RESUMO: O Novo Código de Processo Civil, ao tratar da tutela provisória, inovou sobremaneira na disciplina do instituto, com significativas alterações e melhor detalhamento sobre o tema. Este estudo objetiva a análise da concessão da tutela de urgência de natureza antecipada de ofício pelo juiz à luz do processo civil moderno, com especial destaque à jurisprudência de nossos tribunais.
Palavras-chave: Tutela. Provisória. Urgência. Concessão.
ABSTRACT: The New Code of Civil Procedure, when dealing with provisional tutelage, greatly innovated in the discipline of the institute, with significant changes and better exposure of the topic. This study aims to analyze the granting of emergency relief of an anticipated nature of office by the judge in the light of modern civil proceedings, with special emphasis on the jurisprudence of our courts.
Keywords: Guardianship. Provisional. Urgency. Concession.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Tutela provisória de urgência: aspectos gerais e requisitos. 3. A finalidade do processo civil contemporâneo e o papel do magistrado. 4. Possibilidade de concessão da tutela de urgência de natureza antecipada de ofício. 5. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil disciplina a tutela provisória nos artigos 294 a 311. A concessão da tutela provisória, seja de urgência ou evidência, “se dá mediante cognição sumária, quer dizer, em juízo de cognição menos aprofundado verticalmente”[1]. Não é necessário ao juiz se debruçar sobre todos os fatos e provas, uma vez que a decisão não é proferida com base em um juízo de certeza.
No presente trabalho abordar-se-á a possibilidade de concessão da tutela de urgência de natureza antecipada de ofício pelo magistrado, com base em uma visão moderna do processo civil brasileiro e no entendimento jurisprudencial sobre o tema.
2. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA: ASPECTOS GERAIS E REQUISITOS
A Lei 13.105/2015, de 16/03/2015, que instituiu o Novo Código de Processo Civil, entrou em vigor no dia 18/03/2016. Do artigo 294 a 299 o Código previu as disposições gerais sobre a tutela provisória. As disposições gerais sobre a tutela de urgência estão previstas nos artigos 300, 301 e 302. Os artigos 303 e 304 tratam do procedimento da tutela antecipada requerida em caráter antecedente. Do artigo 305 ao 310 temos o procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente. Por fim, o artigo 311 disciplina a tutela de evidência.
O CPC, em seus artigos 300 a 302, traz as seguintes disposições gerais obre a tutela de urgência:
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
§ 1º - Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.
§ 2º - A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia.
§ 3º - A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.
Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.
Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:
I - a sentença lhe for desfavorável;
II - obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;
III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;
IV - o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.
Primeiramente, é preciso considerar que, ao se falar em antecipação de tutela, não se fala sobre a antecipação do provimento jurisdicional que definirá a relação jurídica. Decerto, “o instrumento se presta a concessão antecipada do bem da vida, do pedido mediato e não do pedido imediato (a tutela em si), que será apreciado na sentença[2]”.
Diferentemente do CPC/73, que distinguia os requisitos para concessão da tutela antecipada ou cautelar (sendo os requisitos da tutela antecipada o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação e para a tutela cautelar o periculum in mora), o caput do artigo 300 inicia a matéria descrevendo os requisitos para concessão da tutela de urgência, seja a cautelar ou antecipada, exigindo, de início, a presença de elementos que demonstrem a probabilidade do direito.
Além disso, existente o primeiro requisito deve-se haver o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, elementos estes que relevam “a impossibilidade de espera da concessão da tutela definitiva sob pena de grave prejuízo ao direito a ser tutelado e de tornar-se o resultado final inútil em razão do tempo[3]”.
Outro requisito previsto no Novo Código, para concessão da tutela de urgência, é a previsão de que o juiz poderá, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la (artigo 300, § 1º). A posição topográfica do dispositivo presume sua aplicação às tutelas cautelar e antecipada.
É evidente que o termo “poderá” demonstra a faculdade do juiz. Assim, poderá exigir caução quando houver dúvida no que tange à concessão da tutela e a possibilidade de irreversibilidade do provimento. Deixará de exigi-la, entretanto, se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.
A possibilidade de dispensa de caução para a concessão de tutela provisória de urgência, prevista no art. 300, §1º, deve ser avaliada à luz das hipóteses do art. 521 do CPC[4], de acordo com o Enunciado 498 do Fórum Permanente de Processualistas Civis.
O juiz poderá concedê-la liminarmente ou mediante audiência de justificação prévia (§ 2º, do artigo 300, do CPC), ficando a escolha a cargo do magistrado. Daniel Amorim, sobre isso, leciona:
Na hipótese de o juiz não estar plenamente convencido a respeito do pedido antecedente de tutela de urgência e acreditar que possa obter esclarecimento para a prolação de uma decisão com maior segurança por meio da oitiva de testemunhas do requerente da tutela, poderá, antes de analisar o pedido, determinar a realização de uma audiência prévia de justificação[5].
