ADRIANO CÉSAR DE OLIVEIRA PINTO
(coautor)
RESUMO: O presente artigo aborda a indispensabilidade do inquérito policial na persecução penal. O problema que surge na seara penal é definir se a ausência do inquérito policial em uma investigação criminal acarretaria em alguma nulidade da ação penal e se desrespeitariam garantias constitucionais previstas em nosso ordenamento jurídico. Em meio a tal questionamento, o presente trabalho tem como objetivo analisar a importância do inquérito policial como base para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e para a futura ação penal. O método primário utilizado foi o hipotético-dedutivo, partindo do problema do inquérito ser ou não indispensável na persecução penal e discutindo uma possível solução ao problema, tanto pela ótica de meio de elemento de prova para a futura ação penal, quanto pela ótica de sua função social e preservadora do inquérito policial. O procedimento metodológico utilizado foi um questionário usado em pesquisa de campo e entregue à promotoria de justiça da comarca de Serra Talhada, com o objetivo de verificar, pelo método quantitativo, as denúncias que são oferecidas com e sem o devido inquérito policial, além da pesquisa bibliográfica, onde buscou-se analisar as obras de autores renomados, bem como suas ideias e conceitos em relação ao tema.
Palavras-chave: Processo penal. Indispensabilidade. Inquérito policial. Denúncia. Ação penal.
ABSTRACT: This article deals with the indispensability of the police investigation into criminal prosecution. The problem that arises in the criminal court is whether the absence of a police investigation in a criminal investigation would lead to some nullity of the criminal action and would violate the constitutional guarantees provided for in our legal system. In the midst of such questioning, the present study aims to analyze the importance of the police investigation as the basis for offering the complaint by the Public Prosecution Service and for future criminal action. The primary method used was the hypothetico-deductive one, starting from the problem of the inquiry being or not indispensable in the criminal prosecution and discussing a possible solution to the problem, both from the point of view of evidence for future criminal action and from the perspective of its and preserving the police investigation. The theoretical reference is Luigi Ferrajoli, using his theory of criminal guaranty to support the research. The technical procedure used was a questionnaire used in field research and delivered to the prosecutor's office of the region of Serra Talhada, with the purpose of verifying, through the quantitative method, the denunciations that are offered with and without the proper police investigation, in addition to bibliographical research, which sought to analyze the works of renowned authors, as well as their ideas and concepts in relation to the theme.
Keywords: Criminal proceedings. Indispensability. Police investigation. Complaint. Relatedsearches.
O foco deste artigo está direcionado à análise da indispensabilidade do inquérito policial na persecução penal, partindo da teoria do garantismo penal do referencial teórico Luigi Ferrajoli. O inquérito policial é uma fase pré-processual de atividades investigatórias que antecede à ação penal. A investigação é realizada pela polícia judiciária com o objetivo de esclarecer as circunstâncias do crime, sua autoria e materialidade. Após finalizadas as investigações, servirá para a formação do convencimento do órgão acusador para oferecimento ou não da denúncia e assim iniciar a ação penal.
O problema em questão é a discussão se a ausência do inquérito policial em uma investigação criminal estaria em desrespeito ao princípio do devido processo legal e seria causa de nulidade da ação penal. Este artigo tem o objetivo de analisar qual a importância do inquérito policial como base para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e como meio de prova para a futura ação penal, além de discutir os aspectos garantistas encontrados no inquérito.
Os procedimentos metodológicos e estratégias de ação foram definidos de acordo com a necessidade da pesquisa. O método primário utilizado foi o hipotético-dedutivo, onde a partir do tema e do problema apresentado, serão discutidas possíveis soluções para o caso, abordando questões relevantes quanto ao inquérito policial e o que poderia ser mudado ou adaptado para que ele cumpra com os princípios processuais norteadores do nosso sistema jurídico, proporcionando mais segurança jurídica à ação penal.
Como tipo de pesquisa foi utilizada a pesquisa bibliográfica, utilizando-se de livros de autores renomados, notadamente na área de direito penal e do direito processual penal, buscando analisar suas ideais e conceitos em relação ao tema da indispensabilidade do inquérito policial.
Também foi utilizada a pesquisa de campo junto à promotoria de justiça criminal da comarca de Serra Talhada, onde foi entregue um questionário com perguntas relativas ao oferecimento de denúncias por aquela promotoria com e sem o acompanhamento de inquérito policial, objetivando analisar os dados colhidos para subsidiar a pesquisa, por meio do método quantitativo, através de gráfico, permitindo assim que a pesquisa chegue a algum resultado que será discutido no presente trabalho.
Assim, este artigo está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo será apresentada a teoria do garantismo penal do referencial teórico Luigi Ferrajoli, com o objetivo de através dessa teoria, encontrar a fundamentação de existência do inquérito policial. Também será apresentada a função garantidora de direitos do inquérito policial, na medida em que através da investigação policial se poderá desde logo apontar a inocência de algum suspeito, evitando-se os custos financeiros e morais que um cidadão tem que arcar na defesa de uma ação penal, como também evitando que o Estado tenha despesas desnecessárias numa ação penal que ao final seria arquivada por falta de provas contra aquela pessoa. Concluindo o primeiro capítulo, será discutida a aplicação no inquérito policial dos princípios da presunção de inocência, contraditório e ampla defesa, buscando avaliar o grau de garantismo assegurado nesta fase pré-processual.
No segundo capítulo, serão apresentadas algumas considerações acerca do inquérito policial e seus procedimentos, com uma rápida abordagem histórica, conceito, finalidade e competência (atribuição), algumas de suas principais características, as formas de início, prazos para encerramento e o seu arquivamento, como também uma breve abordagem da polícia judiciária e da ação penal, com o objetivo de realizar uma análise geral do inquérito policial e como ele poderia se aperfeiçoar aos princípios processuais.
O terceiro e último capítulo irá investigar a indispensabilidade do inquérito policial para o oferecimento da denúncia durante a persecução penal, para tanto, será discutida a função social do inquérito policial, seu valor probatório e a valoração que ele adquire nos julgamentos pelo júri popular e se é possível a investigação criminal realizada pelo Ministério Público. Finalizando, serão analisados os dados colhidos na promotoria de justiça relativos à quantidade de denúncias oferecidas com e sem o acompanhamento do inquérito, pretendendo-se através destes dados, responder se o inquérito é ou não indispensável para a persecução penal, à luz do conceito do garantismo penal de Luigi Ferrajoli.
O inquérito policial, através da investigação da materialidade e autoria do crime, o qual somado à ação penal promovida pelo Ministério Público irá compreender a persecução penal do Estado para aplicação do jus puniendi(direito de punir do Estado).Trata-se o inquérito policial de um procedimento administrativo extrajudicial destinado a fornecer ao órgão da acusação (Ministério Público) o mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal.
Como bem destaca Rangel (2009, p. 71) “o inquérito policial, em verdade, tem uma função garantidora”. Para Rangel, o inquérito policial ao realizar uma investigação preliminar da materialidade e autoria de um fato delituoso, assume um caráter nítido de evitar a instauração de uma persecução penal infundada por parte do Ministério Público diante do fundamento do processo penal, que é o garantismo penal.Portanto, para melhor adentrarmos nessa função garantidora do inquérito policial, necessário se faz apresentar o conceito de “garantismo penal” de Luigi Ferrajoli.
O garantismo é um sistema que protege também o réu da vingança privada e quando se fala em abolicionismo penal, se não houver o Estado impondo a pena criminal, se não houver força do Estado monopolizando a punição criminal, inevitavelmente teremos também a vingança privada, como uma substituta do direito penal.
Há que se entender que toda a dogmática penal surge justamente como uma substituição da vingança privada. O garantismo pensa num sistema que proteja o réu da vingança privada. Se é necessário que não haja a vingança privada, é necessário que tenhamos uma consequência jurídica que não seja a vingança privada e essa consequência jurídica é a pena.O que o garantismo trabalha é com a ideia de que nós escolhemos as condutas que vamos criminalizar. Não existe uma conduta naturalmente má ou naturalmente criminosa, elas são escolhas. Isso é fundamental para separar o direito da moral.
Quando trabalhamos com garantismo jurídico, estamos trabalhando com uma teoria que busca sistematizar por meio do direito e não na moral. A moral é subjetiva, ou seja, cada um tem a sua visão do que é moral ou imoral. O que é considerado imoral para muitos, pra outro não é, ou vice-versa. A partir de um parlamento, que vai servir de um filtro,é que esses elementos muitas vezes morais vão entrar para o ordenamento jurídico e vão valer para todos, pois foram debatidos e discutidos num congresso e não porque um grupo de pessoas (sem passar aquela discussão por toda a população, pelo menos na ficção da democracia representativa) decidiu que seria assim.
O problema de alguns juízes quando começam a julgar de acordo com a sua interpretação é que no fundo ele está julgando de acordo com a sua moral e não de acordo com o direito, porque quando se julga de acordo com o direito, se julga a partir de algo que, pelo menos em tese, foi discutido num parlamento. Quando o juiz resolve julgar, não de acordo com a lei e a constituição, mas de acordo com a sua concepção do que ele acha que seria “justo” ou do que ele acha que seria “moral”, aí é onde está o perigo do ativismo jurídico, pois a moral pode tomar o lugar do direito, o que seria extremamente perigoso e é a porta aberta para o autoritarismo.
Para evitar isso, o que Ferrajoli tenta fazer é sistematizar o conhecimento jurídico a partir de axiomas, que é aquela verdade que não precisa de demonstração, por exemplo, “entre dois pontos se pode passar uma linha reta” ou “o todo é maior que as partes”. São verdades que não precisam ser demonstradas. Isso é muito utilizado nas ciências, porque a partir dos axiomas, constrói-se teoremas que são derivados a partir deles mesmos. Portanto, os teoremas são resultados provados com passos lógicos a partir da aceitação dos axiomas.
O que Ferrajoli busca fazer é traçar axiomas jurídicos, pretendendo trazer verdades jurídicas que não são propriamente verdades, porque não se trata da esfera do “ser”, mas do “dever ser”. Quando falamos “não há crime sem lei”, na verdade estamos falando “não haverá crime sem lei”, porque não estamos na esfera do “ser”, mas na esfera do “dever ser”.
Os axiomas de Ferrajoli não são proposições descritivas da realidade, são proposições prescritivas, postulados prescritivos do que ele considera que seria justo. E a partir daí, Ferrajoli traça seus axiomas sobre o qual ele constrói toda a obra dele, intitulada: Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal (1990).Garantismo não vale para todos, vale para quem aceita ele. Vivemos num sistema positivista. O direito é válido porque a constituição prescreve, porque as normas prescrevem de acordo com a constituição.
Os axiomas garantistas de Ferrajoli são um metamodelo, são uma ideia teórica. Se a nossa constituição, nosso sistema jurídico, aceitar por meio do parlamento e da assembleia constituinte aqueles axiomas, eles se tornam um direito positivado. Quanto mais nosso sistema jurídico aceitar esses axiomas, mais nós vamos considerá-lo democrático. Quantos mais elementos daqueles axiomas nós tivermos, mais democrático ele será.
O primeiro axioma apresentado por Ferrajoli é: “só haverá pena se houver crime”. Isso é uma verdade auto evidente. Aliás, bem aceita na constituição. Logo em seguida, o segundo axioma diz: “só haverá crime se houver lei”. Os dois primeiros axiomas são aceitos pela maioria das pessoas. O que a nossa constituição da república traz quando diz que “não haverá pena nem crime sem lei anterior”, na verdade não é mais um axioma, já é um teorema, porque a partir dos axiomas “não haverá pena sem crime” e “não haverá crime sem lei anterior”, logo, chegaremos ao teorema “não haverá pena sem lei anterior”, o qual já é uma derivação dos dois primeiros axiomas de Ferrajoli.
A partir dos outros axiomas Ferrajoli construiu toda uma teoria. A partir dessa ideia de que “não haverá crime sem lei anterior”, Ferrajoli diz o seguinte: a lei não pode ser um mero ato de arbítrio, a lei só existe a partir da “necessidade”. A partir dessa ideia de que só há lei se houver necessidade, nós já temos mais um teorema de que “não haverá pena se não houver necessidade”, o que conhecemos como o princípio da intervenção mínima, que não é um princípio expresso na constituição da república com todas as palavras, mas é doutrinariamente aceito.
Ferrajoli continua dizendo que essa necessidade de punir seria quando há uma lesão a um bem jurídico. Esse é outro axioma: “só existe necessidade se houver lesão a um bem jurídico”, ou seja, daí nasce outro teorema, o de que “só haverá pena se houver lesão a um bem jurídico”, esse é o princípio da lesividade demonstrado no nosso sistema jurídico a partir de um encadeamento lógico.Se você concorda com os axiomas, você concorda com os teoremas, porque os teoremas são construídos a partir dos axiomas de maneira lógica.
Em seguida já temos outro axioma: “a lesão deve ser provocada pela ação humana”. Não basta uma mera lesão, ela deve ser provocada por uma ação humana. Quando Ferrajoli diz que não haverá pena sem ação humana, ele está afastando o direito penal de autor, que é você punir alguém pelo o que ele é, punir o indivíduo porque ele “nasceu geneticamente predisposto ao crime”. Isso não é possível porque admitimos como um axioma de que a lesão tem que surgir de uma ação humana. O simples fato de alguém existir não pode lesionar um bem jurídico, deve haver um nexo de causalidade.
Prossegue Ferrajoli com seus axiomas ao dizer que “a ação humana só existe se houver dolo ou culpa”. A ação humana deve ser um ato de vontade ou deve existir pelo menos um elemento psicológico, que é a culpa. Sem culpa não há pena. O sujeito não será punido porque ele estava dirigindo à noite na rua, respeitando todas as regras de trânsito, mas um suicida pulou na frente dele e ele acabou matando esse suicida. Apesar de com a sua ação ele ter provocado a causalidade de matar o suicida, ele não tinha nem dolo e nem culpa, porque não agiu com imperícia, imprudência e nem negligência. Portanto, temos mais um teorema, o de que “não haverá pena sem culpa”.
Em seguida, Ferrajoli entra nos axiomas processuais: “só existe culpa se houver um devido processo legal”. Não podemos presumir culpa, a culpa precisa ser demonstrada, a culpa precisa surgir a partir de um julgamento. Mesmo um crime que foi filmado precisa de um julgamento para saber se o indivíduo foi culpado, porque por mais que uma cena tenha sido gravada, ela não mostra, por exemplo, se houve uma legítima defesa ou o que provocou aquele tipo de comportamento. Ela mostra apenas um pedaço da realidade. Precisamos de um julgamento para “fechar o quebra-cabeça”.
A partir dessa ideia de que um julgamento é necessário, surge a ideia de que só deve existir um julgamento se houver uma acusação. Aqui Ferrajoli traz a importância do sistema acusatório, porque se o julgamento é feito por aquele mesmo indivíduo que acusa, como é próprio dos sistemas inquisitoriais, não teremos um julgamento, mas sim um viés de confirmação que busca apenas ratificar a sua hipótese. O julgamento só é julgamento se houver uma acusação, porque teremos a figura do acusador separada da figura do juiz e é isso que permite o julgamento.Se concordamos com todos esses axiomas, iremos concordar com mais um teorema, o de que “só existe pena se houver acusação”.
Finalmente Ferrajoli apresenta mais um axioma: “a acusação só é possível com prova”. Só podemos dizer que alguém praticou um crime se tivermos prova. A prova só existe a partir do contraditório e da ampla defesa. Assim, Ferrajoli conclui seus axiomas ao dizer que “só existe prova se houver contraditório e ampla defesa”.A prova surge da possibilidade da acusação e da defesa se confrontarem. A prova não existe sozinha, não é encontrada, ela é construída a partir de um diálogo entre a acusação e defesa.Se concordamos com todos os axiomas, então temos o teorema da estrita legalidade, não aquela mera legalidade de dizer que para existir uma lei penal basta existir um ato do poder legislativo dizendo que isso é crime, tipificando a conduta.
Se concordamos com os axiomas de que “só existe pena se houver crime”, de que “não há crime se não houver lei anterior”, de que “a lei deriva da necessidade”, de que “a necessidade só existe se houver lesão”, de que “a lesão deve ser provocada por uma ação humana”, de que “a ação humana só existe de houver dolo ou culpa”, de que “só existe culpa de houver um devido processo legal”, de que “ o devido processo legal só existe se houver o julgamento”, de que “o julgamento só existe com a acusação”, de que “a acusação só existe com a prova” e , finalmente, de que “a prova só existe com a defesa”, então podemos concordar com o teorema máximo de que “a pena só existe se houver a defesa”.
Esse é o modelo do garantismo penal de Ferrajoli, concluindo que “a pena só existe se houver a defesa”, passando por todos os axiomas apresentados. Para Ferrajoli esse é um “dever ser”, um metamodelo de uma democracia perfeita.Através deste metamodelo apresentado por Ferrajoli, encontramos a garantia da existência da pena por parte do Estado, e é também através deste metamodelo de Ferrajoli que encontramos a garantia para existência do inquérito policial, pois é através das investigações da polícia judiciária com o inquérito policial, que se poderá chegar à materialidade e autoria, identificando se houve crime, se houve a lesão, se foi provocada por ação humana, se houve dolo ou culpa, para em seguida servir de base ao Ministério Público, de onde poderá existir a acusação.
E por último, seguindo a sequência lógica da teoria do garantismo penal de Ferrajoli, seguir-se-á com a existência do devido processo legal, da defesa, da instrução de prova, encerrando com a existência legal do julgamento, garantindo assim a aplicação da pena pelo Estado, respeitando-se o princípio do devido processo legal do início ao fim, desde as primeiras investigações do crime até o seu julgamento.
Esse garantismo que pode ser encontrado no inquérito policial é explicado devido sua função preservadora, garantindo direitos constitucionais que estão previstos em nosso ordenamento jurídico. A seguir iremos abordar essa função garantidora que existe no inquérito policial para se entender melhor como o inquérito também pode ser utilizado para a própria defesa daquele que é acusado de ter cometido algum crime.
