RESUMO: O presente trabalho pretende analisar os aspectos atinentes ao crime de remoção irregular de órgãos e tecidos humanos, previsto no art. 14 da Lei nº. 9.434/1997 (Lei de Transplantes), abordando desde o contexto normativo em que se insere o regramento sobre os transplantes de órgãos, passando pela leitura do tipo penal à luz dos conceitos e classificações doutrinários pertinentes e as respectivas divergências, até o cotejo da jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre a matéria, inclusive no que toca às controvérsias provenientes das discussões doutrinárias, especialmente em relação ao Caso Pavesi, concluindo sobre os seus acertos e desacertos, bem como as expectativas.
Palavras-chave: Remoção de órgãos humanos; Caso Pavesi.
1 INTRODUÇÃO
A preservação integridade física é direito da personalidade inerente à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988) e, por isso mesmo, é indisponível, em princípio.
Porém, dada sua relevância, a remoção de órgãos e tecidos humanos recebeu especial atenção do constituinte, por se tratar de matéria importância crucial para a saúde e incolumidade públicas.
Em seu art. 199, §4º, a Constituição Federal prevê o seguinte:
“A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.
Nesse contexto, o art. 13 do Código Civil estabelece que o ato de disposição do próprio corpo é defeso, quando importa diminuição permanente da integridade ou contrariar os bons costumes, salvo por exigência médica, hipótese em que a disposição se dirige, em verdade, à preservação da integridade física. Ademais, o parágrafo único desse dispositivo legal prevê que esse ato de disposição do próprio corpo é admitido para fins de transplante, na forma da lei especial, que é a Lei nº. 9.434/1997.
Já o art. 14 do CC/2002 dispõe que “é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”, e que “o ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”. Esse artigo trata da possibilidade de a pessoa declarar-se doadora de órgãos e tecidos, quando em vida, podendo revogar esse consentimento a qualquer instante.
Tem-se, portanto, que, mesmo após a morte, não é possível a comercialização de órgãos e tecidos humanos para fins de transplante, conclusão que é exposta no art. 1º da Lei nº. 9.434/1997:
Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.
As normas relativas à remoção de órgãos e tecidos dos corpos de pessoas mortas deve ser lido à luz do princípio da solidariedade familiar e sua especial proteção enquanto base da sociedade, prevista no art. 226 da CF/1988 (“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”). Assim, mesmo após a morte, a retirada do material dos corpos das pessoas falecidas para transplantes ou outras finalidades terapêuticas deve ser precedida da autorização do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, na ordem da linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, em instrumento assinado por duas testemunhas que tenham presenciado a aferição e declaração da morte, conforme dispõe o art. 4º da Lei de Transplantes. Em se tratando de pessoa incapaz quando em vida, a remoção, depois do falecimento, é possível, mas depende da autorização expressa de ambos os pais ou do responsável legal (art. 5º).
É, ainda, vedada a remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas, mesmo após seu falecimento, por força do art. 6º da Lei de Transplantes. Se a morte ocorrer sem assistência médica, se der-se em decorrência de causa mal definida ou se ocorrer situação na qual haja indicação de verificação médica específica, a remoção de tecidos, órgãos ou partes do cadáver só poderá ser realizada após a autorização do patologista do serviço de verificação de óbito responsável pela investigação e deve constar do relatório de necrópsia (art. 7º, parágrafo único). Após a retirada, em qualquer caso, o cadáver deve ser recomposto para ser entregue aos parentes ou responsáveis legais, liberado para o sepultamento (art. 8º).
Para fins de transplante, a retirada “post mortem” dos órgãos, tecidos ou partes dos corpos humanos exige o prévio diagnóstico de morte encefálica, na forma do art. 3º da Lei nº. 9.434/1997:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
§ 1º Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos exames referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos documentos de que tratam os arts. 2º, parágrafo único; 4º e seus parágrafos; 5º; 7º; 9º, §§ 2º, 4º, 6º e 8º, e 10, quando couber, e detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2º por um período mínimo de cinco anos.
§ 2º Às instituições referidas no art. 2º enviarão anualmente um relatório contendo os nomes dos pacientes receptores ao órgão gestor estadual do Sistema único de Saúde.
§ 3º Será admitida a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica.
Quanto à disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo para fins de transplante ou tratamento, o art. 9º da Lei nº. 9.434/1997 dispõe o seguinte:
Art. 9º É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.
§ 1º (VETADO)
§ 2º (VETADO)
§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.
§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.
§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.
§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.
§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.
§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais.
À pessoa viva capaz, é lícito dispor de órgãos, tecidos ou partes do seu corpo, para fins terapêuticos ou de transplantes, em favor de cônjuge, companheiro ou parentes até o quarto grau. A autorização judicial é exigida apenas no caso de o beneficiário não ser cônjuge, companheiro ou parente do doador. Além disso, em qualquer caso, não reserva de jurisdição para doação de medula óssea.
A autorização para retirada por parte do doador deve ser expressa e indicar precisamente o órgão, o tecido ou a parte do corpo a ser removida, preferencialmente por escrito. É o denominado princípio do consenso afirmativo, abordado por Fávio Tartuce:
“Nos termos da legislação brasileira, a retirada post mortem dos órgãos deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica e depende de autorização de parente maior, da linha reta ou colateral até o 2º grau, ou do cônjuge sobrevivente, mediante documento escrito perante duas testemunhas (art. 4º da Lei n. 9.434/1997, devidamente atualizada pela Lei n. 10.211/2001). Quanto a essa retirada, é interessante dizer que a lei nacional adota o princípio do consenso afirmativo, no sentido de que é necessária a autorização dos familiares do disponente. A Lei n. 10.211/2001 veio justamente afastar a presunção que existia de que todas as pessoas eram doadores potenciais, o que era duramente criticado pelas comunidades médica e jurídica”[1].
Ressalte-se, no entanto, que pessoas vivas apenas podem doar órgãos duplos (rins, por exemplo) e partes de órgãos e tecidos que não impeçam a continuidade da vida em prejuízo das funções vitais do organismo, bem como sem ofensa desproporcional à integridade física (fígado, por exemplo). O receptor, por sua vez, deve possuir real necessidade terapêutica de ser transplantado, com a comprovação respectiva em laudo médico. Verifica-se, portanto, a aplicação do binômio necessidade-possibilidade.
Não é demais salientar que a revogação da autorização poder se dar a qualquer momento antes da realização do procedimento, pelo doador ou seu responsável legal, dispensados o paralelismo de formas ou qualquer outra formalidade.
Em suma, matéria foi densamente regulamentada pela Lei nº. 9.434/1997 e pelo Decreto nº. 9.175/2017, além de diversos outros instrumentos infralegais de natureza técnica, tendo o legislador estabelecido uma série de sanções, administrativas e penais, passíveis de aplicação se violadas as disposições normativas pertinentes.
2 O CRIME DE REMOÇÃO ILEGAL DE ÓRGÃOS E TECIDOS À LUZ DAS CLASSIFICAÇÕES DOUTRINÁRIAS
Segundo Luiz Régis Prado:
“Bem jurídico é um ente material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade e, por isso, juridico-penalmente protegido. Deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico vazado na Constituição e com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito”[2].
O Direito Penal, enquanto expressão máxima do “jus puniendi”, deve ocupar-se apenas dos bens jurídicos mais relevantes e caros à sociedade. Sob a perspectiva da proporcionalidade, a qualquer ação contrária ao direito, deve corresponder reação estritamente necessária para superar o conflito, indubitavelmente adequada para o caso, e cujos efeitos assegurem maiores benefícios do que prejuízos à coletividade. Para além disso, a proteção insuficiente dos bens jurídicos também representa ofensa ao princípio da proporcionalidade.
Lênio Streck assim expõe:
“Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador”[3].
Nessa senda, enquanto houver outros meios aptos a solucionar litígios e controvérsias, não deve haver a incidência do direito penal, sob pena de subverter a lógica funcional do sistema penal e, em última análise, enfraquecer a cogência da norma e fragilizar o ordenamento jurídico vigente.
