RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir a produção legislativa relacionada à inserção da população preta ou parda na estrutura estatal, através de certames públicos. Como se sabe, a política nacional de igualdade racial trouxe diversos mandamentos à Administração Pública no sentido de reservar vagas nas suas seleções. O que tem tornado ineficaz essa diretriz é a falta de objetivismo na redação dos diplomas e o excesso de subjetivismo nos agentes que participam do processo de verificação da condição de pessoa negra. Outro ponto que é destacado no trabalho é a falta de iniciativa nos entes da federação brasileira. Nem todos os Estados-membros e municípios do Brasil possuem regulamentação sobre cotas para pessoas pretas ou pardas.
Palavras-chave: concurso; cotas; universidades; lei; heteroidentificação.
ABSTRACT: This article aims to discuss the legislative production related to the insertion of the black or brown population in the state structure, through public contests. As is well known, the national racial equality policy brought several commandments to the Public Administration in the sense of reserving places in its selections. What has made this guideline ineffective is the lack of objectivism in the drafting of diplomas and the excess of subjectivism in the agents who participate in the process of verifying the condition of a black person. Another point that is highlighted in the work is the lack of initiative in the entities of the Brazilian federation. Not all member states and municipalities in Brazil have regulations on quotas for black or brown people.
Keywords: public tender; quotas; universities; law; heteroidentification.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. O QUESTIONAMENTO DA LEI DE COTAS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – 3. AS BRECHAS QUE PERMITEM JUDICIALIZAÇÃO – 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS – 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. INTRODUÇÃO
A discussão acerca das ações afirmativas para promover o fim da desigualdade étnico-racial precisa ser encarada com seriedade. Isso porque as políticas públicas voltadas para a produção legislativa, dado o seu caráter verticalizado, têm sido para “inglês ver”.
E essa expressão, que deriva de um conhecido adágio, vem a calhar porque sua origem se deu num contexto histórico que guarda muita semelhança com os dias de hoje e se resumia a falsa percepção da existência de leis para coibir o tráfico negreiro no século XIX.
Não existe uma explicação acima de controvérsia para a conhecidíssima expressão “para inglês ver”, cujo sentido o Houaiss define como “para efeito de aparência, sem validez”. A mais aceita, e que me parece também a mais plausível, é a que apresentou o filólogo João Ribeiro em seu livro “A língua nacional”: no tempo do Império, as autoridades brasileiras, fingindo que cediam às pressões da Inglaterra, tomaram providências de mentirinha para combater o tráfico de escravos africanos – um combate que nunca houve, que era encenado apenas “para inglês ver”. (VEJA, 2020)
Ainda nos tempos hodiernos isso se verifica, pois há no Brasil, em números absolutos (quanto se junta o arcabouço federal, estadual e municipal) uma farta legislação que trata da inserção das pessoas negras dentro da estrutura do Estado, mas, analisando as normas de forma detida e casuística, verifica-se que, muito embora na forma exista uma legalidade, há algo que falta na matéria.
Diversos são os pontos que podem ser elencados nessa retórica, a começar pela falta de objetivismo e clareza das leis que tratam de reserva de vagas para pessoas pretas ou pardas. A título de exemplo serão mencionadas duas delas: a Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades públicas federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, e a Lei 12.990 de 9 de junho de 2014, que trata da reserva de vagas destinadas a pessoas pretas ou pardas nos concursos públicos de provimento de cargos efetivos e empregos públicos na Administração Publica Federal. São leis curtas, que não definem, nem deixam elementos de norte para as entidades mais descentralizadas e, no fim das contas, uma parafraseia a outra.
A aplicação dos diplomas normativos acima referidos se dá em relação à Administração Pública Federal. Os demais entes têm competência legislativa própria, que se espelham no modelo feito pela União Federal - quando fazem (já que nem todos os Estados e 5.570 municípios possuem regulamentação sobre esse tipo de assunto).
