocation provided for in the current Civil Code, with no hierarchy between paternity in the case of multiparenthood, and the equal sharing of assets must be carried out among the heirs.
Keywords: Multiparenthood; Socio-affective paternity; Biological paternity; Inheritance Law.
1 INTRODUÇÃO
O conceito de família se modificou através do tempo, não se limitando mais apenas ao vínculo puramente genético. Atualmente, a concepção da entidade familiar é baseada e norteada, sobretudo, pelo afeto, sendo vedado, conforme artigo 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, o tratamento diferenciado entre filhos advindos da relação do casamento ou por adoção (BRASIL, 2021a).
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n.º 898.060/SC, fixou em sede de repercussão geral, a Tese n.º 622, estabelecendo que: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.” (BRASIL, 2017, p. 4).
Assim, o presente artigo visa tratar sobre os reflexos da multiparentalidade reconhecida pela jurisprudência pátria no direito sucessório, mormente no que tange aos efeitos patrimoniais. Para tato, questiona-se: qual paternidade, socioafetiva ou biológica, deve prevalecer durante a sucessão hereditária?
O estudo, portanto, se justifica e legitima-se devido à possibilidade de haver, em um único registro de assentamento civil de nascimento, o reconhecimento de dois pais ou de duas mães, com vínculo biológico e socioafetivo, não havendo, no ordenamento jurídico vigente, previsão de quais são os efeitos patrimoniais e sucessórios decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade e qual paternidade deve prevalecer durante a partilha de bens do de cujus.
Com isso, diante da omissão legislativa, a pesquisa busca verificar se existe prevalência da paternidade socioafetiva sobre a paternidade biológica no âmbito do direito sucessório, porquanto, embora conste na certidão de nascimento, em algumas circunstâncias, os pais biológicos sequer participam efetivamente da criação dos filhos ou com estes convivem, o que poderia demandar o ajuizamento de ações judiciais com finalidade puramente financeira.
Para tentar alcançar o objetivo acima, primeiramente, é necessário entender o conceito de multiparentalidade, bem como apresentar os fundamentos legais e jurídicos. Além disso, é imprescindível compreender como funciona a sucessão hereditária, e, em casos em que a multiparentalidade for reconhecida, estabelecer a forma em que se dará a partilha de bens entre os herdeiros.
Através da metodologia de pesquisa jurídica exploratória bibliográfica, documental e jurisprudencial e, por meio de método dedutivo, utilizou-se como principais fontes de pesquisa as doutrinas de Sílvio de Salvo Venosa, Flávio Tartuce, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, sobre Direito de Família e Direito das Sucessões, para construção do raciocínio final acerca da forma de divisão de bens em caso de multiparentalidade.
Dentre as linhas teóricas utilizadas, além da jurisprudência dos Tribunais Superiores, destacou-se o entendimento de Gagliano e Pamplona Filho (2020, p. 1156), sobre a pluriparentalidade: “Independentemente do vínculo sanguíneo, o vínculo do coração é reconhecido pelo Estado com a consagração jurídica da “paternidade socioafetiva.”
Na seara do Direito das Sucessões, entre os fundamentos utilizados na construção da presente pesquisa, ganhou maior ênfase a linha defendida por Tartuce (2020), quanto à interpretação dos dispositivos do Código Civil vigente, aplicáveis à vocação hereditária em caso de parentalidade plúrima, mormente a tese relacionada à divisão igualitária do patrimônio do falecido.
Para a edificação do tema, preliminarmente, buscar-se-á compreender o conceito de família sob a ótica constitucional, fazendo uma abordagem dos princípios que regem a filiação. A fim de entender a definição de multiparentalidade, caberá ao primeiro capítulo tratar também da paternidade socioafetiva no ordenamento jurídico interno.
Traçadas essas premissas iniciais, o capítulo seguinte é reservado para o enfrentamento do problema de pesquisa, momento em que serão analisados os dispositivos do Código Civil que tratam da vocação hereditária, com vistas a apurar os reflexos do reconhecimento da multiparentalidade no direito sucessório, especialmente no que toca à partilha de bens entre os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuge e companheiro).
Por fim, após exame das decisões dos Tribunais Superiores, diante da conceituação contemporânea de paternidade, fundamentada, precipuamente, no princípio da afetividade, verificar-se-á se a parentalidade socioafetiva prevalece sobre a biológica no direito à sucessão.
2 FAMÍLIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO: a questão da multiparentalidade
O Código Civil não traz o conceito de família. Não obstante, a Constituição da República de 1988 erigiu a família como fundamento da sociedade e a conferiu especial proteção do Estado, rompendo-se, definitivamente, o modelo tradicional de família formado apenas pelo pai, mãe e filhos, tudo em virtude das constantes transformações ocorridas em todo o mundo (BRASIL, 2021a).