Trata-se do princípio da intervenção mínima, decorrente implicitamente, do texto constitucional, em suas perspectivas de subsidiariedade e fragmentariedade.
Ensina Nilo Batista:
“Tobias Barreto percebera que ‘a pena é um meio extremo, como tal é também a guerra’. E, de fato, por constituir ela, como diz Roxin, a ‘intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao estado’, entende-se que o estado não deva ‘recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não penais’, como leciona Quintero Olivares. O conhecimento de que a pena é, nas palavras desse último autor, uma ‘solução imperfeita’ – conhecimento que, de Howard até a mais recente pesquisa empírica, a instituição penitenciária só logrou fortalecer – firmou a concepção da pena como a ‘ultima ratio’: o direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito’”.
E continua:
“O princípio da intervenção mínima não está expressamente inscrito no texto constitucional (de onde permitiria o controle judicial das iniciativas legislativas penais) nem no código penal, integrando a política criminal; não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei, como um daqueles princípios imanentes a que se referia Cunha Luna, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do estado de direito democrático. Ao princípio da intervenção mínima se relacionam duas características do direito penal: a fragmentariedade e a subsidiariedade”[4].
Atento, portanto, a tais preceitos, é que considerou o legislador necessária a excepcional intervenção do Direito Penal, nos arts. 14 a 20 da referida Lei, em caso de descumprimento das suas determinações.
2.1 Quanto ao bem jurídico
Classificam-se os crimes, quanto ao número de bens jurídicos tutelados, em uniofensivos (mono-ofensivos) e pluriofensivos. Enquanto naqueles os fatos correspondem à violação de um único bem jurídico, nestes há atentado contra mais de uma espécie de bem jurídico.
A Lei nº. 9.434/1997 visa a resguardar a integridade física das pessoas e a incolumidade, propiciando o acesso aos transplantes e terapias que envolvam utilização de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Protegem-se, assim, primordialmente, a vida e a saúde das pessoas.
Especificamente, o tipo penal do art. 14 da Lei tutela também a ética médica, a exigir a observância das normas legais e infralegais de regência, como forma de impedir a retirada irregular dos tecidos e órgãos humanos, ainda que envolva pessoa morta.
2.2 Quanto aos sujeitos
Com relação ao sujeito ativo, os crimes são classificados em comuns, próprios e de mão própria. Os primeiros, também denominados gerais, podem ser praticados por qualquer pessoa, não sendo exigida qualquer condição especial do sujeito ativo.
Cléber Masson aponta que é possível falar em crimes “bicomuns”:
“Fala-se também em crimes bicomuns, compreendidos como aqueles que podem ser cometidos por qualquer pessoa e contra qualquer pessoa, isto é, não se reclama nenhuma situação especial, seja em relação ao sujeito ativo, seja no tocante ao sujeito passivo”[5].
Os crimes próprios (especiais), por sua vez, exigem alguma condição especial do sujeito ativo. Dividem-se em puros, em que a ausência dessa condição peculiar implica atipicidade da conduta; e impuros, em que, na falta da condição especial, haverá adequação típica em outro crime. Há, ainda, os crimes próprios com estrutura inversa, que descrevem os crimes praticados por funcionários públicos contra a Administração Pública, desde que no exercício da função pública.
Da mesma forma que os crimes “bicomuns”, também é possível vislumbrar a existência de crimes “bipróprios”, que exigem condição peculiar de ambos os sujeitos ativo e passivo.
Por último, os crimes de mão própria (conduta infungível ou atuação pessoal) somente podem ser cometidos por pessoa indicada pelo tipo penal.
Assim, em relação tipo penal em análise, prevalece que o crime é “bicomum”, na medida em que não se exigem condições especiais dos sujeitos ativo ou passivo.
Ressalte-se, no entanto, que há quem defenda se tratar de crime próprio, considerando o disposto no art. 2º da Lei nº. 9.434/1997:
Art. 2º A realização de transplante ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá ser realizada por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde.
Parágrafo único. A realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos e partes do corpo humano só poderá ser autorizada após a realização, no doador, de todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação exigidos em normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde.
Discorda-se dessa orientação, na medida em que o tipo penal pune justamente a remoção irregular dos órgãos e tecidos; o objeto é exatamente o descumprimento das normas de regência. Seria contraditório exigir condição especial do sujeito ativo, se o objetivo é punir quem não atende aos requisitos legais.
Logo, qualquer pessoa pode praticar o crime, assim como qualquer pessoa pode ser vítima dele. Ademais, é de se destacar que tanto a pessoa viva quanto a pessoa morta podem ser atingidos pela ação. No primeiro caso, se o objeto do crime é o tecido da pessoa viva, esta é a vítima. Se é pessoa morta, a vítima é a coletividade, já que cadáver não é pessoa.
2.3 Quanto à estrutura do tipo penal
São ditos crimes simples os que descrevem condutas que se amoldam a um tipo penal singular. Os complexos, por outro lado, resultam da união de mais de um tipo penal (complexo em sentido estrito) ou da união de um tipo penal a um comportamento que, por si, é penalmente irrelevante (complexo em sentido amplo). Os tipos penais que compõem a estrutura do crime complexo são denominados famulativos.
Tanto a forma simples quanto as qualificadoras dessa figura típica representam, na verdade, versões especializadas de outros tipos penais previstos na legislação, inclusive com sua conjugação em crimes complexos e pluriofensivos.
Enquanto, o “caput” do dispositivo legal representa uma forma especializada do crime de furto, quando cometido contra cadáver (art. 155 do CP), ou concurso de furto com lesão corporal levem, quando praticado contra pessoa viva (art. 129, “caput”, do CP), os §§2º e 3º traduzem a maior gravidade da conduta que, além da remoção irregular, provoca lesões corporais graves e gravíssimas, respectivamente (art. 129, §§1º e 2º, do CP).
Em relação ao §1º, o legislador conferiu tratamento de circunstância qualificadora à promessa de recompensa ou outro motivo torpe, diferentemente do Código Penal, que, em regra, as considera agravantes genéricas.
Por fim, o §4º pune de forma mais gravosa o resultado morte, de forma semelhante à lesão corporal seguida de morte (art. 129, §3º, do CP). E, quanto a essa matéria, não havia controvérsia relevante, até recentemente.
Importante destacar, ainda, que não há previsão desse tipo penal na modalidade culposa, tampouco de causas de diminuição de pena, diferentemente da lesão corporal (art. 129, §§4º e 6º, do CP).
Didaticamente, é possível perceber as relações descritas anteriormente no seguinte quadro comparativo:
QUADRO COMPARATIVO |
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Código Penal |
Lei nº. 9.434/1997 |
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. |
Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. |
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. |
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Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: […] II - ter o agente cometido o crime: a) por motivo fútil ou torpe; |
§ 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa. |
Art. 62 - A pena será ainda agravada em relação ao agente que: […] IV - executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa. |
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§ 1º Se resulta: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II - perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV - aceleração de parto: Pena - reclusão, de um a cinco anos. |
§ 2.º Se o crime é praticado em pessoa viva, e resulta para o ofendido: I - incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II - perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV - aceleração de parto: Pena - reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa |
§ 2° Se resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; II - enfermidade incuravel; III perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV - deformidade permanente; V - aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos. |
§ 3.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido: I - Incapacidade para o trabalho; II - Enfermidade incurável; III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função; IV - deformidade permanente; V - aborto: Pena - reclusão, de quatro a doze anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa. |
§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena - reclusão, de quatro a doze anos. |
§ 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte: Pena - reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa. |
2.4 Norma penal em branco
Franz Von Liszt descrevia as normas penais em branco como “corpos errantes em busca de alma”. São normas penais que dependem de complementação normativa, seja em seu preceito primário, seja em seu preceito secundário, a fim de poderem ser aplicadas.
É exemplo de norma penal em branco o art. 311 do CP, que prevê o crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor:
Art. 311 - Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.
Embora o tipo penal estabeleça que é crime adulterar ou remarcar sinal identificador de veículo automotor, seu componente ou equipamento, nada fala a respeito do que seriam tais elementos. A complementação dessa norma é feita pelo Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº. 9.507/1997), que traz os conceitos respectivos.