Novamente a legislação tratou sobre a irreversibilidade ao expor que a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão (§3º, do art. 300). É importante registrar que “a irreversibilidade se refere aos efeitos da tutela antecipada, não ao provimento final em si, pois o objeto de antecipação não é o próprio provimento jurisdicional, mas os efeitos desse provimento” (STJ, RESP 737047, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 13/03/2006[6]).
Cabe ao magistrado, nesse ponto, a difícil tarefa de ponderar se o benefício advindo ao autor não é inferior ao prejuízo imposto ao réu. Os efeitos irreversíveis de uma decisão, em vista disso, devem ser observados pelo magistrado tanto ao se conceder quanto ao se negar uma tutela provisória.
O requisito da irreversibilidade é tratado na doutrina como um requisito negativo, ou seja, para que a tutela antecipada seja concedida este deve estar ausente. Trata-se de um critério de proporcionalidade, que não se descuida de uma análise sob a ótica das garantias constitucionais. Assim Jônatas Luiz Moreira de Paula assevera:
[...] o "requisito negativo" contido no § 3º do artigo 300 do CPC, deve ser interpretado à luz da metodologia do Princípio da Proporcionalidade, sob pena de negar eficácia ao instituto da antecipação da tutela e dos fins sociais que ele busca[7]”.
Salienta-se que, embora seus efeitos sejam irreversíveis, a tutela provisória poderá ser concedida, caso a lesão ao direito também seja irreversível e tendo em vista o direito constitucional de acesso à justiça. É o que dizem os Enunciados n. 419, do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), e n. 25, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM):
Enunciado 419, do FPPC. (art. 300, § 3º) Não é absoluta a regra que proíbe tutela provisória com efeitos irreversíveis. (Grupo: Tutela de urgência e tutela de evidência)]
Enunciado 25 da ENFAM. A vedação da concessão de tutela de urgência cujos efeitos possam ser irreversíveis (art. 300, § 3º, do CPC/2015) pode ser afastada no caso concreto com base na garantia do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CRFB).
No mesmo diapasão é o Enunciado n. 40 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal: “A irreversibilidade dos efeitos da tutela de urgência não impede sua concessão, em se tratando de direito provável, cuja lesão seja irreversível”.
Em continuidade, o CPC, em seu artigo 301, elenca as formas em que a tutela de urgência, de natureza cautelar, poderá ser efetivada, quais sejam: mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito. O Novo Código não mais prevê cautelares típicas, mas elenca em seu artigo 301 formas de efetivação.
Vale dizer, ainda, que uma leitura do artigo 301 permite-nos concluir que o poder geral de cautela está mantido no CPC atual, conforme destacado no Enunciado n. 31 do FPPC.
Finaliza o Código, em que pese às disposições gerais, expondo sobre a responsabilidade objetiva do beneficiário da tutela de urgência (antecipada e cautelar), que responderá, independentemente de culpa, nos seguintes casos: se a sentença lhe for desfavorável; se, obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias; se ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; e se o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
Como dito, “cuida-se de responsabilidade processual objetiva, bastando a existência do dano decorrente da pretensão deduzida em juízo para que sejam aplicados os artigos 297, parágrafo único, 520, I e II, e 302 do novo CPC” (STJ, RESP 1630716/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ 16/12/2016[8]). Por consequência lógica da responsabilidade objetiva, desnecessário se aferir se houve culpa.
Em consonância com o Enunciado 39 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal, na hipótese de cassação ou modificação da tutela de urgência na sentença poderá a parte, “além de interpor recurso, pleitear o respectivo restabelecimento na instância superior, na petição de recurso ou em via autônoma”.
Caso ocorrida alguma das hipóteses supracitadas, em observância ao sincretismo processual, a indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível (parágrafo único, do artigo 302, do CPC). Em outras palavras, a rigor dispensa-se o processo autônomo para liquidação.
3. A FINALIDADE DO PROCESSO CIVIL CONTEMPORÂNEO E O PAPEL DO MAGISTRADO
A inafastabilidade do acesso à justiça encontra-se garantida pela Constituição da República, em seu artigo 5º, inciso XXXV, que assim diz, in verbis: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Por imperativo constitucional, o órgão jurisdicional, uma vez provocado, não pode recusar-se ou delegar a função de dirimir os litígios a si levados. Trata-se de um direito fundamental.