Para se ter uma ideia dos dados, segundo levantamento, ainda em algumas capitais não há a instituição da política de cotas raciais no funcionalismo público. Em alguns estados do norte do país, nenhum município está imbuído com a prestação positiva.
Vitória (ES), Porto Alegre (RS), Salvador (Bahia), São Paulo (SP), Cuiabá (MT), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro e Brasília (DF) são as capitais que possuem lei de cotas nos concursos públicos municipais. No caso de Brasília, a legislação vale para todo o território do Distrito Federal. A Lei nº 6.321/2019 garante 20% das vagas para pessoas negras, válido para concursos com mais de três vagas. No Amapá, Rondônia e Roraima e Acre, nenhum município informou ter legislação para garantir vagas em concursos públicos à população negra. (CONGRESSO EM FOCO, 2021)
Ainda em relação à estatística publicada no site, pouco mais de um terço das capitais instituíram sua própria politica pública.
Entre as 26 capitais e o Distrito Federal, só oito possuem a garantia de vagas por meio de lei. Mas a existência de ações afirmativas não implica, necessariamente, na sua efetividade. Casos de leis restritivas, pouco divulgadas e até apagão de informações. (CONGRESSO EM FOCO, 2021)
Da mesma forma que se verifica no ato normativo federal, nos âmbitos estadual e municipal o trabalho legislativo, quando há, limita-se a poucos artigos, sem detalhamento, delegando para decretos a função de minudenciar o texto da lei, que, por sua vez, transfere para o agente público ou órgão da ponta a função de destrinchar os direitos e condições para que uma pessoa aprovada em certames públicos possa ingressar no quadro de pessoal estatal.
O processo de criação dos atos normativos, sejam de alto escalão (como as leis) ou do mais subalterno (como as portarias) respeitam a Constituição Federal na forma, mas nem sempre são legítimas no conteúdo, daí porque, utilizando um método exploratório e descritivo e com pesquisa documental e bibliográfica, o objetivo deste trabalho é explicar o cenário atual das políticas públicas voltadas para fomento de cotas e sugerir correção de algumas incoerências no trato do Estado, no que respeita a promoção efetiva das ações afirmativas.
2. O QUESTIONAMENTO DA LEI DE COTAS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A ideia deste trabalho não é discutir a validade ou não dessas leis. Isso já está superado. Como se sabe, logo que entrou em vigor, havia uma controvérsia nos tribunais do país acerca de uma pseudo-inconstitucionalidade. Para dirimir essa celeuma, foi ajuizada a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), julgando a Ação declarou, por unanimidade, a validade da Lei nº 12.990/2014, que reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal.
O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, e fixou a seguinte tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. Ausentes, participando de sessão extraordinária no Tribunal Superior Eleitoral, os Ministros Rosa Weber e Luiz Fux, que proferiram voto em assentada anterior, e o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 8.6.2017. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 41, Relator MINISTRO ROBERTO BARROSO. Brasília, 08 de jun. de 2017/06/2017, Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal)
Com esse precedente, tornou-se possível a utilização da autodeclaração e de critérios subsidiários de heteroidentificação.
Convém ressaltar, entrementes que, de forma pertinente, o voto do Ministro Alexandre de Moraes, proferido na referida ADC, consagrou a importância das provas documentais, considerando-as prioritárias em relação à entrevista presencial:
De qualquer modo, parece fora de dúvida que, para preservar melhor maneira possível a dignidade dos candidatos, evitando maiores constrangimentos, o ideal é que o processo de verificação da autenticidade da declaração privilegie, inicialmente, registros documentais capazes de corroborar a afirmação dos candidatos. Isso pode ser providenciado pela apresentação de fotografias ou até mesmo por documentos públicos que assinalem sinais étnico-raciais referentes aos candidatos e, também, a seus respectivos genitores. Segundo Hédio Silva Junior, especialista no tema, há uma série de documentos públicos que ostentam informações relevantes para solver dúvidas sobre a realidade étnico-racial: (...) em pelo menos sete documentos públicos os brasileiros são classificados racialmente com base na cor da pele, são eles: 1. cadastro do alistamento militar; 2. certidão de nascimento (cor era assinalada até 1975); 3. certidão de óbito; 4. cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário (incluindo boletins de ocorrência e inquéritos policiais); 5. cadastro geral de empregados e desempregados. 6. Cadastro de identificação civil – RG (SP,DF, etc); 7. Formulário de adoção de varas da infância e adolescência. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 41, Relator MINISTRO ROBERTO BARROSO. Brasília, 08 de jun. de 2017, Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal)
Portanto, para MORAIS, deve ser oportunizada aos candidatos cotistas a apresentação de documentos capazes de comprovar a declaração, com prioridade sobre a comissão de heteroidentificação. A verificação feita por uma comissão só seria possível se a análise desses documentos se revelasse insuficiente. Para ele, a entrevista, por ser invasiva, teria um caráter subsidiário.