Trata-se de norma penal em branco homogênea (em sentido amplo), porque proveniente da mesma fonte legislativa responsável pela edição do ato normativo complementado.
Também se pode exemplificar com o art. 33, “caput” da Lei nº. 11.343/2006, que assim dispõe:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
O conceito de drogas é dado pela Portaria nº 344/98, atualizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a qual traz a previsão de quais são as substâncias consideradas drogas.
É, pois, uma norma penal em branco heterogênea (em sentido estrito), porque proveniente de fonte legislativa distinta daquela que editou o ato normativo complementado.
Nos dois exemplos, são normas penais em branco heterovitelinas, porque os complementos normativos estão localizados em diploma legal (ou infralegal) diverso do preceito que integram.
De outro lado, o art. 327 do CP (“considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”) complementa os tipos penais previstos no Capítulo I (dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral) do Título XI (dos crimes contra a Administração Pública) da parte especial do Código Penal, os quais são, por serem complementados por preceito previsto no mesmo diploma legal (conceito de funcionário público para fins penais), normas penais em branco homovitelinas.
Após essa análise, constata-se que os crimes previstos nos arts. 14 a 20 da Lei nº. 9.434/1997 são normas penais em branco homogêneas e homovitelinas, porque têm seus complementos previstos no mesmo diploma legal.
Nesse caso, deve eventual denúncia que impute a prática do crime apontar não apenas o cometimento do crime de remoção irregular de órgãos e tecidos humanos, mas indicar a ilegalidade em que incorreu a remoção, sob pena de inépcia, nos termos dos arts. 41 e 395 do CPP:
Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - for manifestamente inepta.
Nesse sentido entendeu o Superior Tribunal de Justiça, no seguinte julgado:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. ART. 60 DA LEI N. 9.605/1998. NORMA PENAL EM BRANCO. ACUSAÇÃO QUE NÃO INDICA A LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR ALEGADAMENTE DESCUMPRIDA. INÉPCIA DE DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
1. Segundo o entendimento desta Corte de Justiça, o trancamento da ação penal, no âmbito do habeas corpus ou do respectivo recurso ordinário, somente é possível quando se constatar, primo ictu oculi, a atipicidade da conduta, a inexistência de indícios de autoria, a extinção da punibilidade ou quando for manifesta a inépcia da exordial acusatória.
2. O art. 60 da Lei n. 9.605/1998 é norma penal incriminadora em branco, visto que a configuração de seu preceito primário pressupõe o descumprimento de outro ato normativo (complementar) que regulamente as atividades potencialmente poluentes a que tal dispositivo se refere.
3. Na espécie, a denúncia não atende o disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, pois não descreve, por completo, a conduta delitiva, já que apenas afirma genericamente que houve o funcionamento de atividade potencialmente poluidora sem autorização, qual seja, a queimada de plantio de cana-de-açúcar, deixando de mencionar a legislação complementar a que se refere a aludida obrigação de natureza administrativa e ambiental, o que, quando menos, dificulta a compreensão da acusação e, por conseguinte, o exercício do direito de defesa.
4. O vício da exordial acusatória, de igual forma, prejudica a defesa da pessoa jurídica corré, razão pela qual a ela devem ser estendidos os efeitos deste provimento jurisdicional.
5. Recurso ordinário provido, para reconhecer a inépcia da denúncia oferecida contra o recorrente e a pessoa jurídica e, por conseguinte, determinar o trancamento da respectiva ação penal, sem prejuízo de que outra denúncia seja oferecida com a observância dos parâmetros legais.
(STJ. RHC 64430/SP. 5ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 19/11/2015).
2.5 Quanto ao elemento anímico
À luz da teoria finalista da ação, idealizada por Hans Welzel, crime é concebido como o comportamento humano voluntário, dirigido psiquicamente a um fim[6]. A análise do fato típico perpassa por duas perspectivas: objetiva, integrada pela conduta, pelo resultado, pelo nexo causal e pela tipicidade; e subjetiva, composta pelo elemento anímico – dolo (consciência e vontade) ou culpa.
Nesse diapasão, o crime é dito doloso, quando impelido por dolo (art. 18, I, do CP); e culposo quando o resultado se realiza pela violação de um dever objetivo de cuidado, impelido por negligência, imprudência ou imperícia do agente (art. 18, II, do CP), caso em que é necessária a existência de previsão legal específica.
O dolo, por sua vez, pode ser direto (imediato), quando o agente dirige sua conduta para o atingimento de resultado desejado (teoria da vontade); e indireto, quando não se busca um resultado certo e determinado, mas se aceita, sem ordem de preferência, um dos possíveis resultados de uma pluralidade de desfechos possíveis (alternativo), ou eventual, quando se assume o risco da produção de um resultado previsível (teoria do assentimento).
Há, ainda, a possibilidade de se vislumbrar o dolo de segundo (e de terceiro) grau, que é uma espécie de dolo direto em que a vontade do agente é dirigida com os meios para alcançar determinado resultado desejado, mas que provocam efeitos colaterais de ocorrência prevista e provável, cuja superveniência é inevitável e, portanto, atrela-se à vontade principal.
Fávio Monteiro Barros, citado por Rogério Sanches Cunha, faz relevante esclarecimento sobre o alcance do dolo:
“Cumpre ainda esclarecer que a noção de dolo não se esgota na realização da conduta e do resultado, devendo a vontade do agente projetar-se sobre todas as elementares, qualificadoras, agravantes e atenuantes do crime. Todavia, para a caracterização do crime, em sua forma simples, é suficiente que o dolo compreenda apenas os elementos da figura típica fundamental. Mas a incidência dos tipos qualificados, privilegiados, das agravantes e atenuantes dependem da projeção do dolo sobre essas circunstâncias”[7].
É de se observar que o direito penal do fato não é compatível com a ideia de responsabilidade penal objetiva ou mesmo da “versare in re illicita”[8], devendo estar presentes e demonstrados os elementos integradores do fato típico (conduta, resultado, nexo causal e tipicidade), a fim de viabilizar a imputação deste ao pretenso autor.
2.6 Crimes qualificados pelo resultado
Na lição de Cléber Masson:
“Crime qualificado pelo resultado é aquele que possui uma conduta básica, definida e apenada como delito de forma autônoma, nada obstante ainda ostente um resultado que o qualifica, majorando-lhe a pena por força de sua gravidade objetiva, desde que exista causa e efeito entre eles e relação causal física e subjetiva. […] Todo crime qualificado pelo resultado representa um único crime, e complexo, pois resulta da junção de dois ou mais delitos”[9].
Defende-se na doutrina a existência de quatro espécies de crimes qualificados pelo resultado: crimes praticados com dolo no antecedente e no consequente; crimes praticados com culpa no antecedente e no consequente; crimes praticados com culpa no antecedente e dolo no consequente, e crimes praticados com dolo no antecedente e culpa no consequente (preterdolo).
Assim leciona Mirabete:
“É de anotar, todavia, que o resultado acrescido ao tipo simples pode ocorrer por dolo, culpa ou mero nexo causal. Evidentemente, em tese é possível diferenciar nitidamente essas várias hipóteses, relacionadas em grau de crescente gravidade. A lei penal brasileira, porém, não cogita expressamente dessa distinção”[10].
Quanto à primeira espécie, verifica-se sua ocorrência quando o agente pratica, impelido por dolo, determinado fato típico e seu resultado agravador. É exemplo o crime de latrocínio, previsto no art. 157, §3º, do CP:
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
[…]
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 3º Se da violência resulta:
I – lesão corporal grave, a pena é de reclusão de 7 (sete) a 18 (dezoito) anos, e multa;
II – morte, a pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
A subtração dolosa de coisa alheia móvel, mediante violência ou grave ameaça, caracteriza o crime de roubo. No entanto, a lesão corporal grave ou a morte, provocadas dolosamente e com violência, qualificam especialmente o delito. Importa ressaltar, ademais, que a doutrina majoritária e a jurisprudência consideram que esse crime também pode ser cometido com ânimo preterdoloso.
