RESUMO: Esta exposição bibliográfica apresenta análises descritivas de como foram operadas as estigmatizações contra as crenças afro-religiosas. Produto do racismo colonizador que estruturou as terras brasileiras, os estigmas se convertem em constrangimento às plenas manifestações das devoções de origens africanas. A pesquisa processa interdisciplinaridades de temáticas étnico-raciais da antropologia e historiografia, filosóficas e teológicas, para apresentar que a colonização etnocêntrica foi enraizada no Brasil com tamanha profundidade, que para a instituição de uma sociedade igualitária é necessário haver mudanças dos paradigmas que sustentam a persistente cultura colonizadora. O que a proposta aspira com as inovações normativas, é uma democratização dos saberes para que se construa o respeito ao pluralismo através do reconhecimento de múltiplas formas de conhecimentos em valoração igualitária e intercultural.
Palavras-chave: Religião. Racismo. Ciências. Direito. Descolonização
Sumário: 1. Introdução – 2. Desenvolvimento: 2.1. O sentimento religioso como inerente a condição humana; 2.2. A estigmatização contra as religiões de origem africanas; 2.3. A instrumentalização do direito para ruptura do racismo - 3. Considerações finais. - 4. Referências.
1 . INTRODUÇÃO
Todo conhecimento definido - eu o afirmaria - pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. (RUSSELL, 2012, “n. p.”)
Este estudo é uma pesquisa bibliográfica, cuja análise feita, de forma descritiva, recebe uma leitura do saber científico e seu entrelace com as crenças religiosas, que foram germinadas no contexto colonizador da América, dentro de uma visão etnocêntrica. As reflexões apresentam que a construção dos saberes, ao colocar a Europa no referencial civilizatório, condenou as demais coletividades a desumanização dos genocídios, escravizações e inferiorizações de culturas e crenças.
No primeiro momento, a pesquisa apresenta uma compreensão de que no mundo acadêmico, as crenças religiosas encontraram resistências para se posicionarem como uma forma legítima de saberes em valoração igualitária com as produções científicas. O bloqueio quanto a legitimação religiosa como forma de conhecimento foi mais renitente nos casos em que suas transferência às gerações foram feitas nas oralidades, sem a escrita, como no caso dos ameríndios.
Houve uma equivocada percepção dos setores intelectuais de que a escrita seria a única fonte legítima de extração dos saberes. Desse discurso, o escalonamento do conhecimento científico sob o viés cientificista foi pautado sob o referencial europeu. Ainda, verificou-se na analise de outras vivências sob um enfoque etnocêntrico, que para a hierarquização das culturas houve uma desconsideração das religiosidades como nascentes válidas e legítimas do produção do saber.
A reação anticolonizadora veio com as práticas afro religiosas. Suas dualidades, outrossim, são observadas por pontos de aparente antagonismo e exploradas na construção deste artigo, por meio das leituras interdisciplinares apoiadas em Berger, Carmo, Eller, Gomes, Ferreti, Müller e outros intelectuais. Os diálogos serão costurados extraindo-se reflexões com focos de diversas pontos de vista. A partir daí, o estudo demonstra o processo de evangelização da América como uma tecnologia de dominação e destruição das outras identidades porque na colonização, a Europa se impôs como verdade absoluta.
A revisão bibliográfica desse estudo perscrutou temáticas religiosas exploradas no campo teológico, antropológico, sociológico, filosófico e jurídico. A exploração de questões ligadas a religião foram sondadas sem omitir as influências do cientificismo. Após análise e seleção de materiais, as reflexões se compuseram por interdisciplinaridade para se desviar da visão eurocêntrica que estigmatiza os povos das religiões de matrizes africanas.
À compreensão da atividade religiosa como fonte de formação identitária perpassam dualidades do contexto social, ora usada como ferramenta de dominação e, ao mesmo tempo, instrumento de libertação coletiva. Desse paradoxo é extraído o confronto das ideias antagônicas que, nas leituras, ao se atravessarem de conteúdos interdisciplinares, acabam por se complementarem.
Os autores apresentados são concepções variadas da religiosidade com perspectivas exploradas na formatação pluralista. Importa sublinhar que a metodologia de conferência bibliográfica por pontos antagônicos e dialogados entre si, foi intencional para validar flexibilizações conceituais e reflexão mais ampla, que leve a mais questionamentos. Ao final, a pesquisa apresenta que as normatizações protetivas são políticas de discriminações positivas necessárias para instrumentalização de valorização das pluralidades.
2 . DESENVOLVIMENTO
A teoria da secularização, baseada na ideia de que a modernidade acarreta necessariamente um declínio da religião, serviu durante algum tempo como um paradigma para o estudo da religião. Mas ela não pode mais se sustentar diante da evidência empírica. É necessário um novo paradigma. Eu penso que ele deve basear-se nas muitas implicações do fenômeno do pluralismo. Proponho que um novo paradigma deveria ser capaz de lidar com dois pluralismos – a coexistência de diferentes religiões e a coexistência de discursos religiosos e seculares. Esta coexistência ocorre não somente nas mentes dos indivíduos, mas também no espaço social. ( BERGER[1], 2020, “n. p.”)