Segundo Morais (2005, p. 745), a Carta Magna prevê três formas de entidades familiares:
A Constituição Federal garantiu ampla proteção à família, definindo três espécies de entidades familiares: a constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (CF, art. 226, §§ 1º e 2º); a constituída pela união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (CF, art. 226, § 3º); a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, § 4º).
Consoante se infere, a definição de família deixou de abarcar somente os pais e os filhos, mas passou a considerar como entidade familiar aquela dirigida pelo pai ou pela mãe, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, conforme artigo 1º, inciso III, da CF/88, nascendo, pois, o que a doutrina chama de família monoparental.
Nesse norte, ensina Pereira (2016, p. 314):
Ela não se constitui apenas de pai, mãe e filho, mas é antes uma estruturação psíquica em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente. Desfez-se a ideia de que a família se constituiu, unicamente, para fins de reprodução e de legitimidade para o livre exercício da sexualidade.
Sob esse prisma, o artigo 227, § 6º, da CF/88, consagrou o princípio da igualdade jurídica absoluta dos filhos, estabelecendo que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, [2021a], não paginado).
O princípio constitucional em evidência foi reproduzido, integralmente, no Código Civil de 2002, no artigo 1.596, eliminando-se, assim, a diferenciação entre filiação legítima e ilegítima, não se entendendo com família apenas um grupo de pessoas ligadas pela mesma linhagem sanguínea, mas, sobretudo, pelo vínculo de afetividade e solidariedade que permeiam as relações familiares.
Sobre o assunto, importa destacar as célebres palavras do civilista Venosa (2006, p. 230):
A família, doravante, deve gravitar em torno de um vínculo de afeto, de recíproca compreensão e mútua cooperação. A família passar a ter um conteúdo marcadamente ético e cooperativo e não mais econômico, resquício este da velha família romana e, nesse contexto, não há espaço para qualquer discriminação.
Tanto é verdade que a família não advém apenas dos laços de sangue que, mesmo não sendo possível definir marco inicial, o instituto da adoção está presente no ordenamento jurídico brasileiro, ao menos, desde o Código Civil de 1916, tratando-se de um ato jurídico fulcrado puramente em um vínculo afetivo capaz de formar uma linhagem.
Leciona Gonçalves (2017, p. 760):
O Código Civil de 1916 disciplinou a adoção com base nos princípios romanos, como instituição destinada a proporcionar a continuidade da família, dando aos casais estéreis os filhos que a natureza lhes negara. Por essa razão, a adoção só era permitida aos maiores de 50 anos, sem prole legítima ou legitimada, pressupondo-se que, nessa idade, era grande a probabilidade de não virem a tê-la.
Com isso, cabe aqui a seguinte indagação popular: pai ou mãe é quem cria ou quem gera? Respondendo a tal pergunta, Gagliano e Pamplona Filho (2020, p. 1153) são peremptórios: “Pensamos que não, na medida em que a condição paterna (ou materna) vai muito mais além do que a simples situação de gerador biológico, com um significado espiritual profundo, ausente nessa última expressão.”
A família, portanto, pode ser compreendida como uma reunião de pessoas ligadas pelo afeto, amor, comunhão, solidariedade, tolerância e acolhimento, a despeito de qualquer laço consanguíneo, onde seus envolvidos ostentam uma relação pública de pais e filhos.
2.1 Parentalidade socioafetiva: filhos de criação ou filhos do coração
Registrar como se fosse seu o filho nascido de outra pessoa não é prática recente no Brasil. Ao contrário, o Código Penal de 1940 já tipificava como crime tal conduta, conhecida, popularmente, como “adoção à brasileira”, nos termos do artigo 242 do referido diploma legal (BRASIL, [2021b]).
De se ver que, desde o século passado, era comum que famílias, principalmente as mais abastadas, ajudassem empregados, amigos, parentes e, até mesmo, pessoas desconhecidas, acolhendo seus filhos, para fins de criação, educação e cuidado, seja pela dificuldade financeira (famílias pobres com uma prole grande), seja pela discriminação social (mães solteiras), em sua grande maioria praticado por ato de distinta nobreza.
Outra situação bastante corriqueira, inclusive nos dias de hoje, são as hipóteses de homens que assumem a paternidade de filhos havidos por suas companheiras antes do início da união estável, chegando a registrá-los, mesmo cientes de que não são os pais biológicos.