Em relação à segunda espécie, tanto o tipo penal básico quanto seu resultado agravador são decorrentes de comportamento culposo, como se vê do art. 258, terceira parte, do CP:
Art. 258 - Se do crime doloso de perigo comum resulta lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumentada de metade; se resulta morte, é aplicada em dobro. No caso de culpa, se do fato resulta lesão corporal, a pena aumenta-se de metade; se resulta morte, aplica-se a pena cominada ao homicídio culposo, aumentada de um terço.
A terceira espécie pode ser exemplificada com o tipo penal dos arts. 303, §1º, c/c 302,§1º, III, do CP, em que a reprovabilidade antecedente culposo é intensificada pelo resultado agravador doloso, fazendo incidir a majorante:
Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do § 1o do art. 302.
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
[…]
III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente.
Por fim, o crime preterdoloso é estruturado com o cometimento de um crime doloso, cujo resultado agravado é produzido culposamente. É necessária a previsão legal específica para punição do crime preterdoloso, consoante interpretação do art. 19 do CP: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que houver causado ao menos culposamente”.
Ricardo Andreucci, nesse contexto, afirma que, no crime preterdoloso ou preterintencional, coexistem os dois elementos subjetivos: dolo na conduta antecedente e culpa na conduta consequente. E explica:
“Existe um crime inicial doloso e um resultado final culposo. Na conduta antecedente, o elemento subjetivo é o dolo, uma vez que o agente quis o resultado. Entretanto, pela falta de previsibilidade, ocorre outro resultado culposo, pelo qual também responde o agente”[11].
Por outro lado, Cezar Roberto Bittencourt, citado por Cléber Masson, distingue crimes qualificados e preterdolosos da seguinte forma:
“[…] no crime qualificado pelo resultado, ao contrário do preterdoloso, o resultado ulterior, mais grave, derivado involuntariamente da conduta criminosa, lesa um bem jurídico precedentemente lesado”[12].
O tipo penal de lesão corporal seguida de morte (art. 129, §3º, do CP) é exemplo de crime preterdoloso.
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
[…]
§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quís o resultado, nem assumiu o risco de produzí-lo:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Caso houvesse dolo no consequente, haveria o crime de homicídio, em progressão criminosa, fazendo incidir o princípio da consunção em relação ao antecedente.
Embora não seja pacífico na doutrina, prevalece que os crimes preterdolosos, por possuírem estrutura composta por dolo e culpa, não admitem a forma tentada. A despeito disso, Luiz Flávio Gomes e Antônio Molina, citados por Rogério Sanches Cunha, lecionam pela possibilidade, nos seguintes termos:
“Não é possível falar em tentativa no crime preterdoloso em relação ao resultado posterior (que é culposo). […] Mas é perfeitamente possível a ocorrência de crime preterdoloso tentado, quando o primeiro delito (doloso) não se consuma, dando-se, entretanto, o resultado subsequente”[13].
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, além de tratar crimes qualificados pelo resultado e preterdolosos como sinônimos, admite a incidência sobre eles das circunstâncias agravantes do art. 61 do CP, a despeito da natureza culposa do resultado agravador, como se vê do seguinte julgado:
"1. No crime preterdoloso, espécie de delito qualificado pelo resultado, é possível a incidência de agravante genérica prevista no art. 61 do Código Penal. Precedente. (STJ. AgRg no AREsp 499.488/SC. 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 04/04/2017).
3 IMPLICAÇÕES DO RESULTADO MORTE
A morte pode representar circunstância qualificadora do crime de remoção ilegal de órgãos, tecidos e partes do corpo humano ou mesmo ser determinante para reconhecer a consunção deste por crime mais grave. É, pois, necessário analisar o caso concreto para aferir sua repercussão.
O art. 14, §4º, da Lei nº. 9.434/1997 não é preciso quanto às particularidades do tipo qualificado, tendo a doutrina e a jurisprudência assumido a incumbência de destrinchar os elementos integrantes do tipo.
É preciso, então, estabelecer uma primeira premissa quanto ao tema: natureza preterdolosa ou não do delito. Isso porque é crucial firmar as bases axiológicas do objeto, a fim de prever seus consectários.
Caso se entenda que o delito é preterdoloso, isto é, o evento morte superveniente decorre de culpa do agente, conclui-se que a análise da presença do “animus laedendi” é determinante para caracterização do ilícito penal. Do contrário, existindo “animus necandi”, ainda que sob a faceta da assunção do risco, tratar-se-á de homicídio. É dizer: caso a intenção do agente fosse apenas a remoção dos órgãos e tecidos, não haveria que se falar em homicídio, porque a morte apenas poderia ser-lhe imputada a título culposo, atraindo, no máximo, o tipo do art. 14, §4º, da Lei nº. 9.434/1997. De outro prisma, se o agente assume o risco de causar a morte da vítima com o comportamento e ao menos aceita a ocorrência desse resultado, a imputação será de homicídio (art. 121 do CP), com dolo direto ou eventual, consumado ou tentado, a depender do caso concreto.
Percebe-se, dessa feita, que a competência para julgamento do crime da Lei de Transplantes é do juízo singular, já que não se cuida crime doloso contra a vida, cuja competência é do Tribunal do Júri. Eventualmente poderia ser deste, mas não haveria que se falar no crime do art. 14.
Também se infere que a consumação do delito de remoção ilegal de órgãos e tecidos, a depender da existência de nexo de causalidade com o evento morte, poderia caracterizar-se na forma simples ou qualificada, desde que causada ao menos culposamente. De toda maneira, a forma qualificada não admitiria tentativa, por não haver vontade consciente dirigida a esse fim.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nesse sentido:
“[…] 2. O crime de remoção de órgãos qualificado pelo resultado, previsto no art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97, é preterdoloso, no qual a remoção ilegal acontece dolosamente, mas o resultado morte é meramente culposo, não intencional e sem que tenha sido assumido o seu risco.
3. Não havendo controvérsia quanto ao conteúdo da acusação de terem os réus removido órgãos da vítima causando-lhe a morte com consciência e vontade, configura-se em tese o crime de homicídio, tipo penal doloso contra a vida de competência do Tribunal do Júri.
4. Agravo regimental conhecido, mas recurso especial conhecido em parte e nesta parte negado provimento”.
(STJ. AgRg no REsp 1.656.165/MG, 5ª Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em: 09/12/2020).
Ronaldo Vieira Francisco possui entendimento semelhante:
“Quanto à voluntariedade, exige-se o dolo (direto ou eventual) e inexiste a forma culposa. Nas qualificadoras do art. 14, §3º, V, e §4º, o resultado que agrava o crime antecedente (remoção ilegal) sobrevém a título de culpa (aborto e morte). São hipóteses de delito preterdoloso”[14].
Noutro diapasão, se a conclusão for no sentido de que o crime não é necessariamente preterdoloso, não será imprescindível percutir acerca do elemento anímico relativo ao elemento morte, para fins de competência, eis que invariavelmente será do juízo singular, dada a natureza exaustiva do rol de competências do Tribunal do Júri.
Bem assim, a consumação do crime deverá ser aferida de acordo com a ocorrência ou não do evento morte, tal qual se opera no caso de latrocínio (art. 157, §3º, do CP), seguindo a mesma razão (“Ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio”) utilizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consolidada na súmula nº. 610 (“Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima”), à qual adere o Superior Tribunal de Justiça, consoante observa Márcio André Lopes Cavalcante:
“Segundo o Min. Jorge Mussi, ‘embora haja discussão doutrinária e jurisprudencial acerca de qual delito é praticado quando o agente logra subtrair o bem da vítima, mas não consegue matá-la, prevalece o entendimento de que há tentativa de latrocínio quando há dolo de subtrair e dolo de matar, sendo que o resultado morte somente não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente’. (HC 201.175-MS).
Por esta razão, a jurisprudência do STJ pacificou-se no sentido de que o crime de latrocínio tentado se caracteriza independentemente da natureza das lesões sofridas pela vítima (não importa se foram leves, graves ou gravíssimas), bastando que o agente, no decorrer do roubo, tenha agido com o desígnio de matá-la:
(...) É pacífica a orientação desta Corte Superior de Justiça no sentido de que o crime de latrocínio tentado se configura independentemente da natureza das lesões sofridas, bastando provas no sentido de que o agente, no decorrer do roubo, atentou contra a vítima, com o desígnio de matá-la. (...)
