BEATRIZ SILVA DA COSTA[1]
(coautora)
EDUARDO RODRIGUES DE MELO SOUSA
(orientador)
Resumo: O objetivo do presente artigo é verificar a possibilidade de aplicação de danos morais decorrente do abandono afetivo. Para tanto, a pesquisa se baseou nas decisões judiciais, pesquisas doutrinárias e nos princípios que abarcam o tema. Além disso, foram abordadas as consequências psicológicas do dano moral e os requisitos necessários para a sua configuração. Por fim, através dos entendimentos expostos no estudo, conclui-se que, apesar da controvérsia, é claro que há necessidade de reparo com base na Constituição Federal de 1988, na Emenda Constitucional nº 65/2010, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Civil de 2002 a fim de evitar que outros pais tenham a mesma postura.
Palavras-chave: Família. Abandono Afetivo. Dano Moral. Responsabilidade Civil
Abstract: The purpose of this article is to verify the possibility of applying moral damages resulting from emotional abandonment. Therefore, the research was based on judicial decisions, doctrinal research and on the principles that encompass the theme. In addition, the psychological consequences of moral damage and the necessary requirements for its configuration were addressed. Finally, through the
understandings exposed in the study, it is concluded that despite the controversy, it is clear that there is a need for repair based on the Federal Constitution of 1988, in Constitutional Amendment No. 65/2010, on the Child and Adolescent Statute (ECA) and the Civil Code of 2002 in order to prevent other parents from having the same posture.
Keywords: Family. Affective Abandonment. Moral Damage. Civil Responsibility.
Sumário: 1 Introdução; 2 Dever de Afeto pelos Pais: previsão legal e jurisprudencial; 3 Consequências Psicológicas do Abandono Afetivo da Criança pelos Pais; 4 A Possibilidade da Reparação Civil pelo o Abandono Afetivo e suas Consequências Jurídicas; 5 Conclusão; 6 Referências.
1. Introdução
O objetivo deste artigo é fazer uma análise acerca do tema de abandono afetivo, mais especificamente da omissão dos pais com o seu dever de cuidado em relação aos filhos menores, tendo em vista as crescentes mudanças no que concerne ao Direito de Família.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a Emenda Constitucional nº 65/2010[2], o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e o Código Civil de 2002, a entidade familiar se tornou não só uma comunhão de qualquer um dos pais com os filhos e o cumprimento de seus respectivos deveres legais, mas também a criação de um vínculo afetivo.
A afetividade se baseia na demonstração de sentimentos e emoções em relação a outrem, com intuito de criar uma determinada relação. Assim, para um relacionamento entre pais e filhos, além da presença física, é necessária a explanação de sentimentos como amor, carinho, proteção, diálogo, entre outros, para que haja uma construção saudável e estruturada da personalidade da criança. Caso contrário, na falta desse elemento, o desenvolvimento do (a) menor poderá ser afetado de forma grave e irreparável.
Isto posto, com intuito de compreender essa problemática e chegar a uma possível conclusão, o estudo será abordado em 3 (três) capítulos.
O capítulo 1 irá analisar as previsões legais na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e no Código Civil de 2002, no que tange as responsabilidades dos pais com os filhos, bem como alguns entendimentos jurisprudenciais e os princípios que norteiam a proteção à família e à criança.
No capítulo 2 serão abordadas as consequências psicológicas devido à falta de afeto dos pais com os filhos e, consequentemente, será demonstrado o quanto isso pode vir a afetar a vida do (a) menor.
O capítulo 3 irá abordar sobre os requisitos necessários para a configuração do dano moral e a responsabilidade civil e os entendimentos nos Tribunais brasileiros acerca do tema.
Por fim, para a conclusão deste estudo foram utilizadas pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais, além das legislações supracitadas que abarcam o tema.
2. Dever de Afeto pelos Pais: previsão legal e jurisprudencial
A constituição da família é considerada como o pilar mais importante para a formação de uma sociedade, tendo em vista que, através do vínculo de afetividade criado pelos pais e os seus aportes físicos, morais e psicológicos, a criança se desenvolverá de forma saudável e consciente tanto na vida pessoal quanto na vida social.