Inclusive, nesse ponto, curial destacar trecho do voto do Ministro Luiz Fux no julgamento RE n.º 898.060/SC, utilizado como paradigma para a presente pesquisa:
Um exemplo bastante comum na realidade pátria é a chamada ‘adoção à brasileira’, em que o sujeito se vale da presunção de veracidade do registro público para declarar a paternidade em relação a criança que sabe não possuir sua herança genética. Cuida-se de gesto nobre, decorrente da vontade de preencher um espaço afetivo que de outra forma restaria vago na vida do menor. Por isso mesmo, alguns Tribunais de Justiça já regulamentaram o reconhecimento espontâneo da paternidade socioafetiva diretamente perante o Registro Civil de Pessoas Naturais, independentemente de declaração judicial. Tal regramento já existe, por exemplo, no âmbito do TJMA (Provimento 21/2013), do TJPE (Provimento 9/2013), do TJCE (Portaria 15/2013), do TJSC (Provimento 11/2014) e do TJAM (Provimento 234/2014), por exemplo. A filiação socioafetiva, porém, independe da realização de registro, bastando a consolidação do vínculo afetivo entre as partes ao longo do tempo, como sói ocorrer nos casos de posse do estado de filho. (BRASIL, 2017a, não paginado).
Inicia-se, pois, a parentalidade socioafetiva, não se podendo conceber a ideia de que tais situações não se encaixariam no conceito moderno de família, mesmo que inexista previsão expressa em lei.
Acerca do o vínculo de afetividade imanente das relações familiares, Pereira (2016, p. 358), verbera que:
Não é mais possível ao Direito ignorar a existência da paternidade socioafetiva, embora ela ainda não esteja em regramento legislativo expresso, não obstante a incidência do art. 1.593 do CC. Daí a importância e relevância da interpretação por meio de princípios, especialmente o princípio da afetividade, que é o veículo propulsor do reconhecimento jurídico de tal instituto. A inclusão do afeto como valor e como princípio não significa a exclusão dos laços biológicos. É preciso compatibilizar e encontrar ponderações entre as verdades biológicas e socioafetivas.
Apesar da ausência de disposição expressa no Código Civil de 2002, acerca da parentalidade socioafetiva, o Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar a questão da chamada “adoção à brasileira”, reconheceu e manteve o registro civil de um filho concebido fora do casamento, mas que fora registrado pela à época esposa do genitor, situação que perdurou por mais de quarenta anos, considerando o afeto como elemento especial que integra as relações familiares.
A propósito, a ementa do referido julgado:
FILIAÇÃO. ANULAÇÃO OU REFORMA DE REGISTRO. FILHOS HAVIDOS ANTES DO CASAMENTO, REGISTRADOS PELO PAI COMO SE FOSSE DE SUA MULHER. SITUAÇÃO DE FATO CONSOLIDADA HÁ MAIS DE QUARENTA ANOS, COM O ASSENTIMENTO TÁCITO DO CÔNJUGE FALECIDO, QUE SEMPRE OS TRATOU COMO FILHOS, E DOS IRMÃOS. FUNDAMENTO DE FATO CONSTANTE DO ACÓRDÃO, SUFICIENTE, POR SI SÓ, A JUSTIFICAR A MANUTENÇÃO DO JULGADO. - Acórdão que, a par de reputar existente no caso uma “adoção simulada”, reporta-se à situação de fato ocorrente na família e na sociedade, consolidada há mais de quarenta anos. Status de filhos. Fundamento de fato, por si só suficiente, a justificar a manutenção do julgado. Recurso especial não conhecido. (BRASIL, 2003, p. 371).
Ainda, sobre a parentalidade socioafetiva, Gagliano e Pamplona Filho (2020, p. 1153-1154), acrescentam que:
O que vivemos hoje, no moderno Direito Civil, é o reconhecimento da importância da paternidade (ou maternidade) biológica, mas sem fazer prevalecer a verdade genética sobre a afetiva. Ou seja, situações há em que a filiação é, ao longo do tempo, construída com base na socioafetividade, independentemente do vínculo genético, prevalecendo em face da própria verdade biológica.
De acordo com a doutrina e jurisprudência já pacificada sobre o tema, além da previsão constitucional (artigo 227, § 6º, da CF/88), a parentalidade socioafetiva, também encontra esteio no artigo 1.593, do Código Civil, ao estabelecer que o vínculo de parentesco pode ser natural ou civil, emergindo, portanto, da consanguinidade ou de outra origem (BRASIL, [2021a]).
Nessa linha de intelecção, o Enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal vaticina que: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” (BRASIL, 2016, não paginado).
No julgamento do Recurso Especial n.º 1000356/SP, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrigui, assentou que:
Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação. (BRASIL, 2010, não paginado).
Destarte, com o reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva, surge a discussão acerca da viabilidade de uma pessoa, simultaneamente, possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, ou seja, a possibilidade também de inclusão da origem biológica no assentamento de registro civil, o que se convencionou chamar de multiparentalidade, pluriparentalidade ou parentalidade plúrima.