Essa leitura cuida que as experiencias religiosas são travessias de produções culturais com as quais se identificam uma das marcas mais distintivas da humanidade, que é o sentimento religioso. A conexão com a espiritualidade é uma das características que mais destaca os seres humanos das demais espécies da natureza. A busca do “eu espiritual”, o ser em conexão com os anseios das divindades e do misticismo, a sede de se desvendar os mistérios, tudo isso é uma singularidade humana.
As práticas religiosas são assimiladas neste contexto, para o fim de retratar processos de dominações e hierarquizações, modos de resistências dos grupos oprimidos e vivências experimentadas na satisfação espiritual. Nessa reflexão, a religião é contextualizada dentro de uma humanidade marcada por uma complexidade multiculturalista, mas que é represada por fatores de demarcação de grupos sociais.
Ponto marcante aqui estudado, explora que o ambiente religioso, por vezes, é usado como uma ferramenta de controle social opressivo contras os grupos vulneráveis. Paradoxalmente, as práticas religiosas foi uma fonte de onde se emanou, no seio da América Latina, a fermentação dos novos saberes que resultou na constituição identitária das comunidades oprimidas, por meio das religiões de matrizes africanas.
2.1. O sentimento religioso como inerente a condição humana
Se dizemos que é a religião que distingue o ser humano do animal, não estamos falando da religião cristã ou judaica; não estamos falando de nenhuma religião em particular, mas estamos nos referindo a uma faculdade ou disposição mental que, independentemente e apesar do senso e da razão, permite ao ser humano apreender o Infinito sob nomes diferentes e sob diversos “disfarces”. Sem essa faculdade, nenhuma religião, nem mesmo a menor adoração a ídolos e símbolos mágicos, seria possível. (MÜLLER, 2020, p. 24)
A humanidade registra desde sua ciente existencialidade, o sentimento de religiosidade vivido como uma prática inerente a natureza humana e traço que nos distingue das demais espécies. No campo acadêmico ou na universalidade de todos os saberes, dos grupos contemporâneos aos mais primitivos em termos de ciência humana de sua existencialidade, as pessoas buscam conexões com crenças e divindades.
Bueno (2012) narra que na primeira chegada portuguesa às margens brasileiras, o desembarque nas terras desconhecidas pela tripulação de Cabral foi um cenário de perplexidade. O europeus se depararam grupos humanos de costumes discrepante das vivenciadas no Velho Continente, como os tupis-guaranis. Povos pardos e nus, habitantes das encostas litorâneas também receberam com espanto uma leva de indivíduos brancos e vestidos. Segundo o autor, os habitantes originários ali encontrados, saíram do centro da América ao litoral movidos numa maciça imigração de fundo religiosos “[...] em busca de uma suposta “Terra Sem Males”. (BUENO, 2012, p. 25)
Diz Bueno (2012) que os europeus questionaram se aquelas gentes teriam alma e como aquelas pessoas vistas como selvagens, nuas e alheias aos costumes do Velho Mundo, viveram, por milênios, às margens de Deus. A ignorância quanto aos povos que habitavam os trópicos, com costumes tão diferentes, trouxe a tona teorias evolucionistas como de Tylor (2014) e Spencer (2015). Estes dois, acreditavam que os seres humanos seguiam uma ordem evolutiva, estágio após estágio, numa escala unilateral de civilidade que acaba por hierarquizar mundos em fragmentos, mas para colocar a Europa como o referencial civilizatório.
As teorias evolucionista eram sem criticidade de que as mesmas inquietações impulsionavam todas as pessoas aos saberes e aos divinos e seus mistérios dentro de um encontro no qual todos os humanos se identificam, ainda que por caminhos diversos. Sentimentos de ânsia pelos mistérios, diga-se que típicos da sensibilidade religiosa, eram perceptíveis em outros lugares além da Europa. Ameríndios e africanos, mesmo que sob diferentes perspectiva e conceitos de divindades, tinham suas compreensões dos sacramentos e interesse pelos enigmas que conectam o céu e a terra.
Essas desconsiderações sobre o desigual, no ponto de vista europeu, gerou uma interpretação etnocêntrica que martirizou os nativos e os africanos com as desumanizações dos seus corpos e almas. A colonização, apoiada nas pseudociências de superioridades das raças, enterrou conhecimentos milenares debaixo de genocídios e escravizações. Ciência e religião foram apropriadas pela vilania eurocentralizada, universalizada e exclusivista dos saberes colonizador.
A interdisciplinaridade que relaciona ciência e religião é palco de debates por se perfilhar das contrariedades que envolvem o diálogo entre duas temáticas, por vezes, contraditórias nos múltiplos aspectos. Russell (2012) comunga que a “[...] coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, acham-se num estado de conflito” (RUSSELL, 2012, “n. p.”). Não sem razão, suscitam-se divergências constantes entre os grandes pensadores das áreas científicas, filósofos e intelectuais dos mais diversos setores acadêmicos.
Marx ([1843-1844]) definiu o sentimento religioso como o processo de alienação das massas. A religião seria a forma miserável e ignorante de expressão das populações segregadas que reclamaria uma intervenção mediante supressão dos sentimentos de religiosidades para se libertarem das amarras da ignorância. Nesta definição, as crenças foram conceituadas como: “[...] o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo.” (MARX, [1843-1844], documento online.)