Essa premissa se tornou ainda mais sólida com o advento da Constituição Federal de 1988 e a Emenda Constitucional nº 65/2010, que, além de trazer mudanças em torno do conceito de família, trouxe, nos artigos 226[3] e 227[4], a importância do papel da família e a proteção especial do Estado. Com relação a essa mudança, o Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto no Recurso Extraordinário 878.694/MG, expõe que:
Se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, e se, para isso, depende da participação da família na formação de seus membros, é lógico concluir que existe um dever estatal de proteger não apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes, pelo amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto. Não por outro motivo, a Carta de 1988 expandiu a concepção jurídica de família, reconhecendo expressamente a união estável e a família monoparental como entidades familiares que merecem igual proteção do Estado. Pelas mesmas razões, esta Corte reconheceu que tal dever de proteção estende-se ainda às uniões homoafetivas, a despeito da omissão no texto constitucional. (STF - RG RE:878694 MG - MINAS GERAIS 1037481-72.2009.8.13.0439, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de julgamento: 16/04/2015, Data de Publicação: DJe-092 19-05-2015).
Em prol da proteção da criança e do adolescente, ainda, foi criado em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Essa legislação se tornou o marco legal da regulamentação dos direitos desses indivíduos perante a família e a sociedade.
Em suma, o ECA dispõe que a família tem o dever de zelar pelo o bem estar da criança no âmbito pessoal e social, para que assim sejam efetivados os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer no geral, ao desenvolvimento profissional, à dignidade, ao respeito e a liberdade.
Todavia, além das duas legislações citadas, existem princípios que norteiam a proteção adquirida por esses indivíduos. O primeiro deles é o princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, que é necessariamente fundamental no Estado Democrático de Direito. Segundo a explicação da professora Ana Paula de Barcellos (2018, p. 157), podemos ver que:
Em primeiro lugar, é certo que a dignidade humana não se resume a ter acesso a prestações de educação e saúde, a não passar fome e a ter alguma forma de abrigo. Há, como se sabe, muito mais do que isso. A liberdade em suas variadas manifestações – de iniciativa, de expressão, de associação, de crença etc. –, a autonomia individual, o trabalho, a participação política, a integridade física e moral, entre outros, são elementos indissociavelmente ligados ao conceito de dignidade humana.
Assim, considera-se que toda pessoa deve ter a garantia de uma sobrevivência íntegra de direitos e deveres perante a sociedade e, ao mesmo tempo, tenha autonomia individual para ir à busca do seu desenvolvimento pessoal.
Por conseguinte, o princípio da proteção integral, cuja base legal foi inicialmente exposta no art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, com o advento do ECA, em especial ao seu art. 3º [5], demonstrou que as garantias que já eram previstas para o Estado, a família e a sociedade tomaram proporções ainda maiores pelo o fato de, agora sim, existir uma legislação voltada exclusivamente para a plena proteção das crianças e adolescentes, bem como a expansão da sua aplicabilidade.
Ademais, se tratando do âmbito familiar, especificamente, os princípios da afetividade e do melhor interesse da criança e do adolescente possuem um papel fundamental na decisão do (a) magistrado (a).
Flávio Tartuce (2020, p. 28) expõe que:
De toda sorte, deve ser esclarecido que o afeto equivale à interação entre as pessoas, e não necessariamente ao amor, que é apenas uma de suas facetas. O amor é o afeto positivo por excelência. Todavia, há também o ódio, que constitui o lado negativo dessa fonte de energia do Direito de Família Contemporâneo.
Complementando, Paulo Lobô (2018, p. 53) diz que:
A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda da autoridade parental.
Dessa forma, percebe-se que a afetividade foi considerada como um valor jurídico, pois na falta dela a criança poderá desencadear danos físicos e psicológicos irreparáveis.