1.1 Inquérito policial como função garantidora de direitos
O inquérito policial é uma fase pré-processual de atividades investigatórias que antecede à ação penal. A investigação é realizada pela polícia judiciária com o objetivo de esclarecer as circunstâncias do crime, sua autoria e materialidade. Após finalizadas as investigações, servirá para a formação do convencimento do órgão acusador para oferecimento ou não da denúncia e assim iniciar a ação penal, conforme ensina Eugênio Pacelli:
A fase de investigação, portanto, em regra promovida pela polícia judiciária, tem natureza administrativa, sendo realizada anteriormente à provocação da jurisdição penal. Exatamente por isso se fala em fase pré-processual, tratando-se de procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois, à formação do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação. (PACELLI, 2014, p. 54)
Sendo o inquérito policial uma fase pré-processual é nela que podemos encontrar as primeiras garantias asseguradas àquele que é investigado por suspeita de ser o autor de alguma infração penal, pois o indiciamento de alguma pessoa somente será possível se nas investigações houver fundados indícios de sua autoria, caso contrário, as investigações podem apontar que aquele suspeito não cometeu o crime, sendo descartada qualquer participação sua no crime em investigação, ou seja, evitando assim que o mesmo responda injustamente à uma ação penal.
Como bem destaca Aury Lopes Jr. “o garantismo penal busca evitar o custo para o sujeito passivo (e para o Estado) de um juízo desnecessário” (LOPES JR., 2001, p. 41). Com uma investigação preliminar bem realizada pela polícia judiciária, apontando com elementos informativos suficientes para o indiciamento correto da pessoa que realmente cometeu o crime, o Estado poderá exercer o jus puniendi aplicando a sanção ao réu que de fato é culpado.
Nem o Estado arcará com os custos de uma ação penal infundada que ao final será arquivada por falta de provas, nem o sujeito passivo arcará com despesas advocatícias e até com restrições a sua liberdade com uma ação penal no qual é flagrantemente inocente e poderia ser demonstrada já na fase pré-processual do inquérito policial.
Aury Lopes Jr. (2014) chama essa fase pré-processual de “investigação preliminar”, a qual tem como primeiro benefício proteger o “inculpado”, dividindo em duas cifras. A primeira é a “cifra da ineficiência”, a qual corresponde ao número de culpáveis que, submetidos à juízo, restam impunes ou são ignorados.A segunda é a “cifra da injustiça”, a qual corresponde aos casos de inocentes processados a às vezes condenados. O autor acrescenta ainda que a primeira cifra pode ser justificada pelas dificuldades do aparato policial e judicial para levantar indícios e provas que possam condenar quem realmente é culpado. Porém, a cifra da injustiça é “injustificável”.
A nosso juízo, a função de evitar acusações infundadas é o principal fundamento da investigação preliminar, pois, em realidade, evitar acusações infundadas significa esclarecer o fato oculto (juízo provisório e de probabilidade) e com isso também assegurar à sociedade de que não existirão abusos por parte do poder persecutório estatal. Se a impunidade causa uma grave intranquilidade social, mais grave é o mal causado por processar irresponsavelmente um inocente. (LOPES JR., 2014, p. 180)
A sociedade clama pela aplicação da “justiça” nos casos de grande repercussão social, exigindo a aplicação da lei àquele que julgam ser o culpado, mas que, em alguns casos, não são punidos por falta de provas. Nos dizeres de Lopes Jr. É melhor um culpado à solta, do que um inocente preso. E é através da investigação preliminar, realizada pelo inquérito policial, que de pronto o inocente já se pode ver livre do indiciamento e, consequentemente, da acusação e condenação, pois se nas investigações do inquérito policial ficar demonstrado que aquela pessoa não teve qualquer participação no fato delituoso, dificilmente será indiciado e muito menos processado.
Nucci explica que “o simples ajuizamento da ação penal contra alguém provoca um fardo à pessoa de bem, não podendo, pois, ser ato leviano, desprovido de provas e sem um exame pré-constituído de legalidade” (NUCCI, 2015, p. 41).Sobre os direitos da pessoa objeto de investigação em sede policial, Rangel diz:
O indiciado é objeto de investigação, porém, isso não significa dizer, como comumente se diz, que não tem direitos previstos na Constituição. É sim sujeito de direito, porém não é acusado. Não tem que se defender de nada. Não podemos negar ao indiciado, em regular inquérito, os direitos previstos na Constituição, tais como: o princípio da legalidade; o da proibição de tratamento cruel, desumano ou degradante; o da inviolabilidade de domicílio; o de permanecer calado quando chamado a se manifestar, e o da assistência de sua família, de advogado e de se comunicar com pessoa por ele indicada (cf. art. 5º da CRFB), além de outros decorrentes dos tratados e convenções em que o Brasil seja parte. (RANGEL, 2009, p. 72)
Nucci ainda acrescenta que “o inquérito policial é um meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis e mentiras ardilosamente construídas para prejudicar alguém” (NUCCI, 2015, p. 42). Sobre essas “mentiras ardilosas” que visam somente prejudicar alguém, o Código Penal prevê em seu art. 339 o crime de denunciação caluniosa, vejamos:
Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente: (Redação dada pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
§ 1º - A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto.
§ 2º - A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.
Esses mecanismos de defesa no ordenamento jurídico, visam garantir direitos ao investigado desde a fase pré-processual, através do inquérito policial. O Ministro Francisco Campos, em sua exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941, disse que o inquérito policial constitui “uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime, ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas circunstâncias objetivas e subjetivas”. Além disso, a constante vigilância do Ministério Público e do Judiciário permite que seja controlado, prevenindo-se eventuais abusos.
Outra garantia que há já no inquérito policial é a comunicabilidade do preso. Antes, porém, havia o instituto da incomunicabilidade do preso, onde este não poderia se comunicar com quem quer que seja, mesmo sua família ou advogado.A Lei n. 4.215, de 27 de abril de 1963 (revogada pela Lei n. 8.906 de 1994), a qual tratava sobre o estatuto da Ordem do Advogados do Brasil, havia estabelecido em seu art. 89, inc. III, que era direito do advogado se comunicar com seu cliente, ainda que ele estivesse preso.
Já seria um grande avanço, permitir que o preso em sede policial pudesse ter o direito de se comunicar com seu advogado, porém, o instituto da incomunicabilidade ainda era previsto no art. 21 do Código de Processo Penal, que em seu “caput” estabelecia que “A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir”.
E o parágrafo único do art. 21 ainda estabelecia que “a incomunicabilidade não excederá de três dias”, o qual veio a sofrer alteração, introduzida pelo art. 69 da Lei n. 5.010, de 30 de maio de 1966, passando o parágrafo único do art. 21 do Código de Processo Penal a exigir que a incomunicabilidade deve ser decretada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento da Autoridade Policial, ou do órgão do Ministério Público.
Outro avanço já é notado, ao tirar a decretação da incomunicabilidade da autoridade policial e passando para o juiz, o qual deve o fazer por despacho fundamentado. A incomunicabilidade era medida severa e, por isso mesmo, só poderia ocorrer quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação estivesse a exigi-la.
Existe duas correntes quanto ao tema da incomunicabilidade do preso. A majoritária, composta por autores como Julio Fabbrini Mirabete e Tourinho Filho, entendem que apesar do art. 21 do Código de Processo Penal não ter sido revogado, a atual Constituição, entretanto, no capítulo destinado ao “Estado de Defesa e Estado de Sítio” proclama, no art. 136, §3º, IV que “é vedada a incomunicabilidade do preso”.
Ora, se durante o estado de defesa, quando o Governo deve tomar medida enérgicas para preservar a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, podendo determinar medidas coercitivas, destacando-se restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações, o sigilo da correspondência e o sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, havendo até prisão sem determinação judicial, tal como disciplinado no art. 136 da CF, não se pode decretar a incomunicabilidade do preso(CF, art. 136, §3º, IV), com muito mais razão não há que se falar em incomunicabilidade na fase do inquérito policial. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 252)
Para essa corrente, se o instituto da incomunicabilidade não pode existir nem no estado de defesa, então consequentemente em tempo de paz também não seria coerente sua admissibilidade. Creio que esse realmente é o entendimento correto, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana que deve garantir o contato de qualquer pessoa presa com seu advogado e com seus familiares.
· Dos direitos na prisão em flagrante
No que tange à prisão, aqui também se pode verificar mais uma garantia constitucional a pessoa que está sendo presa. Com fundamento no art. 306 do Código de Processo Penal e no art. 5º, LXII, da Constituição Federal, “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoal por ele indicada”.
Como bem destaca Nucci (2014), assim que chegar ao distrito policial ou outro lugar destinado à lavratura do auto de prisão em flagrante, deve a autoridade providenciar a comunicação à família ou à pessoa indicada pelo detido. Finda a formalização da prisão, em 24 horas, enviará cópia ao juiz cometente para análise da legalidade do ato, o mesmo fará em relação ao Ministério Público.
Se o preso tiver advogado ou a família ou terceiro já lhe tenha providenciado um, assim que ciente do ocorrido, aguarda-se a manifestação do causídico em relação à prisão. Já se o preso não tiver advogado, nem for um causídico providenciado pela família ou terceiro, deve a autoridade remeter, igualmente em 24 horas, cópia do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública.Para que a prisão seja considerada ocorrida em flagrante, Vicente Tourinho Filho observa que:
Considera-se em flagrante delito quem: a) está cometendo a infração; b) acaba de cometê-la; c) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa em situação que faça presumir ser autor da infração; e d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 315).
A garantia constitucional encontrada na prisão em flagrante é de que a pessoa que seja presa em estado flagrancial será imediatamente levada à presença da autoridade policial, o Delegado de Polícia. Como visto acima, é certo de que formalizado o auto de prisão em flagrante delito, serão realizadas as comunicações ao juiz, Ministério Público, Defensor Público, porém, como se observa, será o delegado de polícia, em sede policial, a primeira autoridade que fará um juízo sobre a legalidade da prisão e do estado flagrancial, podendo,in continenti, deixar de lavrar o flagrante, relaxar o flagrante após ter sido este iniciado, ou instaurar o inquérito policial por portaria se verificar não se tratar de estado flagrancial, como bem destaca Fernando Capez:
O delegado de polícia pode recusar-se a ratificar a voz de prisão emitida anteriormente pelo condutor, deixando de proceder à formalização do flagrante e, com isso, liberando imediatamente o apresentado. (...) Situação distinta é a do auto de prisão em flagrante que chegou a ser consumado, inclusive com a assinatura de todas as partes, mas, antes da comunicação imediata ao juiz, a autoridade policial toma conhecimento de um fato que tornaria a prisão abusiva. Nessa hipótese, poderá proceder ao relaxamento. (CAPEZ, 2008, p. 268)
Imagine estar no lugar errado e na hora errada. Estar no lugar em que um homicídio acabou de ocorrer, chegando uma equipe policial e encontrando-o ao lado do corpo da vítima e sujo de sangue, sendo preso em flagrante por aquela equipe policial que chegou ao local. Parece cena de filme, mas acontece na vida real. Agora imagine que nessa situação você fosse diretamente para a cadeia, sem chances nem de dar sua versão aos fatos. Por isso que a prisão em flagrante de qualquer pessoa passa primeiramente pelo crivo do delegado de polícia, o qual deve analisar a situação, ouvir todas as partes presentes e concluir pela decretação ou não da prisão em flagrante.
Cite-se como exemplo o caso de um flagrante preparado, o qual, segundo Pacelli (2014), ocorre quando há a intervenção decisiva de um terceiro a preparar ou a provocar a prática da ação criminosa e, assim, do próprio flagrante,como também pode ocorrer a preparação por parte de agentes policiais, resultando numa situação de impossibilidade de consumação da infração de tal maneira que a hipótese se aproximaria do conhecido crime impossível. Eugenio Pacelli dá o seguinte exemplo de um flagrante preparado:
Um empregador, suspeitando da subtração continuada de dinheiro de sua empresa, aciona a polícia e, junto com essa, prepara uma situação na qual seria facilitada a subtração, ao mesmo tempo em que seria impossibilitada a sua consumação, pela ação policial, ali já de prontidão. Chega-se a afirmar que o agente, em tal situação, seria o ator não ciente (ou inconsciente) de uma comédia, dado que o crime não poderia se realizar, em função da atuação da polícia. (PACELLI, 2014, p. 535)
Semelhante entendimento veio a ser sumulado na Suprema Corte (Súmula 145), que tem os seguintes termos: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.Neste caso, a autoridade policial ao visualizar se tratar de um flagrante preparado, não poderá lavrá-lo, pois se assim o fizer, poderá incorrer em abuso de autoridade.
Mais uma vez, percebe-se que é perante à autoridade policial que o preso terá respeitado seus primeiros direitos garantidos por lei, dentre eles um dos mais importantes, o direito à liberdade de locomoção, pois caso seja verificado que não se trata de estado flagrancial, será posto imediatamente em liberdade, para responder solto ao inquérito policial ou até mesmo o arquivamento do boletim de ocorrência do condutor que deu voz de prisão ao cidadão, por inocorrência de fato típico, ou seja, a atipicidade da conduta.
Há ainda que se falar no flagrante forjado, que segundo Nestor Távora (2014) trata-se de uma conduta ilícita por parte de quem efetuou a prisão em flagrante, pois ela foi “armada”, “forjada” para incriminar um inocente. Neste caso o único infrator é o agente forjador. Távora dá o seguinte exemplo:
Ex.: empregador que insere objetos entre os pertences do empregado, acionando a polícia para prendê-lo em flagrante pelo furto, para com isso demiti-lo por justa causa. (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 720)
Este é um tipo de situação difícil de se constatar num primeiro momento, onde o delegado de polícia que receber a ocorrência deve usar de toda a sua experiência profissional para notar alguma contradição ou lacuna nas declarações da suposta vítima, para não cometer o erro de lavrar auto de prisão em flagrante contra um inocente, este sim vítima de uma armadilha.
Esta função garantidora de direitos dá ao investigado, através do inquérito policial a oportunidade do mesmo ser considerado inocente, sem que tenha que responder a uma ação penal. No garantismo, deve sempre ser perseguido o culpado, livrando o inocente de ser considerado culpado, e que na dúvida de sua autoria, o Estado se abstenha de aplicar a pena, aplicando-a somente na certeza de sua autoria, segundo o modelo garantista apresentado por Luigi Ferrajoli, como se vê adiante:
A certeza, ainda que não absoluta, a que aspira um sistema penal de tipo garantista não é no sentido de que resultem exatamente comprovados e punidos todos os fatos previstos pela lei como delitos, mas que sejam punidos somente aqueles nos quais se tenha comprovado a culpabilidade por sua comissão. (FERRAJOLI, 2002, p. 85)
Como bem observado por Ferrajoli, segundo o modelo garantista, o qual é defendido por Ferrajoli como aquele mais justo para justificar o direito de punir, o objetivo do Estado não é punir todos que cometam um crime, mas punir somente aqueles que se tenha certeza que cometeu o crime, livrando assim que um inocente possa ser punido por algo que não fez. Assim, do ponto de visto aqui examinado, entendo que essa função garantidora de direitos do inquérito policial está totalmente em consonância com o modelo garantista de Ferrajoli, ao ponto que as investigações levantadas no inquérito policial podem determinar desde logo a inocência do investigado.
Além de garantir ao investigado que ele será tratado com toda a dignidade humana que lhe é peculiar, também podemos encontrar alguns princípios constitucionais na fase pré-processual, como é o caso do princípio da presunção de inocência. Apesar de seu caráter inquisitivo, mesmo sendo colhidos indícios de autoria do investigado durante as diligências no inquérito policial e mesmo sendo ele indiciado pela autoridade policial competente, isso não muda o seu estado de inocência, que será tratado a seguir.
1.2 Princípio da presunção de inocência
A depender dos princípios que venham a informá-lo, o processo penal, na sua estrutura, pode ser inquisitivo, acusatório e misto. A principal função da estrutura processual é a de garantia contra o arbítrio estatal, conformando-se o processo penal à Constituição Federal, de sorte que o sistema processual penal estaria contido dentro do sistema judiciário, que por sua vez é espécie do sistema constitucional, que deriva do sistema político.
No sistema inquisitivo, que surgiu nos regimes monárquicos, o próprio órgão que investiga é o mesmo que pune. Não há separação de funções, pois o juiz inicia a ação, defende o réu e, ao mesmo tempo, julga-o. Portanto, todas as funções se concentram em poder de uma só pessoa, um mesmo órgão, que as acumula todas em suas mãos.
Já o sistema acusatório, com origem no Direito grego, é o adotado no Brasil, de acordo com o modelo que recebeu forma na Constituição Federal de 1988. Nele é estabelecido que o titular da ação penal pública é o Ministério Público, afastando o juiz da persecução penal, preservando sua imparcialidade para que seja um autêntico julgador.
Paulo Rangel (2009) destaca que no sistema acusatório há separação entre as funções de acusar, julgar e defender, com três personagens distintos: autor, juiz e réu. O processo é regido pelo princípio da publicidade dos atos processuais. Os princípios do contraditório e da ampla defesa informam todo o processo, onde o réu goza de todas as garantias constitucionais.
Existem ainda o sistema misto ou acusatório formal, com raízes na Revolução Francesa, caracterizada por uma instrução preliminar, secreta e escrita, a cargo do juiz, com poderes inquisitivos, no intuito da colheita de provas, e por uma fase contraditória em que se dá o julgamento, admitindo-se o exercício da ampla defesa e de todos os direitos dela decorrentes.
Os princípios da presunção da inocência, do contraditório e da ampla defesa, são largamente assegurados pela Constituição Federal de 1988 e fazem parte do sistema processual garantista num Estado Democrático de direito.Ferrajoli (2002) procura estabelecer limites mais ou menos objetivos para a contenção da nascente e crescente liberdade judiciária, do ponto de vista específico do Direito Penal e do Processo Penal.
