Resumo: Este artigo discute a indenização dos lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos sob justificado interesse público. Predomina na doutrina e na jurisprudência a posição no sentido do seu cabimento, todavia, sob os mais diversos fundamentos jurídicos: (i) justa indenização, ex vi do art. 5º, XXV, CR; (ii) cláusula econômico-financeira, com fulcro no art. 37, XXI, CR; (iii) lucros cessantes previstos no arts. 402 e 403 do Código Civil, que seria aplicado subsidiariamente aos contratos administrativos, e, ainda (iv) possibilidade de se indenizar os “prejuízos efetivamente comprovados” (§2o, art. 138 da Lei nº 14.133/2021). Ao final deste breve estudo, apesar de se reconhecer a doutrina e jurisprudência predominantes no sentido da possibilidade da indenização dos lucros cessantes, defende-se a incompatibilidade dessa indenização com o próprio regime de exorbitância do contrato administrativo, bem como hipótese de silêncio eloquente na tutela desse direito indenizatório na Lei nº14.133/2021.
Palavras-chave: Contrato administrativo; rescisão unilateral, interesse público; lucros cessantes; inexistência de fundamento legal; silêncio eloquente.
Sumário: 1 Introdução - 2 Conceito de Lucros Cessantes - 3 Arco Histórico dos Lucros Cessantes nos Contratos Administrativos - 4 Doutrina sobre os Lucros Cessantes na Resilição dos Contratos Administrativos: inexistência de fundamento infraconstitucional específico - 5 A Jurisprudência Predominante sobre o Tema e a Necessidade de se Revisitar as suas Premissas - 6 Considerações Finais – Referências.
Abstract: This article aims discusses the compensation of lost profits in the unilateral termination of administrative contracts in the justified public interest. Doctrine and jurisprudence predominate the position in the sense of its appropriateness, however, under the most diverse legal grounds: (i) fair compensation, ex vi of art. 5th, XXV, CR; (ii) economic-financial clause, based on art. 37, XXI, CR; (iii) loss of profits provided for in arts. 402 and 403 of the Civil Code, which would be applied subsidiarily to administrative contracts, and also (iv) the possibility of indemnifying the “effectively proven losses”, (§2o, art. 138 of Estatute nº 14.133/2021). At the end of this brief study, despite recognizing the prevailing doctrine and jurisprudence in the sense of the possibility of compensation for lost profits, the incompatibility of this compensation with the exorbitant regime of the administrative contract is defended, as well as the hypothesis of eloquent silence in the guardianship of this indemnification right in Law 14.133/2021.
Summary: 1 Introduction - 2 Concept of Business Interruption - 3 Historical Arc of Business Interruption in Administrative Contracts - 4 Doctrine on Business Interruption in the Termination of Administrative Contracts: inexistence of specific infraconstitutional foundation - 5 The Predominant Jurisprudence on the Theme and the Need to Revisit your Assumptions - 6 Final Considerations – References.
Keywords: Administrative contract; unilateral termination, public interest; lost profits; lack of legal basis; eloquent silence.
1 INTRODUÇÃO
Este texto examina a possibilidade de aplicação e o regime jurídico dos lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos com fundamento em comprovado interesse público.
Não se pretende investigar, neste breve texto, a prerrogativa de rescisão unilateral dos contratos administrativos com fundamento no interesse público, mas, partir-se dessa premissa dogmática para proceder-se ao exame, lege data, da possibilidade de aplicação do regime jurídico dos lucros cessantes na hipótese de prematura ruptura dos contratos administrativos.
Portanto, delimita-se como ponto de partida e de chegada deste estudo o cabimento dos lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos sujeitos exclusivamente ao Estatuto de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021).
Apesar de a doutrina pouco se dedicar ao enfrentamento do tema, predomina na literatura especializada e na jurisprudência a tese pelo cabimento dos lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos, porém, sob fundamentos jurídicos controvertidos e que, portanto, merecem ser reexaminados.
Diante disso, o presente estudo não tem a pretensão de esgotar ou, tampouco, de apresentar uma tese definitiva sobre o assunto, mas, antes de exortar os pesquisadores e operadores do direito para o enfrentamento de questão ainda candente de melhor compreensão e aprofundamento.