Além do mais, o princípio do melhor interesse da criança também se torna um fator primordial para a decisão do magistrado (a), haja vista que é feita uma análise da melhor opção para resguardar os direitos e interesses do (a) menor, principalmente quando houver situação em que ocorra a sua violação ou quando haja conflito familiar lhe envolvendo.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Goiás embasou a decisão a seguir:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DE REGIME DE VISITAS. MENOR. IMPUTAÇÃO DA OCORRÊNCIA DE ATOS INDEVIDOS E PREJUDICIAIS À CRIANÇA. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DA PROTEÇÃO INTEGRAL. SUSPENSÃO DO DIREITO DE VISITAS. SENTENÇA MANTIDA. 1. No exame da guarda, não é a conveniência dos pais que deve orientar a sua definição, mas sim o interesse dos menores. 2. Considerando o contexto fático e probatório apresentado na ação e a constatação da ocorrência de atos indevidos que podem comprometer a integridade física, emocional e moral da criança, mostra-se necessário alterar o regime de visitação do pai à filha, estabelecido quando da separação do casal. 3. Demonstrado que a visitação do genitor, por ora, poderá ser prejudicial à criança, correta a sua suspensão até a modificação das causas que motivaram essa decisão. Observância dos princípios do melhor interesse da criança e da proteção integral. Recurso de apelação conhecido e desprovido. (TJ-GO - APL: 01503325620148090100 LUZIÂNIA, Relator: Des(a). GILBERTO MARQUES FILHO, Data de Julgamento: 22/02/2021, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 22/02/2021)
Por fim, o Código Civil de 2002 trouxe em seu art. 1.634 a competência do pleno exercício do poder familiar em relação aos filhos para:
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Todavia, o Código Civil de 2002 não diz expressamente que os pais devem ser responsabilizados civilmente pelo não exercício dos deveres impostos a eles, o que consequentemente acarretou nos diversos questionamentos acerca da possibilidade da reparação civil.
3. Consequências Psicológicas do Abandono Afetivo da Criança pelos Pais
Antes de darmos início às consequências do abandono afetivo, cumpre conceituá-lo. Dentro disso, é importante dizer que o conceito ainda é assunto de discussão.
Rodrigo da Cunha Pereira, em seu livro Direito das Famílias (2021, p. 397), aduz que:
O abandono afetivo é uma expressão usada pelo Direito de Família para designar o abandono de quem tem a responsabilidade e o dever de cuidado para com um outro parente. É o descuido, a conduta omissiva, especialmente dos pais em relação aos filhos menores, e também dos filhos maiores em relação aos pais. É o não exercício da função de pai ou mãe ou de filho em relação a seus pais. Tal assistência para com o outro é uma imposição jurídica e o seu descumprimento caracteriza um ato ilícito, podendo ser fato gerador de reparação civil.
Complementando, Maria Berenice Dias (2015, p. 53) expõe:
O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado.
A partir destes entendimentos, é possível compreender que o núcleo familiar fundado por afeto e amor são essenciais para o desenvolvimento da personalidade da criança. Assim, a unidade familiar pode ser vista como uma ponte entre sujeito e sociedade, em que sua base, formada por laços afetivos, são basilares para o seu desenvolvimento.
Desse modo, é possível perceber que um gesto tão cruel e doloroso gera consequências muitas vezes irreparáveis. Acerca disso, Rolf Madaleno (2021, p. 409) dispõe que:
A desconsideração da criança e do adolescente no campo de suas relações, ao lhes criar inegáveis deficiências afetivas, traumas e agravos morais, cujo peso se acentua no rastro do gradual desenvolvimento mental, físico e social do filho, que assim padece com o injusto repúdio público que lhe faz os pais.
Nesse mesmo sentido, Ricardo Calderón (2017, p.289) expõe que:
É evidente que o desenvolvimento da infância e da adolescência sem o convívio afetivo paterno/materno se dá com prejuízo à integridade pessoal, à esfera da dignidade humana e aos direitos da personalidade de quem foi abandonado. A ausência de um efetivo vínculo afetivo paterno/materno deixa marcas que não podem ser mitigadas. [...] O que se sustenta, aqui, é apenas que se exija um mínimo de demonstração de que efetivamente existiu uma lesão à esfera extrapatrimonial do ofendido, uma ofensa à dignidade e à personalidade da vítima com tal afastamento, que a ofensa se consubstanciou faticamente, que o convívio não foi suprido por outrem, que a vítima desenvolveu sim sua infância e sua adolescência sem o exercício efetivo daquele vínculo parental e que isto trouxe consequências objetivas na sua formação.
Assim, percebe-se que o laço afetivo é fundamental para formação da personalidade, pois é certo que este núcleo será sua referência nas relações sociais e pessoais. Afinal, os traumas do abandono geram uma ferida em aberto.