2.2 Multiparentalidade: vínculos múltiplos de filiação
Com efeito, o instituto da multiparentalidade é a coroação do entendimento de que a família não se baseia único e tão somente em vínculos consanguíneos. Venosa (2006, p. 7), com o advento do Código Civil de 2002, já alertava a respeito dos novos fenômenos sociais oriundos do novo modelo familiar, salientando que os “novos casamentos dos cônjuges separados formam uma simbiose de proles.”
É nesse contexto que exsurgem as situações de madrastas e/ou padrastos que zelam de seus enteados sem que estes rompam o relacionamento com os pais ou mães biológicas, formando, com isso, vínculos sólidos de afetividade, em alguns casos, chamando-os, inclusive, de pai, mãe, tios ou tias.
A propósito, impende ressaltar os ensinamentos Fux ([200-?], não paginado apud DIAS, 2016, p. 412):
[...] não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. [...] Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 898.060/SC, sedimentou o entendimento sentido de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.” (BRASIL, 2017a, p. 4).
Doravante, em sendo reconhecida a paternidade biológica através de exame de DNA, por exemplo, havendo pai registral e demonstrado o vínculo socioafetivo, é desnecessária a desconstituição do registro civil, sendo possível constar, concomitantemente, na certidão de nascimento, as duas paternidades (biológica e socioafetiva), entendimento este fundamentado na definição pluralista da família contemporânea.
Nesse sentido, destaca-se o seguinte precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Ação de investigação de paternidade. Sentença que determina a exclusão dos pais socioafetivos do assento de nascimento da requerente, bem como a respectiva inclusão de seus pais biológicos. Irresignação. Acolhimento. Multiparentalidade reconhecida. Pais em dobro (genitores biológicos e genitores socioafetivos). Paternidade socioafetiva que não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os respectivos efeitos jurídicos que lhes são próprios. Multiparentalidade admitida pelo C. STF (Tema 622, com repercussão geral). Inexistência, outrossim, de prevalência ou hierarquia entre as referidas modalidades de vínculo parental. Acolhimento expresso da possibilidade jurídica de pluriparentalidade. Precedentes. Duplicidade de laços (consanguíneo e socioafetivo) que garante a isonomia filiatória e atende ao melhor interesse do descendente. Caso concreto que não encerra peculiaridades hábeis a afastar a possibilidade de reconhecimento do duplo vínculo, sobretudo ante a longa convivência entre a requerente e os genitores socioafetivos. Manutenção de assento dissociado da realidade inviável. Sentença reformada. Recurso provido. (SÃO PAULO, 2020, não paginado).
Corroborando tal assertiva, uma vez mais, o Ministro Luiz Fux, no julgamento do ARE 1286529/DF, consignou que “[...] a relevante evolução do ordenamento jurídico pátrio caminha no sentido de que a paternidade não pode ser vista exclusivamente sob enfoque biológico, pois é sobremaneira relevante o aspecto socioafetivo da relação tida entre pai e filho, inclusive admite-se a dupla paternidade concomitante.” (BRASIL, 2021c, p. 4).
Ocorre que, no julgamento do RE 898.060/SC, o relator, Ministro Luiz Fux, além do reconhecimento da dupla parentalidade, ou seja, manutenção da paternidade socioafetiva e biológica no registro civil, também acabou por reconhecer, pela via reflexa, todos os efeitos jurídicos decorrentes do estado de filiação, quais sejam, identidade genética, nome, alimentos e, no que pertine à presente pesquisa, o direito à herança.
Diante do entendimento sufragado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, questiona-se acerca dos contornos jurídicos relacionados à partilha de bens dos pais ou do filho falecido em casos de multiparentalidade, visando verificar se, nessas situações, deve prevalecer a parentalidade socioafetiva ou biológica.
3 MULTIPARENTALIDADE: consequências afetas ao direito das sucessões
Sem dúvidas, um dos principais reflexos quanto ao reconhecimento da filiação diz respeito aos efeitos patrimoniais, dentre eles, o direito à herança.
Considera-se como herança o patrimônio deixado por alguém quando da sua morte. Segundo Venosa (2007, p. 7), consiste no “conjunto de direitos reais e obrigacionais, ativos e passivos, pertencentes a uma pessoa” e o “patrimônio transmissível, portanto, contém bens materiais e imateriais, mas sempre coisas avaliáveis economicamente.”
Dispõe o artigo 1.784, do Código Civil, que, havendo a morte (sistema saisine), a herança transmite-se, imediatamente, aos herdeiros legítimos e testamentários (VENOSA, 2007, p. 14).
Coloca-se na condição de herdeiro aqueles delineados no artigo 1.829, do Código Civil:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais (BRASIL, [2021d], não paginado).