Como tais disciplinas cuidam de uma intervenção estatal de grandes consequências na liberdade individual, sobretudo no que respeita ao aspecto das penas corporais, Ferrajoli dá destaque as principais características do ato jurisdicional, enquanto ato de autoridade pública, dotado de coercibilidade estatal.
Ainda na linha de pensamento de Ferrajoli, o risco de condenação de um inocente há de merecer muitos e maiores cuidados que o risco de absolvição de um culpado. Não porque os danos levados ao réu pela pena sejam maiores que aqueles causados à vítima no crime, mas porque toda e qualquer reconstrução da realidade submete-se à precariedade das regras do conhecimento humano.O princípio do favor rei ou o princípio doin dubio pro reo dizem que na dúvida prevalece a incerteza e em tais situações a máxima efetividade dos direitos fundamentais se dará com a não condenação.
Disso decorre - se é verdade que os direitos dos cidadãos são ameaçados não só pelos delitos mas também pelas penas arbitrárias - que a presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica "segurança" fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica "defesa" destes contra o arbítrio punitivo. (FERRAJOLI, 2002, p. 441)
Para Ferrajoli, o medo do inocente em ver o Estado aplicar injustamente uma pena arbitrária com sua pessoa, não pode ser maior que o medo do culpado em se ver condenado. O Estado deve ser eficaz na aplicação das penas, mas deve ser ainda mais eficaz na guarda e no cumprimento dos direitos e garantias conferidas aos cidadãos de bem. O Estado deve antes de tudo oferecer proteção aos seus cidadãos, inclusive protegendo-o do próprio Estado, evitando aplicação de penas arbitrárias.
O princípio da presunção da inocência é antigo, remonta ao ano de 1789, no artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que previa que “toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarado culpada”. Foi reiterada no artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres, de 2 de maio de 1948, e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, promulgada em 10 de dezembro de 1948, a qual estampa em seu artigo 11 “qualquer pessoa acusada dum ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu artigo 5º, inciso LVII que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ratificando assim o princípio da presunção da inocência já vigente nos demais países democráticos.Não resta dúvidas que o réu é considerado inocente na fase processual, ou seja, durante a ação penal, até prova em contrário em sentença penal condenatória, mas e quanto à fase pré-processual?Pode-se falar em culpado ou inocente durante o inquérito Policial?
O inquérito policial é em sua natureza de caráter inquisitivo, pois, como ensina Tourinho Filho (2013), a autoridade policial é quem instaura o inquérito, de ofício, isto é, sem provocação de quem quer que seja (salvo algumas exceções), como também é a autoridade policial que tem poderes para empreender todas as investigações necessárias à elucidação do fato infringente da norma e à descoberta do respectivo autor, não podendo o indiciado exigir que sejam ouvidas testemunhas indicadas por ele e nem de exigir à autoridade policial as diligências que o indiciado julgue necessárias e, ao final, também é a autoridade policial quem faz o relatório final, indiciando (ou não) o investigado.
Porém, apesar de seu caráter inquisitivo, mesmo sendo colhidos indícios de autoria do investigado durante as diligências no inquérito policial e mesmo sendo ele indiciado pela autoridade policial competente, isso não muda o seu estado de inocência, conforme entendimento jurisprudencial do TRF-2 em Agravo de Instrumento:
Ementa: PROFISSIONAL QUE RESPONDE INQUERITO POLICIAL. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. CF ART. 5º, INCISO LVII. AUSÊNCIA DE ANTECEDENTES CRIMINAIS. PROVIMENTO. I. Trata-se de agravo de instrumento objetivando reforma de decisão que indeferiu a antecipação dos efeitos da tutela para possibilitar a matrícula do autor em curso de vigilante e o consequente exercício da profissão, em razão da existência de indiciamento do autor/agravante em Inquérito Policial. II. A exigência legal que estabelece como requisito para o porte de armas de vigilantes a condição de não estarem respondendo a processo criminal ou inquérito policial deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, sem redução de texto, no sentido de que tal exigência não impeça o exercício da profissão, embora possa a Administração, com base nessa informação, exigir laudos psicológicos ou técnicos do profissional. III. Entendimento pacificado no STJ no sentido de que não se deve considerar como antecedente criminal a circunstância de alguém figurar como indiciado em inquérito policial mas tão-somente, a condenação por fato criminoso, transitada em julgado. IV. O art. 4º da Lei nº 10.826 /03 e Portaria nº 387/2006 da Polícia Federal ao determinarem como pré-requisito a não existência de inquérito policial contra aquele que pretende o porte de arma de fogo, não se coadunam com a ordem constitucional, haja vista que não há no inquérito policial acusação, mas averiguação de fatos objetivando encontrar-se a verdade sobre o acontecimento levado a conhecimento da autoridade policial. V. Agravo provido. Decisão reformada. (TRF-2, AG 201102010095827, relator Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, publicada em 04/11/2011, grifo nosso).
No caso em questão, o STF não fez mais do que interpretar o fato à luz da Constituição Federal e do princípio da presunção de inocência, pois não é pelo fato de uma pessoa estar respondendo a um inquérito policial que ela poderá ser penalizada por isso, seja penalmente ou administrativamente. Não se pode negar a alguém o seu provimento em cargo somente pelo fato de estar respondendo a um inquérito policial, ou mesmo ter sido indiciado, pois como visto até aqui, a presunção de inocência é garantida também na fase pré-processual e ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.Eis a seguir o entendimento do STJ sobre o tema:
Ementa: PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. REGIME PRISIONAL MAIS GRAVOSO. FUNDAMENTAÇÃO VINCULADA. OFENSA À SÚMULA 444/STJ. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Esta Corte firmou entendimento de que, considerando o princípio da presunção da inocência, inquéritos policiais ou ações penais em andamento não servem de base para valorar negativamente os antecedentes, a conduta social ou a personalidade do acusado e, por consectário, não permitem a imposição de regime prisional mais gravoso do que o indicado pelo quantum de sanção corporal estabelecido. 2. Agravo regimental improvido. (STJ - AgInt no AREsp: 1237608 RJ 2018/0011435-2, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 07/08/2018, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/08/2018, grifo nosso).
Como observado, tanto o STJ, como o STF, já se posicionaram em relação ao tema, chegando à conclusão que pelo princípio da presunção de inocência, o fato de uma pessoa ter sido indiciada em inquérito policial não pode ser valorado negativamente a conduta social do indiciado, pois ele ainda irá responder à ação penal e somente ao final e que se poderá dizer que o mesmo é culpado, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Caso alguém sofra esse tipo de punição por estar respondendo a inquérito policial, deve o mesmo procurar a justiça, para se valer o princípio da presunção de inocência.
Percebe-se que, mesmo o indiciamento causando uma carga significativa e socialmente onerosa à situação jurídica do inocente e que os indícios lhe apontem a autoria no fato delituoso, ainda assim ele será considerado inocente nos termos do ordenamento jurídico.O princípio do in dubio pro reo deve ser perseguido durante toda a fase processual, como também na fase pré-processual. Ao passo que o princípio do in dubio pro societatetambém deve ser observado pela Polícia Judiciária, quando objetiva a paz social, este princípio deve ser entendimento de forma relativa e não absoluta, pois a liberdade individual de uma pessoa não pode ser violada se contra ela não houverem ao menos fundados indícios de sua participação no cometimento de algum crime.
No inquérito policial, ao final das investigações, caso o delegado de polícia tenha dúvidas quanto a participação do investigado no crime, a melhor medida que ele deve tomar e não indiciá-lo, respeitando o princípio do in dubio pro reo, pois é melhor ver um culpado solto do que um inocente na cadeia.
Aqui pode-se notar a importância do inquérito policial na manutenção do estado de inocência de uma pessoa acusada de um crime, pois, tendo o delegado de polícia, ao final de suas investigações,chegado à conclusão da não participação do investigado no cometimento do crime, ou, da inexistência de fato típico, ou até, como vimos, na dúvida sobre a participação do investigado na ação criminosa, pode e deve a autoridade policial não indiciá-lo, evitando assim um possível ajuizamento de ação penal e os custos financeiros, sociais e psicológicos que dela decorrem, não só para pessoa do investigado, mas também a sua família.
Entendo que o princípio da presunção de inocência, que é garantido na nossa Constituição Federal, deve ser aplicado durante toda a persecução penal, tanto na fase processual, quanto na fase pré-processual. Se é garantido que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, então deve ser entendido que no inquérito policial esse princípio também é garantido. Mesmo com o indiciamento, não quer dizer que a pessoa que foi indiciada seja culpada, mas sim que há indícios de sua autoria, e indício não significa que seja culpado.
E não é somente o princípio da presunção de inocência que é garantido no inquérito policial. Podemos encontrar outros princípios processuais na fase policial, como é o caso do princípio do contraditório e do princípio da ampla defesa, os quais eram pouco aplicados até um tempo atrás, mas que principalmente após a promulgação de nossa atual constituição, estão ganhando cada vez mais o espaço que lhe é assegurado em todas as fases do jus puniendi, não só na fase processual, mas também na fase pré-processual, garantindo ainda mais o cumprimento dos direitos e garantias do investigado, como se observará em seguida.
1.3 Princípio do contraditório e da ampla defesa
Antes da Constituição Federal de 1988, podíamos encontrar implicitamente o princípio do contraditório. Já com a promulgação da Carta Magna de 1988, ela foi prevista de forma expressa no artigo 5º, inciso LV, que garante que:“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
É princípio obrigatório no devido processo legal e sua violação pode dar nulidade ao ato ou a todo o processo, como por exemplo a súmula 707 do STF, que dispõe “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.
Se na fase processual o contraditório é obrigatório, na fase pré-processual, isto é, no inquérito policial, esse princípio é mitigado. Não é causa de nulidade, mas podemos vê-lo ser exercido em alguns atos e, ainda, será obrigatório nos casos de antecipação de provas.Quando do momento de seu interrogatório, o indiciado pode permanecer em silêncio sem que isso venha a prejudicar sua defesa, bem como ele não é obrigado a se auto incriminar, fazendo prova contra si ou confessando a autoria do crime. Vejamos o entendimento de Tourinho Filho sobre o direito ao silêncio do interrogado:
A advertência quanto ao seu direito de não responder a qualquer pergunta da autoridade policial é de rigor, não só porque se trata de norma a ser observada em juízo como também por ser direito fundamental do indiciado ou réu. Não pode o indiciado sofrer qualquer pressão quando do seu interrogatório policial. Ele deve sentir-se à vontade, tal como ocorre em juízo. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 288)
Quanto à produção de prova contra si mesmo, o Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, 2, g) diz que toda pessoa tem o “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.É sabido que antigamente os interrogatórios, quase que em regra, eram realizados sob forte tortura física, com a obtenção de extrair a confissão do acusado, como se ela fosse a “rainha de todas as provas”.
Hodiernamente ainda pode ocorrer tal situação, mas com o avanço das garantias constitucionais, fundadasno direito basilar da dignidade da pessoa humana, como também numa melhor fiscalização por parte do Ministério Público e dos órgãos correcionais das polícias (as corregedorias), as quais vêm aplicando medidas severas para aqueles policiais que ainda praticam torturas, inclusive com penas de demissão do cargo, a regra no inquérito policial moderno é de manter o direito à integridade física do interrogado, o qual é livre para confessar ou negar a autoria do crime, dando sua versão sobre os fatos e se posicionar contrário às acusações que lhe são imputadas.
Inclusive, a tortura já é tipificada como crime no nosso ordenamento jurídico, através da promulgação da Lei n. 9.455/97 em 07 de abril de 1997, considerando-a inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, e sua condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.Sobre o valor da confissão no interrogatório em fase extrajudicial, Guilherme Nucci explica que:
Deve ser reputada totalmente inconsistente para condenar uma pessoa, caso venha isolada no bojo dos autos. Necessita ser firmemente confrontada com outras provas e nitidamente confirmada pelas provas produzidas em juízo, não bastando mera fumaça de veracidade. Os riscos de aceitação da confissão extrajudicial, como meio de prova direto, são inúmeros e capazes de gerar o malfadado erro judiciário, inaceitável no Estado Democrático de Direito. A confissão judicial, por sua vez, porque produzida diante de magistrado, após a citação, sob o manto protetor da ampla defesa – que deve, efetivamente ser assegurada ao réu antes do interrogatório – é meio de prova direito. Ainda assim, precisa ser confrontada com outras provas e por elas confirmada, embora possua maior força do que a confissão-indício feita, como regra, na polícia. (NUCCI, 2015, p. 197)
Portanto, em sede policial, o delegado de polícia deve autorizar que o interrogado seja acompanhado de advogado, caso o mesmo esteja presente, como também informa-lo dos seus direitos constitucionais, notadamente o direito de ter respeitada sua integridade física, assim, apesar da confissão extrajudicial não ter valor probatório absoluto, terá valor probatório relativo, pois faltou-lhe a presença do juiz de direito. Conforme entendimento de Fernando Capez:
O inquérito policial tem conteúdo informativo, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público ou ao ofendido, conforme a natureza da infração, os elementos necessários para a propositura da ação penal. No entanto, tem valor probatório, embora relativo, haja vista que os elementos de informação não são colhidos sob a égide do contraditório e da ampla defesa, nem tampouco na presença do juiz de direito. Assim, a confissão extrajudicial, por exemplo, terá validade como elemento de convicção do juiz apenas se confirmada por outros elementos colhidos durante a instrução processual. (CAPEZ, 2008, p. 79, grifo nosso)
Nas palavras de Capez, a confissão colhida pela autoridade policial somente terá validade para formar a convicção do juiz se durante o interrogatório tiver sido resguardado os direitos constitucionais assegurados no ordenamento jurídico, bem como que o juiz não se baseie somente naquela confissão extrajudicial, mas também nas demais provas colhidas durante a fase de instrução da ação penal, estas acobertadas pelos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Mesmo sendo assegurada ao interrogado o direito de permanecer em silêncio, sem que disso venha acarretar prejuízos à sua defesa futuramente durante a ação penal, cabe ressaltar que é neste momento, em que ele é intimado a prestar interrogatório perante a autoridade policial, onde o interrogado poderá dar sua versão sobre os fatos e alegar sua inocência.
Caso a autoridade policial se convença da versão e do álibi apresentado pelo interrogado, o delegado poderá tomar outros rumos da investigação, averiguando os álibis apresentados e se for o caso, decidir pelo não indiciamento. Talvez seguindo essa outra linha de investigação poderá chegar ao real culpado.Não são raras as vezes em que supostas vítimas criam histórias para incriminar um desafeto, denúncias anônimas infundadas ou até mesmo caso de homônimos, levam a autoridade policial à erro, indiciando pessoa inocente.
A autoridade policial não pode se negar a ouvir o indiciado, somente deixando de proceder ao interrogatório quando o investigado não é encontrado, não comparece quando é devidamente intimado ou está em local incerto e não sabido. Porém, comparecendo no dia em que foi intimado, deve o delegado de polícia colher seu interrogatório e reduzir a termo a versão apresentada pelo interrogado, quando este desejar falar, espontaneamente.
Portanto, o comparecimento do indiciado quando for intimado à comparecer em delegacia é de suma importância para sua defesa, principalmente quando alega inocência, pois, caso o delegado de polícia se convença de sua inocência não irá indiciá-lo, por conseguinte, há a grande possibilidade também do promotor de justiça não denunciá-lo e opinar pelo arquivamento do inquérito policial, evitando assim o ajuizamento de uma ação penal que ao final não haveria condenação, como também, evitando os prejuízos financeiros, psicológicos e morais à pessoa do indiciado.
Para o desenvolvimento e estrutura do processo penal, a garantia mais importante e ao redor da qual todo o processo gravita é a da ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.O direito de defesa encontra-se expressamente garantido pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV.Consiste a ampla defesa na oportunidade de o réu contraditar a acusação, mediante a previsão legal de termos processuais que possibilitema eficiência da defesa.
Enquanto o contraditório é princípio protetivo de ambas as partes (autor e réu), a ampla defesa – que com o contraditório não se confunde – é garantia com destinatário certo, o acusado. Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar dividem a defesa em técnica e autodefesa, como se vê adiante:
A defesa pode ser subdividida em: (1) defesa técnica (defesa processual ou específica), efetuada por profissional habilitado; e (2) autodefesa (defesa material ou genética), realizada pelo próprio imputado. A primeira é sempre obrigatório. A segunda está no âmbito de conveniência do réu, que pode optar por permanecer inerte, invocando inclusive o silêncio. A autodefesa comporta também subdivisão, representada pelo direito de audiência, “oportunidade de influir na defesa por intermédio do interrogatório”, e no direito de presença, “consistente na possibilidade de o réu tomar posição, a todo momento, sobre o material produzido, sendo-lhe garantida a imediação com o defensor, o juiz e as provas”. (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 65)
A defesa técnica é exercida por pessoa com conhecimentos teóricos em Direito, um profissional, no caso, o advogado. Sua exigência se dá pela presunção de hipossuficiência do sujeito passivo, de que ele não tem conhecimento necessários e suficientes para resistir à pretensão estatal em igualdade de condições técnicas.
No caso de pessoas pobres que não tenham condições de pagar advogado privado, o Estado deve organizar-se de modo a instituir um sistema de serviço público de defesa tão bem estruturado quanto o Ministério Público, com a função de promover a defesa daquele que não tem condições de constituir um defensor privado.