Até mesmo à legislação infraconstitucional é defeso criar entraves que inviabilizem o exercício do direito constitucional de acesso à justiça, tendo em vista que “o rol de exceções ao direito de acesso à jurisdição é previsto na Constituição, atualmente adstrito aos casos de negociações coletivas que precedem o ajuizamento de dissídio coletivo e à justiça desportiva” (STF, ADI 2.139, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 01/08/2018[9]).
Ainda no julgamento da ADI 2.139 a Suprema Corte deixou claro que o direito de acesso à justiça impede a exigência de cumprimento de requisitos desproporcionais ou procrastinatórios, quando assim se manifestou:
Este Supremo Tribunal tem reconhecido, em obediência ao inc. XXXV do art. 5º da Constituição da República, a desnecessidade de prévio cumprimento de requisitos desproporcionais, procrastinatórios ou inviabilizadores para a submissão do pleito ao órgão judiciário competente[10].
Para Daniel Amorim, ainda sobre o assunto:
[...] o princípio da inafastabilidade tem dois aspectos: a relação entre a jurisdição e a solução administrativa de conflitos e o acesso à ordem jurídica justa, que dá novos contornos ao princípio, firme no entendimento de que a inafastabilidade somente existirá concretamente por meio do oferecimento de um processo que efetivamente tutele o interesse da parte titular do direito material[11].
É indispensável ao tema transcrever o seguinte trecho da obra “Teoria Geral do Processo”, relativo ao acesso à justiça, que deixa ainda mais inequívoca a preservação desse direito fundamental:
Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente, em “acesso à ordem jurídica justa[12]”.
A garantia do acesso à justiça se dá por meio do exercício do direito de ação e de defesa, restando configurada a prestação jurisdicional efetiva. A efetividade da tutela jurisdicional, então, como instrumento da tutela de direitos e de modo célere, demonstra-se como a finalidade do processo contemporâneo.
Ainda que não seja de interesse neste trabalho adentrar na crise vivida pelo Judiciário, Marcus Orione Gonçalves Correia aponta que “[...] a crise vivida pelo Judiciário em geral é de todos conhecida, partindo da insuficiência de recursos para a pronta tutela jurisdicional, até o fenômeno do aumento das demandas, fruto da conscientização dos direitos[13]”. Contudo, não atenua a garantia constitucional de se buscar o poder judiciário.
O direito de acesso à justiça objetiva garantir, de modo amplo, a utilidade do processo, por meio de instrumentos que permitam a efetiva realização dos direitos em brevidade razoável. A citada “conscientização de direitos” por parte da sociedade acentua a busca pelo poder judiciário que, por seu turno, não pode ficar inerte e desatento à evolução social.
O direito de um processo com duração razoável, inclusive, encontra-se ratificado pelo Brasil desde 18 de julho de 1978 no plano internacional, previsto no Pacto San José da Costa Rica, sendo inserido ao ordenamento jurídico pátrio em 09 de novembro de 1992.
Alexandre Feitas Câmara aborda a celeridade como o princípio da tempestividade da tutela jurisdicional, asseverando a necessidade de sua aplicação para o resultado justo pretendido, exemplificando o seguinte:
Pode-se comparar o processo a um automóvel trafegando por uma estrada. Automóveis excessivamente lentos são tremendamente perigosos, podendo causar acidentes. Mas tão perigosos eles são os automóveis que trafegam em velocidade excessivamente alta. Muitas vezes, os acidentes por estes causados são ainda mais graves. O processo excessivamente lento é incapaz de promover a justiça, pois justiça tarda falha. De outro lado, porém, o processo excessivamente rápido gera insegurança, sendo quase impossível que produza resultados justos[14].
Hodiernamente, doutrina e jurisprudência reconhecem a necessidade de se garantir a condução do processo com atividades dinâmicas e sistemáticas, que visem o alcance da finalidade do processo, sem exacerbar nas formalidades inerentes ao processo civil extemporâneo. Não se vê, com isso, a figura de um juiz estático como comparado ao passado.
Não se admite, pois, que o juiz moderno exerça sua atividade como mera máquina, agindo somente por provocação ou requerimento das partes. Muitas vezes, um dos sujeitos processuais mantém-se inerte por razões econômicas ou culturais, cabendo ao magistrado, diante de tais fatos, garantir a real igualdade entre os litigantes.
Compete ao juiz, portanto, tratar as partes de modo isonômico e submeter todos os direitos garantidos a uma das partes no processo ao crível do contraditório. Aqui se fala em igualdade substancial, quer dizer, igualando-se em direitos e deveres as partes que são, necessariamente, desiguais. Marcelo Novelino, nesse contexto, destaca que “o direito de acesso à jurisdição não pode ser compreendido sob o ponto de vista formal[15]”.