Para Nietzsche (2017), “[...] - O ateísmo absoluto, leal (única atmosfera que respiramos gostosamente) é a última fase da evolução ascética, uma das suas formas finais, uma das suas consequências íntimas; [...]” (NIETZSCHE, 2017, “n. p.”). A ideia de religião e pecado sofreria influência de interesses de dominação, usada para escravizar espíritos inferiores. A atividade religiosa, nesta concepção do ateísta, é um processo de manipulação dos mais fortes sobre os mais fracos.
Já McGranth (2020) vislumbra que a despeito dos confrontos, haveria pontos de equilíbrio na junção dos discursos uma vez que, isolados os temas, nenhum dos seus conteúdos, ciência ou religião, conseguiriam sozinhos, responder. na completude, todas as complexidades das perguntas da humanidade. Apesar dos pontos conflitivos, diz ele que a “[...] ciência e religião são capazes de interagir em um diálogo significativo sobre algumas das grandes questões da vida [...]” (MCGRANTH, 2020, p. 21).
Nas percepções diversas e antagônicas desses autores sobre o mesmo tema, nota-se que as aparentes oposições são as duas faces de uma mesma moeda. Tantas e contraditórias interpretações dos variados campos da intelectualidade, filosofia, teologia e antropologia, repassam análises empíricas das colonizações da América, onde religião se revelou por denominador, ser um paradoxal cheio de contrariedades. Destaca-se que as práticas religiosas podem ser ferramenta de opressão, ao mesmo tempo que é um instrumento da resistência das minorias enquanto manifestação cultural capaz de definir uma identidade coletiva.
Em termos antropológicos, a religião é a ciência da diversidade dos seres humanos porque a atividade religiosa é uma extensão das relações sociais para adiante dos confins da matéria. “Em outras palavras, a religião é o discurso, a linguagem e a prática, ou os meios pelos quais a sociedade humana e a cultura se expandem para incluir os não humanos.” (ELLER, 2018, “n. p.”). Pode-se dizer que esta não-humanidade, a que o autor se refere, é um arcabouço de valores e modos de ser coletivos revestidos em suas mais amplas expressões para além do conhecimento cientificista imposto como verdade absoluta.
Para Dulci (2018), o diálogo entre ciência e fé vai ao encontro a uma maior legitimidade dos conhecimentos. O cientificismo descaracteriza a ciência quando se limita a esse saber e apenas ele, por meio da aplicação de métodos de pesquisa para excluir outros saberes. Diz: “[...] a chamada ‘atitude científica’ é apenas uma parte de uma elaborada caracterização da ciência, em que a aplicação de métodos é necessária, mas não é suficiente para definir a ciência.” (DULCI, 2018, documento online).
Não é arriscado definir que o grave problema da ciência como a única fonte do saber é de se desaguar no cientificismo etnocêntrico. Sua valoração, nesse caso, valida-se de um arcabouço de fatores pautados numa visão de cultura universal, uníssona e só legitimada se for por meio de pesquisas e métodos científicos como única extração de conhecimento. Essa é uma ótica cientificista que foi a sustentabilidade da colonização, de cuja visão de mundo não se vislumbrou concepções de religiosidades, desenvolvimentos e humanidades fora da idealização eurocentralizada.
A ciência, dentro das abstrações conceituais colonizadoras e etnocêntricas, foi a negação dos outros saberes pela idéia errônea de que a cultura europeia fosse mais desenvolvida e elevada em comparação aos outros povos, julgados como bárbaros primitivos. A civilização foi uma atribuição dada a Europa para a incongruência de se avalizar genocídios, escravizações e martírios dos outros povos que, nessa incoerência, eram os selvagens em detrimento da carnificina que foi a colonização brutal e impiedosa. A obra Casa Grande & Senzala de Freyre (2019) revela que com a justificativa de missão religiosa, o que a Europa fez, foi emporcalhar a América na mais indigesta das luxúrias sexuais, cujo ápice foi a naturalização dos estupros das escravizadas.
O campo de visão inclusivo dos saberes requer um olhar multiculturalista e interdisciplinar, despido de preconceitos e aberto a aceitação de outros olhares sobre o mesmo lugar. Trata-se do interculturalismo que importa nesse reconhecimento dos vários grupos sociais e que rechaça o cientificismo por ser um fator da colonização. Qualquer conhecimento que se imponha como única narrativa válida é nocivo na construção do bem comum. Por isto o saber científico não exclui, nem deve excluir, outras culturas.
O saber científico precisa ser assimilado, nessa assertiva, como mais um dos conhecimentos construídos e valorado em paridade com outros saberes. Dialogados com outras visões de mundo e representações identitárias ao lado da cultura popular e religiosa, levada na concepção de que as humanidades são formações complexas e heterogêneas. Pretende-se extrair dos mais diversos prismas, que as complexidades humanas em suas completudes são por natureza, plurais, diversas e pluriculturais que não cabe em um modelo pré-estabelecido, mas que o processo intercultural é enriquecedor.