STJ. 5ª Turma. HC 186.575/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/08/2013”[15].
Resume-se a segunda possibilidade, afinal, com o seguinte quadro:
QUADRO COMPARATIVO |
||
Remoção |
Morte |
Art. 14, §4º |
Consumada |
Consumada |
Consumado |
Consumada |
Tentada |
Tentado |
Tentada |
Consumada |
Consumado |
Tentada |
Tentada |
Tentado |
Em qualquer caso, não é demais destacar que o evento morte apenas é imputável a quem lhe deu causa e poderia prever sua ocorrência, sob pena de responsabilização penal objetiva.
4 DISCUSSÃO JURISPRUDENCIAL
As discussões sobre bem jurídico tutelado e sujeito passivo do crime não representam interesse puramente doutrinário e acadêmico. Há repercussões práticas nas conclusões sobre o tema.
Isso porque a competência para processamento e julgamento pode ser da Justiça Federal ou Estadual, a depender da demonstração do atingimento dos bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, nos termos do art. 109, IV, da CF/1988:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[…]
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral.
Além disso, a caracterização como crime doloso contra a vida ou não é determinante para estabelecer a competência do Tribunal do Júri ou do Juízo criminal singular, conforme o caso.
4.1 Da competência ratione materiae
Em primeiro lugar, o Sistema Nacional de Transplantes é incumbido do desenvolvimento, controle e fiscalização dos processos de doação, retirada, distribuição e transplante de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano, para finalidades terapêuticas (art. 2º do Decreto nº. 9.175/2017). Trata-se de um serviço público de abrangência nacional e prestado pela União, sendo o Ministério da Saúde seu órgão central (art. 3º, I, do Decreto nº. 9.175/2017), cuja atribuição é, essencialmente, a coordenação do Sistema Nacional de Transplantes.
Partindo-se do pressuposto de que, a União é a responsável pela coordenação e fiscalização das ações do Sistema Nacional de Transplantes, que, por sua vez, abarcam as ações de remoção de tecidos e órgãos, o tipo penal do art. 14 da Lei nº. 9.434/1997, em última análise, alcançaria serviço da União, atraindo a competência da Justiça Federal.
Na análise de caso que envolvia serviço público prestado pela União e o apagão ocorrido no Amapá, o Superior Tribunal de Justiça considerou que, mesmo se reconhecendo a lesão aos direitos consumeristas, inclusive na seara criminal, não se pode ignorar o malferimento a bens, serviços e interesses da União e da Agência Nacional de Energia Elétrica, autarquia federal em regime especial (agência reguladora), o que atrai a competência federal. O acórdão foi assim ementado:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. “APAGÃO NO ESTADO DO AMAPÁ”. INVESTIGAÇÕES POLICIAIS. PREVENÇÃO. JUÍZO ESTADUAL. CONFLITO ENTRE JUSTIÇAS COMUM ESTADUAL E FEDERAL. ARTS. 109, IV, E 21, XII, “B”, DA CF. BENS, SERVIÇOS E INTERESSES DA UNIÃO. LIMITES DA COGNIÇÃO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. COMPETÊNCIA FEDERAL.
1. Conforme norma constitucional (art. 109, IV, da CF), compete aos juízes federais processar e julgar “as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.
2. Ainda no texto constitucional, constata-se competir à União “explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: [...] b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos” (art. 21, XII, “b”, da CF).
3. Por isso, no caso concreto, ainda que se reconheça a lesão a direitos dos consumidores e possível conduta criminosa na seara consumerista, inegável também ser possível vislumbrar malferimento a bens, serviços e interesses da União e da ANEEL, o que atrai a competência federal.
4. O conflito de competência não comporta análise de matérias que não estejam estritamente relacionadas à definição do Juízo competente.
5. Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juízo da 4ª Vara Federal Criminal de Macapá – AP/SJ, suscitante.
(STJ. 3ª Seção. CC 177048/AP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 10/03/2021).
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do CC 103.599/MG, não seguiu a mesma conclusão. Nessa oportunidade, entendeu-se que o então decreto regulamentar da Lei nº. 9.434/1997 não remetia à Justiça Federal toda a competência para as ações penais decorrentes de violações da Lei e considerou-se que a remoção de tecidos era pós-fato dependente do homicídio precedente, o que atraía a competência da Justiça Estadual. O acórdão foi assim ementado:
Remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Sistema Nacional de Transplante. Lei nº 9.434/97. Decreto nº 2.268/97. Competência federal/estadual.
1. O sistema organizado pelo Decreto nº 2.268/97, ao dispor que o Ministério da Saúde exercerá as funções de órgão central, não remeteu à Justiça Federal toda a competência para as questões penais daí oriundas.
2. No caso, a remoção dos órgãos ou partes do cadáver foi consequência da ação de homicídio, essa a ação principal. A precedência do homicídio para a remoção de órgãos ou partes de cadáver, portanto, foi a mais ampla possível tanto em relação à censurabilidade das condutas quanto no que diz respeito à ordem natural dos acontecimentos.
3. Sendo, pois, hipótese de homicídio, o caso é de competência estadual.
4. Conflito do qual se conheceu, declarando-se competente o suscitante.
(STJ. CC 103.599/MG, Rel. Min. Nilson Naves, julgado em 26/06/2009).
O só fato de a União integrar o Sistema Nacional de Transplantes e exercer as vezes e órgão central, por meio do Ministério da Saúde, realmente não foi determinante para alterar a competência estadual. Isso porque a teleologia da norma constitucional é no sentido de que apenas os danos diretamente causados aos bens, serviços e interesses da União é que são capazes de atrair a competência federal.
Caso se entendesse de forma diversa, a mesma razão deveria permear a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre fixação de competência para apuração de crimes que envolvessem, ainda que indiretamente, serviços públicos de abrangência nacional prestados por sistemas integrados pela União, como o Sistema Único de Saúde.
Ademais, seguindo essa lógica, qualquer crime ambiental, por exemplo, seria de competência da Justiça Federal. Além de se tratar de matéria da competência comum dos entes federativos, a União possui autarquias com finalidades precípuas de prestar serviço público de proteção e fiscalização ambiental.
Sobre esse tema, diga-se de passagem, o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes no sentido de que crimes ambientais cometidos em unidades de conservação criadas por decreto federal evidenciam o interesse da União e, assim, a competência é da Justiça Federal. Nesse sentido é o seguinte julgado:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. SUPOSTOS DELITOS AMBIENTAIS: QUEIMA DE MADEIRA EXÓTICA E POLUIÇÃO AMBIENTAL. ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL INSTITUÍDA POR DECRETO FEDERAL. INTERESSE DA UNIÃO CARACTERIZADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
I. Se o crime ambiental foi cometido em unidade de conservação criada por decreto federal, evidencia-se o interesse federal na manutenção e preservação da região, ante a possível lesão a bens, serviços ou interesses da União, nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal. Precedentes da 3ª Seção desta Corte.
II. Situação em que se investigam a suposta fabricação de carvão vegetal sem licença ambiental por meio da queima de madeira exótica, assim como a poluição do ar dela decorrente, praticados em área de proteção ambiental localizada na Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, criada pelo Decreto Federal n. 87.561/1982 que restringe o uso das propriedades privadas na região.
III. Conflito conhecido, para declarar a competência do Juízo Federal da Subseção Judiciária de São José dos Campos/SP, o suscitado, para julgamento do inquérito policial.
(STJ. 3ª Seção. CC 142.016/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 26/08/2015).
De outro lado, não há que se falar em competência federal quando o crime é praticado em unidade de conservação criada por ato normativo federal, mas mantido e fiscalizado por ente federativo diverso, mediante delegação, justamente porque não se vislumbra atentado aos serviços da União. Nesse sentido foi o entendimento que prevaleceu no julgado abaixo:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. PARCELAMENTO IRREGULAR URBANO E DANO AMBIENTAL. LOCAL INSERIDO EM ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL (APA) DA BACIA DO RIO SÃO BARTOLOMEU, CRIADA POR DECRETO FEDERAL. LEI SUBSEQUENTE QUE DELEGOU A ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO AO PODER EXECUTIVO DO DISTRITO FEDERAL. CIRCUNSTÂNCIA QUE EXCLUI O INTERESSE FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL.