Bedaque, a propósito, leciona:
O processo deve ser dotado de meios para promover a igualdade entre as partes. Um deles, sem dúvida, é a previsão de que o juiz participe efetivamente da produção da prova. Com tal atitude poderá evitar ele que eventuais desigualdades econômicas repercutam no resultado do processo[16].
Sabe-se que o juiz não poderá deixar de lado a repartição do ônus da prova atribuído às partes, como regra disciplinada no artigo 373 do atual CPC. Entretanto, a ele não se observa o papel secundário de simples observador das alegações e provas produzidas pelas partes. Espera-se dinâmica na condução da marcha processual, ditando as regras a serem observadas pelos envolvidos.
Todos esses pontos têm por finalidade a garantia da justiça, que, vale dizer, faz parte da essência do direito, devendo ser estritamente observada pelos tribunais. Pode-se extrair essa ideia das lições de Paulo Nader:
Para que a ordem jurídica seja legítima, é indispensável que seja a expressão da justiça. O Direito Positivo deve ser entendido com um instrumento apto a proporcionar o devido equilíbrio nas relações sociais. A justiça se torna vida no Direito quando deixa de ser apenas ideia e se incorpora às leis, dando-lhes sentido, e passa a ser efetivamente exercitada na vida social e praticada pelos tribunais[17].
O direito deve ser incorporado à lei e a atividade estatal, por sua vez traduzida pela concretização da Norma ao caso concreto, por meio da atividade jurisdicional, e deve obedecer a esses ditames, visando o equilíbrio nas relações sociais, legitimando, como anteriormente demonstrado, a ordem jurídica.
A atividade jurisdicional, como ato de representação do Estado, deve servir aos indivíduos em sociedade protegendo-lhes e garantindo-lhes seus direitos. Nesse sentido expressa Valério Mazzuoli:
[...] não são os indivíduos que existem para o Estado, mas este que se forma em relação àqueles, e por isto tem o dever de proteger-lhes e garantir-lhes os meios necessários para a sua plena realização pessoal[18].
Vale lembrar, ainda, que a atuação estatal, por meio do juiz, deve ser dada de forma estrita às regras do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da CF), que consiste no princípio norteador de todos os demais que devem ser observados no processo, daí chamá-lo supraprincípio.
4. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA DE NATUREZA ANTECIPADA DE OFÍCIO
Sob a égide do Código de Processo Civil revogado, de 1973, parte majoritária da doutrina e jurisprudência entendia ser vedada a concessão da tutela antecipada de ofício, com base em uma leitura do artigo 273, caput, daquele Código, que condicionava a antecipação dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial ao requerimento da parte.
O Código de Processo Civil atual, por outro lado, não condiciona a tutela de urgência ao requerimento da parte, mas silencia quanto à possibilidade de concessão de ofício pelo juiz. O texto legal assevera que “a tutela de urgência será concedida”, não esclarecendo ser a concessão a requerimento ou não da parte, como se previa no artigo 273 do CPC anterior.
Imperioso destacar que o Código de Processo Civil de 2015 não trouxe em seu texto redação correspondente ao artigo 2º do CPC/73 que assim dizia: nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.
Ao contrário, o Novo CPC está amparado em um modelo constitucional de processo, que pretende garantir de maneira mais efetiva a entrega da tutela jurisdicional, assim como proteger com maior eficácia os direitos e garantias fundamentais. Há, ainda, a preocupação do legislador em privilegiar a resolução do mérito, o que não se olvida do dever de, quebrada a inércia da jurisdição, conduzir o processo com base no impulso oficial.
Além disso, na aplicação da lei o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (artigo 5º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). O CPC vai mais além, ao dispor que ao aplicar o ordenamento jurídico o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência (artigo 8º).
Não pode o magistrado, portanto, se distanciar dos fins sociais e humanísticos almejados pela sociedade unicamente com base em uma interpretação literal da norma.
Outrossim, é inegável que o legislador não condicionou a concessão da tutela antecipada ao requerimento da parte, pois, no Código atual, não se valeu de tal expressão no caput do artigo 300. Ao revés, permitiu que a tutela de urgência fosse concedida quando existentes elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, sem impor, ao menos de modo expresso, a necessidade de pedido do interessado.
O legislador, até mesmo, ao passo que determinou não ser possível proferir decisão surpresa, ou seja, sem prévia oitiva da parte prejudicada (artigo 9º, do CPC), excepcionou a regra em relação à tutela provisória de urgência (inciso I, do parágrafo único, do art. 9º, CPC), reconhecendo sua importância.
Com efeito, pode-se dizer que a ausência de indicação expressa sobre o requerimento da parte para fins de concessão da tutela antecipada, assim como previa o CPC anterior, reflete a vontade do legislador ao atribuir ao poder judiciário, ainda que não provocado de modo expresso, o dever de conceder a tutela antecipada sempre que o caso concreto assim exigir e quando presentes os requisitos legais.