Para a presente pesquisa, na ordem de vocação hereditária, importa apenas a sucessão pelo descendente e ascendente, chamados na doutrina de herdeiros necessários, porquanto, em conformidade com a decisão preferida pelo Supremo Tribunal Federal, em caso de multiparentalidade reconhecida, poderá o filho receber herança de dois pais, assim como poderá ocorrer o sentido inverso, ou seja, a herança do filho ser partilhada entre vários pais e mães.
3.1 Vocação hereditária na parentalidade plúrima
Registre-se, antes de tudo, que o Código Civil não estabelece a forma em que se dará a partilha de bens do de cujus no caso de multiparentalidade. Portanto, para se compreender, ao menos em tese, a divisão dos bens do falecido, seja em relação ao filho, seja em relação aos pais, a análise será realizada com base nos dispositivos previstos no Código Civil vigente, pensados pelo legislador apenas sob a ótica de constituição de uma família monoparental.
Consoante decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal, caso o filho decida em manter no seu registro de nascimento tanto o pai socioafetivo quanto o biológico, poderá ter direito a receber a herança de ambos. Nesse sentido, prelecionam Gagliano e Pamplona Filho (2020, p. 1169):
De acordo com o voto do relator, Min. Luiz Fux, caberá ao filho, de acordo com o seu próprio interesse, decidir se mantém em seu registro apenas o pai socioafetivo ou ambos, o socioafetivo e o biológico. Com efeito, mesmo que não tenha construído com o genitor (pai biológico) vínculo de afetividade algum, terá o direito de fazer constar o nome dele em seu registro, ainda que seja para fim meramente econômico, a exemplo de fazer jus à sua herança. Aliás, poderá ter direito a duas heranças, caso também seja feito o registro do pai socioafetivo.
Assim, em linhas gerais, de acordo com o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil, com a morte do autor da herança, serão chamados à sucessão, inicialmente, os descendentes, concorrendo com o cônjuge sobrevivente, garantindo-se sempre o direito ao recebimento dos mais próximos em detrimento dos mais distantes (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2021, p. 352).
No mesmo sentido é o enunciado 642 da VIII Jornada de Direito Civil do STJ/CFJ: “Nos casos de reconhecimento de multiparentalidade paterna ou materna, o filho terá direito à participação na herança de todos os ascendentes reconhecidos.” (BRASIL, 2018, não paginado).
E mais, no julgamento do REsp 1618230/RS, o Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que “a pessoa criada e registrada por pai socioafetivo não precisa, portanto, negar sua paternidade biológica, e muito menos abdicar de direitos inerentes ao seu novo status familiae, tais como os direitos hereditários” (BRASIL, [2017b], p. 4).
Sem embargo, a problemática também reside em situação diametralmente oposta, ou seja, na hipótese de sucessão pelos ascendentes, pois, nesse caso, na certidão de nascimento poderão constar, concomitantemente, os pais biológicos e os pais socioafetivos.
A despeito do vínculo de parentalidade, seja biológico ou socioafetivo, não havendo o falecido deixado descendente, a herança, nos termos do artigo 1.836, do Código Civil, será transferida aos ascendentes, da seguinte forma:
Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente.
§ 1º Na classe dos ascendentes, o grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas.
§ 2º Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna. (BRASIL, [2021d], não paginado).
Para exemplificar a dicção do § 1º do dispositivo acima transcrito, Gagliano e Pamplona Filho (2021, p. 382), ensinam que:
se Joaquim falece, não deixando descendentes, a sua herança, segundo as regras da sucessão legítima, deverá ser deferida aos seus ascendentes vivos, preferindo-se o pai vivo ao avô (haja vista que o parente mais próximo, como dito, exclui o mais remoto)
Desse modo, no exemplo em evidência, na família monoparental, se o falecido deixa pai e mãe vivos, seu patrimônio será partilhado igualmente entre os pais, isto é, metade para um e metade para o outro, desde que não seja casado ou não conviva em união estável.
Porém, surge mais uma questão: na hipótese de multiparentalidade, como se dará a partilha, considerando que na certidão de nascimento, por exemplo, pode coexistir uma mãe biológica, um pai socioafetivo e um pai biológico?
Para tentar suprir a lacuna da legislação vigente, o Conselho Federal da Justiça também editou o Enunciado 642, estabelecendo que:
Nas hipóteses de multiparentalidade, havendo o falecimento do descendente com o chamamento de seus ascendentes à sucessão legítima, se houver igualdade em grau e diversidade em linha entre os ascendentes convocados a herdar, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os genitores. (BRASIL, 2018a, não paginado).