1. A orientação jurisprudencial desta Corte é de que se o crime ambiental for cometido em unidade de conservação criada por decreto federal, evidencia-se o interesse federal na manutenção e preservação da região, ante a possível lesão a bens, serviços ou interesses da União, nos termos do art. 109, IV, da Constituição Federal. Precedentes da Terceira Seção.
2. No caso, embora o local do dano ambiental esteja inserido na Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio São Bartolomeu, criada pelo Decreto Federal n. 88.940/1993, não há falar em interesse da União no crime ambiental sob apuração, já que lei federal subsequente delegou a fiscalização e administração da APA para o Distrito Federal (art. 1º da Lei n. 9.262/1996).
3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal e Tribunal do Júri de São Sebastião/DF, o suscitado.
(STJ. 3ª Seção. CC 158.747/DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/06/2018).
Portanto, em regra, o crime de remoção irregular de órgãos e tecidos humanos deve ser julgado pela Justiça Estadual. Para que fosse julgado pela Justiça Federal, seria necessário que se demonstrasse, no caso concreto, atentado direto aos bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, não sendo suficiente a mera alegação de que o Serviço Nacional de Transplantes é ordenado pelo Ministério da Saúde.
4.2 Da competência ratione loci
O art. 70 do CPP dispõe o seguinte:
Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.
§ 1o Se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no Brasil, o último ato de execução.
§ 2o Quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional, será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado.
§ 3o Quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção.
§ 4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção.
A teoria do resultado foi adotada como regra pelo Código de Processo Penal. Assim, a competência territorial deve ser estabelecida no local onde a infração penal se consumou. Ainda que se trate de crime plurilocal, com resultado ocorrido em local diverso dos atos de execução, a competência, em regra, é determinada na forma do “caput”, primeira parte, do art. 70 do CPP: no local onde o crime se consumou.
Já a teoria da atividade, adotada para os crimes tentados (art. 70, “caput”, segunda parte, do CPP) e de competência dos juizados especiais criminais (art. 63 da Lei nº. 9.099/1995[16]), estabelece que a competência territorial é fixada pelo local da ação ou omissão.
Há, ainda, a teoria da ubiquidade (mista), adotada nos crimes de espaço máximo, é reservada aos casos e, que a competência será determinada tanto pelo local da ação ou omissão quanto pelo local do resultado, a depender de qual das hipóteses se deu no território brasileiro.
Não obstante as regras legais, parcela da doutrina defende a possibilidade de adoção excepcional da teoria do esboço do resultado em casos especiais, a fim de priorizar os princípios da verdade real, da eficiência no processo penal, da razoabilidade e da proporcionalidade, aplicando a ideia de competência adequada à conveniência da instrução processual. Fernando Almeida Pedroso, citado por Nestor Távora, assim leciona:
“[…] consiste em se verificar que a conduta delituosa se exauriu em determinado local onde deveria ter sido também o momento consumativo do crime, pelo que se adota interpretação teleológica consistente em considerar que o fato delituoso já havia prenunciado ou esboçado o seu resultado no local da ação ou da omissão e que sua consumação só ocorreu em outro lugar por acidente ou casualidade”[17].
No mesmo sentido é o escólio de Guilherme de Souza Nucci:
“[…] é justamente no local da ação que se encontram as melhores provas (testemunhas, perícia etc.), pouco interessando onde se dá a morte da vítima. Para efeito de condução de uma mais apurada fase probatória, não teria cabimento desprezar-se o foro do lugar onde a ação desenvolveu-se somente para acolher a teoria do resultado”[18].
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo sua aplicação aos processos em que se apuram crimes graves, a exemplo de homicídio, conforme se vê do julgado a seguir:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO. ATOS EXECUTÓRIOS. CONSUMAÇÃO DO DELITO EM LOCAL DIVERSO. TEORIA DO RESULTADO. POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA DA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL. BUSCA DA VERDADE REAL. FACILITAÇÃO DA INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. COMOÇÃO POPULAR. JULGAMENTO EM FORO DIVERSO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE EVENTUAL PREJUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
1. Segundo o disposto no inciso I do art. 69 do Código de Processo Penal, tem-se como regra para a determinação da competência jurisdicional o lugar da infração penal, sendo o que se denomina de competência ratione loci, visto ser o local que presumivelmente é tido como o que permite uma natural fluidez na produção probatória em juízo, razão pela qual deve o agente ser aí punido.
2. A competência para o processamento e julgamento da causa, em regra, é firmada pelo foro do local em que ocorreu a consumação do delito (locus delicti commissi), com a reunião de todos os elementos típicos, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. Adotou-se a teoria do resultado. (Art. 70, caput, do CPP).
3. No caso concreto, aplicando-se simplesmente o art. 70 do Código de Processo Penal, teríamos como Juízo competente o da comarca de Nazaré Paulista/SP, onde veio a falecer a vítima.
4. O princípio que rege a fixação de competência é de interesse público, objetivando alcançar não só a sentença formalmente legal, mas, principalmente, justa, de maneira que a norma prevista no caput do art. 70 do Código de Processo Penal não pode ser interpretada de forma absoluta.
5. Partindo-se de uma interpretação teleológica da norma processual penal, em caso de crimes dolosos contra a vida, a doutrina, secundada pela jurisprudência, tem admitido exceções nas hipóteses em que o resultado morte ocorrer em lugar diverso daquele onde se iniciaram os atos executórios, ao determinar que a competência poderá ser do local onde os atos foram inicialmente praticados.
6. O motivo que levou o legislador a estabelecer como competente o local da consumação do delito foi, certamente, o de facilitar a apuração dos fatos e a produção de provas, bem como o de garantir que o processo possa atingir à sua finalidade primordial, qual seja, a busca da verdade real.
7. Embora, no caso concreto, os atos executórios do crime de homicídio tenham se iniciado na comarca de Guarulhos/SP, local em que houve, em tese, os disparos de arma de fogo contra a vítima, e não obstante tenha se apurado que a causa efetiva da sua morte foi asfixia por afogamento, a qual ocorreu em represa localizada na comarca de Nazaré Paulista/SP, tem-se que, sem dúvidas, o lugar que mais atende às finalidades almejadas pelo legislador ao fixar a competência de foro é o do local em que foram iniciados os atos executórios, o Juízo de Guarulhos/SP, portanto.
8. O local onde o delito repercutiu, primeira e primordialmente, de modo mais intenso deve ser considerado para fins de fixação da competência.
9. Não há como prosperar a alegação de que o prejuízo ao paciente será imenso se o processo for julgado em Guarulhos/SP, por haver, na referida comarca, um clima de comoção popular, pois, além de a defesa não ter comprovado tais alegações, é cediço que, se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou sobre a segurança pessoal do acusado, poderá haver o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, consoante o disposto no art. 427 do Código de Processo Penal.
10. Ordem denegada.
(STJ. HC 196.458/SP. 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em: 6/12/2011).
No mesmo sentido caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se vê do julgado a seguir:
Recurso ordinário em habeas corpus. Processual Penal. Crime de homicídio culposo (CP, art. 121, §§ 3º e 4º). Competência. Consumação do delito em local distinto daquele onde foram praticados os atos executórios. Crime plurilocal. Possibilidade excepcional de deslocamento da competência para foro diverso do local onde se deu a consumação do delito (CPP, art. 70). Facilitação da instrução probatória. Precedente. Recurso não provido.
1. A recorrente foi denunciada pela prática do crime de homicídio culposo (art. 121, § 3º, c/c § 4º do Código Penal), porque “deixando de observar dever objetivo de cuidado que lhe competia em razão de sua profissão de médica e agindo de forma negligente durante o pós-operatório de sua paciente Fernanda de Alcântara de Araújo, ocasionou a morte desta, cinco dias após tê-la operado, decorrendo o óbito de uma embolia gordurosa não diagnosticada pela denunciada, a qual sequer chegou a examinar a vítima após a alta hospitalar, limitando-se a prescrever remédios pelo telefone, em total afronta ao Código de Ética Médica (artigo 62 do CEM)”.