Surge, com base nesse precedente, demasiadamente persuasivo, afinal, provém de um magistrado da mais alta corte brasileira, o entendimento segundo o qual os editais de certames que reservam vagas para pessoas pretas ou pardas devem prever, primeiramente, a apresentação de documentos oficiais, e segundo, caso isso não venha bastar, estabelecer critérios objetivos de análise do fenótipo dos candidatos, como por exemplo, os relativos ao nariz, boca, dentes, face, crânio, cabelo, barba, tonalidade da cor da pele, além de prever a possibilidade de envio de documentos complementares emitidos por órgãos públicos que corroborassem com a afirmação dos candidatos.
Com base na fundamentação do julgado, a conclusão obtida pelos ministros foi providencial para, além de eliminar as dúvidas sobre a sua constitucionalidade, estabelecer padrões que evitem o subjetivismo na hora de definir quem é ou não pessoa preta ou parda.
3. AS BRECHAS QUE PERMITEM JUDICIALIZAÇÃO
Nos certames públicos, há uma fase em que os candidatos que optam pela reserva de vagas são submetidos a uma heteroidentificação feita por uma comissão composta por pessoas de notório saber sobre assuntos étnico-raciais. Nas universidades públicas, essas equipes já fazem parte da estrutura administrativa.
No entanto, diversos são os casos em que essas comissões, durante o procedimento de verificação, concluem que a aparência dos candidatos, principalmente os de cor parda, não traz traços fenotípicos da condição de pessoa negra.
Dentro desse contexto, em situações raras são expostos os fundamentos de cada um dos examinadores acerca do porquê que determinado candidato não se enquadra no fenótipo negroide, o que se torna ainda mais cristalina a ilegalidade do parecer dessas comissões, pois extrapola o limite estabelecido pela lei, que, por sinal, não existe.
O ato administrativo, seja a portaria, o edital, o parecer, não pode extrapolar o limite legal, pois a Administração Pública deve obedecer fielmente os ditames da lei. É o que disciplina o princípio da legalidade, sobre o qual se anotam as lições do professor Matheus Carvalho:
Com efeito, o administrador público somente pode atuar conforme determina a lei, amplamente considerada, abarcando todas as formas legislativas, desde o próprio texto constitucional, até as leis ordinárias, complementares e delegadas. É a garantia de que todos os conflitos sejam solucionados pela lei, não podendo o agente estatal praticar condutas que considere devidas, sem que haja embasamento legal específico. (...) Não havendo previsão legal, está proibida a atuação do ente público e qualquer conduta praticada ao alvedrio do texto legal será considerada ilegítima. (CARVALHO, 2019, p.62)
O silêncio legislativo, em todos os níveis (federal, estadual e municipal), no que pertine às características de uma pessoa para que se enquadre como preta, branca, amarela ou qualquer outra cor, faz com que qualquer ativismo dos agentes públicos subalternos ponha em xeque a lisura dos certames, em razão do excesso de poderes.