Essa obrigatoriedade da defesa técnica está estampada no artigo 261 do Código de Processo Penal que diz “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem um defensor”.Quanto à defesa técnica em âmbito do inquérito policial, Aury Lopes Junior dá a seguinte lição:
No inquérito policial, a defesa técnica está limitada, pois limitada está a defesa como um todo. Ainda que o direito de defesa tenha expressa previsão constitucional, como explicamos anteriormente, na prática, a forma como é conduzido o inquérito policial quase não deixa espaço para a defesa técnica atuar no seu interior. Por isso, diz-se que a defesa técnica na fase pré-processual tem uma atuação essencialmente exógena, através do exercício do habeas corpus e do mandado de segurança, que, emúltima análise, corporificam o exercício do direito de defesa fora do inquérito policial. Dentro do inquérito basicamente só existe a possibilidade de solicitar diligências, nos estreitos limites do art. 14 do CPP. Contudo, é errado dizer-se que não existe direito de defesa no inquérito. Existir, existe, desde 1941, ainda que não tenha a eficácia que a Constituição exija.(LOPES JR., 2013, p. 149, grifo nosso)
Como bem destaca Lopes Jr., há o direito de defesa técnica no inquérito policial, apesar dela ser limitada, em virtude de seu caráter inquisitivo.Na falta de um advogado que esteja acompanhando o investigado na delegacia de polícia, nada impede que a autoridade policial tome por termo o seu interrogatório. Porém, caso o advogado esteja presente na unidade policial, ou a pessoa do investigado tenha solicitado sua presença, deve o delegado de polícia realizar o termo de interrogatório na presença do advogado, respeitando o princípio da ampla defesa. Isto vale também para as autuações em flagrante delito.
Já na defesa pessoal, ou autodefesa, o sujeito passivo resiste pessoalmente à pretensão estatal, defendendo a si mesmo, fazendo valer seu interesse privado, manifestando mais claramente durante seu interrogatório, tanto perante a autoridade judiciária como a policial.É no interrogatório que o sujeito pode expressar os motivos e as justificativas ou negativas de autoria ou de materialidade do fato que se lhe imputa. Aury Lopes Jr. traz a seguinte explanação quanto à autodefesa no interrogatório policial:
Mesmo no interrogatório policial, o imputado tem o direito de saberem que qualidade presta as declarações,de estar acompanhado de advogado e, ainda, de reservar-se o direito de só declarar em juízo, sem qualquer prejuízo. O art. 5º, LV, da CB é inteiramente aplicável ao IP. O direito de silêncio, ademais de estar contido na ampla defesa (autodefesa negativa), encontra abrigo no art. 5º, LXIII, da CB, que ao tutelar o estado mais grave (preso) obviamente abrange e é aplicável ao sujeito passivo em liberdade. (LOPES JR. 2013, p. 150)
Conforme o autor destacou, na fase de inquérito policial deve ser garantido todos os direitos constitucionais ao interrogado, esteja ele preso ou em liberdade, notadamente o direito de ter resguarda sua integridade física, ser acompanhado por advogado e o direito ao silêncio. Do exercício do direito ao silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico ao imputado, de forma que o ditado de que “quem cala consente” não pode ser aplicado de forma alguma em qualquer investigação ou instrução criminal, pois o Estado é que tem que provar que o réu é culpado, não o réu provar que é inocente.Como explica FERRAJOLI, o princípio nemo tenetur se detegere é a primeira máxima do garantismo processual, vejamos:
Nemo tenetur se detegere é a primeira máxima do garantismo processual acusatório, enunciada por Hobbes e recebida desde o século XVII no direito inglês. Disso resultaram, como corolários: a proibição daquela "tortura espiritual", como a chamou Pagano, que é o juramento do imputado; o "direito ao silêncio", nas palavras de Filangieri, assim como a faculdade do imputado de responder o falso; a proibição não só de arrancar a confissão com a violência, mas também de obtê-la mediante manipulação da psique, com drogas ou com práticas hipnóticas, pelo respeito devido à pessoa do imputado e pela inviolabilidade de sua consciência; a consequente negação do papel decisivo da confissão, tanto pela refutação de qualquer prova legal como pelo caráter indisponível associado às situações penais; o direito do imputado à assistência e do mesmo modo à presença de seu defensor no interrogatório, de modo a impedir abusos ou ainda violações das garantias processuais. (FERRAJOLI, 2000, p. 486)
Como bem ensinado por Ferrajoli, a confissão não pode ser obtida por qualquer meio, ela deve ser espontânea e o fato de não confessar não pode ser entendido como uma confissão tácita. A confissão deve ser explícita e livre de qualquer manipulação, seja por violência física ou psíquica. Tem ainda o interrogado o direito de não confessar e contradizer as acusações, alegando sua inocência e dando suas versões quanto ao fato, apresentando seu álibi e provas de sua não participação no crime.
Aury Lopes Jr. (2014), diz que o princípio da ampla defesa é encontrado no inquérito policial de forma limitada na defesa técnica, mas já na autodefesa ela é mais livremente exercida, podendo o investigado espontaneamente produzir provas que possam provar sua inocência, como se dispor ao reconhecimento pessoal ou fornecer material genético ou grafotécnico para confecção de perícias, além de fazer sua defesa durante o interrogatório policial ou até mesmo permanecer em silêncio.
Concluído esse primeiro capítulo em que foi apresentada de forma resumida a teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, como também a função garantidora de direitos do inquérito policial, passando por uma abordagem dos princípios da presunção de inocência, contraditório e ampla defesa nesta fase pré-processual, cabe agora no capítulo seguinte uma análise sobre alguns aspectos que norteiam o inquérito policial, identificando seu conceito, natureza, características e os aspectos jurídicos condizentes, onde se trará uma breve explanação do tema inserindo no contexto ora trabalhado, construindo uma melhor compreensão do inquérito policial para que no último capítulo se possa analisar sua indispensabilidade na persecução penal.
O inquérito policial está ligado ao sistema inquisitorial e para se entender melhor a origem do inquérito policial, devemos estudar como era essa fase inquisitorial. José Geraldo da Silva (1996), nos ensina que o sistema inquisitorial surgiu na idade Média, por volta do ano de 1.200 D.C. Segundo Silva, esse sistema era usado pelo papa para perseguir os blasfemadores, lançadores de sorte, neócrates, excomungados, apostatas, cismáticos, neófitos que retornaram a erros anteriores, judeus infiéis, invocadores do diabo e quaisquer outros que viessem a importunar os objetivos e vontades daqueles. Nestes casos, a autoridade papal poderia proceder contra todo e qualquer suspeito de heresias. Toda ameaça a fé católica era investigada pelo Santo Ofício (SILVA, 1996). Já por volta do século XV, foi introduzido o sistema inquisitivocomo tribunal permanente.
De acordo com Urbanski (2007), uma característica que marcou a inquisição foi a crueldade das penitencias para aqueles que fossem contra os ditames da igreja católica, que acabava com as vidas humanas, dizendo agir em nome de Deus. Para José Geraldo da Silva (1996), a inquisição detinha um fim moral, “no qual se impunham restrições de pensamento para se obter a salvação das almas”.
Segundo Antonio Gomes Duarte (1996), somente ano de 1841 que os primeiros traços do inquérito policial começaram a surgir no Brasil, afirmando ainda que o inquérito policial tem suas raízes em Roma e na Grécia Antiga. De acordo com Duarte, entre os romanos, a vítima era quem procedia com a investigação, acusando e mostrando as provas, indo ao local do crime, ouvindo e arrolando testemunhas. Também cabia aquele que era acusado de reunir as provas para sua defesa, também podem efetuar diligências, ouvir e arrolar testemunhas.
Para Carlos Alberto Rios (1991), a primeira legislação a vigorar no Brasil-Império foram as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, mas elas não faziam qualquer menção ao inquérito policial. Já no ano de 1830, foi sancionado o primeiro Código Criminal do Império e em 1832 o Código de Processo Criminal. De acordo com Rios, o Código de Processo Criminal apenas disciplinava as funções dos inspetores quarteirões, os quais não desempenhavam função de Polícia Judiciária, tratando ainda do procedimento para coleta de informações, mas ainda não se usava o termo “Inquérito Policial”.
Carlos Alberto dos Rios (1991), diz ainda que somente no ano de 1841 começou-se a delinear o inquérito policial, atribuindo competências às autoridades policiais. A Lei n. 261, de 03 de dezembro de 1841, atribuía às autoridades policiais o encargo de remeter, quando julgassem conveniente, todos os dados, provas e esclarecimentos, que houvessem obtido sobre um delito, com uma exposição do caso e de suas circunstâncias, aos juízes competentes, a fim de formarem a culpa.
Para Antonio Gomes Duarte (1996), somente através do Decreto nº. 4.824 de 22 de Novembro de 1871 é que o inquérito policial foi introduzido pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico, sendo mantido no primeiro Código de Processo Penal, instituído no ano de 1942, o qual dispõe em seu título II sobre o inquérito policial, vigente até hoje.
Percebe-se que a história do inquérito policial é muito extensa, desde o ano de 1871, portanto, um século e meio de história. Apesar de ainda hoje ter uma característica inquisitorial, podemos notar que o inquérito policial teve grande avanço ao longo de sua história, no sentido de cumprir com os direitos e garantias constitucionais.
Visto brevemente esta parte histórica, veremos a seguir como a doutrina moderna conceitua o inquérito policial. Importante também tratarde alguns elementos de sua essência, de sua natureza, notadamente sua finalidade, demonstrando qual é seu objeto nesta fase pré-processual, além de apresentar qual é sua competência (ou atribuição, como é tratado por alguns autores), ou seja, quem irá presidir as investigações.
2.1 Conceito, finalidade e competência (atribuição)
O inquérito policial é um procedimento administrativo extrajudicial destinado a fornecer ao órgão da acusação o mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal.Através da investigação da materialidade e autoria do crime, o qual somado à ação penal promovida pelo Ministério Público, irá compreender a persecução penal do Estado para aplicação do jus puniendi.
O Inquérito Policial é a fase de investigação do crime que antecede a ação penal, chamada de fase pré-processual. Nele são colhidas informações e/ou elementos de prova que irão servir de base para a denúncia oferecida pelo Ministério Público, para dar início à ação penal. Guilherme de Souza Nucci conceitua o Inquérito Policial da seguinte forma:
Trata-se de um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria. Seu objetivo precípuo é a formação da convicção do representante do Ministério Público, mas também a colheita de provas urgentes, que podem desaparecer, após o cometimento do crime, bem como a composição das indispensáveis provas pré-constituídas que servem de base à vítima, em determinados casos, para a propositura da ação privada. (NUCCI, 2015, p. 41).
No conceito de Nucci, o inquérito policial é um procedimento preparatório para a ação penal. Sendo assim, ao nosso ver, a ação penal que não está acompanhada do inquérito policial não foi devidamente preparada, ou seja, não se buscou os elementos de informação necessários para se apontar a materialidade e autoria do crime, além é claro das circunstâncias em que elas ocorreram. Nucci ainda diz que esse procedimento preparatório é conduzido pela polícia judiciária. Na constituição federal a polícia judiciária é a polícia civil, no âmbito dos Estados, e a polícia federal, no âmbito da União. Não encontramos aqui a informação de que o Ministério Público pode conduzir esse procedimento preparatório. Cabe ao Ministério Público utilizar-se do inquérito policial para formar sua convicção para oferecimento da denúncia.
Para Luís Fernando de Moraes Manzano, o inquérito policial não seria nem processo e nem procedimento. Seria um instrumento para a ação penal, o qual contém um conjunto de diligências presididas pelo delegado de polícia, com o objetivo de apurar indícios de autoria e prova de materialidade delitiva, com o fim de instruir a ação penal. É o que se pode extrair da passagem a seguir:
(...) convém observar que inquérito não é processo; não é sequer procedimento, no sentido de sequência ordenada por lei de atos processuais, posto que as diligências que o compõem serão realizadas sem qualquer obediência a qualquer sequência de atos prescrita em lei, por policiais civis ou federais, subordinados ao delegado de polícia, civil ou federal. Por essa razão, ao inquérito policial não se aplicam, em regra, os princípios que regem o processo. (MANZANO, 2012)
Concordamos com o entendimento de Manzano de que o inquérito policial não é um processo. Isso porque o inquérito policial não tem um rito processual como podemos encontrar na ação penal, na qual as fases são bem descritas e de forma ordenada. No inquérito policial as diligências são tomadas de acordo com cada caso e de acordo com a conveniência da investigação, sendo a ação do delegado de polícia tomada de forma discricionária, o que não quer dizer que ele possa agir de forma arbitrária. O delegado de polícia que presidir as investigações tomará as decisões de forma discricionária, mas sempre respeitando as garantias e princípios constitucionais.
· Finalidade
Carlos Alberto dos Rios (1991) destaca que o inquérito policial tem por objetivo levar até o Ministério Público informes sobre a infração; se estaapresenta como crime de ação pública, ensejará o oferecimento da denúncia com o início da ação penal, através do órgão do Estado-Administração (Ministério Público). Se o inquérito policial informar sobre fato previsto como crime de ação privada, dará oportunidade ao ofendido ou ao seu representante legal para a apresentação da queixa-crime, dando início à ação penal.
Na concepção de Tourinho Filho (2013) os artigos 4º e 12 do Código de Processo Penal deixam claro que sua finalidade é a apuração da existência de infração penal e à individualização de sua autoria, com o fim específico de que o titular da ação penal disponha de elementos que autorizem a promovê-la.Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar acrescentam que além da finalidade precípua da apuração da infração penal e de sua autoria, o inquérito policial também serve para a decretação de medidas cautelares pelo magistrado:
Muito embora o novel diploma acima mencionado não trate expressamente do tema, não se pode negar que o inquérito policial também contribui para a decretação de medidas cautelares no decorrer da persecução penal, onde o magistrado pode tomá-lo como base para proferir decisões ainda antes de iniciado o processo, como por exemplo, a decretação de prisão preventiva ou a determinação de interceptação telefônica. (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 110)
No entendimento de Távora e Alencar, o inquérito tem grande importância para a ação penal, pois algumas provas já poderão ser colhidas antes mesmo de iniciada a ação penal, como é o caso das provas cautelares, onde ainda no inquérito policial, depois de autorizado pelo juiz competente, serão produzidas provas como interceptações telefônica e quebra de sigilo bancário, que servirão de prova na ação penal.
Além da finalidade principal do inquérito policial que é a apuração da existência penal e a individualização de sua autoria, também teria o inquérito policial outras finalidades, como por exemplo, a produção de provas antecipadas, cautelares e não-repetíveis, que serão tratadas mais a fundo no terceiro capítulo, quando abordaremos o valor probatório do inquérito policial.
Guilherme de Souza Nucci (2015) afirma que a finalidade do inquérito policial vai além da apuração da infração penal e de sua autoria. Para o autor, o que está por trás é a segurança da ação da justiça e do próprio acusado, pois, fazendo-se uma instrução prévia, com o inquérito policial, a polícia judiciária poderá ter elementos necessários para apontar com relativa firmeza a autoria do crime. Caso o investigado não seja apontado nas investigações como o autor do crime, evitará que o mesmo seja indiciado e responda desnecessariamente a uma ação penal infundada.
· Competência (atribuição)
Inicialmente, alguns autores como Távora e Alencar, Mirabete e Capez trazem uma distinção entre os termos “competência” e “atribuição”. Para os autores, apesar do artigo 4º do Código de Processo Penal falar em “competência”, este termo não seria o correto, pois é afeto aos juízes, significando a delimitação da jurisdição. Os autores sustentam que o termo correto seria a “atribuição”, que significa o poder conferido a um funcionário público para conhecer de determinados assuntos.
Mirabete (2001, p. 79) destaca que “a competência para presidir o inquérito policial é deferida, em termos agora constitucionais, aos delegados de polícia de carreira”.Capez (2008) acrescenta que a atribuição pode ser fixada pelo lugar da consumação da infração (ratione loci) ou pela natureza da infração (ratione materiae).Mirabete ensina ainda que como o inquérito policial não se trata de um processo, as investigações podem ser avocadas ou realizadas por outra delegacia, pois a competência em razão do lugar é relativa e não absoluta. Nesse sentido estão os posicionamentos do STF:
Os atos de investigação, por serem inquisitórios, não se acham abrangidos pela regra do art. 5º, LIII-CF, segundo a qual só a autoridade competente pode julgar o réu” (RTJ 82/118).
Assim sendo a inobservância da competência ratione loci é apenas relativa, não dando, assim, margem, para a anulação do inquérito policial (RT 522/359).
Sendo assim, os Estados é que estabelecerão qual será a área da circunscrição de cada delegacia, que pode abranger, inclusive, a área geográfica de todo o estado, como no caso de delegacias especializadas, por exemplo: delegacia de homicídios, delegacia de roubos e furtos, delegacia de estelionatos, etc.O art. 22 do Código de Processo Penal diz ainda que: “No Distrito Federal e nas comarcas em que houver mais de uma circunscrição policial, a autoridade com exercício em uma delas poderá, nos inquéritos a que esteja procedendo, ordenar diligências em circunscrição de outra, independentemente de precatórias ou requisições, e bem assim providenciará, até que compareça a autoridade competente, sobre qualquer fato que ocorra em sua presença,noutracircunscrição”.
A avocação ou redistribuição do inquérito policial somente poderá ocorrer mediante despacho fundamentado de superior hierárquico, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação. Sendo assim, caso o delegado de polícia não cumpra com seu ofício de realizar as investigações de determinado crime, poderá seu superior hierárquico avocá-las ou redistribuir para que outro delegado de polícia assuma a presidência das investigações. Também visando a imparcialidade nas investigações, pode o delegado de polícia se declarar suspeito para presidir inquérito policial em que o investigado seja pessoa muito próxima sua ou até um familiar, comunicando tal situação ao seu superior hierárquico para que ocorra a redistribuição.
O inquérito policial está definido no Título II do Código de Processo Penal, do artigo 4º até o artigo 23, onde é estabelecido todo o seu procedimento. Sua competência, como ele será iniciado, as diligências que deverão ser tomadas pela autoridade policial, o prazo para o seu encerramento, está tudo definido naquele código processual penal, do início ao fim, ou seja, todo seu procedimento está previamente definido em lei, conforme reza o princípio do devido processo legal.
Pelo princípio do devido processo legal, podemos dizer que a competência é da Polícia Judiciária, a qual se destina a reprimir infrações penais. Nossa Carta Magna, a qual deve ser respeitada acima de qualquer outra lei existente em nosso ordenamento jurídico, atribuiu à Polícia Judiciária a competência exclusiva na apuração das infrações penais. Em seu capítulo III do Título V, trata a Constituição Federal da Segurança Pública, elencando no artigo 144 os órgãos de segurança responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, que são a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpo de Bombeiros.