A comissão científica presidida pelo Ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, na VIII Jornada de Direito Civil, justificou a fixação da tese da seguinte maneira:
Nas hipóteses de multiparentalidade, diante do falecimento de um descendente, com o chamamento à sucessão de seus ascendentes, poderão ser convocados a herdar dois ascendentes da linha paterna e um da linha materna, por exemplo, ou vice‐versa. A tradicional divisão da herança na classe dos ascendentes em linha paterna e linha materna não atende à referida hipótese, pois, uma vez observada literalmente nos casos em questão, ensejará diferença entre os ascendentes não pretendida pela lei. De fato, nesses casos, não se pode atribuir, por exemplo, metade da herança aos dois ascendentes da linha paterna, cabendo a cada um deles um quarto dos bens, atribuindo a outra metade ao ascendente da linha materna, uma vez que a mens legis do § 2º do art. 1.836 do Código Civil foi a divisão da herança conforme os troncos familiares. Por conseguinte, para atingir o objetivo do legislador, nos casos em questão de multiparentalidade, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os genitores. (BRASIL, 2018b, p. 13).
À vista disso, nos casos de multiparentalidade, a divisão da herança entre os múltiplos ascendentes será sempre igualitária, por melhor prestigiar os princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade, conforme entendimento Tartuce (2020, p. 2242).
Ao contrário do que ocorre com a sucessão do descendente, o cônjuge supérstite concorre com os herdeiros ascendentes, independentemente do regime de bens do casal, conforme determina o artigo 1.837, do Código Civil: “Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.”
Sobre o tema, cabe frisar, uma vez mais, o entendimento de Gagliano e Pamplona Filho (2021, p. 382):
Em tal caso, concorrendo com ascendente em primeiro grau (o pai ou a mãe do falecido), ao cônjuge tocará um terço da herança (1/3); caber-lhe-á a metade (1/2) desta, todavia, se houver um só ascendente vivo, ou se maior for aquele grau (concorrendo com os avós, por exemplo). Tal regra, positivada no art. 1.837302 do Código Civil, é, na sua parte inicial, de clara obviedade, se a intenção foi dar uma equanimidade aritmética, uma vez que, concorrendo com um ou dois ascendentes, a divisão por dois ou três lhe garantirá exatamente o percentual definido. O diferencial está, apenas, quando concorrer com ascendentes de grau superior, pois, aí, sim, ficará garantida metade da herança, dividindo-se o remanescente entre os demais (imagine-se, por exemplo, que haja quatro avós sobreviventes. Neste caso, o cônjuge ficará com metade, cabendo aos avós partilharem o restante).
No que tange ao quinhão do cônjuge ou companheiro concorrente com ascendentes, Tartuce (2020), propõe o mesmo raciocínio quando à partilha dos bens do de cujus, ou seja, a divisão igualitária. Em sua doutrina, o referido jurista encampa o entendimento esposado pelo Professor Simão (2004, p. 53 apud TARTUCE, 2020, p. 2243), que defende a interpretação teleológica do artigo 1.837, do Código Civil, nos seguintes termos:
se o objetivo da lei foi igualar pai, mãe e cônjuge em matéria sucessória, no caso de multiparentalidade a divisão da herança se dará por cabeça, com grande facilitação do cálculo dos quinhões”. Vale repetir a seguinte ilustração apresentada pelo doutrinador: “João morre e deixa sua mulher, Maria, seu pai Antonio, seu pai Pedro, sua mãe Eduarda e sua mãe Rita: 1/5 para Maria, 1/5 para Antonio, 1/5 para Pedro, 1/5 para Rita e 1/5 para Eduarda. Nesse exemplo, a herança se divide em partes iguais.
Conforme se depreende, o entendimento sedimentado no Supremo Tribunal Federal acerca do reconhecimento da multiparentalidade implicou em profundas alterações não só na esfera do Direito de Família, mas repercutiu diretamente no Direito das Sucessões.
Para arrematar o objetivo proposto com a presente pesquisa, passa-se à discussão acerca da suposta preponderância da parentalidade socioafetiva sobre a parentalidade biológica, porquanto, em determinadas situações concretas, não havendo vínculo de convivência entre o filho e o pai biológico, não seria razoável a inclusão deste na certidão de nascimento apenas para fins patrimoniais. Afinal, conforme exposto alhures, família é afeto e a construção deste vínculo só ocorre com o tempo de convivência.
3.2 Preponderância entre vínculos de parentalidade no Direito Sucessório
Com efeito, diante da patente evolução do Direito Civil, a parentalidade socioafetiva assumiu singular importância na construção da família. Não há como, hoje, dissociar a família do afeto, pois, conforme debatido em linhas volventes, genitor ou genitora não são sinônimos de pai ou mãe, respectivamente.
Questionou-se, inicialmente, na doutrina, se era admissível a prevalência da parentalidade socioafetiva sobre a biológica ou vice-versa, até mesmo porque o artigo 48, caput, da Lei Federal n.º 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente -, já previa o direito do adotado em “conhecer sua origem biológica” (BRASIL, [2021e], não paginado).