Por isso, as Escrituras Bíblicas (2009), o Alcorão(2012), as Mitologias Gregas(2015), Nórdicas, Africanas, Indígenas, Hinduísmo, Budismo, e tantas identificações religiosas são manadeiros do saber porque, uma a uma, representam expressões culturais de mundos, ideias e valores. Por isso, Daniels (2015) reporta que as religiões e suas crenças são chaves de questionamentos dos seres civilizados. A assertiva da autora é repousada na constatação de que em todos os tempos, todos os registros estudados trazem a certificação de que o sentimento de religiosidade é da essência humana. Acresce-se que ainda que se lance luzes a alguma exceção de povos desprovidos de crenças, a ressalva seria um desvio a confirmar a regra.
Daniels (2015) reporta que os “[...] rituais dão a cada sociedade um conjunto de tradições que ajuda a forjar uma identidade coletiva e o sentimento de pertencer àquela terra.” (DANIELS, 2015, “n. p.”). O motivo é que as teologias oferecem um senso de unidade e coesão social que se identificam por meio das cerimônias comunitárias cujas mensagens são carregadas por imaginações atrativas à comunicação que se pretende.
Diz o autor que, ao contrário de se valorar como sendo menos rica, as narrativas orais repassadas por gerações são fontes ainda mais validas de conhecimento porque repassam o acúmulo de vivências. Justifica-se que a sobrevivência dessas histórias nesse processo de corrida contra as adversidades da colonização é que conferem mais fascínio às narrativas sistematizadas com uma maior variedade nas culturas. Além do mais, a valoração dos saberes transmitidos na oralidade geracional rompeu as barreiras do preconceito cientificista ajudadas pelas teses da antropologia cultural de Franz Boas (2004; 2017), para quem as teorias evolucionistas não foram capazes de explicar as tantas formas de civilizações com suas variedades multiculturais.
2.2. A estigmatização contra as religiões de origem africanas
Penso sobre essa questão do racismo religioso e da intolerância por ter a minha fé particular. Saio para ir aos cultos, com a Bíblia debaixo do braço, com a sensação de tranquilidade e de paz, mas às vezes, me questiono quantos, no Brasil, não têm essa mesma possibilidade de sensação. Me pergunto sobre aqueles que quando saem de casa para ir aos seus cultos, já saem sabendo que podem atrair olhares indesejados, de reprovação, de estranhamento e desprezo, como uma vez presenciei os olhares de dois homens ao verem uma mãe de santo – devidamente caracterizada – atravessar a rua. Olharam como se estivessem vendo um ser que não pertencesse à cidade, à essa realidade. E pode ser que para eles essa mãe de santo realmente não pertença a tudo isso. Talvez eles achem estranho uma pessoa se vestir daquele jeito colorido, estampado, com fios de conta, pulseira, turbante e brincos (RODRIGUES, 2021, p. 118).
As ciências pseudocientíficas de cunho racial que hierarquizou o conhecimento científico e os demais saberes deram origem a teorias criminológicas encabeçadas por Rodrigues (2010), Lombroso e Ferrero (2017). Eram teses consagradoras da estigmatização dos corpos negros como o marginal por natureza. Essas doutrinas trouxeram consigo, o efeito segregacionista sobre gentes negras em todos os setores, desde a cultura, economia e crenças. No caso das religiões de origem africana, o preconceito, a discriminação e a intolerância revelam que as estigmatizações contra as tradições culturais oriundas da África foram tão agudas, que estigmatizou até mesmo suas manifestações religiosas.
Macedo (2019) já inicia sua narrativa atribuindo ser espíritos malignos as práticas religiosas dos caboclos, orixás e guias espirituais de matrizes africanas: “No Brasil, em seitas como Vodu, Quimbanda, Candomblé ou Umbanda, os demônios são adorados, agradados ou servidos como verdadeiros deuses” (MACEDO, 2019, p. 12). Esse tipo de estigma é a marcação negativa oriunda do passado escravagista que é, antes de mais nada, um projeto de poder a que Nogueira (2020) denuncia ser opressão manipuladora para a reserva dos espaços de privilégio dentro do conceito da branquitude:
O preconceito, a discriminação, a intolerância e, no caso das tradições culturais e religiosas de origem africana, o racismo se caracterizam pelas formas perversas de julgamentos que estigmatizam um grupo e exaltam outro, valorizam e conferem prestígio e hegemonia a um determinado “eu” em detrimento de “outrem”, sustentados pela ignorância, pelo moralismo, pelo conservadorismo e, atualmente, pelo poder político – os quais culminam em ações prejudiciais e até certo ponto criminosas contra um grupo de pessoas com uma crença considerada não hegemônica. No cerne da noção de intolerância religiosa, está a necessidade de estigmatizar para fazer oposição entre o que é normal, regular, padrão, e o que é anormal, irregular, não padrão. Estigmatizar é um exercício de poder sobre o outro. Estigmatiza-se para excluir, segregar, apagar, silenciar e apartar do grupo considerado normal e de prestígio. (NOGUEIRA, 2020, “n. p.”)
O autor denuncia que a laicidade religiosa no Brasil é uma farsa originada do colonialismo de cuja doutrinação o catolicismo foi conivente e o evangelismo legitimou. A catequese foi ferramenta de dominação utilizada para apagamento de qualquer cultura ou crença que não fosse aquela imposta por Portugal.