Daniel Amorim, a propósito, diz:
Entendo que mesmo diante do eloquente silêncio da lei, é provável que o tradicional poder geral de cautela se transforme num poder geral de tutela de urgência, sendo admitido, ainda que em caráter excepcional, a concessão de uma tutela cautelar ou antecipada de ofício[19].
Ainda para o autor “o poder geral ora sugerido, entendido como a possibilidade de concessão de ofício de uma tutela de urgência pelo juiz, afasta, ainda que excepcionalmente, o princípio dispositivo[20]”. Diferentemente da inércia da jurisdição que, necessariamente, depende de provocação do interessado, o desenvolvimento do processo se dá por impulso oficial, que reclama a atuação ativa do magistrado.
Cassio Bueno defende ser cabível a tutela antecipada de ofício com base na efetividade da tutela jurisdicional[21]. É justamente essa efetividade do processo um dos motivos da elaboração do Novo Código de Processo Civil, que tem como um de seus escopos proporcionar à sociedade o reconhecimento e a realização de seus direitos. Nesse plano apresentou-se na Exposição de Motivos da Lei 13.105:
Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo[22].
Na jurisprudência existem diversos julgados nos quais se admitiu a concessão de ofício da tutela antecipada.
Primeiramente, em matéria previdenciária, é assente o entendimento no sentido de caber à concessão de ofício da antecipação de tutela, seja sob a égide do CPC de 1973 ou do CPC de 2015, considerando a busca pela real e efetiva prestação jurisdicional e o fato concreto, quer dizer, o caráter alimentar dos benefícios previdenciários:
PREVIDENCIÁRIO. COMPROVAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO. PROVA TESTEMUNHAL E MATERIAL IDÔNEAS. CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. I - Esta Turma já se posicionou pela possibilidade de concessão da antecipação da tutela de ofício, em razão da busca de uma real e efetiva prestação jurisdicional conjugada com a necessidade imediata que o fato concreto exige. No caso presente a autora tem mais de 65 (sessenta e cinco) anos, ajuizou a presente ação em 2001 e obteve sentença favorável em 2005. II - São consideradas idôneas, no presente caso, a prova testemunhal e os elementos materiais, carreados aos autos com o fito de comprovar a atividade rurícola da autora, para fins de obtenção de benefício previdenciário. Precedente do STJ. III - Apelação do INSS e Remessa Oficial improvidas. (TRF5, AC 330371, Rel. Desembargador Federal Frederico Pinto de Azevedo, 18/06/2006).
ADMINISTRATIVO. PENSÃO ESPECIAL. LEI N.º 11.520/2007. PORTADOR DE HANSENÍASE. ISOLAMENTO E INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. COMPROVAÇÃO. APELAÇÃO PROVIDA. TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA, DE OFICIO, PARA IMPLANTAÇÃO DO BENEFÍCIO.
1. Cuida-se de pedido de concessão de pensão especial instituída pela Lei nº 11.520/07, por ser a parte autora portadora de hanseníase e ter sido submetida a tratamento mediante isolamento e internação compulsória no Sanatório Aymoré (hospital-colônia), atual Hospital Lauro de Souza Lima, no período de 01/08/1966 a 31/08/1966.
7. Recebido o diagnóstico, não restava outra alternativa ao portador da doença, senão procurar os sanatórios e viver em isolamento social, dado que o convívio em sociedade era impossível, notadamente aos mais carentes.
9. Preenchidos os requisitos necessários à concessão da pensão especial prevista na Lei 11.520/2007, razão pela qual dever ser reformada a r. sentença para julgar procedente o pedido para conceder o benefício.
(...)
11. Apelação provida. Deferida tutela antecipada, de oficio, para implantação do benefício.
(TRF3, AC 1843113 - 0001950-21.2011.4.03.6117, Rel. Desembargadora Federal Diva Malerbi, DJ 27/06/2019).