Assim, para garantir o direito de punir do Estado, todo o processo deve estar devidamente previsto em lei, conforme entendimento de Luigi Ferrajoli à luz do garantismo penal, garantindo assim que todos os direitos do réu foram respeitados do início ao fim, inclusive na fase pré-processual, onde o réu foi preliminarmente investigado perante uma autoridade policial, através do inquérito policial, conforme determina a lei. O inquérito policial é de extrema importância para garantir que o réu passou por uma investigação criminal séria antes de ser denunciado pelo Ministério Público.
A lei nº 12.830 de 20 de junho de 2013, dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Estabelece a referida lei que cabe ao delegado de polícia a condução da investigação criminal, por meio do inquérito policial, objetivando a apuração da infração, com suas circunstâncias, materialidade e autoria.
Cabe ainda ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que sejam de interesse durante a investigação criminal.O ato de indiciamento é privativo do delegado de polícia, que deverá sempre ser fundamentado, mediante uma análise técnico-jurídica do fato. Apresentada a essência do inquérito policial, sua finalidade e competência, partiremos a seguir para algumas características fundamentais que fazem parte do inquérito policial.
2.2 Principais características
Para uma melhor compreensão do real objetivo do inquérito policial, devemos analisar aquilo que o caracteriza e que o distingue dos demais institutos. Portanto, a seguir serão apresentadas as principais características que a doutrina relaciona ao inquérito policial, tais como seu caráter inquisitivo, escrito, sigiloso e discricionário, além de apresentar as formas de início, encerramento e arquivamento do inquérito policial.
· Inquisitivo
É considerado inquisitivo porque suas atividades são concentradas nas mãos de uma única pessoa, a autoridade policial. Nesta fase pré-processual não existem partes, apenas uma autoridade investigando e o suposto autor da infração normalmente na condição de indiciado (TÁVORA; ALENCAR, 2014).Vejamos o entendimento de Fernando Capez sobre o caráter inquisitivo do inquérito policial:
Caracteriza-se como inquisitivo o procedimento em que as atividades persecutórias concentram-se nas mãos de uma única autoridade, a qual, por isso, prescinde, para a sua atuação, da provocação de quem quer que seja, podendo e devendo agir de ofício, empreendendo, com discricionariedade, as atividades necessárias ao esclarecimento do crime e de sua autoria. (CAPEZ, 2008, p. 78)
A doutrina defende o caráter inquisitivo do inquérito policial, pois isto lhe permite mais agilidade nas investigações, otimizando a atuação da autoridade policial. O contraditório e a ampla defesa é mitigado nesta fase, por esta razão o magistrado não poderá proferir sentença condenatória com base unicamente no inquérito.
Com o passar do tempo fica mais difícil de se descobrir a autoria de um crime. As testemunhas esquecem os fatos com o passar do tempo. Um reconhecimento de pessoas ou coisas ficaria prejudicado. O cumprimento de ritos processuais com prazos para defesa dificultariam ainda mais a resolução do crime. Tudo isso poderia resultar na não descoberta da autoria, ou até, no indiciamento de um inocente.
· Escrito
Por exigência legal do art. 9º do Código de Processo Penal, o inquérito deve ser escrito, não se adotando o princípio da oralidade nesta fase. Os atos produzidos oralmente serão reduzidos a termo.Para Julio Fabbrini Mirabete (2001) a exigência do inquérito policial ser escrito se dá porque é ele um procedimento que será destinado a fornecer elementos ao titular da ação penal.Nucci acredita que essa formalização do inquérito policial acaba burocratizando-o, apresentando em seguida o que seria o ideal:
O ideal seria coletar documentos e perícias urgentes, fazer oitivas informais e abreviadas, somente para formar, verdadeiramente, a convicção do representante do
Ministério Público, encerrando-o sem maiores delongas ou formalidades. (...) Assim, com provas minimamente seguras, ainda que concisas e resumidas, sem que se tivesse produzido, à parte, um “processo paralelo”, teria início o autêntico sistema acusatório. Ganharia a sociedade, pela rapidez, a polícia judiciária, que se livraria de tanta burocracia; o órgão de acusação, que teria maior amplitude de conduzir a produção de prova em juízo; e a defesa, diante do respeito ao contraditório e à ampla defesa. (NUCCI, 2015, p. 80)
O art. 405, §1º do Código de Processo Penal diz que “Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações”. Para Távora e Alencar, essa seria uma forma de oralidade no inquérito policial, senão vejamos:
Nada impede, com base em interpretação progressiva da lei, que outras formas de documentação sejam utilizadas, de maneira a imprimir maior fidelidade ao ato, funcionando como ferramenta complementar à forma documental, como a gravação de som e/ou imagem na oitiva dos suspeitos, testemunhas e ofendidos na fase preliminar (art. 405, §1º, CPP), por meio de sistema audiovisual. (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 117)
A inclusão do parágrafo 1º ao artigo 405 do Código de Processo Penal, pela lei n. 11.719 de 2008, sendo interpretada de forma progressiva, como bem destacado por Távora e Alencar, podem modernizar o inquérito policial ao princípio da oralidade, desburocratizando-o e dando maior rapidez na elucidação dos crimes, que é a sua finalidade precípua. Acredito que o princípio da oralidade seja possível no inquérito policial, o que daria mais segurança nos interrogatórios em sede policial, demonstrando que não houve torturae que foi resguarda a integridade física do investigado, além é claro de dar mais agilidade, possibilitando assim o devido cumprimento dos prazos para encerramento das investigações.
· Sigiloso
Uma das características da ação penal é a publicidade. Já na fase pré processual do inquérito policial a regra é o sigilo, disciplinado no artigo 20 do Código de Processo Penal, o qual diz que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
O sigilo do inquérito é necessário ao êxito da investigação, mas também se faz necessário para preservar o investigado, evitando desgastes daquele que é presumivelmente inocente. Assim, o sigilo também é necessário para que terceiros estranhos não tenham acesso aos autos do inquérito, evitando condenações do investigado pela opinião pública.
Além do mais, o advogado terá amplo acesso aos autos do inquérito, conforme preceito legal estampado no art. 7º, inciso XIV da Lei n. 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da OAB, que diz que é direito do advogado “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.
Guilherme der Souza Nucci (2015, p. 105) explica que o citado inciso XIV nada fala sobre os inquéritos que tenham sido decretados judicialmente o sigilo, mas que nesses casos “basta que se exija o instrumento procuratório para viabilizar a vista dos autos do procedimento investigatório”.Há ainda a súmula vinculante nº 14 do STF que diz:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Távora e Alencar fazem importante distinção da característica do sigilo do inquérito, ao dividi-lo em sigilo externo e sigilo interno. Ao passo que o sigilo externo é aquele imposto para evitar a divulgações de informações ao público, já o sigilo interno seria o que restringe o acesso aos autos do inquérito policial pelo indiciado e pelo advogado. Luigi Ferrajoli tem o seguinte pensamento sobre o sigilo do inquérito policial:
Agreguem-se os desvios, as disfunções e os arbítriosprovenientes do caráter, sem dúvida secreto e incontrolado, do nosso processo penalna fase de inquérito, que é, pois, a mais delicada e decisiva, e da qual resulta uma relativaautonomia da praxe, tanto maior quanto mais fracos se tornam os vínculos garantistasa ela impostos pela lei, e quanto mais forte seja feita a legitimação emergencial dafunção judiciária. (FERRAJOLI, 2002, p. 565)
Cabe destacar que quando Ferrajoli publicou a 1ª edição de sua obra intitulada Direito e Razão: A teoria do Garantismo Penal, tratava-se do longínquo ano de 1989, bem como ele mencionava o que acontecia com o inquérito mais especificamente no direito penal italiano. Como está sendo debatido neste presente trabalho, o inquérito policial no Brasil vem passando por diversas transformações, sempre se amoldando aos direitos e garantias previstos na constituição de 1988. Creio que o inquérito policial tem por escopo maior o “segredo externo”, com o fim de restringir o acesso de terceiros estranhos às peças da investigação, preservando inclusive a imagem do investigado. Em relação ao “segredo interno”, já está bastante sedimentado em nosso ordenamento de que o advogado terá amplo acesso ao inquérito, conforme visto no Estatuto da OAB e na Súmula Vinculante nº 14 do STF, respeitando assim o direito de defesa ainda na fase pré-processual.
· Discricionário
Outra característica do inquérito policial é sua discricionariedade, no sentido de que a autoridade policial, durante a investigação, não estará atrelada a nenhuma forma previamente determinada. O artigo 6º do Código de Processo Penal elenca algumas das diligências que poderá ser tomada, a depender do caso, como: dirigir-se ao local do fato, diligenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; ouvir o ofendido; ouvir o indiciado; etc.
Nos dizeres de Paulo Rangel (2009), o delegado de polícia, devido a sua discricionariedade, é livre para escolher o momento oportuno e quais as diligências que tomará para esclarecer o fato, porém, seus atos devem sempre estar amparados na lei, não podendo praticar nenhuma diligência que a lei não permita, por exemplo, violar residência sem o devido mandado de busca e apreensão ou realizar interceptações telefônicas sem autorização judicial.
Távora e Alencar (2014) acrescentam que algumas diligências são facultativas, mas outras são obrigatórias, como a realização do exame de corpo de delito nos casos em que a infração deixar vestígios, ou seja, a discricionariedade apesar de ser a regra tem suas exceções, portanto, não é absoluta.
O artigo 14 do Código de Processo Penal diz que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade” (grifo nosso). Aqui se tem mais uma demonstração da discricionariedade da autoridade policial, sobre a qual Guilherme de Souza Nucci traz o seguinte ensinamento:
A vítima, pessoalmente ou através de seu representante legal, bem como o indiciado – a pessoa oficialmente apontada como suspeita pela prática do crime – podem requerer ao presidente do inquérito, que é a autoridade policial, a realização de alguma diligência que considerem útil à busca da verdade real (ouvida de alguma testemunha, realização de exame pericial etc.), podendo ser este pleito deferido ou indeferido, sem necessidade de qualquer fundamentação. (NUCCI, 2015, p. 97)
O bom delegado não deve deixar de atender às requisições de diligência a seu bel prazer, deixando de fazê-la somente quando ele perceber que tal diligência não ajudará em nada o resultado das investigações, porém, quando a diligência requerida for útil, pouco importando se requisitada pela vítima ou pelo indiciado, a autoridade policial deverá cumpri-la, objetivando buscar a verdade e evitando o indiciamento de um inocente. O objetivo principal do inquérito policial não é a prisão de qualquer pessoa, mas sim a elucidação do crime, apontando sua real autoria.
· Início do inquérito policial
Nos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci, o inquérito policial pode ser iniciado:
a) De ofício: quando a autoridade policial, tomando conhecimento da prática de uma infração penal de ação pública incondicionada (as ações públicas condicionadas e as ações privadas dependem de provocação do ofendido), instaura a investigação para verificar a existência do crime ou da contravenção penal e de sua autoria;
b) Por provocação do ofendido: quando a pessoa que teve o bem jurídico lesado reclama a atuação da autoridade;
c) Por delação de terceiro: quando qualquer pessoa do povo leva ao conhecimento da autoridade policial a ocorrência de uma infração penal de iniciativa do Ministério Público;
d) Por requisição da autoridade competente: pode o juiz ou o promotor exigir que a investigação policial se realize, porque há provas suficientes para tanto;
e) Pela lavratura do auto de prisão em flagrante.
A autoridade policial somente inicia a investigação criminal, ou seja, a apuração da infração penal e de sua autoria, quando tem a notitia criminis, que é o conhecimento, espontâneo ou provocado, de um fato aparentemente criminoso pela autoridade policial.Denilson Feitoza (2009) classifica a notitia criminisem cognição imediata, que é quando a própria autoridade policial toma conhecimento do fato; de cognição mediata, que é quando ela toma conhecimento por meio da própria vítima ou de requisição do juiz ou promotor; de cognição coercitiva, que é quando a autoridade policial toma conhecimento do crime através da apresentação do acusado, preso em flagrante.
A delatio criminis (delação) é uma espécie de notitia criminis, porém, é uma comunicação da infração penal feita por terceiro, ou seja, qualquer do povo pode procurar uma autoridade policial e denunciar algum crime de que tenha conhecimento.Em relação à denúncia anônima, essa deve ser verificada através de uma investigação preliminar, antes mesmo de se dar início ao inquérito policial. Importante apresentar o entendimento de Guilherme de Souza Nucci sobre o tema:
O nosso particular entendimento é de que, em sede de comunicação anônima ou apócrifa de crime, a própria lei concilia os interesses da administração da justiça e da honra objetiva do denunciado, que são os bens jurídicos tutelados no crime de denunciação caluniosa, com o princípio da obrigatoriedade, que é comum a ambas as fases da persecução penal, ao dispor que ‘qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal, em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunica-la à autoridade policial’, mas esta, somente após verificar a procedência das informações, por força do mandamento constitucional, mandará instaurar o inquérito. (NUCCI, 2015, p. 66, grifo nosso)
Percebe-se que, conforme entendimento de Nucci, a investigação de uma denúncia anônima deve ser feita em absoluto sigilo e a instauração do inquérito policial somente deve ocorrer quando se descobrir elementos de veracidade, evitando prejuízos à honra do investigado, quando a denúncia se mostra infundada.
· Prazos para encerramento
O art. 10, do Código de Processo Penal, estabelece os prazos de encerramento do inquérito policial, que será de 10 (dez) dias se o indiciado foi preso em flagrante delito e teve sua prisão convertida em prisão preventiva após a devida audiência de custódia. Terá o prazo de 30 (trinta) dias para encerramento do inquérito se o indiciado estiver solto. Na hipótese de não ser possível concluir o procedimento no prazo de 30 (trinta) dias, notadamente, nos casos mais complexos ou em que há necessidade de realização de provas periciais, o delegado de polícia deverá solicitar a dilação de prazo, fundamentando o pedido com as razões que o impediram de encerrar o feito no tempo legal.
É importante registrar que, na hipótese de o indiciado estar preso, não será possível a dilação do prazo de encerramento do inquérito e o prazo de 10 dias será contado da data em que o indiciado foi preso.Nesta hipótese, não pode haver dilação de prazo, pois se presume que, se a pessoa está presa, os elementos de convicção foram suficientemente produzidos.
Conforme entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2015), apesar de se tratar de prazo de Direito Processual (conta-se a partir do primeiro dia útil seguinte), como se relaciona à restrição da liberdade, o prazo de 10 (dez) dias deve ser contado de acordo com o Direito Penal (conta-se o dia do começo e exclui se o do final).É importante consignar que a legislação especial estabelece outros prazos para a conclusão do inquérito policial:
a) Se o inquérito estiver tramitando perante a Justiça Federal, o prazo será de 15 (quinze) dias, prorrogável por mais 15 (quinze) se o indiciado estiver preso, e de 30 (trinta) dias, prorrogável por mais 30 (trinta) se o indiciado estiver solto, conforme estabelece o art. 66, da Lei nº 5.010/1966 – Lei Orgânica da Justiça Federal.
b) Nos crimes contra a economia popular, o prazo é de 10 (dez) dias, estando o indiciado preso ou não, sem possibilidade de prorrogação, nos termos do § 1º, do art. 10, da Lei nº 1.521/1951.
c) Nos crimes previstos na Lei de Tóxicos, o prazo para conclusão do inquérito será de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, se estiver solto, podendo o referido lapso temporal ser duplicado, de acordo com o art. 51, da Lei nº 11.343/2006.
A conclusão do inquérito fora do prazo estabelecido acarreta o relaxamento da prisão do indiciado e responsabilidade no âmbito criminal e administrativo ao policial civil desidioso.
O delegado de polícia deverá dedicar especial atenção no que se refere à contagem do prazo de conclusão do inquérito, nos casos em que o indiciado estiver preso.
· Arquivamento
Tendo em vista o princípio consagrado no inciso XXXV, do art. 5º, da CF, que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, o inquérito policial concluído será encaminhado obrigatoriamente ao Poder Judiciário.Cabe destacar que não tem fundamento o encaminhamento e arquivamento do inquérito policial pelo Ministério Público.Desta forma, o arquivamento do inquérito só pode ser determinado pelo juiz mediante pedido fundamentado do representante do Ministério Público.Na hipótese de o juiz discordar do pedido de arquivamento, remeterá os autos ao Procurador-Geral de Justiça, conforme determina o art. 28, do CPP.Neste caso, o Procurador-Geral de Justiça poderá:
a) Designar outro Promotor de Justiça para oferecer a denúncia (princípio da independência funcional).O Promotor de Justiça designado não pode recusar-se, pois quem está denunciando é o Procurador-Geral; e aquele estará apenas executando (trata-se de delegação);
b) Devolver os autos para diligências complementares; e
c) Insistir no arquivamento.Nesse caso, o Poder Judiciário não poderá discordar do arquivamento.
Em caso de competência originária, o pedido de arquivamento formulado pelo Procurador-Geral vincula o juiz, ou seja, não cabe nenhum tipo de recurso dessa decisão.Saliente-se que uma vez arquivado o inquérito policial, não poderá ser promovida a ação privada subsidiária da pública.É oportuno sublinhar que o inquérito policial arquivado só poderá ser reaberto com novas provas, conforme determina o art. 18, do CPP. No mesmo sentido a Súmula nº 524 do STF “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.”
Finalmente, registre-se que não existe arquivamento em ação privada, pois o pedido de arquivamento feito pela vítima significa renúncia do direito de queixa, situação relacionada como causa de extinção da punibilidade, no inciso V, do art. 107, do Código Penal.Portanto, nos casos de ação privada, não o arquivamento, mas sim a renúncia ao seu direito de processar o autor do fato e nesses casos, o inquérito policial não poderá ser reaberto, nem mesmo com novas provas, pois foi extinta a punibilidade do autor daquele fato.