Importa destacar, por oportuno, que o abandono afetivo é um dos maiores males que se pode causar a uma criança. Neste sentido, Charles Bicca (2017, p. 15) assevera:
O abandono afetivo constitui umas das mais graves formas de violências que pode ser perpetrada contra o Ser Humano. A violência praticada é completamente diferente, sendo duradoura, covarde e sobretudo silenciosa. O abandono afetivo é a morte em vida.
É importante ainda dizer que, mesmo que um dos genitores cumpra com o dever de suprir bens materiais, isso não é o suficiente. Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira (2021, p. 397) discorre que:
Qualquer pessoa, da infância à velhice, para estruturar-se como sujeito e ter um desenvolvimento saudável, necessita de alimentos para o corpo e para a alma. O alimento imprescindível para a alma é o amor, o afeto, no sentido de cuidado, conduta. Ao agir em conformidade com a sua função, está-se objetivando o afeto e tirando-o do campo da subjetividade apenas. A ausência deste sentimento não exclui a necessidade e obrigação dos pais com o cuidado e a educação, a responsabilidade e até mesmo a presença e a imposição de limites.
Complementando, o doutrinador ainda expõe que:
As milhares de crianças de rua e na rua estão diretamente relacionadas ao abandono paterno ou materno e, não, apenas à omissão do Estado em suas políticas públicas. Se os pais fossem mais presentes na vida de seus filhos e não os abandonassem afetivamente, isto é, se efetivamente criassem e educassem seus filhos, cumprindo os princípios e regras jurídicas, não haveria tantas crianças e adolescentes com sintomas de desestruturação familiar.
Para tanto, a análise destas consequências, devem ser analisadas por um profissional especializado no assunto, como psiquiatra, psicólogo ou assistente social.
Portanto, verifica-se que há a necessidade de reconhecer que a omissão de afeto é ato ilícito, necessário de reparação. Vale frisar que a punição deste ato tem caráter pedagógico e educativo, bem como irá desestimular a propagação deste dano social.
4. A Possibilidade da Reparação Civil pelo o Abandono Afetivo e suas Consequências Jurídicas
Para a compreensão do tema deste trabalho, se faz necessário conceituar o que é o dano moral e como é caracterizada a responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, para que, a partir destes conceitos, seja feita uma comparação sobre a possibilidade da reparação civil pelo abandono afetivo.
O doutrinador Humberto Theodoro Júnior (2016, pág. 1) expõe que:
De maneira mais ampla, pode-se afirmar que são danos morais os ocorridos na esfera da subjetividade, ou no plano valorativo da pessoa na sociedade, alcançando os aspectos mais íntimos da personalidade humana (“o da intimidade e da consideração pessoal”), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (“o da reputação ou da consideração social”).3 Derivam, portanto, de “práticas atentatórias à personalidade humana”.4 Traduzem-se em “um sentimento de pesar íntimo da pessoa ofendida”5 capaz de gerar “alterações psíquicas” ou “prejuízo à parte social ou afetiva do patrimônio moral” do ofendido.6
Continuando, o doutrinador (2016, pág. 2) assevera que:
Quando se cuida de dano patrimonial, a sanção imposta ao culpado é a responsabilidade pela recomposição do patrimônio, fazendo com que, à custa do agente do ato ilícito, seja indenizado o ofendido com o bem ou valor indevidamente desfalcado. A esfera íntima da personalidade, todavia, não admite esse tipo de recomposição. O mal causado à honra, à intimidade, ao nome, em princípio é irreversível. A reparação, destarte, assume o feitio apenas de sanção à conduta ilícita do causador da lesão moral. Atribui-se um valor à reparação, com o duplo objetivo de atenuar o sofrimento injusto do lesado e de coibir a reincidência do agente na prática de tal ofensa, mas não como eliminação mesma do dano moral.
Assim, observa-se que o dano moral é a ofensa ou violação dos bens imateriais de uma pessoa, ou seja, são danos que afetam o emocional, o psicológico e a moral de uma pessoa. O Código Civil de 2002 abarca o tema nos arts. 186 e 927 vejamos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Todavia, vale esclarecer que há uma análise de prudência, bom senso e racionalidade por parte do (a) magistrado (a) quanto à caracterização do dano moral, tendo em vista que o caso concreto deverá ser adequado aos princípios inerentes à pessoa humana, a proteção legal, o grau de culpa do agressor e a consequência do ato lesivo para a vítima em relação a si própria e em relação à sociedade.