É importante aqui fazer a ressalva de que é extremamente importante o trabalho de uma comissão com essa finalidade, mas isso não pode ser justificativa para se abandonar a higidez dos certames, pois ao invés de se promover a isonomia, estar-se-ia ferindo de morte tal princípio constitucional.
Desde que foi criada a política de igualdade racial, em 2014, os Tribunais brasileiros são uníssonos nas suas fundamentações. Nesse sentido, a jurisprudência é enfática ao firmar entendimento de que os critérios para a aferição da condição de cotista devem ser objetivos, conforme se depreende dos julgados colacionados abaixo:
ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. INGRESSO NA UNIVERSIDADE. SISTEMA DE COTAS RACIAIS. ENTREVISTA. CRITÉRIOS SUBJETIVOS. ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. FENÓTIPO NEGRO OU PARDO. NÃO COMPROVAÇÃO. I - A entrevista para aferição da adequação do candidato à concorrência especial das cotas raciais se posta legal, desde que pautada em critérios objetivos de avaliação. "Não há, pois, ilegalidade na realização da entrevista. Contudo, o que se exige do candidato é a condição de afrodescendente e não a vivência anterior de situações que possam caracterizar racismo. Portanto, entendo que a decisão administrativa carece de fundamentação, pois não está baseada em qualquer critério objetivo (...) Considero que o fato de alguém 'se sentir' ou não discriminado em função de sua raça é critério de caráter muito subjetivo, que depende da experiência de toda uma vida e até de características próprias da personalidade de cada um, bem como do meio social em que vive. Por isso, não reconheço tal aspecto como elemento apto a comprovar a raça de qualquer pessoa." (STF - ARE: 729611 RS, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 02/09/2013, Data de Publicação: DJe-176 DIVULG 06/09/2013 PUBLIC 09/09/2013). (...) IV - Apelação Parcialmente provida. objetivos. Sucumbência recíproca. Suspensão da exigibilidade da cobrança para a autora, já que beneficiária da gratuidade de justiça. (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 1ª Região. AC: 122238720094013400, Relator: Juíza Federal Hind Ghassan Kayath, Sexta Turma. Brasília, 28 de jul. de 2014, Lex: Jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região)
E até os dias atuais o entendimento permanece.
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA CONCURSO PÚBLICO. TÉCNICO JUDICIÁRIO - ÁREA JUDICIÁRIA. SISTEMA DE COTAS. CANDIDATO IMPETRANTE AUTODECLARADO NEGRO (PRETO OU PARDO). ELIMINAÇÃO DO CERTAME APÓS PROCEDIMENTO DE VERIFICAÇÃO. PROCESSO LEGÍTIMO, PORÉM, IN CASU, COM ELIMINAÇÃO ALICERÇADA EM CRITÉRIOS SUBJETIVOS E SEM MOTIVAÇÃO CLARA VOLTADA À ANÁLISE DA CONDIÇÃO FENOTÍPICA DO CANDIDATO IMPETRANTE. NULIDADE DO ATO DE ELIMINAÇÃO EM EXAME. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. No julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade nº 41, sob a Relatoria do eminente Ministro Roberto Barroso, o Eg. Supremo Tribunal Federal adotou a tese de que: "[...] É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa". 2. No caso dos autos, refoge à legalidade e à razoabilidade, a eliminação do candidato impetrante que restou excluído do certame porque não atendeu aos critérios fenitícios aqui expostos de forma vaga e manifestamente subjetiva pela banca examinadora, no processo de verificação que alicerçou o ato combatido. (...) 5. Nestes casos excepcionais, ou seja, de manifesta ilegalidade, tem a jurisprudência pátria perfilhado a linha de pensamento pela qual é possível sim a atuação do Poder Judiciário para corrigir impropriedades manifestadas em sede de concurso público. 6. SEGURANÇA CONCEDIDA. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acorda a Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, em unanimidade de votos, por conceder a segurança requestada. Fortaleza, 01 de outubro de 2020 DESEMBARGADOR EMANUEL LEITE ABUQUERQUE RELATOR (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Mandado de Segurança Cível 0624465-84.2020.8.06.0000, Rel. Desembargador(a) EMANUEL LEITE ALBUQUERQUE, Órgão Especial, Fortaleza, 01 de out. de 2020. Lex: Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará)
Significa dizer que os decretos, por estarem numa posição hierarquicamente inferior à lei, devem, sem extrapolar os limites daquela, detalhar os aspectos genéricos da norma originária, definindo critérios objetivos de enquadramento da condição de pessoa negra. Com isso, os editais de certames, como concursos públicos, vestibulares, exames nacionais e congêneres, teriam legitimidade para reproduzir tais regras em suas minutas.