Em matéria ambiental o Tribunal Regional Federal da 5ª Região manteve decisão de primeiro grau em que foi concedida antecipação de tutela de ofício pelo magistrado, baseando-se no poder geral de cautela e considerando o caso concreto, em que visualizou o grande impacto ao meio ambiente que estava causando a ocupação em área de preservação ambiental:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. OCUPAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL. DECISÃO FUNDAMENTADA. PODER GERAL DE CAUTELA. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO PROVIMENTO ANTECIPATÓRIO DE OFICIO. 1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que, em sede de ação civil pública, concedeu a antecipação da tutela provisória para determinar a desocupação da área em litigio, impondo previamente ao Estado do Ceará, por meio da Secretaria do Meio Ambiente - SEMACE, fiscalizar a área ocupada, para evitar novas ocupações, considerando que o dano ambiental extrapola o Município de Caucaia e atinge também o Município de Fortaleza, devendo apresentar relatório de fiscalização em 30, 60 e 90 dias da decisão. [...] 5. O colendo Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que o Juiz, valendo-se do poder geral de cautela pode, de ofício, determinar providência que lhe pareça cabível e necessária ao resultado útil do processo, Precedente: STJ, Quarta Turma, AINTARESP 201602289645, Relatora: Min. Maria Isabel Gallotti, j. 27/06/2017, decisão unânime. 6. Na situação em tela, o juiz se valeu do poder geral de cautela para, conceder a tutela antecipada, diante do caso concreto em que visualizou o grande impacto ao meio ambiente que estava causando a ocupação em área de preservação ambiental. 7. Agravo de instrumento improvido. (TRF5, AI 145076, Rel. Desembargador Federal Carlos Rebêlo Júnior, DJ 09/11/2017).
O Tribunal de Justiça do Amazonas, ao manter decisão do juízo de primeiro grau que concedeu, de ofício, a tutela antecipada, reconheceu a possibilidade fundada no preenchimento dos requisitos legais e no direito discutido no processo, isto é, à moradia, que alcança outros direitos de estimado valor, como o direito à vida digna, à intimidade e à privacidade:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE C/ TUTELA ANTECIPADA. DEFERIMENTO DA TUTELA DE URGÊNCIA PELO JUÍZO DE ORIGEM DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. REQUISITOS DE CONCESSÃO EVIDENCIADOS. PROBABILIDADE DO DIREITO E PERIGO DE DANO OU RISCO DE RESULTADO ÚTIL DO PROCESSO VERIFICADOS. DECISÃO FUNDAMENTADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO EM CONSONÂNCIA COM O PARECER MINISTERIAL.
(...)
- Para concessão da tutela de urgência, exige-se a demonstração de dois requisitos, consagrados nas máximas latinas, o fumus boni juris e o periculum in mora.
- No caso dos autos, verifico que o Juízo de piso analisou devidamente os requisitos necessários à concessão da tutela de urgência, não havendo que se falar em ausência de fundamentação específica, tendo em vista que fundamentou sua decisão com base no artigo 300 do NCPC, restando evidenciados a probabilidade do direito e o perigo de dano.
- Da probabilidade do direito, o fumus boni juris da Autora está demonstrado pelas provas documentais acostadas aos autos (fls. 21/22) pelas quais se demonstra a irregularidade da aquisição da pose do imóvel pela Agravante, vez que o permutante (Juvenal Cabral) não era seu proprietário, razão pela qual não lhe era dado dispor do mesmo.
- Quanto ao perigo de dano, periculum in mora, verifica-se que a Agravada é aposentada, contando com 66 anos de idade, assistida pela Defensoria Pública, de modo que é manifestamente prejudicial o fato de estar impedida de ter aceso a imóvel sobre o qual lhe assiste o direito de propriedade.
- Ademais, a demora da imissão na posse vulnera também o direito fundamental da Agravada à moradia, cujos reflexos periclitam também direitos individuais a ele imanentes vida digna, intimidade, privacidade, apenas a título de exemplo, não se podendo exigir que a Agravada arque com tal vilipêndio ao longo de todo o curso processual. Razão pela qual não merece reparo a decisão objurgada.
- Recurso conhecido e desprovido, em consonância com o Parecer Ministerial. (TJAM, AI 4003300-21.2017.8.04.0000., Rel. D. Ernesto Anselmo Queiroz Chíxaro, DJ 08/05/2018).
Vê-se, com efeito, uma tendência menos restritiva de alguns juízes, ainda que em determinadas matérias, autorizando a antecipação de tutela de ofício, baseando-se nas circunstâncias do caso concreto, na urgência que demanda uma solução breve por parte do poder judiciário, no poder geral de cautela e prestigiando o método sistemático de interpretação da norma.
No Código de Processo Civil de 2015, com fundamento no poder geral de cautela conferido aos magistrados, as medidas cautelares inominadas deixaram de ser apenas admitidas em caráter excepcional (como previa o CPC anterior), passando a se constituírem como regras, de acordo com a lição do artigo 297 do novo Código, permitindo ao juiz determinar quaisquer medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória. Justamente, não se vê empecilho à concessão da tutela provisória de natureza antecipada com base no poder geral de cautela, tal como justificado no julgado anterior, na medida em que esta se apresenta como modo de concretização do disposto no artigo 297 do Código.
Destaca-se, novamente, que, de acordo com o Enunciado 31 do FPPC, a respeito do art. 301 do Novo CPC, o poder geral de cautela está mantido no código atual.