2 CONCEITO DE LUCROS CESSANTES
Na teoria da responsabilidade civil, os danos materiais sofridos pela parte subdividem-se, conforme classificação doutrinária prestigiada pelo Código Civil, em danos emergentes (danos positivos) e lucros cessantes (danos negativos).
Assim, ao lado do efetivo prejuízo tem-se, ainda como espécie de danos materiais, os danos oriundos dos lucros que deveriam ser obtidos se não fosse o ato ilícito (lucros cessantes). Parte da doutrina, inclusive, evita associar o signo “prejuízo” aos “lucros cessantes” na medida em que o Código, no art. 403, reservou aquele esse para a significação dos danos emergentes.
Nessa senda, o art. 402 decompõe o direito às perdas e danos devidos ao credor, em duas espécies: (i) o que efetivamente perdeu (danos emergentes) e (ii) o que razoavelmente deixou de lucrar (lucros cessantes).
O art. 403 do Código Civil, por sua vez, emprega expressamente a locução jurídica “lucros cessantes” ao reportar-se a ela como hipótese de perdas e danos. É o que se extrai do enunciado da norma, segundo o qual, “ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual (sem grifos no original)” (art. 403, Código Civil).
Apesar do propósito deste estudo ser o de examinar os lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos, ressalva-se a escassa produção bibliográfica desta hipótese de dano sob o matiz do direito público.
Diante desse vácuo, a doutrina administrativista e a jurisprudência recorrem à literatura civilista para a compreensão do alcance do instituto, mesmo que a sua aplicação seja endereçada para o contrato sujeito ao regime de direito administrativo.
Sublinha-se a advertência de que a mera transposição de institutos do direito privado, sem os ajustes teóricos necessários, para o direito público, pode levar a resultados incompatíveis para os próprios bens e interesses jurídicos protegidos por este último regime.
Feita essa ressalva, salienta-se que o conceito jurídico-positivo de lucros cessantes é associado à noção de “lucro” e de “razoável”, isto é, ao que “razoavelmente se deixou de lucrar” (art. 403, CC).
Apesar de permanentes as discussões doutrinárias sobre os exatos limites semânticos dos lucros cessantes, alcançou-se expressivo avanço epistemológico na identificação do sentido desta espécie de dano material mediante a imputação de conceitos estipulativos a esta locução no Ordenamento Jurídico (art. 402 e 403, CC).
Nesse sentido, para delimitar o sentido e alcance do que seja de lucro, é como recorrer-se ao conceito estipulativo de lucro líquido fixado nos arts. 190 e 191 da Lei nº 6.404/1976. Dessarte, o lucro cessante seria obtido por analogia ao de lucro líquido.
Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça perfilha a posição de que o lucro cessante “corresponde ao lucro líquido remanescente depois de deduzidos os custos, as despesas, os tributos, as contribuições sociais e as participações (art. 191 da Lei nº 6.404/1976)”[1]. O lucro cessante, portanto, corresponde ao lucro líquido que deixou de ser auferido por ato alheio à vontade da administração da empresa.
Na doutrina, Wilson Alberto Zappa Hoog aborda o lucro líquido dentro da moldura jurídica albergada pela Lei n. 6.404/76, verbis:
É a diferença algébrica entre o lucro bruto e as demais despesas, receitas, participações, encargos sociais e tributos sobre o lucro. Portanto, é o lucro final após a dedução de todos os ônus que a cédula social suportou, acrescido das receitas e despesas não operacionais. Ele deve ser a base de cálculo de reservas, como a legal, e da distribuição de dividendos aos acionistas ou lucros aos sócios, devendo o remanescente ficar adicionado a patrimônio líquido, na rubrica 'lucros ou prejuízos acumulados' à disposição da assembleia ou reunião dos sócios".[2]
Todavia, o lucro cessante não pode corresponder ao lucro líquido, pois este é um lucro presente, enquanto aquele é futuro e provável.
Além de futuro e apenas provável, o lucro cessante deve ser associado ao conceito de “razoável”: postulado normativo que se introjeta na norma por meio de signo de textura extremamente aberta.
A razoabilidade, diante da sua natureza de postulado normativo, irradia o comando direto para o legislador ou aplicador sobre a aplicação do deôntico de lucro cessante no caso concreto.