Conforme narrativa de Gomes (2021), as crenças religiosas dos povos originários da África nasceram no Brasil, por meio de um processo de reconstrução identitária. Os sobreviventes do cativeiro, condenados ao desaparecimento como seres coletivos, reinventaram-se por meio da costura de vários saberes e reuniões das identidades fragmentadas e reconstruídas numa colcha de retalhos. Esse mosaicismo concebeu uma nova cultura que expressou a união daquilo que foi dividido e destruído na travessia dos oceanos. Diz ele que: “uma nova África foi se construindo no Brasil, diferente de todas as outras que cruzaram o Atlântico a bordo dos navios negreiros.” (GOMES, 2021, p. 101)
O historiador registra que as crenças e cultos nascidos no Brasil sintetizaram as somas de todos os fragmentos dos povos sequestrados que, se antes eram desunidos, uniram-se pela dor e pelo sofrimento, restituindo suas identidades em conjugações e somas, como um meio de sobrevivência renascida das cinzas. Dessas junções dos mais diversos saberes e das religiosidades subtraídas para o além mar, foram o jeito achado, e possível, de os africanos se legitimarem como existências humanas.
Desse modo, as religiões afro-brasileiras aqui construídas representam as resistências contra as desumanizações do longo cativeiro escravagista e a construção de um novo povo, resistente e formado de reconstruções contra a imolação negra. Essa nova cultura, por sua própria história, foi feita de acolhimentos das muitas dores e valores de gentes que, é provável, jamais se encontrariam acaso não houvesse da sangria do Continente Africano. Essa dinâmica acabou por construir uma nova forma de expressão produzida por ritmos de interculturalidades praticadas mediante um nível de aceitação e acolhimento dos saberes e das dores do outro, sem a peja dos julgamentos arbitrários.
Por isso, existe um choque em relação as crenças afros porque elas são, pela própria origem, mais abertas a aceitação das pessoas com suas complexidades e diversidades, dotadas de qualidades e defeitos e sem a subjugação moral cristã conservadora porque construída sob a forma de aceitação e acolho. Importante lembrar que o sequestro africano não diz respeito a um único país, mas pessoas de lugares, países e culturas distantes e num contexto em que as vias de comunicações eram ríspidas pela inexistência das inovações tecnológicas desta atualidade.
Outra questão é que o cristianismo praticado pela colonização adotou métodos de dominação centralizados em freios sociais tirânicos da contrarreforma que respinga na atualidade. Com essa interpretação, Carmo (2017) revela que o texto-base das religiões cristãs e judaicas contém “[...] um conjunto de normas de convivência adaptadas a um povo de cultura agrária, que viveu há mais de 3.000 anos [...]” (CARMO, 2017, p.12), mas que foi universalizado e assimilado como atemporal. A realidade é que essa ação acabou por produzir incontáveis ramificações na ideologia cristã com seletividades de comportamentos idealizados como regras de fé e práticas fragmentadas conforme as utilidades de cada grupo, mas em regra, sob a vertente patriarcalista dominante.
Daí, que a ausência de proibições severas do candomblé e da umbanda quantos a costumes, livres de culpas dos pecados fundados nos eixos de valores fundamentalistas já superados, petrificou o processo de satanização que já havia construído na colonização. Essa demonização foi um mecanismo da dominação escravagista, mas estigmatiza até hoje os devotos da fé afrodescendente porque a manutenção desse estigma acaba por demarcar saberes legítimos e ilegítimos a empurrar as comunidades negras para as encostas periféricas.
Carmo (2017) raciocina que a liberalidade dos costumes nas crenças afro-brasileiras é proveniente da aceitação do outro e de todos como seres complexos, incompletos e falíveis por natureza, envoltos em suas perenes construções, desconstruções e reconstruções. Trata-se da teologia do acolhimento praticado nos terreiros desde sua instituição e que é, conforme a autora, tão caros nos movimentos católicos e evangélicos da atualidade. Não é demais relembrar que por debaixo rígido moralismo que se atribuiu ao cristianismo na contrarreforma, conforme Bueno (2012), o que se viu na narrativa de Freyre (2019), foram os corpos de meninas negras entregues virgens e submetidos à depravação moral dos senhores de engenho.
Por isso, evangélica, Oliveira (2019) sinaliza que a satanização de Exu e demais entidades da mitologia afro-brasileira é uma prática racista porque aplicável apenas às mitologias negras. A prova disso é que não se praticam a demonização dos mitos gregos e outras crenças estrangeiras. A maior evidência é que nas festas infantis, roupas e brinquedos cujos motivos sejam fantasias dos deuses nórdicos, não mobiliza incômodos dentro dos grupos evangélicos ou outras ramificações cristãs. Porém, se os motivos do evento tiver por representações alguma figura mitológica das religiões africanas, os rumores exacerbariam e o escândalo viria inevitável como estilhaço da intolerância religiosa:
[...] não há crítica se um pequeno evangélico escolhe o deus nórdico Thor, agora herói da Marvel, como tema de festa. Xangô, orixá iorubá, lembra um bocado o colega setentrional: os dois são fortes e controlam trovões. Se a festinha fosse para o orixá, “imagina o auê”, [...] (OLIVEIRA, 2019, documento online).