A Lei 10.259/2001, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, prevê em seu artigo 4º que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação. O dispositivo mencionado é utilizado corriqueiramente, por analogia, para antecipação dos efeitos da tutela de ofício.
Tratando-se de processo em que se aplique as Leis 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor) e 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), entendemos que o Novo CPC também torna possível a concessão da tutela antecipada de ofício.
Isso se dá, pois, o Novo CPC, aplicado subsidiariamente às ações previstas no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e na Lei da Ação Civil Pública (LACP), não mais condiciona a concessão da tutela antecipada ao requerimento da parte. Ademais, tanto o CDC quando a LACP, nos seus dispositivos próprios, não exigem o requerimento:
Código de Defesa do Consumidor: Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.
Lei da Ação Civil Pública: Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.
Independentemente de os dispositivos legais tratarem de “liminar”, hodiernamente não se deve fazer distinção entre essas e as medidas antecipatórias, pois ambas se inserem na categoria de tutelas de urgência. E foi nesse sentido que sustentou o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 1178500/SP, ao admitir a análise do requerimento sustentado com base nos artigos supramencionados (art. 84 do CDC e 12 da LACP) em cotejo com o artigo 273 do CPC/73, que tratava da tutela antecipada.
Assim, em interpretação aos artigos 300 do CPC, 84 do CDC e 12 da LACP, defende-se ser adequada a concessão da antecipação de tutela de ofício pelo magistrado.
Na mesma conjuntura, as normas de direito internacional aplicadas ao Processo Civil, em especial a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) - Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgada no Brasil pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, reconhecem o direito a um prazo razoável e à proteção judicial, o que corrobora com o poder/dever do Magistrado de conceder a tutela antecipada de ofício, quando presentes os requisitos necessários, sob pena de responsabilização internacional do Brasil.
Não se intenciona proteger atos abusivos por parte do poder judiciário ou violações sistemáticas dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, mas sim advogar no sentido de se permitir, ao magistrado, que, analisando o caso concreto, possa tomar a providência necessária com o fim de assegurar que, ao fim do processo, a tutela jurisdicional será efetivamente concedida a quem tem direito.
Sobre as medidas antecipatórias, não se pode desprezar que “são instrumentos destinados a, mediante a devida harmonização, dar condições de convivência simultânea aos direitos fundamentais da segurança jurídica e da efetividade da jurisdição[23]”, repousando sobre elas precípua função constitucional.
Além disso, eventual concessão da tutela antecipada de ofício não viola o contraditório, porque tal direito constitucional será postergado para momento posterior (contraditório diferido), considerando a excepcional situação levada ao poder judiciário, que deverá agir com a finalidade de evitar grave prejuízo a um dos litigantes.
Em razão da sua provisoriedade, a tutela antecipada concedida, ainda que de ofício, poderá ser revogada ou modificada pelo próprio juiz a qualquer momento (artigo 296 do CPC), mediante simples requerimento. Poderá o prejudicado, ainda, valer-se do recurso de agravo de instrumento (artigo 1.015, I, CPC) objetivando a revogação ou modificação. Denota-se, então, que a própria legislação prevê mecanismos processuais adequados para impedir prejuízos àquele lesado pela antecipação concedida de ofício.
De igual sorte, não se pode creditar a impossibilidade de concessão da tutela antecipada de ofício com base na responsabilidade objetiva estatuída pelo artigo 302 do atual CPC, que, no seu caput, dispõe: “Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se: [...]”. A posição topográfica do artigo 302 nos conduz a conclusão de que a regra de responsabilização será aplicada tanto a tutela cautelar quanto a tutela antecipada, de modo que, se a concessão da tutela cautelar poderá ser realizada de ofício, não havendo grandes debates contrários, o mesmo se deveria permitir acerca da concessão da antecipação de tutela.
À parte beneficiada por eventual concessão de ofício da tutela antecipada é permitido, a qualquer momento, manifestar-se nos autos e, se desejar evitar o risco de responsabilização, pugnar pela revogação da medida. Embora aparentemente incongruente, o pedido de revogação da tutela de urgência realizado pelo beneficiado traduz a boa-fé e lealdade esperada de qualquer litigante, até porque não se pode admitir com normalidade o ajuizamento de “aventuras judiciais”, de forma que se espera que a aparência do direito e a gravidade levadas ao poder judiciário sejam compatíveis com a realidade.
Além disso, o Código de Processo Civil adota um modelo participativo, exigindo que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (artigo 6º, CPC).