Com base nas amostras de julgados que tratam do assunto, todos os editais de concursos públicos para provimento de cargos e empregos públicos e processos seletivos de ingresso em instituições públicas de ensino, ao estabelecerem que apenas o fenótipo dos candidatos é levado em consideração, acabam por adotar a utilização de um critério genérico e subjetivo que, inclusive, o Ministro Edson Fachin, em seu voto proferido no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade nº 41, assim cunhou.
A pior parte da experiência do heterorreconhecimento é que, embora tenha criado juízes para avaliar a raça, ela não respondeu à pergunta que havia ficado aberta acerca do critério que essas pessoas devem aplicar. Todos os editais com previsão de heterorreconhecimento trouxeram previsão genérica do que faria alguém ser considerado negro, aludindo, por exemplo, a “traços fenotípicos”, sem dizer quais, ou não trouxeram critério algum. (...) Nenhuma lei, federal ou estadual, define quais características o candidato deve levar em conta para se declarar. Não se define sequer se a avaliação é fenotípica ou genotípica e, muito menos, quais os traços que devem ser considerados pelo interessado, ao se olhar no espelho, ou avaliar sua experiência de vida pretérita, para se declarar ou não. (…) Isso se comprova pelo modo como o próprio IBGE, expressamente referido pelo Estatuto da Igualdade Racial, conduz o questionamento racial no contexto do censo. Nele, ao cidadão apenas é perguntado “qual a sua cor?”, sem que se diga o que se entende por cor, devendo o recenseado se enquadrar em uma das cinco opções (branco, pardo, preto, indígena ou amarelo). A Lei, ao afirmar que seria considerados negros aqueles que se enquadrassem nos critérios do IBGE, estabeleceu um falso parâmetro, uma vez que, como percebeu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, “tanto a Lei 12990/2014, quando o Estatuto da Igualdade Racial instituído pelo Lei 12288, de 2010, dizem apenas que será aquele que preencha os requisitos do IBGE, órgão que, até o presente momento, não conseguiu definir por intermédio de qualquer ato administrativo normativo quem é negro ou pardo. (VITORELLI, 2017, p. 76- 81).
Novamente, com base nos julgados da amostra, que representam um posicionamento pacífico da jurisprudência brasileira, o que se percebe é que o critério utilizado pela administração pública não é capaz de coibir situações de injustiças, bem como atestar, sem sombra de dúvidas, qual candidato cotista seria beneficiado ou não pela ação afirmativa.
Esse tipo de cenário é um ambiente propício para a ocorrência de avaliações genéricas e subjetivas, pois, em razão do silêncio legislativo, a fixação das características fenotípicas de um candidato negro, seja ele preto ou pardo, ficaria ao alvedrio exclusivo dos membros da comissão avaliadora, o que a torna completamente subjetiva. Tal contexto é incompatível com o regime constitucional democrático estabelecido no Brasil.
Para que se entenda a perspectiva aqui exposta, se um ato normativo (lei, decreto, edital etc) dispuser que, para ser enquadrado como negro, preto ou pardo, o candidato deve ter característica “X” ou “Y”, percebendo que não atende a tal exigência, o candidato nem seu tempo perderia se inscrevendo nessa condição. Por outro lado, acabaria o exercício do arbítrio dos membros das comissões, já que roteiro estaria pronto e sua atuação seria vinculada.