Como se viu até aqui, o inquérito policial é um procedimento utilizado para se reunir elementos que apontem materialidade e autoria de um crime. A Polícia Judiciária, composta pela Polícia Civil e a Polícia Federal, são os órgão definidos na constituição com competência para instruir o inquérito policial, o qual em seguida servirá de base para o oferecimento da denúncia pelo representante do Ministério Público, que caso esteja convencido da materialidade e autoria, encaminha ao Poder Judiciário e assim dar início à ação penal. Sendo assim, agora é o momento de entender o que é a Polícia Judiciária e a ação penal.
2.3 Polícia Judiciária e a ação penal
Para Hely Lopes Meirelles, a Polícia Judiciária é a que se destina precipuamente a reprimir infrações penais (crimes e contravenções) e a apresentar os infratores à Justiça, para a necessária punição, efetuando prisões em flagrante delito ou em cumprimento de mandados judiciais, acrescentando-se desde logo que a Polícia Judiciária está sujeita aos princípios dos direitos fundamentais da constitucionalidade, igualdade e o da legalidade, sob o controle externo do Ministério Público e como auxiliar da Justiça penal. A expressão – polícia judiciária – assume sentido amplo, ou seja, todas as funções da Polícia Civil (art. 144, § 4º, da CF).
Diferentemente da Polícia Civil, ressalta José Afonso da Silva, a Polícia Militar é órgão policial com função de polícia preventiva que tenta com sua presença ostensiva evitar a ocorrência do ilícito. A Polícia Federal exerce as funções previstas no artigo 144, §1º da Constituição Federal, quais sejam:
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;
III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
Denilson Feitoza (2009) destaca que a Polícia Federal assume ora uma atribuição de polícia investigativa/repressiva, quando apura infrações penais, ora uma atribuição de polícia de segurança/preventiva, quando exerce as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira, com o objetivo de prevenir o tráfico ilícito de entorpecentes, o contrabando e o descaminho. Enquanto a Polícia Federal tem a exclusividade de ser a polícia judiciária da União, cabe à Polícia Civil do estados a apuração das demais infrações penais, exceto as militares. Vejamos a posição de Tourinho Filho quanto à Polícia Civil:
Mas, enquanto a Polícia de Segurança visa a impedir a turbação da ordem pública, adotando medidas preventivas, de verdadeira profilaxia do crime, a Polícia Civil intervém quando os fatos que a Polícia de Segurança pretendia prevenir não puderam ser evitados... ou, então, aqueles fatos que a Polícia de Segurança nem sequer imaginava poderem acontecer.... (TOURINHO FILHO, 2013, p. 227)
No mesmo sentido está Denilson Feitoza (2009, p. 172), que diz que “as polícias civis são polícias judiciárias, e não polícias de segurança. Atuam de maneira ‘repressiva’, no sentido de perseguir criminalmente o fato delituoso que já ocorreu”.Portanto, a Polícia Judiciária se destina a reprimir infrações penais. Nossa Carta Magna, a qual deve ser respeitada acima de qualquer outra lei existente em nosso ordenamento jurídico, atribuiu à Polícia Judiciária a competência exclusiva na apuração das infrações penais. Em seu capítulo III do Título V, trata a Constituição Federal da Segurança Pública, elencando no artigo 144 os órgãos de segurança responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, que são a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpo de Bombeiros.
O inciso IV do parágrafo 1º do artigo retro citado, diz que destina-se à Polícia Federal “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. Já às Polícias Civis, a Carta Magna garantiu a competência residual para exercer as funções da Polícia Judiciária, ressalvadas as de competência da Polícia Federal, portanto, tudo que não for de competência da Polícia Federal, será de competência da Polícia Civil dos Estados, excetuadas das de competência da Polícia Militar. Sendo assim, se o inquérito policial é de competência da Polícia Judiciária, e se as funções de Polícia Judiciária são exclusivas da Polícia Federal e da Polícia Civil, portanto, cabe à estas a competência constitucional para apurar as infrações penais.
· Ação penal
A ação penal é definida por Denilson Feitoza (2009, p. 218) como o “poder de exigir o exercício da atividade jurisdicional”. Para Paulo Rangel (2009, p. 211) “na medida em que o Estado proibiu o fazer justiça pelas próprias mãos, assumindo, por inteiro, o monopólio da Justiça, mister se faz dar ao cidadão um instrumento para que ele possa reclamar o que é seu. Este é o direito e ação”.No conceito de Guilherme de Souza Nucci (2015, p. 111) “é o direito do Estado-acusação ou da vítima de ingressar em juízo, solicitando a prestação jurisdicional, representada pela aplicação das normas de direito penal ao caso concreto”.
A doutrina apresenta basicamente três formas de solução de litígio. A primeira é a autocomposição, onde a decisão é obtida pelas próprias partes. A segunda é a autodefesa, onde uma parte impõe sua decisão sobre a outra parte. A terceira é justamente o processo, onde o Estado-juiz intervém, substituindo a vontade das partes, aplicando a lei ao caso concreto e extraindo a regra jurídica que valerá para as partes.
No âmbito penal, a forma de solução de um litígio somente pode ser através do processo. No entanto, Tourinho Filho tem o entendimento de que a autocomposição seria aceita no âmbito penal, verificada na transação que se realiza no Juizado Especial Criminal, nas infrações de menor potencial ofensivo. Vejamos:
Quer-nos parecer que a “transação” que se realiza no Juizado Especial Criminal visando a solução do litígio, em se tratando de infrações penais de menor potencial ofensivo, é verdadeira “autocomposição”, uma vez que as partes, elas mesmas, procuram a solução do litígio. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 348).
De outro lado, Paulo Rangel diverge desse entendimento:
Na transação penal, não há uma autocomposição, pois as pessoas (não há partes no sentido técnico) estão li por intervenção do Estado, que, diante do termo circunstanciado, apresenta, imediatamente, o autor do fato ao juizado ou exige que a ele compareça. O autor do fato não tem escolha: ou assume o compromisso de comparecer ao Juizado ou, não o fazendo, será autuado em flagrante delito, se for hipótese de flagrante. Isto posto, há a coerção. (RANGEL, 2009, p. 211).
A ação penal pode ser pública ou privada. Julio Fabbrini Mirabete (2001) salienta que em princípio toda ação penal é pública por ser um direito subjetivo perante o Estado-Juiz. Assim, o que irá diferenciar a ação penal pública da ação penal privada é a legitimidade para agir. Se a ação for promovida pelo Ministério Público será ação penal pública. Se for promovida pela própria vítima nos casos definidos em lei, será ação penal privada.
Para Fernando Capez (2008, p. 137), o fundamento a ação penal privada é para “evitar que o streptus judicii(escândalo do processo) provoque no ofendido um mal maior do que a impunidade do criminoso, decorrente da não-propositura da ação penal”.É o que ocorre nos crimes de calúnia, difamação e injúria, em que há o cometimento do crime, surgindo o direito de punir do Estado, porém, às vezes, a exposição do ofendido ao processo é mais prejudicial do que a pena que Estado poderia aplicar ao autor do fato. Então, o Estado deixa a decisão exclusivamente para a vítima decidir sobre a propositura da ação ou não, evitando o “escândalo do processo”.
Ainda em Capez, o autor fala sobre o instituto da ação penal privada subsidiária da pública, a qual é proposta nos crimes de ação pública, condicionada ou incondicionada, quando o Ministério Público deixar de fazê-lo no prazo legal, sendo a única exceção, prevista na Constituição Federal, à regra da titularidade exclusiva do Ministério Público sobre a ação penal pública. O prazo para oferecimento desta ação é de seis meses, contados a partir do dia em que se esgotar o prazo que o Ministério Público deveria oferecer a denúncia.
Já a ação penal pública ela é subdividida em incondicionada e condicionada. Sendo a distinção básica entre ambas a necessidade de representação da vítima. Na incondicionada, por exemplo, nos crimes de homicídio, o Ministério Público pode oferecer a denúncia sem a representação de quem quer que seja. Já na condicionada, por exemplo, nas lesões corporais leves, o Ministério Público somente pode oferecer a denúncia se houver a autorização da vítima ou seu representante legal.A ação penal incondicionada é regida pelo princípio da obrigatoriedade, conforme expõe Távora e Alencar:
Estando presentes os requisitos legais, o Ministério Público está obrigado a patrocinar a persecução criminal, ofertando denúncia para que o processo seja iniciado. Não cabe ao MP juízo de conveniência ou oportunidade. Não por acaso, o art. 24 do CPP informa que “nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público”. (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 207).
Já a ação penal privada, conforme ensinamento dos mesmos autores, é regida pelo princípio da oportunidade ou conveniência, sendo facultado à vítima decidir entre ofertar ou não ação, cabendo somente a ela a decisão, ou ao seu representante legal, nos casos previstos em lei. A vítima pode renunciar expressamente o seu direito de queixa ou, caso a vítima fique inerte, o prazo decadencial ocorrerá em seis meses.
Portanto, em alguns casos o Estado não poderá exercer de imediato o jus puniendi, mesmo estando de frente a um fato criminoso, tipificado em lei. Somente nos casos das ações penais públicas incondicionadas, que são aquelas que causam não só o prejuízo para a vítima, mas também um grande prejuízo para a sociedade de uma forma geral é que a autoridade policial poderá iniciar de ofício o inquérito policial. Já nas ações penais públicas condicionadas e nas ações penais privadas, a autoridade policial somente poderá iniciar o inquérito policial mediante a condição de oferecimento de representação ou requerimento por parte da vítima ou seu representante legal.
Seguindo o pensamento do garantismo penal de Ferrajoli, quando ele fala do cumprimento do princípio do devido processo legal para que a aplicação da pena pelo Estado seja revestida de todas as garantias constitucionais, fornecendo assim o direito de punir do Estado, acreditamos que a Polícia Judiciária faça parte desse devido processo legal, pois ela é prevista no art. 144 da Constituição Federal de 1988, sendo-lhe atribuída a função de apurar as infrações penais. Apurações estas realizadas através do inquérito policial, o qual por sua vez também é previsto no Código de Processo Penal de 1941, desde o art. 4º até o art. 23, onde podemos concluir que esta etapa pré-processual está totalmente definida em nosso ordenamento jurídico,, ao ponto que qualquer pessoa saberá que ao cometer um crime, suas ações serão investigadas pela Polícia Judiciária, através do inquérito policial presidido pelo delegado de polícia, que ao final o encaminhará ao representante do Ministério Público para oferecimento da denúncia e posterior remessa ao Judiciário para início da ação penal, garantindo assim o princípio do devido processo legal e como diz Ferrajoli, legitimando o direito de punir do Estado.
Assim, encerramos este segundo capítulo, que apresentou algumas considerações importantes sobre o tema do inquérito policial, que é muito amplo e seguramente não fica limitado a este estudo, contudo, fez-se necessário devido sua relevância para a efetivação deste trabalho, que pretende no capítulo seguinte debater a indispensabilidade do inquérito policial na persecução penal, numa visão de sua importância não só para indicar a autoria, circunstâncias e materialidade do crime, mas também pela ótica de ser o inquérito policial uma das primeiras ferramentas do cidadão para exercer suas garantias constitucionais ainda na fase pré-processual, mesmo antes de iniciada a ação penal na fase processual.
3.A INDISPENSABILIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL NA PERSECUÇÃO PENAL
Como visto anteriormente, o inquérito policial, possui uma característica inquisitiva, pois, conforme ensinamento de Capez (2008), ele é um procedimento que se concentra nas mãos de uma única autoridade, o delegado de polícia, o qual pode agir de ofício, empreendendo com discricionariedade as diligências que serão tomadas para apuração dos fatos, como também cabe somente ao delegado de polícia o indiciamento, ou seja, o delegado de polícia inicia o inquérito, reúne os elementos de convicção necessários e ele mesmo fará seu julgamento pelo indiciamento ou não do investigado.
Numa visão moderna do inquérito policial, tendo o mesmo se adequado às evoluções do nosso ordenamento jurídico, principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, percebemos que algumas alterações foram aplicadas ao longo do tempo que tornaram o inquérito policial um pouco mais próximo da ação penal, no que diz respeito às aplicações dos princípios processuais que o norteiam.
O Código de Processo Penal foi promulgado no ano de 1941 ede lá para cá tivemos importantes avanços em nosso ordenamento jurídico, sempre objetivando dar mais garantia e segurança jurídica ao processo, desde sua fase pré-processual.Abordaremos a seguir alguns tópicos relacionados ao inquérito policial, com o objetivo de analisar se ele de fato é dispensável na persecução penal, iniciando com sua função social.
3.1 A função social do inquérito policial
O cometimento de crime é algo que pode acontecer com qualquer cidadão de qualquer classe social, sexo, religião, raça, cor ou etnia. Cometido o crime, o Estado deve punir aquele que o cometeu. Ocorre que o Estado não teria condições de descobrir a autoria do crime se não fosse através da Polícia Judiciária com o inquérito policial, realizando exames, perícias e depoimentos, ou seja, reunindo elementos para se provar se realmente foi (ou não) aquela pessoa que cometeu o crime.
Para o Estado seria necessária a realização de diligências indispensáveis para se chegar à autoria e materialidade do crime, portanto, diligências preliminares indispensáveis que podem ser colhidas através do inquérito policial.Opondo-se o titular do direito de liberdade à pretensão punitiva, e não podendo o Estado impor o seu interesse repressivo, surge a lide penal, conforme ensina Júlio Fabbrini Mirabete:
Em razão da convivência do homem com os outros homens podem surgir conflitos de interesses quando os de um se opõem aos de outro. O mesmo ocorre quando esses interesses em conflito pertencem de um lado ao Estado e de outro a um homem. Com a prática de um ilícito penal, surge um conflito de interesses entre o direito subjetivo de punir do Estado (jus puniendi in concreto) e o direito de liberdade do indigitado autor da infração (jus libertatis) (MIRABETE, 2001, p. 25).
Trata-se de um conflito de interesses regulado pelo direito que na esfera penal, da exigência de subordinação do interesse do autor da infração penal ao interesse do Estado, resulta a pretensão punitiva.Ocorrido um crime, o mesmo deve ser investigado para que seu verdadeiro autor sejapunido ao final da ação penal. Em nosso ordenamento jurídico, o inquérito policial é o meio utilizado para essa investigação, a fim de provar a real existência do crime e sua materialidade, a colheita de provas e por fim a indicação de sua autoria. Guilherme de Souza Nucci conceitua o Inquérito Policial da seguinte forma:
Trata-se de um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria. Seu objetivo precípuo é a formação da convicção do representante do Ministério Público, mas também a colheita de provas urgentes, que podem desaparecer, após o cometimento do crime, bem como a composição das indispensáveis provas pré-constituídas que servem de base à vítima, em determinados casos, para a propositura da ação privada. (NUCCI, 2015, p. 41).
Nesse sentido, o inquérito policial tem relevante importância para a futura ação penal, principalmente na colheita preliminar de provas, pois algumas delas se perdem com o tempo, portanto, sua colheita deve se dar de forma rápida. Para que seja ajuizada uma ação criminal contra uma pessoa, deve haver inicialmente alguma investigação com as mínimas produções de prova, para evitar acusações injustificadas e garantindo ao indivíduo seus direitos constitucionais.
Quando toma conhecimento de um fato criminoso, o Delegado de Polícia deve iniciar as investigações, com o objetivo de descobrir a autoria, a materialidade, bem como as circunstâncias em que ocorreram os fatos, sempre respeitando o princípio da legalidade e da oficialidade.
Tomando conhecimento desse fato delituoso, o Delegado de Polícia deve investiga-lo, pois se assim não o fizer, poderá ser responsabilizado por prevaricação, respondendo a uma sindicância que irá apurar porque o delegado não agiu quando deveria agir. Mas sabemos que devido as dificuldades encontradas em todas as polícias judiciárias e a grande demanda que existe hoje em dia em virtude do alto crescimento da violência em todo o país, não bem certo que é quase impossível investigar todos os crimes que ocorrem em sua circunscrição. O que não deve ocorrer é o delegado de polícia deixar de agir por razões pessoais.
O delegado de polícia também assume um compromisso que é de ver estabelecida a paz na sociedade, reprimindo os crimes cometidos e fazendo levar à justiça aqueles que cometem crimes, sempre como objetivo a paz social e esta é a função social do inquérito policial. Portanto, o delegado de polícia está sujeito aos princípios constitucionais e infraconstitucionais, sendo assim, o inquérito policial não pode mais ser tratado como instrumento de autoritarismo, violando direitos e princípios constitucionais, pelo contrário, deve o inquérito policial ser visto hoje em dia como um procedimento que visa também a garantia da defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Cuidando o delegado de polícia para que a investigação seja realizada de forma séria, sem abusos, dando ao investigado todas as oportunidades de mostrar sua defesa em relação ao fato investigado, aquilo que foi produzido no inquérito policial poderá até mesmo ser utilizado na defesa do investigado, caso seja oferecida a denúncia e iniciada a ação penal. Isso porque na investigação policial pode ter ficado demonstrada sua inocência perante uma acusação infundada, isto porque o inquérito policial serve para efetuar diligências que apontem a real autoria do crime e não para incriminar inocentes.
O inquérito policial não pode ser encarado como um procedimento meramente informativo, como divulgado e entendido por alguns operadores do direito. Deve-se ver mais além do que isso, sua função social que mantém na sociedade, objetivando a busca da verdade real, com imparcialidade, mostrando ser o inquérito policial um instrumento de defesa da cidadania, da paz social e da dignidade humana.
Alguns doutrinadores renegam a importância do inquérito policial pelo fato dele não possui um ritual definido, como um verdadeiro processo, mas seus procedimentos apesar de não seguir um rito, devem respeitar o código processual penal, conforme está estabelecido no art. 4º ao art. 23, bem como podemos anotar que o inquérito policial combina o interesse social com as garantias individuais, ao promover a repressão delitiva e ao mesmo tempo busca que os direitos e garantias do investigado sejam garantidas, sempre buscando a verdade real dos fatos, pois no inquérito policial não podem ser lançadas inverdades, o que se deve garantir é que será indiciado somente aquele sobre o qual pairem fundados indícios de autoria. Vejamos a seguir o pensamento de Ferrajoli quanto à diferença entre a verdade formal (processual) e a verdade substancial (real).