Amparado nessas premissas, mesmo reconhecendo o extenso debate sobre a matéria, é possível admitir a concessão da tutela antecipada de ofício pelo juiz, prestigiando o novo modelo de processo e os anseios da sociedade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do apresentado, podemos concluir que:
a) O CPC dispõe, em seu artigo 300, que a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
b) Sob a égide do Código de Processo Civil revogado, de 1973, parte majoritária da doutrina e jurisprudência entendia ser vedada a concessão da tutela antecipada de ofício, com base em uma leitura do artigo 273, caput, daquele Código, que condicionava a antecipação dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial ao requerimento da parte.
c) O Código de Processo Civil atual, por outro lado, não condiciona a tutela de urgência ao requerimento da parte, mas silencia quanto à possibilidade de concessão de ofício pelo juiz. O texto legal assevera que “a tutela de urgência será concedida”, não esclarecendo ser a concessão a requerimento ou não da parte, como se previa no artigo 273, do CPC anterior.
d) Entendemos que o Novo CPC está amparado em um modelo constitucional de processo, que pretende garantir de maneira mais efetiva a entrega da tutela jurisdicional, assim como proteger com maior eficácia os direitos e garantias fundamentais, o que permite ao magistrado conceder a tutela antecipada de ofício, quer dizer, mesmo sem pedido expresso da parte, até porque o Código atual não exige, de forma expressa, tal requerimento.
e) Além disso, não pode o magistrado se distanciar dos fins sociais e humanísticos almejados pela sociedade unicamente com base em uma interpretação literal da norma.
f) Com efeito, a ausência de indicação expressa sobre o requerimento da parte para fins de concessão da tutela antecipada, assim como previa o CPC anterior, reflete a vontade do legislador ao atribuir ao poder judiciário, ainda que não provocado de modo expresso, o dever de conceder a tutela antecipada sempre que o caso concreto assim exigir e quando presentes os requisito legais.
g) Essa concessão de ofício não viola o contraditório, porque tal direito constitucional será postergado para momento posterior. Igualmente, em virtude de sua provisoriedade, a tutela antecipada concedida, ainda que de ofício, poderá ser revogada ou modificada pelo próprio juiz a qualquer momento (artigo 296 do CPC), além de poder a parte prejudicada se valer do recurso de agravo de instrumento (artigo 1.015, I, CPC) objetivando a revogação ou modificação.
h) Também não se pode creditar a impossibilidade de concessão da tutela antecipada de ofício com base na responsabilidade objetiva estatuída pelo artigo 302 do atual CPC, porquanto à parte beneficiada por eventual concessão de ofício da tutela antecipada é permitido, a qualquer momento, manifestar-se nos autos e, se desejar evitar o risco de responsabilização, pugnar pela revogação da medida, em manifesto ato de boa-fé e lealdade processual.
REFERÊNCIAS
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[1] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2000. p. 123.
[2] FERREIRA, William dos Santos. Tutela antecipada no âmbito recursal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 32
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 503.
[4] São hipóteses de dispensa de caução previstas no Artigo 521, do CPC: I - o crédito for de natureza alimentar, independentemente de sua origem; II - o credor demonstrar situação de necessidade; III – pender o agravo do art. 1.042; IV - a sentença a ser provisoriamente cumprida estiver em consonância com súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou em conformidade com acórdão proferido no julgamento de casos repetitivos.
[5] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Vol. Único. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 509/510.
[6] Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=737047&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em 29 maio 2020.
[7] PAULA, Jônatas Luiz Moreira. Processo de conhecimento no Novo CPC (Lei nº 13.105/2015; Lei nº 13.256/2016 e PEC 209/2012). 3. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017. p. 146.
[8] Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=68322773&num_registro=201602631031&data=20170202&tipo=5&formato=PDF. Acesso em 03 jul. 2020.
[9] Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339536354&ext=.pdf. Acesso em 03 jul. 2020.
[10] Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339536354&ext=.pdf. Acesso em 03 jul. 2020.
[11] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Vol. Único. 10 ed. São Paulo: JusPodivm, 2018. p. 89.
[12] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo. 31 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. p. 55.
[13] CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Teoria Geral do Processo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 9.
[14] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 58.
[15] NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 15 ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 466.
[16] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 107.
[17] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 107.
[18] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 471.
[19] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Vol. Único. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 509.
[20] Ibidem.
[21] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela antecipada, tutela cautelar e procedimentos especiais específicos. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 11/12.
[22] Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em 09 jul. 2020.
[23] ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 69.
Mestre em Ciências Jurídicas. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Público, Direito Constitucional Aplicado e Direito da Seguridade Social. Oficial de Justiça Federal (TRF1).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, João Paulo Monteiro de. Possibilidade de concessão da tutela de urgência de natureza antecipada de ofício Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2024, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58039/possibilidade-de-concesso-da-tutela-de-urgncia-de-natureza-antecipada-de-ofcio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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