Os processos de satanizações das crenças são formas de ideologias e estas atitudes ofensivas as rituais e práticas religiosos fora da homogeneidade cristã não são naturais. Nogueira (2020) diz que ninguém é naturalmente preconceituoso e o preconceito é tecnologia de manutenção do poder feita com o uso da segregação e hierarquização. Trata-se de crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana. Com efeito, a orientação que se disse cristã na catequização da América, foi uma marcadora de prestígio e de poder sob gentes oprimidas. Ao mesmo tempo no Brasil, as religiões afros simbolizaram a resistência contra essa opressão e reconstrução identitária.
Embora se diga que o sincretismo religioso seja um resquício da colonização sobre as raças oprimidas, ao ver de Ferretti (2019, p. 48), tratou-se de um processo de aculturação que não se limitou ao domínio religioso. Segundo ele, a inevitabilidade do modo como as misturas das raças deslocadas e as daqui originárias foram constituídas refletiu em todos os setores da vida privada e social. A prática das suas crenças de forma sincrética foi o meio possível de adaptação dos negros e dos primeiros povos à sociedade colonial brasileira que se impôs católica e segregou as crenças dos colonizados, acusadas de satânicas.
Referida assertiva acaba muito mais por confirmar que o culto católico sincrético teve suas raízes na opressão que estigmatizou e subjugou a África, ainda que tenha servido de fresta para o ingresso de novas identidades dali construídas. Apesar de sincrética na relação com o catolicismo, a devoção as entidades religiosas afro-brasileiras é cercada de tabus e reprimidas com a peja de serem demoníacas mesmo de dentro do secretismo religioso católico como muito bem expressou Dias Gomes na obra, “O pagador de promessas” (2010). O que ocorre nos mais das vezes é uma imposição de crença que nada mais representa, como diz Mendonça (2021), do que a intolerância religiosa.
Esse processo de satanização contraria até mesmo as escrituras na qual se baseia o cristianismo como fonte de prática e de fé. Basta observar no relato bíblico quando Paulo, o mais atuante de todos os evangelistas, ao divulgar o cristianismo aos povos gregos, fez uma conexão identitária de uma devoção grega, o “DEUS DESCONHECIDO" correlacionada ao Deus Cristão:
E, estando Paulo no meio do Areópago, disse: Homens atenienses, em tudo vos supersticiosos; Porque, passando eu e vendo os vossos santuários, achei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio. (BÍBLIA, 2009, p. 3.030)
Identifica-se nesta passagem das escrituras bíblicas que independente do fato de a linha cristã evangélica assimilar seus processos de evangelizações como um mandamento do seu personagem central – Jesus, a demonização das crenças estrangeiras não é fonte bíblica. Ora, se satanizar a crença alheia fosse naturalizado pelo cristianismo, Paulo, o apóstolo maior dentre os profetas cristãos, não iria atribuir ao Deus Desconhecido de Atenas, a personificação do Deus Único a que os cristões atribuem santidade e reverência.
Destarte, a satanização dos Orixás e deuses de matrizes africanas não encontram suporte nas Escrituras Sagradas da crença Cristã. Tratou-se de uma tecnologia de inferiorização dos negros para justificar a inferiorização dos corpos. Ainda persiste nos dias atuais como resquício de um racismo que foi conservado para a manutenção desses espaços de privilégios de uma minoria de predominância branca.
Para Mendonça (2021, p. 94), a intolerância religiosa é um processo de negação da dignidade de determinados grupos sociais e afeta o reconhecimento das cidadanias dessas categorias. O fenômeno racista, observa-se que embora possa atingir outras crenças, no Brasil foi construídas dentro de um projeto de racismo que fez com que se concentrasse nas práticas religiosas de matrizes africanas. As religiões afro-brasileiras, outrossim, simbolizam a resistência dos povos escravizados e da sua descendência, contra as desumanizações escravagista utilizadas para supressão de corpos e de almas.
A satanização das crenças de origem africana é nos dias atuais, o testemunho mais palpável do racismo que estruturou os poderes dentro da sociedade brasileira. Essa persistente ideologia do poder é feita sob a demarcação dos espaços de privilégios ambientado por uma branquitude predominante e naturalização dos demais corpos nas encostas periféricas.
2.3. A instrumentalização do direito para ruptura do racismo.
Ninguém é naturalmente preconceituoso. Toda forma de preconceito emerge de uma postura social, histórica e cultural que pretende, a um só tempo, segregar para dominar e, proporcionalmente, determinar e manter um padrão, marcadores de prestígio e de poder. (Nogueira, 2020, “n. p.”)
Nogueira (2020) denuncia que, na atualidade, existe um marcador religioso universal identificado como símbolo de amor, idoneidade, honestidade e humanidade e todos os outros modelos religiosos são excluídos desse universo pelo inconsciente coletivo manipulado por uma interpretação etnocêntrica da bíblia. Pierre Bourdie
Diante de uma sociedade estruturada na hierarquização racial, Santos e Gino (2021) definem que além da intolerância religiosa que se afirma como perseguição, a discriminação é mais sutil na demarcação de espaços de privilégios, mas ambos os casos são notabilizados pelo tratamento dado a determinadas religiões de forma desigual. As autoras exemplificam que crucifixos e bíblias são mais aceitas em repartições públicas. Com a inovação normativa do Estatuto da Igualdade Racial, consagrou-se a era do “[...] direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana” (BRASIL, 2010, documento online).