Todavia, a filiação não se confunde com ascendência genética. Com muita maestria, sobre esta distinção, Lôbo ([199-?], p. 200 apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2020, p. 1162-1164), preleciona que:
O estado de filiação, decorrente da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família, e a segunda, de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram. Para garantir a tutela do direito da personalidade, não é necessário investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é a garantia do direito da personalidade, na espécie, direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para a necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos, para prevenção da própria vida. Não há necessidade de atribuição da paternidade para o exercício do direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por doador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou concebido por inseminação artificial heteróloga.
Com o julgamento levado a efeito na Suprema Corte, descabe falar-se em sobreposição entre vínculos de parentalidade. Segundo a doutrina de Tartuce (2020, p. 656), da decisão em debate é possível destacar três consequências:
A primeira delas é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, no sentido de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira. A segunda consequência, repise-se, é a afirmação de ser a paternidade socioafetiva uma forma de parentesco civil (nos termos do art. 1.593 do CC), em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável equilíbrio. A terceira consequência é a vitória da multiparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessório.
Uma possível pluralidade de direitos, principalmente patrimoniais, já era esperada pela doutrina com o advento da multiparentalidade. Ocorre que o precedente do Pretório Excelso vai além do reconhecimento da parentalidade plúrima, consagrando-se a tese de que o vínculo de filiação deve produzir todos os efeitos jurídicos patrimoniais e extrapatrimoniais, tanto em relação aos pais socioafetivos quanto em relação aos pais biológicos.
Com isso, abre-se a possibilidade de ajuizamento de ações de investigação ou contestação de paternidade com fins meramente econômicos. Tartuce (2020, p. 657), nesse ponto, manifestou-se contrário à tese fixada no Supremo Tribunal Federal, situação por ele denominada de “demandas frívolas”:
A tese firmada também acaba por possibilitar que os filhos acionem os pais biológicos para obter o vínculo de filiação com intuitos alimentares e sucessórios, em claras demandas frívolas, com finalidade patrimonial pura. Segue-se, assim, o caminho que já vinha sendo percorrido pelo STJ, e que era por nós criticado. Esse foi um dos pontos negativos da premissa fixada, na opinião deste autor. Em todos os casos, pensamos, tais demandas devem ser evitadas. Cite-se, a propósito, o caso de um pai biológico que pleiteia a paternidade para si de filho já registrado em nome de pai socioafetivo, com fins puramente econômicos.
A despeito disso, pensa-se que é necessário adotar-se um meio termo, sempre analisando as nuances do caso concreto. Não se pode excluir o direito à herança pelo simples fato de pai e filho biológico nunca terem convivido juntos e, por conseguinte, inexistir vínculo de afetividade.
Isso porque, é plenamente viável que o filho venha a tomar conhecimento da ascendência genética após a morte do pai biológico, por exemplo, porquanto, não raras vezes, as famílias socioafetivas escondem, por medo do abandono, a origem consanguínea do filho. Nesse caso hipotético, acredita-se que o filho não pode ser prejudicado, ainda que ingresse com a ação de reconhecimento de paternidade post mortem, ainda que seja com propósito de receber eventual herança deixada pelo pai biológico.
De todo modo, o RE n.º 898.060/SC afastou qualquer relação de hierarquia entre a parentalidade socioafetiva e a biológica, as quais, a despeito da vontade das partes, devem coexistir, surgindo, pois, como regra, a multiparentalidade, em obediência ao princípio constitucional da paternidade responsável, diretriz utilizada pelo Ministro Luiz Fux no julgamento do recurso em debate (BRASIL, 2017a).
A propósito, trecho extraído do referido voto:
a paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7.º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060 PROCED. : SANTA CATARINA RELATOR : MIN. LUIZ FUX).
No mesmo diapasão, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou situação em que, ao ser reconhecida a multiparentalidade, o juiz determinou que, no registro civil, fosse feita a diferenciação entre o pai socioafetivo e o pai biológico, excluindo-se, ainda, os efeitos patrimoniais e sucessórios.
No julgamento do REsp nº 1.487.596/MG, a Quarta Turma do Tribunal de Cidadania, reafirmou o entendimento da Suprema Corte ao reconhecer a inexistência preponderância entre vínculos de parentalidade no Direito Sucessório, vedando-se qualquer tipo de tratamento desigual entre os filhos, a teor do que dispõe o artigo 227, § 6º, da CF/88 (BRASIL, 2021f).
Colhe-se, pois, do aresto em estudo:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO. PAI BIOLÓGICO. PAI SOCIOAFETIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese: ‘a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios) [...]. 2. A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir ‘status’ diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos. 3. No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo ‘pai socioafetivo’, e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios. 3.1. Ao assim decidir, a Corte estadual conferiu à recorrente uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes do ‘genitor socioafetivo’, violando o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990. 4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade. (BRASIL, 2021f, não paginado).