2. Embora se possa afirmar que a responsabilidade imputada à recorrente possa derivar de negligência decorrente da falta do exame pessoal da vítima e do seu correto diagnóstico após a alta hospitalar, é inconteste que esse fato deriva do ato cirúrgico e dos cuidados pós-operatórios de responsabilidade da paciente, de modo que se está diante de crime plurilocal, o que justifica a eleição como foro do local onde os atos foram praticados e onde a recorrente se encontrava por ocasião da imputada omissão (por ocasião da prescrição de remédios por telefone à vítima).
3. Recurso não provido.
(STF. RHC 116200/RJ. 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em: 13/08/2013).
Para além dos casos de homicídios e crimes plurilocais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça evoluiu para aplicar a teoria do esboço do resultado também aos crimes complexos e qualificados pelo resultado, considerando como competente o juízo do local onde se consumou o resultado qualificador. É exemplo dessa hipótese o crime de latrocínio (art. 157, §3º, do CPP), de que tratou o julgado paradigmático a seguir:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO. CRIME COMPLEXO. COMPETÊNCIA DO LOCAL ONDE FOI VERIFICADO O RESULTADO MORTE. INCOMPETÊNCIA RATIONE LOCI. NULIDADE RELATIVA. NECESSIDADE DE SER ARGUIDA EM MOMENTO PROCESSUAL OPORTUNO. PREJUÍZO À DEFESA NÃO DEMONSTRADO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CRIME PERMANENTE. COMPETÊNCIA
FIRMADA POR PREVENÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.
1. Hipótese na qual a defesa alega que os réus estão sendo processados por juízo incompetente, pois o crime apurado consumou-se na Comarca de Dourados/MS, eis que a mera subtração do veículo no município de Angélica não teria o condão de fixar a competência naquela comarca.
2. Nos crimes qualificados pelo resultado, fixa-se a competência no lugar onde ocorreu o evento qualificador, ou seja, onde o resultado morte foi atingido, assim, tendo os corpos das vítimas do latrocínio sido encontrados na Comarca de Dourados, e havendo indícios de que lá foram executadas, a competência se faz pela regra geral disposta nos arts. 69, I e 70, "caput", do CPP.
3. A incompetência territorial constitui-se em nulidade relativa, sendo impróprio o reconhecimento de qualquer vício, se não suscitado em tempo oportuno - antes de proferida a sentença – e se ausente a demonstração de prejuízo à defesa, tendo em vista o princípio pas de nullité sans grief.
4. Em matéria processual não se declara nulidade sem a efetiva ocorrência de prejuízo, ou, ainda, quando o ato processual não houver influído na apuração da verdade substancial, ou na decisão da causa, nos termos do artigo 563 do Código de Processo Penal.
5. Não obstante o fato de a incompetência ratione loci ter sido oportunamente aventada, não se vislumbra a demonstração de qualquer prejuízo sofrido pelos recorrentes, o que impede a declaração da nulidade, devendo ser perpetuada a competência do Juízo de Direito da Comarca de Dourados/MS.
6. No que tange ao delito de formação de quadrilha, crime de natureza permanecente, a competência é firmada por prevenção, nos termos do art. 83 do CPP.
7. Recurso improvido.
(STJ. RHC 22295/MS. 5ª Turma, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), julgado em: 28.11.2007).
O crime de remoção ilegal de órgãos e tecidos humanos com resultado morte é qualificado pelo resultado, ainda que não haja certeza a respeito da natureza preterdolosa – defendida pela maioria da doutrina e acatada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça –, especialmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal no Caso Pavesi (RE 1.313.494/MG).
Dessa feita, considerando a posição prevalente na jurisprudência acerca da aplicação da teoria do esboço do resultado aos crimes complexos qualificados pelo resultado, esta é plenamente compatível com o tipo penal do art. 14, §4º, da Lei nº. 9.434/1997, caso o fato se desdobre em um crime plurilocal. Ademais, a relevância dos bens jurídicos tutelados é mais um fator determinante para se buscar de forma mais efetiva e eficiente a verdade real, sem descurar dos direitos fundamentais dos envolvidos.
4.3 Da competência pela natureza da infração
Sobre a matéria, discute-se quanto à caracterização do crime do art. 14, §4º, da Lei nº. 9.434/1997 como crime contra a vida. Caso se entenda que é espécie de crime contra a vida, a competência para processamento e julgamento será do Tribunal do Júri, nos termos do art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF/1988 e do art. 394, §3º, do CPP. São crimes dolosos contra a vida: homicídio (art. 121 do CP); induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122 do CP); infanticídio (art. 123 do CP); e aborto (arts. 124, 125 e 126 do CP).
Na hipótese de se entender que é espécie de crime contra a incolumidade pública previsto na legislação extravagante, a competência será do juízo singular criminal.
Para além da discussão quanto à caracterização do tipo dentre os crimes contra a vida ou não, os casos práticos possuem nuances e complexidades que dificultam a correta tipificação dos fatos, o que acarreta controvérsias sobre o juízo competente para processar e julgar os feitos.
Em um caso concreto (Caso Pavesi[19]), o Ministério Público do Estado de Minas Gerais – MPMG – ofereceu denúncia contra médicos que retiraram irregularmente os dois rins de uma criança de 10 anos, durante cirurgia de emergência a que foi submetida em razão de um acidente que lhe causou traumatismo craniano. A imputação descreveu a intenção dos acusados de retirar os órgãos para posterior revenda no mercado ilegal de órgãos, cujo “modus operandi” era o retardamento doloso na aplicação dos meios necessários à preservação da vida do paciente, de maneira que se tornasse um doador dos órgãos. O menino veio a falecer, em razão do procedimento. O Ministério Público do Estado de Minas Gerais alegou, assim, que a morte encefálica da criança foi forjada e causada voluntariamente pela má prestação do serviço.
Na ocasião, o membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais entendeu que foi praticado o crime remoção ilegal de órgãos com resultado morte (art. 14, § 4º, da Lei nº 9.434/1997) e ofereceu a denúncia perante o juízo singular, o que culminou na condenação dos acusados, em primeira instância.
Ao julgar recurso apresentado pela defesa, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG – considerou que a sentença condenatória fora proferida por juízo incompetente, porque os fatos narrados caracterizariam crime contra a vida, de competência do Tribunal do Júri, declarando a nulidade da sentença e determinando a remessa dos autos ao juízo competente.
Inconformado, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais interpôs recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, alegando ter o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais incorrido em contrariedade ao art. 14, caput e § 4º, da Lei nº. 9.434/1997, aos arts. 29 e 157, § 3º, do Código Penal, aos arts. 492, §§ 1º e 2º, 564, I e 573, § 2º, do Código de Processo Penal, e aos arts. 12, parágrafo único, e 13, parágrafo único, ambos do Código Civil. Em síntese, argumentou que não foi cometido crime doloso contra a vida, mas crime previsto na Lei de Transplantes, o que afastaria a competência do Tribunal do Júri.
No julgamento do AgRg no REsp 1.656.165/MG, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou improcedentes as razões aduzidas pelo Parquet, negando provimento ao recurso, em acórdão assim ementado:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA QUANTO A ALGUNS DISPOSITIVOS INVOCADOS. REMOÇÃO DE ÓRGÃOS QUALIFICADA PELO RESULTADO MORTE. ART. 14, § 4º, DA LEI 9437/97. CRIME PRETERDOLOSO. DOLO NO CONSEQUENTE. HOMICÍDIO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. AGRAVO CONHECIDO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E NESTA PARTE IMPROVIDO.
1. Não se considera atendido o requisito do prequestionamento quando os dispositivos de lei federal que se pretende questionar foram invocados pela primeira vez apenas em sede de embargos de declaração contra acórdão do Tribunal de 2º grau, proferido sem nenhum vício interno, tendo a questão permanecido sem apreciação na origem. Súmula 211/STJ.