Szklarowsky (1997) cita um pensamento comum no Brasil de que a questão social das populações negras não podem ser enfrentadas com a legislação penal mas medidas outras para que se solucione as segregações raciais. Mas embora se reconheça que as inovações normativas estejam longe de remediar as decadências morais do racismo, não se pode desconsiderar que as leis protetivas são os meios de instrumentalizações das defesas das minorias.
O autor menciona que a Lei Afonso Arinos foi o primeiro diploma infraconstitucional com destino a criminalizar práticas racistas, “[...] conquanto de duvidosa aplicação e com efeitos meramente simbólicos, por tratar a matéria como contravenção [...]” (SZKLAROWSKY, 1997, p. 23).
Por força da Constituição Federal (BRASIL, 1988) vieram outras inovações normativas importantes e anteriores ao Estatuto da Igualdade Racial, destaca-se o pioneirismo da Lei n.º 7.716 de 5 de janeiro de 1989 (BRASIL, 1989), conhecida com Lei Caó, assim intitulada em homenagem ao seu propositor, o parlamentar Carlos Alberto de Oliveira. Sobredita norma foi orientada pelos dispositivos constitucionais que tornaram o crime de racismo imprescritível e inafiançável para criminalizar várias condutas racistas tipificadas na criminalização delitiva.
No que se refere a conduta delitiva relacionada a discriminação religiosa, o artigo 208 do Código Penal (BRASIL, 1940) é específico para tipificar penalidade por prática contra o sentimento religioso. A conduta consiste em escarnecer publicamente, a crença ou função religiosa ou impedir e perturbar cultos ou, ainda, vilipendiar ato ou objeto de culto. De forma mais ampla, o artigo 20 e incisos da Lei n.º 7.716 (BRASIL, 1989), especifica:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional
Pena: reclusão de um a três anos e multa
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. ( BRASIL, 1989, documento online)
Direito (2021) faz uma distinção entre fundamentalismo religioso e o crime de intolerância descrito nos tipos penais da Lei n.º 7.716, esclarecendo que não é crime ser fundamentalista que, a princípio, seria professar aquilo que se julga verdadeiro, puro e justo em contraposição ao que se considera como perverso ou injusto. Diz o autor que no Brasil, as religiões neopentecostais e católicos conservadores incorporaram as ideais fundamentalistas como verdade absoluta para repudiar crenças de matrizes africanas, atribuindo para seus credos o monopólio da lisura.
Segundo Direito (2021, p. 260.), em si tratando de matéria penal, questões relacionadas à intolerância religiosa tem que preceder de texto normativo por força do Princípio da Anterioridade da Lei Penal. Com isso, o autor sustenta que o fundamentalismo não é crime e que aquele que considera-se detentor da verdade pode ofender alguém com uma afirmação que seja depreciativa à religião do outro. Por outro lado, arremata ele, esse tipo de discurso ‘[...] revela uma incompatibilidade do seu detentor em viver em uma sociedade plural, o que acaba gerando o cometimento de um crime de ódio (DIREITO, 2021, p. 264).
À vista disso, o autor conclui que apesar de o fundamentalismo não representar, por si só, uma ofensa ao ordenamento jurídico, as expressões fundamentalistas são tendentes a carregar injúrias, agressões e menosprezo as demais religiões. Nesse momento surge a conduta tipificada, umbilical ao crime de intolerância religiosa. Para Perondi e Neto (2017) “[...] Tolerância não significa ter de seguir as crenças ou opiniões dos outros; e sim que o outro tem direito de ter suas próprias opiniões ou crenças.” (PERONDI; NETO, 2017, p. 5). A preocupação dos autores é que as barreiras da intolerância fragiliza a fraternidade e as relações humanas.
A inquietação de Perondi e Neto (2017, p. 7) é que, por definição dele, a religião significa religar, e tem por função, restaurar laços rompidos com o Ente Divino, os irmandade terrena e a toda a criação. Seus ritos desenvolvem códigos éticos voltados a harmonizar ambientes de conflitos. Desse modo, os atritos efervescidos em razões de crenças não anormalidades e intolerâncias antinaturais das religiosidades.
Quando se refere ao cristianismo a discursão dessa intolerância galga mais contradição porque o personagem central da Bíblia Sagrada chamou seus seguidores a serem como Ele foi aqui na terra. Carnelutti (2015) trás com essa reflexão que a fórmula cristã para a paz, a liberdade e a plenitude contra o caos germina do amor ao próximo que decorre do amor ao Divino e é a perfeição do homem – meta do percurso humano nesta vida terrena em quase todas as crenças. “Amar o outro quer dizer identificar-se com ele, colocar o outro no mesmo nível que a si mesmo” (CARNELUTTI, 2015, p. “n. p.”) O autor chama de moral, esse propósito de paz que, segundo ele, é um lento, longo e penoso processo de toda uma vida.