Ademais, cabe ressaltar que o dano moral não se confunde com o mero aborrecimento, sendo este último caracterizado como a mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada de situações que não sejam intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio do indivíduo, conforme afirma o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 844.736.
Dessa forma, havendo a comprovação de que o dano causado ao indivíduo lhe causou consequências graves a sua moral, ao seu emocional e psicológico, a responsabilidade civil poderá ser pleiteada.
Assim, segundo o doutrinador Sergio Cavalieri Filho (2020, pág. 11), a responsabilidade civil pode ser definida como:
Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. A essência da responsabilidade está ligada à noção de desvio de conduta, ou seja, foi ela engendrada para alcançar as condutas praticadas de forma contrária ao direito e danosas a outrem. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.
Nessa mesma linha afirma Venosa (2021, pág. 357):
Os princípios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado. Um prejuízo ou dano não reparado é um fator de inquietação social. Os ordenamentos contemporâneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcançando novos horizontes, a fim de que cada vez menos restem danos irressarcidos.
Isto posto, cabe dizer que a responsabilidade civil é a obrigação de indenizar um dano moral ou material causado a outro indivíduo. Mas, conforme explicitado anteriormente, o dano tem que ser comprovado. Para isso, Sergio Cavalieri Filho (2020, p. 27) ensina que se faz necessário a análise de três pressupostos para a caracterização da responsabilidade civil, ou seja:
a)conduta culposa do agente, o que fica patente pela expressão “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia”;
b)nexo causal, que vem expresso no verbo causar; e
c)dano, revelado nas expressões “violar direito ou causar dano a outrem”.
Portanto, a partir do momento em que alguém, mediante conduta culposa, viola direito de outrem e causa-lhe dano, está-se diante de um ato ilícito, e deste ato deflui o inexorável dever de indenizar, consoante o art. 927 do Código Civil.
A partir do exposto, caberia dizer que em relação a um caso de abandono afetivo seria cabível a reparação civil, tendo em vista que uma criança que se desenvolve sem a presença do pai ou da mãe sentirá falta do apoio, carinho, segurança, cuidado, dentro outros sentimentos e responsabilidades que somente aquele (a) responsável poderia dar, causando-lhe assim sérios abalos psicológicos e emocionais.
Todavia, o entendimento jurisprudencial adotado na quarta turma do Superior Tribunal de Justiça dispõe que:
O dever de cuidado compreende o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. Não há dever jurídico de cuidar afetuosamente, de modo que o abandono afetivo, se cumpridos os deveres de sustento, guarda e educação da prole, ou de prover as necessidades de filhos maiores e pais, em situação de vulnerabilidade, não configura dano moral indenizável. (STJ - AgInt no AREsp: 1286242 MG 2018/ 0100313-0, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 08/10/2019, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/10/2019).
Desse modo, percebe-se que o entendimento acerca do tema leva em consideração se o genitor (a) está cumprindo com o seu papel de sustentar, educar e cuidar da criança, ou seja, mesmo que não ocorra uma relação de afeto entre ambos os lados, se houver o cumprimento dos deveres legalmente impostos, não será possível o cabimento da responsabilização civil.
Contudo, mesmo com o entendimento acima, nota-se que o assunto ainda é motivo de grandes questionamentos e discussões nos Tribunais brasileiros, haja vista que cada caso concreto possui a sua particularidade, o que consequentemente necessitará de uma avaliação individual.
Por fim, cabe ressaltar que o objetivo da reparação civil por abandono afetivo seria uma forma de amenizar o dano causado à criança, apesar de que a afetividade não seja algo passível de reparação, principalmente quando a criança vive há anos sem a presença do genitor (a). Somente custear os gastos da criança não resolveria o problema em questão, entendimento este que também foi pacificado na terceira turma do Supremo Tribunal de Justiça.