Portanto, de todo o arrazoado, conclui-se que, embora a entidade familiar seja fundada em vínculos de afeto, não é possível afirmar que parentalidade socioafetiva deve preponderar sobre a parentalidade biológica na hipótese de multiparentalidade, mesmo que tenha por fundamento o princípio da afetividade, devendo ser garantido aos sucessores todos os direitos patrimoniais decorrentes do reconhecimento do vínculo de filiação.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A finalidade da presente pesquisa foi verificar se, nos casos de multiparentalidade, a parentalidade socioafetiva deve se sobrepor sobre a parentalidade biológica quanto à divisão de eventual herança, principalmente em situações em que não há entre os envolvidos nenhum vínculo, a não ser a ascendência genética.
Para tanto, foi realizada uma análise dos princípios constitucionais que regem a entidade familiar, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade jurídica absoluta dos filhos e, principalmente, o princípio da paternidade responsável, a fim de traçar os fundamentos da parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro.
Através do julgamento do RE n.º 898.060/SC, o Supremo Tribunal Federal reconheceu não só a presença da paternidade socioafetiva como uma das formas de parentesco civil, nos termos do artigo 1.593, do Código Civil, mas, sobretudo, a impossibilidade de se definir um grau de hierarquia entre uma modalidade e outra de filiação. E mais, a Tese 622, além de não impedir o reconhecimento simultâneo do vínculo socioafetivo e biológico, ainda garantiu todos os efeitos jurídicos próprios da filiação, ou seja, patrimoniais e extrapatrimoniais.
A multiparentalidade é fruto da construção doutrinária e, assim como parentalidade socioafetiva, não há previsão expressa no Código Civil vigente, seja no capítulo relacionado ao Direito de Família, seja no capítulo destinado ao Direito Sucessório, porquanto pensado, à época, para o modelo de família monoparental.
Com o advento da multiparentalidade, sobreveio a possibilidade de haver, no registro de nascimento, dois pais ou de duas mães, com vínculo biológico e socioafetivo, não havendo previsão de qual das paternidades deve prevalecer durante a partilha de bens do de cujus.
De início, o Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que, em relação ao filho, este poderá perfeitamente ter direito às duas heranças, cabendo a ele decidir se mantém o pai socioafetivo e biológico na certidão de nascimento, ainda que para fins meramente patrimoniais.
Em regra, pela ordem natural da vida, os filhos sucedem os pais, mas pode ocorrer o inverso, conforme prevê o artigo 1.836, do Código Civil, ao tratar sobre a sucessão dos ascendentes.
Assim, na hipótese de parentalidade múltipla, coexistindo uma pluralidade de ascendentes socioafetivos e biológicos, como se dará a partilha de bens? Uma modalidade de parentalidade deve preponderar sobre a outra e, via de consequência, receber um quinhão hereditário a maior? Havendo dois pais e uma mãe, a herança será dividida igualmente entre os três?
Para responder às indagações levantadas na presente pesquisa, diante da lacuna legal, tanto a doutrina quanto a jurisprudência consagraram o entendimento de que a divisão da herança entre os ascendentes será sempre em quotas iguais, em homenagem aos princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade.
Da mesma forma, em relação ao quinhão do cônjuge ou companheiro, havendo concorrência com os ascendentes, a divisão dos bens também será igualitária, conforme interpretação teleológica dos dispositivos que regem a matéria, merecendo destaque o entendimento firmado por Tartuce.
Com base no precedente da Suprema Corte, também seria cabível o ajuizamento de ação pelo pai biológico também para fins meramente patrimoniais, ainda que inexista qualquer vínculo afetivo entre pai e filho.
A jurisprudência, tanto no Supremo Tribunal Federal quanto do Superior Tribunal de Justiça, é unânime no sentido de que não há prevalência entre os vínculos de parentalidade devendo ser garantido aos sucessores todos os direitos patrimoniais decorrentes do reconhecimento do vínculo de filiação.
Ao fim e ao cabo, revela-se mais consentâneo o entendimento de que, nas hipóteses de multiparentalidade, a despeito do vínculo de afetividade, na sucessão dos ascendentes, em concorrência ou não com o cônjuge o companheiro do falecido, a divisão dos bens deve ocorrer de forma igualitária entre os herdeiros, em homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica absoluta dos filhos e, principalmente, o princípio da paternidade responsável.
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[1] Graduanda do curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP). E-mail: [email protected]
Especialista em Ciências Criminais. Professor da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP). Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Bruno Vinícius Nascimento. A multiparentalidade e o direito de suceder Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez 2021, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57923/a-multiparentalidade-e-o-direito-de-suceder. Acesso em: 23 dez 2024.
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