O problema, no entender de Canelluti (2015), é que as necessidades humanas de eliminar a guerra e trazer a paz, é imediata para a garantia da sobrevivência da sociedade. De modo que se o amor ainda não germina entre a humanidade, vem a inevitabilidade de se buscar um substituto para pôr ordem ao caos, mesmo que sem a espontaneidade das pessoas. Para o autor, o substituto dessa moral, que deveria florescer em gestos de religiosidades pelo acolhimento, é o direito não apenas como um preceito mas, sobretudo, revestido de força e sanção. Diz ele ser a lei imprescindível “[...] porque o homem teme mais o próprio homem do que teme a Deus.” (CARNELUTTI, 2015, p. “n. p.”)
Mas a ruptura que se propõem para a efetiva construção de uma sociedade mais justa, com mais tolerância, repassa pela quebra dos paradigmas que sustentam as crenças dominantes dentro do etnocentrismo colonizador, isso se faz por meio da descolonização dos saberes. A instrumentalização das normas em prol de uma mudança das mentalidades para um viés antidiscriminatório é importante ferramenta neste turno e, no Brasil, conforme Negreiros (2017), o Movimento Negro teve importante papel nesses avanços legislativos. Como parte integrante dessa agenda política, a Lei n.º 10.639, de 09 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2013) incluiu no currículo da rede de ensino fundamental, a obrigatoriedade da temática história e cultura brasileira.
A tolerância é rumo certeiro à redenção dos povos. A vida de Jesus é o mapa de como se deve praticar o amor para a dissipação das guerras e encontro da paz. Paradoxalmente, a divulgação do cristianismo, discursada como uma das razões da colonização, resultou no maior genocídio da história moderna e não se coaduna com o Redentor que rompeu as barreiras das discriminações. O que se viu, na realidade, foi a mercantilização de corpos e de almas para atender interesses econômicos e do poder terreno.
Rodrigues (2121) menciona passagens bíblicas de Cristo buscando diálogo com pessoas consideradas intocáveis pelos costumes judaicos, como na abordagem da mulher samaritana e de Zaqueu, o pagador de impostos (BÍBLIA, 2009). A reflexão trazida pelo autor, sendo ele evangélico, é que a cegueira fundamentalista ataca religiões e pessoas – “[...] a mensagem e a prática de Cristo é o amor e não o preconceito e a violência” (RODRIGUES, 2021, p. 121). O fundamentalismo insano vetou o diálogo e crucificou o Messias.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As práticas religiosas são expressões identitárias e culturais de povos e grupos sociais e são manadeiros de saberes de cuja fonte são extraídas construções identitárias coletivas. Com a demonização das religiosidades de origem africanas, a colonização da América fez da catequização, uma ferramenta de opressão e desumanização dos escravizados. O evangelismo da América foi uma confusa visão etnocêntrica dos saberes eurocentralizados como a única forma de civilização para a apropriação de corpos e almas.
Não obstante a religiosidade de um povo possa ser usada como tecnologia de controle social, no caso do Brasil, as manifestações religiosas de matrizes africanas foram processos de construção da identidade negra. As descendências escravizadas apegaram-se ao que lhes restavam de humanização para construírem uma nova cultura. Assim, suas crenças foram formas legítimas de resistências à dominação escravagista.
Nos dias atuais, as crenças de matrizes africanas são raízes dessas resistências e da afirmação identitária de gentes guerreiras e resistentes. Desse modo, os estigmas contra temáticas religiosas, em especial, preconceitos contra conteúdos das religiões de origem africana, são processos de dominação e colonização racista persistente. Salta aos olhos que o papel da pesquisa acadêmica é levar ao plano científico este questionamento, as causas e as consequências do etnocentrismo colonizador.
As satanizações das religiões de matrizes africanas não foram uma dinâmica comportamental adotada pelos primeiros evangelistas nos textos bíblicos que saíram a semear suas crenças. Logo, a afirmação de que a demonização dos Orixás é uma atitude pagã é assertiva, uma vez que as suas origens são muito mais econômicas para justificativa das escravizações de demarcações dos privilégios de uma castas, do que religiosa. Porém, a maior nocividade causada pela satanização das religiosidades afro é que uma intenção consiste na inferiorização de uma cultura e, por isso, as inovações normativas originadas da Constituição Cidadã são ferramentas de instrumentalização contra políticas de segregação.
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PUBLICAÇÃO ORIGINAL (O artigo foi alterado desde a primeira publicação):
SILVA, E. W. O. da. A satanização dos Orixás no processo de colonização. Unitas, Revista Eletrônica de Teologia e Ciências das Religiões, v. 9, p. 62-76, 2021. Disponível em http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/unitas/article/view/2587.
Mestra em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local. Advogada com Formação Pedagógica em História, especialista em Diversidade Ético-Racial e Antropologia, Direito Público, Direito Tributário, Direito Civil e Tutoria de Educação a Distância. Secretária-Adjunta da Caixa de Assistência dos Advogados da OAB-ES (Diretoria Triênio 2022-2024), Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas do Advogado da OAB-ES . E-mail: [email protected] e ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3187-9882
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Eliaidina Wagna Oliveira da. A satanização dos orixás na colonização e a instrumentalização do direito no processo descolonizador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2022, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58029/a-satanizao-dos-orixs-na-colonizao-e-a-instrumentalizao-do-direito-no-processo-descolonizador. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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