A verdade a que aspira o modelo substancialista do direito penal é a chamada verdade substancial ou material, quer dizer, uma verdade absoluta e onicompreensiva em relação às pessoas investigadas, carente de limites e de confins legais, alcançável por qualquer meio, para além das rígidas regras procedimentais (...) Em sentido inverso, a verdade perseguida pelo modelo formalista como fundamentode uma condenação é, por sua vez, uma verdade formal ou processual, alcançada pelo respeitoa regras precisas, e relativa somente a fatos e circunstâncias perfilados como penalmenterelevantes. Esta verdade não pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto pessoal; está condicionada em si mesma pelo respeito aosprocedimentos e às garantias da defesa (FERRAJOLI, 2002, p. 38)
Para Ferrajoli, a verdade formal/processual, visa respeitar as garantias de defesa, pois devem seguir devidamente as regras processuais, sob pena de nulidade e na dúvida sobre essa verdade, prevalece a presunção de não culpabilidade. Essa verdade deve ser seguida de fato na ação penal. Porém, na fase pré-processual, o que ocorre no inquérito policial é a busca pela verdade real, que Ferrajoli chama de verdade substancial. De fato, como citado por Ferrajoli, a verdade substancial não tem limites e busca ser alcançada por todos os meios, mas isso não quer dizer que a autoridade policial tenha o poder de descumprir princípios e garantias constitucionais para se chegar a essa verdade, como por exemplo, realizando interceptação telefônica sem autorização judicial. Pelo contrário, deve sim buscar a verdade dos fatos, mas sempre observando os direitos e princípios.
O que se busca cumprir no inquérito policial é descobrir quem de fato cometeu o crime, a verdade absoluta, pois assim não se estará indiciando injustamente um inocente. Em seguida, durante a ação penal, algumas das provas colhidas no inquérito policial podem ser descartadas visando a verdade formal/processual, o que levaria a não condenação de um real autor de um crime, por não ter cumprido alguma exigência formal, por exemplo, a ampla defesa.
É essa a função social do inquérito policial, a de evitar que inocentes sejam vítimas do Estado, sofrendo punições injustas, pois já no inquérito policial as investigações contra uma pessoa podem levar a conclusão de que ela é inocente em relação àquele fato investigado, portanto, não será indiciada e consequentemente, não será denunciada e não deverá ter que responder a uma ação penal.
Também como essa função social que encontramos no inquérito policial, podemos destacar que não é obrigatório que o investigado tenha constituído advogado, podendo ele mesmo comparecer sozinho ao seu interrogatório e prestar suas versões quanto ao fato em que é investigado. Enquanto na ação penal a falta de defensor do réu não é admissível, na fase policial a falta de um defensor não será causa de nulidade do inquérito policial. O investigado não precisará arcar com despesas advocatícias e sendo ele inocente, não será indiciado ao final das investigações, evitando custos financeiros, cumprindo assim sua função social, principalmente perante aqueles mais pobres.
Hoje em dia a sociedade convive com muita violência e isso faz com que se queira a punição daqueles que cometem diversos tipos de crimes, principalmente aqueles mais graves, como homicídio, roubo e estupro. Mas isso não quer dizer que aquele que seja investigado é de fato culpado. Quando se inicia uma investigação criminal contra uma pessoa, temos que ter em mente que ele é ainda apenas um suspeito. Mesmo diante de uma confissão do investigado, ela deve estar em consonância com as informações que foram colhidas durante a investigação, pois mesmo aquele que confessa pode estar confessando mediante coação, tanto a coação policial, como a coação do verdadeiro autor do crime, que pode estar ameaçando aquele investigado para que ele confesse o crime.
Sendo assim, mesmo diante do anseio da sociedade de ver os autores de crime devidamente punidos pelo Estado, tanto na ação penal, quanto no inquérito policial, deve-se ter muito cuidado para que não se esteja indiciando, denunciando ou condenando um inocente, pois não são raras as vezes em que a sociedade acusa uma determinada pessoa de ser o autor de um crime, mas as investigações levam ao contrário, de que ele é inocente. Portanto, a autoridade policial que preside as investigações, deve se abster de sentimentos pessoais, não se deixando levar pelo “achismo”, mas sim pelas provas.
Apesar de alguns autores terem o entendimento que tudo que é gerado no inquérito policial não passa de mero elemento de informação, quando o inquérito policial é apensado à denúncia oferecida pelo órgão de acusação, ele também irá compor a ação penal. Exames periciais diversos, laudos traumatológicos e tanatoscópicos, colhidos na fase de inquérito policial, não poderão ser novamente reproduzidos na ação penal, os quais assumem valor probatório. É o que será discutido adiante.
O inquérito policial tem com uma de suas finalidades fornecer os elementos de convicção ao órgão acusador, no caso da ação penal, o representante do Ministério Público. Caso esteja convencido do que foi apurado na fase policial, irá fundamentar sua denúncia, com base no que foi colhido no inquérito policial. Mas em regra, o que é produzido no inquérito policial ainda não é tido como prova, em seu termo técnico, pois não houve de forma absoluta o contraditório e a ampla defesa, princípios essências na ação penal. Mas esses princípios são limitados na fase pré-processual, como entende Aury Lopes Jr.:
Podemos afirmar que o inquérito policial somente gera atos de investigação, como uma função endoprocedimental, no sentido de que sua eficácia probatória é limitada, interna à fase. Servem para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no seu curso (como fundamentar o pedido de prisão temporária ou preventiva) e para fundamentar a probabilidade do fumus commissi delicti que justificará o processo ou não processo. (LOPES JR. 2001, p. 190)
Todas as peças que foram produzidas no inquérito policial, que Aury Lopes Jr. aponta como atos de investigação, para que sejam admitidas como provas na fase judicial, devem ser repetidos perante o magistradosob o contraditório e da ampla defesa, pois só então poderão embasar uma sentença condenatória.
Ocorrido o crime, algumas provas se perdem com o tempo, portanto, devem ser produzidas de imediato, porque não são repetíveis e não poderão mais ser produzidas, prejudicando substancialmente a verdade dos fatos, como por exemplo, o exame de corpo de delito e a perícia de local de crime, portanto, devem essas provas ser realizadas logo quando possível, para que não se percam com o tempo.
Já algumas provas devem ser produzidas de modo antecipado, ou seja, antes da ação penal, pois correm o risco de não ser possível de serem produzidas na instrução processual, como por exemplo, uma testemunha que esteja em risco iminente de morte devido seu estado de saúde. Nestes casos, o Código de Processo Penal prevê o incidente de produção antecipada de prova. Neste incidente, será instaurado um procedimento, que será assegurado desde logo o princípio do contraditório e ampla defesa, perante o magistrado, com a participação das partes do processo. Deve ser demonstrada que a prova é imprescindível para a futura ação penal e também demonstrado os indícios de que ela possa perecer brevemente.
Já as provas cautelares são as que possuem risco de perecimento do objeto da prova. Por exemplo, as interceptações telefônicas e as buscas e apreensões de objetos relacionados ao crime. Todas as provas cautelares devem ser autorizadas judicialmente. Como sabido, quando ocorre um crime, o quanto mais rápido ele seja investigado, maior será a probabilidade de se chegar a autoria. Notadamente nos crimes de homicídio, para tanto, diligências são essências para se obter indícios suficientes da autoria, como a apreensão de objetos relacionados ao crime, para que possam ser devidamente periciados, além de interceptações telefônicas entre suspeitos. É no inquérito policial que essas provas cautelares, não repetíveis e antecipadas são colhidas, pois caso fosse esperar pela ação penal, elas seriam perdidas pelo interstício temporal do cometimento do crime e início da instrução criminal.
O artigo 155 do Código de Processo Penal informa que o” juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (grifo nosso). Pela interpretação do citado artigo, podemos chegar à conclusão de que o juiz pode sim fundamentar sua decisão com base nos elementos informativos colhidos no inquérito policial. O que não pode é o magistrado fundamentar sua decisão “exclusivamente”, ou “unicamente” nas peças produzidos em fase policial. O STF já decidiu que o artigo 155 do CPP “não impede o juiz, para formação de sua livre convicção, considere elementos informativos colhidos na fase de investigação criminal”. Vejamos o entendimento de Luigi Ferrajoli quanto à verdade e validade das provas:
E por força da motivação que as decisões judiciárias resultam apoiadas,e, portanto, legitimadas, por asserções, enquanto tais verificáveis e falsificáveis ainda quede forma aproximada; que a "validade" das sentenças resulta condicionada à "verdade",
ainda que relativa, de seus argumentos (...)Ao mesmo tempo, enquanto assegura o controle da legalidadee do nexo entre convencimento e provas, a motivação carrega também o valor "endoprocessual"de garantia de defesa e o valor "extraprocessual" de garantia de publicidade.E pode ser, portanto, considerado o principal parâmetro tanto da legitimação internaou jurídica quanto da externa ou democrática da função judiciária. (FERRAJOLI, 2002, p. 498)
Como destacado por Ferrajoli, a validade da sentença do magistrado está relativamente condicionada à verdade. A verdade processual, instruída na fase processual, está assegurada pela existência do contraditório e ampla defesa, ganhando a validade jurídica para fundamentar a decisão do juiz. Os elementos de informação colhidos no inquérito policial estão mais próximos da verdade (real), mas somente ganharão validade, ou seja, o status de prova, quando forem submetidas ao absoluto contraditório e ampla defesa, pois que na fase policial estes princípios são somente relativos, por isso que não dão a validade jurídica citada por Ferrajoli, mas que na ação penal, adquirem o status de prova.
Vemos aqui mais uma importância do inquérito policial, que é a obtenção das provas cautelares, não-repetíveis e antecipadas, bem como a produção de elementos que informação que tomarão status de prova na fase processual, depois de serem submetidas à manifestação da defesa, num contraditório que a doutrina chama de diferido ou postergado, ou seja, algumas peças produzidas ainda na fase de inquérito policial, como por exemplo a interceptação telefônica autorizada pelo judiciário e depois submetida ao contraditório e ampla defesa na instrução judicial, poderão servir para o juiz formar sua convicção para a condenação ou não do réu, por isso a importância do inquérito policial durante a persecução penal.
Nos crimes de homicídio doloso, estes estão sujeitos à competência do Júri, conforme o artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Constituição Federal e art. 74, § 12, do CPP. Nestes casos, não será o juiz togado que irá decidir pela condenação do reú, mas sim os juízes leigos, os jurados.Nos crimes de competência do júri popular, inquérito policial ganha mais importância, evidenciando-se de duas grandes formas, segundo Bonfim:
a) por tratar-se de juiz leigo a quem incumbirá a análise das provas, este, não sabedor do quantum a valorar cada prova processual, poderá revestir o produto das investigações policiais como prova decisória no julgamento, sobrepujando até provas produzidas em juízo;
b) por tratar-se o homicídio de infração que deixa vestígios, recomenda-se a máxima celeridade na sua apuração, para que não pereça, no tempo, a execução de medidas e diligências somente possíveis na proximidade do fato típico. Tal cautela atinente como regra de investigação, a todos os delitos, como a bom tempo se verá, no homicídio é de praxe e cuidado redobrados. (BONFIM, 2012, p. 68)
Enquanto o magistrado deve realizar uma valoração das provas, dando mais valor àquelas que foram produzidas perante o amplo contraditório e a ampla defesa, os jurados leigos irão formar seu juízo de valor de acordo com sua consciência e pelo que estão vendo do processo, além é claro da competência oratória do órgão acusador e da defesa do réu que ocorre em debate durante a sessão plenária do júri. O jurado terá em suas mãos todo o processo, de capa a capa, ou seja, incluindo as peças produzidas no inquérito policial. Apesar de serem orientados pelo juiz que preside a sessão a dar mais valor às provas produzidas perante o contraditório e ampla defesa, quando os jurados olham o inquérito policial, inevitavelmente eles já estão formando um juízo de valor, seja para condenar o réu ou absolve-lo, em alguns casos, dando mais valor ao inquérito policial do que mesmo às provas produzidas em juízo. Portanto, poderão os jurados não considerarem o inquérito policial apenas como mais uma prova, mas como “a prova”.
· Investigação criminal realizada pelo Ministério Público
A Constituição Federal traz na seção I, do capítulo IV, a definição do Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Ainda de acordo com a constituição, seus princípios institucionais são a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
A questão que é muito discutida hoje em dia é se o Ministério Público pode realizar investigação criminal. Para se chegar à resposta de tal questão, devemos analisar alguns pontos. Inicialmente trataremos do princípio do devido processo legal, o qual consiste em assegurar que ninguém será privado de sua liberdade, sem que lhe seja garantido um processo desenvolvido na forma que a lei estabeleça. Tal garantia está prevista no artigo 5º, inciso LIV da Constituição, que diz expressamente que “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Este é um direito garantido à todos os brasileiros e estrangeiros que residam em nosso país, que ninguém poderá ser punido sem que haja um processo previamente definido em lei. Caso esse princípio não seja respeitado, o processo será nulo. Portanto, deve ser seguido o devido processo legal, garantindo que todas as etapas desse processo estejam devidamente definidas no ordenamento jurídico.
O inquérito policial, como foi visto no segundo capítulo, está definido no Título II do Código de Processo Penal, do artigo 4º até o artigo 23, onde é estabelecido todo o seu procedimento. Sua competência, como ele será iniciado, as diligências que deverão ser tomadas pela autoridade policial, o prazo para o seu encerramento, está tudo definido naquele código processual penal, do início ao fim, ou seja, todo seu procedimento está previamente definido em lei, conforme reza o princípio do devido processo legal.
Ainda seguindo o pensamento do devido processo legal, também vimos que sua competência é da Polícia Judiciária, a qual se destina a reprimir infrações penais. Nossa Carta Magna, a qual deve ser respeitada acima de qualquer outra lei existente em nosso ordenamento jurídico, atribuiu à Polícia Judiciária a competência exclusiva na apuração das infrações penais. Em seu capítulo III do Título V, trata a Constituição Federal da Segurança Pública, elencando no artigo 144 os órgãos de segurança responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, que são a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpo de Bombeiros.
Encontramos o critério da exclusividade no inciso IV do parágrafo 1º do artigo retro citado, o qual diz ipsis litteris que destina-se à Polícia Federal “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União” (grifo nosso). Encontramos no texto constitucional a palavra “exclusividade”, ou seja, aquilo que é exclusivo, privado à alguém, neste caso, à Polícia Federal. Já às Polícias Civis, a Carta Magna garantiu a competência residual para exercer as funções da Polícia Judiciária, ressalvadas as de competência da Polícia Federal, portanto, tudo que não for de competência da Polícia Federal, será de competência da Polícia Civil dos Estados, excetuadas das de competência da Polícia Militar. Sendo assim, se o inquérito policial é de competência da Polícia Judiciária, e se as funções de Polícia Judiciária são exclusivas da Polícia Federal e da Polícia Civil, portanto, cabe à estas a competência constitucional para apurar as infrações penais. Já as funções do Ministério Público foram devidamente estabelecidas no artigo 129 da Constituição Federal, vejamos exatamente o que diz o texto da lei:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
Percebe-se que o Ministério Público carece de fundamento legal para realizar investigações criminais. Não encontramos na Carta Magna esta função. No inciso III do artigo 129 está definido somente sua legitimação para promover o inquérito civil e a ação civil pública. O inciso I do mesmo artigo diz que é função do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública. Mas vejamos bem, o texto constitucional fala em ação penal, ou seja, na fase processual, não fala na fase pré-processual que é o inquérito policial, onde as investigações antecedem a ação penal.
A investigação criminal realizada pelo Ministério Público é inconstitucional, em razão do princípio do devido processo legal, pois não existe lei que regule o procedimento investigatório promovido pelo Ministério Público, o que o torna um instrumento sem controle, diferentemente da investigação realizada pela Polícia Judiciária, que está bem definida na Constituição e no Código de Processo Penal.Há ainda que se falar na imparcialidade do Ministério Público, e sendo parte a investigação fica comprometida. Vejamos o pensamento de Aury Lopes Júnior sobre essa imparcialidade do promotor na investigação criminal:
Estamos muito longe disso, e sempre tivemos uma posição de desconfiança em relação ao acusador oficial, até porque ele não passa disso: uma parte acusadora, cuja tal imparcialidade só é alardeada por quem não sabe o que fala. Por quem não sabe o que é imparcialidade e desconhece a origem do Ministério Público (que nasce como contraditor natural do imputado e imposição do sistema acusatório). Nessa matéria estamos com GUARNIERI,quando afirma que acreditar na imparcialidade do Ministério Público é uma ilusão. A mesma ilusão de confiar ao lobo a melhor defesa do cordeiro...(LOPES JR, 2001, p. 240)
Como bem dito por Lopes Jr., o promotor é um contraditor natural do imputado. O promotor de justiça é órgão acusador, ou seja, irá acusar o indiciado e durante a ação penal irá tentar de tudo para que o mesmo seja punido. Sendo assim, é natural que, caso o promotor fosse realizar as investigações, ele iria ser parcial, realizando atos que subsidiassem seu papel de acusação na ação penal. Já a Polícia Judiciária faz seu papel de descobrir a materialidade e autoria, e como já tratado neste capítulo do presente trabalho, o inquérito policial realizado pela Polícia Judiciária tem também uma função social,destacando-se a sua importância na apuração da verdade real, de vez que é voltado para a apuração imparcial de práticas criminosas, constituindo, quando bem conduzido, verdadeiro instrumento de defesa da cidadania e dignidade da pessoa humana.
Portanto, pelos elementos explicitados neste trabalho, com muito respeito aos doutrinadores que pensam o contrário, mas entendo que para garantir o princípio do devido processo legal, bem como para garantir a imparcialidade nas investigações e o cumprimento do mandamento constitucional, não pode o Ministério Público realizar investigações criminais, ficando estas a cargo da Polícia Judiciária. Além do mais, como será visto adiante, a Polícia Judiciária vem desempenhando bem esse papel, na medida do possível, a exemplo de nossa região geográfica, com os estudos de campo que foram realizados na Delegacia de Polícia Civil de Serra Talhada e no Ministério Público desta comarca, com o objetivo de verificar quantas denúncias foram oferecidas pelo Ministério Público com e sem o acompanhamento do inquérito policial.