É uma questão de boa-fé objetiva de ambas as partes.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se viu, o modelo federativo adotado pelo Brasil reparte as competências levando em consideração o grau de interesse de cada um dos entes federativos, não dispensando as suas particularidades. A ideia de autonomia das pessoas políticas impede que, em determinados assuntos como o acesso a cargos e empregos públicos de seus respectivos entes, uma lei federal se aplique a um Estado-membro e, da mesma forma, uma lei estadual se aplique a determinado município, ainda que dentro dos limites territoriais daquele ente.
Viu-se que existem vários obstáculos que impedem a concretização do fundamento republicano de reduzir a desigualdade social e étnico-racial.
O primeiro deles é a cobertura legislativa que, como se viu no decorrer deste trabalho, ainda é muito tímida. O segundo dos problemas destacados é a generalidade dos diplomas normativos, que, não bastasse isso, transfere para normativos de menor hierarquia o trabalho de minudenciar o texto genérico da lei.
Mais um entrave é o alto grau de subjetivismo presente nos atos dos agentes que estão na ponta do processo, a exemplo das comissões de heteroidentificação presentes nas instituições de ensino e montadas para fases de outros certames.
Muito há o que se fazer, a começar pela iniciativa legislativa naqueles entes que estão inertes. Mas isso não é suficiente; é necessário que, verdadeiramente, haja um conteúdo que contribua para a eficiência e eficácia da norma, sem generalidades, sem muita delegação e, na hipótese de ser necessária a regulamentação por ato normativo estatal inferior, que haja critérios objetivos que assegurem o direito das pessoas pretas e, principalmente, pardas.
Nesse contexto, os órgãos de assessoramento e as pessoas jurídicas especializadas em promoção de eventos de seleção de pessoal devem alterar o método de produção dos textos normativos, adotando uma técnica que seja clara, objetiva e razoável.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL, Lei 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Diário Oficial da União, Brasília, DF.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 41, Relator MINISTRO ROBERTO BARROSO. Brasília, 08 de jun. de 2017/06/2017, Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Mandado de Segurança Cível 0624465-84.2020.8.06.0000, Rel. Desembargador(a) EMANUEL LEITE ALBUQUERQUE, Órgão Especial, Fortaleza, 01 de out. de 2020. Lex: Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará).
CARVALHO, Matheus. Manual de direito Administrativo, 2ª edição, revista, ampliada e atualizada – Editora JusPodivm, 2019.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf> Acesso em 26 de novembro de 2021.
RODRIGUES, Sérgio. Como nasceu a expressão ‘para inglês ver?’. VEJA, São Paulo, 31 de jul. de 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/sobre-palavras/como-nasceu-a-expressao-para-ingles-ver/. Acesso em 04 de jan. de 2022.
RODRIGUES, Thais. Falta de dados e de leis de cotas causam desigualdade racial em prefeituras. Congresso em foco, Brasília, 07 de maio de 2021. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/temas/direitos-humanos/falta-de-dados-e-de-leis-de-cotas-causam-desigualdade-racial-em-prefeituras/>. Acesso em 03 de jan. de 2022.
VITORELLI, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Salvador: Editora JusPodivm, 2017.
Formado em Direito pela Faculdade de Petrolina (FACAPE) e especialista em Direito Público Municipal pela mesma IES. Advogado militante na área de Direito Público. Professor de Direito da FACAPE (2018-2019), Uninassau (2020) e UniFTC (2022). Juiz Leigo no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (2019).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDRADO, Bruno Rafael Paixão. Pessoas pretas e pardas em certames públicos e o subjetivismo das comissões de heteroidentificação: a judicialização do colorismo nos tribunais brasileiros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jan 2022, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57998/pessoas-pretas-e-pardas-em-certames-pblicos-e-o-subjetivismo-das-comisses-de-heteroidentificao-a-judicializao-do-colorismo-nos-tribunais-brasileiros. Acesso em: 23 dez 2024.
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