2. O crime de remoção de órgãos qualificado pelo resultado, previsto no art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97, é preterdoloso, no qual a remoção ilegal acontece dolosamente, mas o resultado morte é meramente culposo, não intencional e sem que tenha sido assumido o seu risco.
3. Não havendo controvérsia quanto ao conteúdo da acusação de terem os réus removido órgãos da vítima causando-lhe a morte com consciência e vontade, configura-se em tese o crime de homicídio, tipo penal doloso contra a vida de competência do Tribunal do Júri.
4. Agravo regimental conhecido, mas recurso especial conhecido em parte e nesta parte negado provimento.
(STJ. AgRg no REsp 1.656.165/MG, 5ª Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em: 09/12/2020).
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento de que o crime do art. 14, § 4º, da Lei 9.434/1997 é preterdoloso. No caso concreto, a imputação descreve a conduta dolosa na remoção irregular dos órgãos e a causação da morte com consciência e vontade, configurando, em tese, o crime de homicídio. Assim, considerou o Tribunal da Cidadania que a competência para o caso é mesmo do Tribunal do Júri.
O Ministério Público de Minas Gerais também interpôs recurso extraordinário, perante o Supremo Tribunal Federal. Este, por sua vez, diferentemente do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RE 1.313.494/MG, concluiu que a competência para processamento e julgamento do feito era, de fato, do juízo singular, nos seguintes termos:
“A Turma, por unanimidade, conheceu do Recurso Extraordinário e da Repercussão Geral presente e, por maioria, deu-lhe provimento para fixar a competência do juízo criminal singular para processar e julgar a causa, afastando a competência do Tribunal do Júri, anulando, por consequência, o acórdão recorrido, determinando-se ainda que o Tribunal a quo prossiga no julgamento da apelação deduzida nos autos, nos termos do voto do Relator, vencida a Ministra Cármen Lúcia que, na questão de fundo, negava provimento ao Recurso Extraordinário [...]”.
(STF. RE 1.313.494/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 14/09/2021).
O Relator, Ministro Dias Toffoli, considerou, em seu voto, que o tipo penal de remoção irregular de órgãos e tecidos visa a tutelar a incolumidade pública, as ética e moralidade médicas, assim como a preservação da integridade física das pessoas e do respeito à memória dos mortos. Dessa feita, a tipificação está, necessariamente, atrelada à finalidade da remoção dos órgãos e tecidos, que, no caso, era a destinação ao comércio ilegal.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, não se pronunciou sobre a natureza do tipo penal enquanto crime qualificado pelo resultado, o que não soluciona definitivamente a controvérsia e reforça a dificuldade de tipificação nos casos concretos.
Vale salientar, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça também possui jurisprudência no sentido de que o bem jurídico tutelado pelo art. 14, § 4º, da Lei 9.434/1997 é a incolumidade física e a saúde da pessoa, indo ao encontro do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, nesse tópico.
5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, não restam dúvidas de que a criminalização da remoção ilegal de órgãos, tecidos e partes do corpo humano representa a concretização de um mandado constitucional implícito de proteção e criminalização, diante da relevância do bem jurídico tutelado e das possíveis implicações decorrentes de uma omissão inconstitucional (proteção penal insuficiente). É o reflexo do respeito aos princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima, nas suas acepções fragmentariedade e subsidiariedade.
A interpretação do tipo penal, por conseguinte, deve ser sistemática e seguir o cenário epistemológico-jurídico que inspirou sua instituição, numa aplicação teleológica da norma (“mens legis”) em direção ao objetivo pretendido pelo legislador.
A estruturação do tipo penal do art. 14, “caput” e parágrafos, da Lei nº. 9.434/1997, em crime complexo, pluriofensivo e “bicomum” revela a preocupação em abarcar o máximo de comportamentos potencialmente ofensivos aos bens jurídicos pretensamente tutelados.
Outrossim, cuidando-se de matéria notoriamente especializada, atentou o legislador para a edição de norma penal em branco, correta e satisfatoriamente complementada pelos preceitos técnicos estabelecidos na legislação de regência, como forma de assegurar a taxatividade da norma penal incriminadora.
Naturalmente, surgiram dificuldades práticas quando da análise dos elementos do tipo penal, especificamente quanto ao resultado morte (§4º do art. 14), cabendo à doutrina sugerir as soluções adequadas para tentar superar a controvérsia.
Muito embora prevalecesse na academia, posição inclusive encampada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que o crime de remoção ilegal de órgãos e tecidos humanos com resultado morte possuiria natureza de crime preterdoloso, a praxe forense tem mostrado que as polêmicas permanecem acesas.
No julgamento do Caso Pavesi, a “opinio delicti” ministerial aderiu à tese minoritária, de que não há falar em progressão criminosa e consunção do crime de remoção ilegal de órgãos e tecidos humanos, se a morte é provocada de forma dolosa.
Esse entendimento foi reformado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, posição que, por sua vez, foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao considerar o art. 14, §4º, da Lei nº. 9.434/1997, crime preterdoloso.
Os Tribunais em comento consideraram que ao remover os órgãos da vítima, valendo-se de “modus operandi” abjeto, simulacro de tratamento médico, os agentes, em verdade, manifestaram intento de ceifar-lhe a vida, estando incursos nas penas do art. 121 do CP.
Assim, reconhecida a absorção da remoção ilegal de órgãos pelo crime de homicídio, declarou-se a competência do Tribunal do Júri.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal afirmou que o caso deveria mesmo ter sido julgado pelo juízo singular, considerando que os bens jurídicos tutelados são, preponderantemente, a incolumidade pública, as ética e moralidade médicas, a preservação da integridade física das pessoas e o respeito à memória dos mortos.
Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal deixou de aproveitar a oportunidade para, definitivamente, por fim à controvérsia surgida em torno do elemento anímico do tipo penal em análise, ao omitir-se quanto ao pronunciamento esperado.
Opina-se, contudo, pelo reconhecimento da possibilidade de cometimento do crime com resultado morte de forma dolosa ou culposa, tal qual ocorre no latrocínio. Tal entendimento é consentâneo com a relevância dos bens jurídicos tutelados e evita o surgimento de controvérsias sobre a caracterização ou não de crime doloso contra a vida, possibilitando eficiência na persecução criminal, sem descuidar da observância do direitos fundamentais (garantismo penal integral).
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BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro, Revan, 2007.
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PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: RT, 2009.
STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermaßverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermaßverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, a. XXXII, nº. 97, 2005.
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[1]TARTUCE, Flávio. A questão do Testamento Vital ou Biológico (Primeiras reflexões). Recife: Revista Advocatus, nº. 2, 2009, p. 32.
[3]STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermaßverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermaßverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, a. XXXII, nº. 97, mar. 2005, p. 180.
[4]BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 84 e 85.
[6]CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120). Salvador: Juspodivm, 2016, p. 182.
[7]CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120). Salvador: Juspodivm, 2016, p. 194.
[10]MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal: parte geral: arts. 1º a 120 do CP - volume 1. São Paulo: Atlas, 2019, p. 143/144.
[13]CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120). Salvador: Juspodivm, 2016, p. 354.
[14]FRANCISCO, Ronaldo Vieira. Transplante de Órgãos. CUNHA, Rogério Sanches, org. Leis Penais Especiais: comentadas artigo por artigo. Salvador: Editora Juspidivm, 2018, p. 1082.
[15]CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Caracterização do latrocínio independentemente do grau das lesões. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/6f3e29a35278d71c7f65495871231324>. Acesso em: 13/11/2021.
[16]Art. 63. A competência do Juizado será determinada pelo lugar em que foi praticada a infração penal.
[19]Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/casos-de-repercussao/caso-pavesi.htm#.YYrMV2DMLIU. Acesso em: 9/11/2021.
Bacharel em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Direito Público pela FACHESF (2016). Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENDES, Matheus Silva. Aspectos peculiares do crime de remoção irregular de órgãos e tecidos humanos (art. 14 da Lei nº. 9.434/1997) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez 2021, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57924/aspectos-peculiares-do-crime-de-remoo-irregular-de-rgos-e-tecidos-humanos-art-14-da-lei-n-9-434-1997. Acesso em: 23 dez 2024.
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