3.3 O inquérito policial no oferecimento da denúncia pelo Ministério Público de Serra Talhada
Como trabalho de campo, foi realizada uma pesquisa junto à 1ª Promotoria de Justiça Criminal da Comarca de Serra Talhada, sendo solicitado o preenchimento de questionário com duas perguntas, que segue apenso no anexo 1 deste trabalho.Na primeira pergunta, foi indagado quantas denúncias foram oferecidas por aquela Promotoria de Justiça Criminal ao judiciário desta comarca de Serra Talhada, referente ao ano de 2018, sendo que a resposta foi a seguinte: “foram oferecidas 334 (trezentos e trinta e quatro) denúncias escritas em 2018 pela 1ª PJ Criminal, havendo 2 (duas) retificações no ano”.Na segunda pergunta, foi questionado quantas dessas denúncias do ano de 2018 foram oferecidas ao judiciário sem o acompanhamento de inquérito policial instaurado pela delegacia de polícia. A resposta foi “Zero. Todas as denúncias oferecidas no ano de 2018 foram acompanhadas de procedimentos policiais”.
Cabe destacar que na cidade de Serra Talhada somente existem duas delegacias. A 10ª DPRN – Delegacia de Polícia de Repressão ao Narcotráfico, a qual é especializada no combate ao tráfico de drogas e teve início de suas atividades no mês de março de 2018, teve 10 (dez) inquéritos policiais remetidos à 1ª Promotoria de Justiça Criminal.
Já a Delegacia de Polícia da 177ª Circunscrição – Serra Talhada atende todas as demais demandas dos crimes ocorridos nesta comarca e foi responsável pelo envio de 324 (trezentos e vinte e quatro) inquéritos policiais à 1ª Promotoria de Justiça Criminal, dos mais variados tipos de crimes, incluindo homicídios e roubos.
Segundo dados do IBGE, a população estimada de Serra Talhada é de 85.774 (oitenta e cinco mil e setecentos e setenta e quatro) pessoas. A Delegacia de Polícia da 177ª Circunscrição no ano de 2018 contava com um quadro policial de 01 (um) delegado de polícia, 03 (três) escrivães e 07 (sete) agentes/comissários empenhados na investigação dos crimes.
A conclusão de 324 (trezentos e vinte e quatro) inquéritos policiais no ano de 2018 já é um alto número se for levado em consideração que a cidade conta com pouco mais de 85.000 habitantes e um baixo efetivo de policiais na investigação, mas, como é público e notório, em todo o país a criminalidade é alta, enquanto os efetivos policiais estão aquém do necessário para uma maior elucidação dos crimes. O mesmo ocorre com as promotorias de justiça, que no caso de Serra Talhada conta apenas com um promotor na área criminal, responsável pelo oferecimento de todas as denúncias que chegam naquela promotoria.
A pesquisa de campo demonstrou que o inquérito policial não é uma mera peça informativa que pode ser dispensada, pelo contrário, mostrou que o promotor de justiça forma sua opinio delictisempre com base no inquérito policial, tanto que nenhuma denúncia foi oferecida ao judiciário desta comarca que não estivesse acompanhada do inquérito policial.
Devido as dificuldades que seriam encontradas numa pesquisa a nível nacional, esta pesquisa de campo abrangeu somente a comarca de Serra Talhada, mas, muito provavelmente, isso ocorre em todo o país. Como bem destacado por alguns doutrinadores, na teoria o inquérito policial é dispensável para o oferecimento da denúncia, numa simples interpretação do artigo 12 do Código de Processo Penal, o diz que: “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”. Porém, na prática, raramente uma denúncia não é acompanhada de um inquérito policial, como podemos encontrar em Guilherme de Souza Nucci em sua brilhante interpretação do artigo 12 do Código de Processo Penal:
A natureza do inquérito policial, como se viu em nota anterior, é dar segurança ao ajuizamento da ação penal, impedindo que levianas acusações tenham início, constrangendo pessoas e desestabilizando a justiça penal. Por isso, ao oferecer a denúncia, deve o representante do Ministério Público – o mesmo valendo para a vítima – ter como suporte o inquérito policial, produzido pela polícia judiciária, na sua função de Estado-investigação, órgão auxiliar do Poder Judiciário nessa tarefa. Eventualmente, é possível dispensar o inquérito, como deixa claro este artigo, ao mencionar que ele acompanhará a denúncia ou queixa sempre que servir de base a uma ou outra. Logo, quando o acusador possuir provas suficientes e idôneas para sustentar a denúncia ou a queixa, nada impede que se supere a fase do inquérito, embora seja isso muito raro.(NUCCI, 2015, p.87, grifo nosso)
Para Nucci, a simples interpretação do artigo 12 do CPP deixa claro sim que é possível dispensar o inquérito ao mencionar que ele acompanhará a denúncia ou queixa quando servir de base, ou seja, não impedindo assim que se dispense o inquérito, mas o autor deixa claro que isso é muito raro, como podemos tomar por exemplo essa pesquisa realizada na 1ª Promotoria de Justiça Criminal da Comarca de Serra Talhada, em que todasas denúncias oferecidas no ano de 2018 tiveram como base o inquérito policial.
Nota-se que a afirmação de Nucci é de que a interpretação é que o inquérito é até dispensável, porém, sua dispensa não é só rara, mas muito rara. Essa raridade é ainda mais clara nos crimes de homicídio, no qual várias colheitas de provas são levantadas nos minutos que se sucedem ao cometimento do crime, principalmente as periciais, as quais são colhidas pela polícia científica.
A investigação diretamente no lugar dos fatos, feita pela autoridade policial, propicia-lhe arrolar testemunhas, determinar a colheita de matéria para exame (sangue, urina, fitos de cabelo, sêmen, documentos, etc.) e outros elementos que auxiliem à formação de sua convicção acerca do autor da infração pena, bem como da própria existência desta (NUCCI, 2015, p. 71).
O crime de homicídio é um delito gravíssimo, o qual atinge o bem maior, que é a vida do ser humano, portanto, aquele que o cometeu deve ser responsabilizado, e para que isso ocorra, há a necessidade de uma investigação bem feita, para que não indique erroneamente um inocente, consequentemente deixando impune o real autor do crime.
Nucci (2015, p. 41) enfatiza que “através do inquérito, reúne a polícia judiciária todas as provas preliminares que sejam suficientes para apontar, com relativa firmeza, a ocorrência de um delito e o seu autor”. Percebe-se assim que essas provas preliminares são de competência da polícia judiciária, a qual tem melhores meios para sua colheita, preservando-as para seu devido acompanhamento aos autos do inquérito quando for remetido ao judiciário, conforme o art. 11[1] do Código de Processo Penal.
É difícil imaginar uma ação penal de homicídio em que um inquérito policial não tenha servido de base para o oferecimento da denúncia, ou seja, que tenha havido a dispensa de um inquérito policial que investigou um assassinato.O Art. 41 do Código de Processo Penal diz que “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimento pelos quais se possa identifica-lo, a classificação do crime e quando necessário, o rol de testemunhas”.
Assim sendo, essa exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifica-lo, é o que se apura no regular inquérito policial, que uma vez relatado irá fornecer ao órgão do Ministério Público todos esses dados imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, para que o órgão jurisdicional exerça o jus puniendi.
Aqueles que afirmam que o inquérito policial é dispensável sustentam sua tese no art. 12 do CPP, que diz que “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a um ou outra” e também no art. 27, também do CPP, o qual preceitua que “qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de comunicação”.
Mas, mesmo quando ocorre a hipótese acima descrita, o Ministério Público ainda se utiliza do instituto do inquérito policial, requisitando a sua instauraçãoà polícia judiciária, pois não é só o fato de existirem provas suficientes do crime ou da autoria que esgotariam o assunto, utilizando-se ainda o promotor de justiça de provas periciais, informações sobre a vida pregressa do indiciado, e outros dados que são providenciados na fase policial. Destarte, o que se vê na prática é que, quase sempre, o inquérito é a única base de que se serve o órgão acusador para o oferecimento da denúncia. Vejamos o entendimento do professor Guilherme de Souza Nucci:
É verdade que muitos sustentam, em nosso País, ser a natureza do inquérito um procedimento meramente preparatório, formador da opinião do representante do Ministério Público, porém, na prática, terminam conferindo validade e confiabilidade àquilo que foi produzido pela polícia judiciária. Bastam ver as referências que as sentenças condenatórias costumam fazer aos depoimentos colhidos na fase extrajudicial, muitas vezes dando maior credibilidade ao que teria dito a vítima, o réu – Á época, indiciado – ou alguma testemunha à autoridade policial do que ao magistrado. (NUCCI, 2007, p. 64-65).
O inquérito policial é o mais valioso instrumento de que se utiliza o promotor de justiça para o oferecimento da denúncia nos crimes de ação penal pública.Como se observou na pesquisa de campo, todos os inquéritos policiais produzidos pela delegacia de polícia, foram utilizados como base para a denúncia, nenhum deles foi dispensado. Não é fácil de se imaginar que o representante do ministério público tenha em mãos um inquérito policial que contenha declaração de vítima, depoimentos de testemunhas, interrogatório do acusado, exames periciais, vídeos, fotos, reconhecimentos, apreensão de objetos do crime, etc., seja dispensado somente porque alguns artigos do código de processo penal deixam a interpretar que assim o seja. Ferrajoli nos diz em sua obra que a interpretação de uma determinada norma pode ser tanto restritiva, quanto extensiva, vejamos:
É difícil dizer qual das duas estratégias desolução da antinomia seja na prática preferível: se aquela que impede no caso concreto umprovimento claramente em contraste com a Constituição, ao custo de deixar que possíveisprovimentos análogos sejam tomados nos casos futuros; ou mesmo aquela que solicita aremoção da norma nos casos futuros, ao custo de avalizar-lhe nesse ínterim interpretaçõesaberrantes nos casos concretos. Pode-se dizer, contudo, que ao menos em sede científicaas duas vias não se excluem entre si. (FERRAJOLI, 2002, p. 705)
De acordo com o pensamento de Ferrajoli, a interpretação restritiva não pode excluir a interpretação extensiva. O que se deve avaliar é qual delas está de acordo com os princípios constitucionais. Em nosso ordenamento jurídico, somente encontramos no Código de Processo Penal essa possibilidade de o inquérito policial ser dispensável para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e o consequente início da ação penal. Mas, devemos fazer uma interpretação extensiva desses artigos, levando em consideração a função social do inquérito policial e do cumprimento do devido processo legal. Ainda no inquérito policial o investigado já tem uma chance preliminar de exercer o contraditório e sua defesa, tendo seu advogado livre acesso aos autos na delegacia e a possibilidade de juntar documentos que provem sua inocência.
Se o Estado busca as razões legais para exercer seu direito de punir aquele que cometeu o crime, ao autor desde crime deve ser dada a oportunidade de exercer seus direitos em todas as fases da persecução penal, ou seja, incluindo-se aí a fase de investigação policial, perfazendo assim um total cumprimento do devido processo legal, que irá culminar com um julgamento justo do ponto de vista do garantismo penal.
Neste trabalho tratamos do tema da indispensabilidade do inquérito policial na persecução penal, com o objetivo de levantar a discussão se a ausência do inquérito policial em uma investigação criminal estaria em desrespeito ao princípio do devido processo legal, bem como analisar qual a importância do inquérito policial como base para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e como meio de prova para a futura ação penal, além de discutir os aspectos garantistas encontrados no inquérito.
Inicialmente, vimos neste trabalho que o garantismo penal do referencial teórico Luigi Ferrajoli é o modelo ideal para um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil. Isto porque o direito de punir do Estado somente é possível se por outro lado forem cumpridos todos os princípios e direitos constitucionais que são garantidos aos cidadãos. A pena somente poderá existir se todos os meios de defesa forem assegurados, garantindo assim o cumprimento do princípio do devido processo legal. Esse é o modelo do garantismo penal de Ferrajoli, de que a pena só existe se houver a defesa. Para Ferrajoli esse é um “dever ser”, um metamodelo de uma democracia perfeita.Através deste metamodelo, encontramos a garantia da existência da pena por parte do Estado, e é também através deste metamodelo que encontramos a garantia para existência do inquérito policial, pois é através das investigações da polícia judiciária com o inquérito policial, que se poderá chegar à materialidade e autoria, identificando se houve crime e quem o cometeu, para em seguida servir de base ao Ministério Público, de onde poderá existir a acusação.
Abordamos a função garantidora de direitos do inquérito policial, onde observamos que é nessa fase que podemos encontrar as primeiras garantias asseguradas àquele que é investigado por suspeita de ser o autor de alguma infração penal, bem como em caso de prisão em flagrante, onde a autoridade policial será a primeira autoridade que tem por dever assegurar ao preso que todos os seus direitos serão garantidos.
Ficou também demonstrado que alguns princípios são observados na fase pré-processual (inquérito policial), como é o caso dos princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa. Foi verificado que o princípio da presunção de inocência é aplicado no inquérito policial, pois tanto o ato de indiciamento não o torna culpado, como também o silêncio do investigado no interrogatório não poderá ser interpretado em prejuízo para sua defesa. Já em relação os princípios do contraditório e da ampla defesa, concluímos que eles são aplicados de forma mitigada ou relativa no inquérito policial, pois alguns atos, ao contrário da ação penal, podem ser praticados sem a presença do advogado, mas, caso o mesmo esteja presente, deve lhe ser assegurado todo o acompanhamento do interrogatório, como também livre acesso aos autos produzidos no inquérito policial. Portanto, em nosso entendimento, o inquérito policial está em consonância com o modelo garantista de Ferrajoli, ao ponto que lhe é assegurada a presunção de inocência, assistência de advogado e o contraditório.
Também se verificou que o inquérito policial tem uma função social a cumprir, qual seja a de permitir que ainda na fase pré-processual o investigado possa ser considerado inocente ao final das investigações, evitando assim que o mesmo sofra as consequências de uma ação penal e os prejuízos dela decorrentes, e que o inquérito policial não pode mais ser tratado como instrumento de autoritarismo, violando direitos e princípios constitucionais, pelo contrário, deve o inquérito policial ser visto hoje em dia como um procedimento que visa também a garantia da defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Na discussão do valor probatório do inquérito policial, ficou demonstrado que além da produção de elementos de informação, nele poderão ser colhidas provas cautelares, não-repetíveis e antecipadas. Também vimos que pela interpretação do art. 155 do CPP, chegamos à conclusão de que o juiz pode fundamentar sua decisão com base nos elementos informativos colhidos no inquérito policial. O que não pode é o magistrado fundamentar sua decisão “exclusivamente”, ou “unicamente” nas peças produzidos em fase policial e que nos crimes de competência do júri popular, os jurados leigos às vezes dão mais valor aos elementos informativos do inquérito policiais do que às provas produzidas em juízo.
Concluindo o presente trabalho, foi feita uma avaliação dos dados colhidos na 1ª Promotoria de Justiça Criminal da comarca de Serra Talhada, onde o levantamento de campo demonstrou que 100% das denúncias oferecidas por aquela promotoria tomaram por base o inquérito policial, ficando assim demonstrado que, na prática, o inquérito policial não é dispensado pela promotoria de justiça, constatando assim sua importância para a persecução penal.
Sendo assim, tendo esse trabalho tomado por base a teoria do garantismo penal do referencial teórico Luigi Ferrajoli, onde o Estado terá o direito de punir somente quando forem observados aos cidadãos todos os direitos que lhe são assegurados em um Estado Democrático de Direito, cumprindo assim um devido processo legal que culminará num julgamento justo, acredito que esse devido processo legal deve existir não somente na fase processual, mas em todas as suas fases, incluindo aí a fase pré-processual.Se a ação penal somente será iniciada se houver o oferecimento de uma denúncia pelo representante do Ministério Público e esta denúncia deverá estar formulada em fundados indícios de autoria e materialidade, então deve ser assegurado aos cidadãos que eles terão uma investigação preliminar previamente defina em lei, onde será investigado se houve o crime e se houve a sua participação no delito.
Em nosso entendimento, essa investigação preliminar somente é possível com o inquérito policial, o qual tem o seu procedimento definido no Código de Processo Penal e é atribuído à Polícia Judiciária, conforme foi abordado neste trabalho. Portanto, seguindo o entendimento do princípio do devido processo legal e do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, o inquérito policial é indispensável na persecução penal, em virtude de ser um procedimento previsto em lei e também pela sua função social e garantidora de direitos que foram aqui abordados.
Assim, como uma possível solução ao caso da indispensabilidade do inquérito policial, poderia ser feita uma alteração no Código de Processo Penal, notadamente nos arts. 12 e 27, os quais, como vimos neste trabalho, deixam brechas para interpretação da dispensabilidade do inquérito policial quando não servir de base para a denúncia e/ou quando qualquer do povo fornecer informações do fato e da autoria ao Ministério Público nos casos de ação pública. Tais alterações no Código de Processo Penal seriam para deixar claro que nos crimes de ação pública, estes deveriam ser sempre precedidos de uma investigação criminal, através do inquérito policial, e serviria sempre como base para o oferecimento da denúncia, cumprindo assim o princípio do devido processo legal e garantindo a todos que não responderiam a uma ação penal sem que antes houvesse uma investigação séria pela polícia judiciária, a qual cumpriria com os direitos e garantias existentes em nosso ordenamento jurídico e que ao final apontaria as circunstâncias do fato, sua materialidade e autoria.
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[1]Art. 11 – Os instrumentos do crime, bem como os objetos que interessarem à prova, acompanharão os autos do inquérito.
Professor Especialista em Processo Penal e Delegado de Polícia do Estado de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, José Olegário de Lima. Indispensabilidade do inquérito policial na persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2021, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57937/indispensabilidade-do-inqurito-policial-na-persecuo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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