17) Como se percebe, há um dever jurídico dos pais, distinto do dever de prover material e economicamente à prole e que não pode ser resolvido apenas sob a ótica da destituição do poder familiar, de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana. 18) Dessa forma, se a parentalidade é exercida de maneira irresponsável, desidiosa, negligente, nociva aos interesses da prole ou de qualquer modo desprovida dos mínimos cuidados que toda criança ou adolescente tem direito e se dessas ações ou omissões, que configuram ato ilícito, porventura decorrerem também traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis a partir de qualquer prova em direito admitida, sobretudo a prova técnica, de modo a configurar igualmente a existência de fato danoso, não há óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho, uma vez que esses abalos morais são quantificáveis como qualquer outra espécie de reparação moral indenizável. (STJ - REsp: 1887697 RJ 2019/0290679-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 21/09/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2021)
5. Conclusão
Perante todo o exposto, nota-se que com o advento da Constituição Federal de 1988, a Emenda Constitucional nº 65/2010, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e o Código Civil de 2002, a família tomou um papel primordial na formação da sociedade, onde a imposição de deveres legais a serem praticados pelos pais não se limitou apenas à preocupação física, mas, além disso, deixou implícito um dever de afeto.
Desse modo, pelo fato de não haver previsão expressa nas legislações supracitadas e/ou entendimento jurisprudencial majoritário acerca da punibilidade de casos em que ocorra a ausência de afeto pelos pais com os filhos menores, se faz necessária a comprovação do dano causado à criança, e se esse dano irá configurar os requisitos necessários para a reparação pelo dano moral e, consequentemente, a responsabilização civil dos pais.
Todavia, cabe dizer que o dano causado à criança será visivelmente notado, pois o afeto é demonstrado na convivência familiar, na presença física ou até mesmo remota dos pais quando se tratar de problemas morais, psicológicos e de personalidade da criança, é o cuidado, a preocupação e a participação no desenvolvimento do (a) menor, preparando-lhe para a vida em sociedade na fase adulta. Assim, na falta destas ações, ou seja, no descuido, na conduta omissiva dos pais, os danos desencadeados na criança poderão ser graves e irreversíveis.
É neste sentido que alguns entendimentos se baseiam, onde reconhecem que os pais têm o dever de cuidar fisicamente e afetivamente da criança, sob o fundamento de que ambos os cuidados são elementos essenciais para o desenvolvimento saudável da criança.
Entretanto, existem outros entendimentos que se baseiam apenas no cumprimento das obrigações legais, ou seja, entendem que se o pai ou mãe está cumprindo com o dever de sustento, guarda e educação não haverá a configuração do dano moral, haja vista que a afetividade não é prevista como dano cabível de indenização.
Portanto, o tema ainda é controverso no ordenamento jurídico, o qual exige uma análise de prudência, bom senso e racionalidade por parte do (a) magistrado (a) quanto à caracterização do dano moral e a responsabilização civil, para que o fato não se torne uma obrigação ou uma forma de pagamento em troca da ausência. Afinal, segundo entendimento da Ministra Nancy Andrighi, “amar é faculdade, cuidar é dever” (REsp nº 1159242/SP).
Por fim, cabe ressaltar que a reparação deve ser vista como um meio pedagógico, a fim de evitar que outros pais tenham a mesma postura, sob o fundamento dos princípios do melhor interesse da criança e da paternidade responsável.
6. Referências
BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional. 1º Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
BERENICE DIAS, Maria. Manual de Direito das Famílias. 10ª Ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
BICCA, Charles. Abandono Afetivo: O dever de cuidado e a responsabilidade civilidades por abandono de filhos. Brasília: Editora OWL, 2017.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: abr. 2021.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 65 de 13 de Julho de 2010.
Altera a denominação do Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal e modifica o seu art. 227, para cuidar dos interesses da juventude. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc65.htm. Acesso em: out. 2021.
BRASIL. Lei n º 8.069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.046 de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: abr. 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 0007865-67.2013.8.13.0459 MG 2018/0100313-0. Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 08 de outubro de 2019. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/859757263/agravo-interno-no-agravo-em-recurso-especial-agint-no-aresp-1286242-mg-2018-0100313-0. Acesso em: out. 2021.
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[1] Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Una da rede Ânima de Educação. E-mail: [email protected]. Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Una da rede Ânima Educação. 2021. Orientador: Prof. Eduardo Rodrigues de Melo Sousa, Mestre.
[2] Altera a denominação do Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal e modifica o seu art. 227, para cuidar dos interesses da juventude.
[3] Dispõe que a família tem especial proteção do Estado.
[4] Dispões sobre o dever da família, da sociedade e do Estado em relação à criança, ao adolescente e ao jovem.
[5] O artigo dispõe que, “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Una da rede Ânima de Educação.
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