Neste caso, significa que a lei autoriza ex ante que a indenização seja fixada de forma aproximada, na medida do razoável, ao que se deixou de lucrar, e não necessariamente ao que se deixou de lucrar na sua exata medida (lucro líquido, pois o lucro não é atual). Exerce, portanto, a função sintática de advérbio de modo para modular a extensão dos lucros cessantes no caso concreto (não se busca um valor exato, mas um valor aproximado, isto é, razoável)[3].
Assim, será sempre necessário recorrer ao caso concreto. O conceito de lucro cessante não se esgota abstratamente no enunciado dos artigos 402 e 403 do Código Civil. A existência e a fixação dos lucros cessantes demanda o enfrentamento de variadas e complexas questões, tais como: fixação do quantum, termo a quo e ad quem, experiência pretéria para dimensionar o quantum debeatur etc.
A análise dos lucros cessantes não se esgota na sua análise semântica. O fato jurídico sob a perspectiva pragmática envolve nuances ricas.
Assim, a par dos aspectos linguísticos examinados, a presença dos lucros cessantes demanda, invariavelmente, a presença de elementos etiológicos da sua própria substância e configuração: a identificação do nexo de causalidade direto entre o ato ilícito e o dano (imediatividade do dano), a identificação do termo a quo (data de início do pagamento) e do termo ad quem (data final do pagamento), e, finalmente, o exame da probabilidade objetiva do dano, pois, sem dano não há dever de indenizar.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes, professora que dedicou dissertação de mestrado sobre o tema, alerta ainda para a função reparatória dos lucros cessantes. Com essa advertência, intenta chamar a atenção para o fato de que os lucros cessantes indenizam danos reais, e não imaginários. Veja-se:
A função dos lucros cessantes na responsabilidade civil é flagrantemente reparatória, não sendo, portanto, recomendável introduzir na aferição desta faceta do dano patrimonial critérios que sequer são afeitos à responsabilidade civil, sob pena de a reparação dos lucros cessantes se transformar numa verdadeira caixa de Pandora que, embora incite a curiosidade, é sempre preferível não tocar.[4]
Além da dificuldade de se identificar os atributos e propriedades que permitem identificar a presença do fato jurídico indenizável sob a alcunha de lucros cessantes, a doutrina é desafiada à diferenciá-lo de institutos afins, verbi gratia: danos emergentes, a perda de uma chance e o interesse positivo.
O seguinte excerto do Código Civil Comentado pela professora Judith Martins-Costa expressa a preocupação em conciliar esses bens jurídicos:
Conquanto possam representar um prejuízo que se projetará no futuro (conquanto não constituam ''danos futuros') os lucros cessantes evidentemente não se confundem com lucros imaginários, meras expectativas ou hipóteses. É necessário observar, tendo em conta as circunstâncias concretas, os dados objetivos e elementos racionalmente controláveis da situação o que normalmente aconteceria (id quod plerunque accidit) se a vítima não tivesse sofrido a lesão.[5]
Esses são as principais propriedades jurídicas dos lucros cessantes sob a perspectiva da legislação e da doutrina civilista.
A inexistência de abordagem epistemológica dos lucros cessantes pela doutrina administrativa tem gerado certa incompreensão na aplicação do instituto às hipóteses de extinção prematura dos contratos administrativos, pois esse vácuo teórico tem sido colonizado pela literatura de direito privado por mera transmutação.
Todavia, o regime da relação jurídica em que se pretende invocar os prejuízos sofridos à título de lucros cessantes podem repercutir na própria identidade e fisiologia do instituto.
Os lucros cessantes devidos à parte que tenha sofrido perdas e danos no direito privado decorrem, via de regra, de um ato ilícito (conduta antijurídica), enquanto nos contratos administrativos extintos sob fundado interesse público decorrem de ato lícito: a prerrogativa da Administração de rescisão unilateral do contrato diante de comprovado interesse público.
Fixado o conceito jurídico-positivo de lucros cessantes e feita a advertência de que o instituto não foi adequadamente examinado pelos publicistas para os casos de danos oriundos de atos lícitos da Administração, passa-se ao exame do arco histórico dos lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos sujeitos ao Estatuto de Licitações e Contratos Administrativos.
3 ARCO HISTÓRICO DOS LUCROS CESSANTES NOS ESTATUTOS DE CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Se, de um lado, os lucros cessantes possuem disciplina ancestral na legislação civil (art. 1.059 do Código Civil de 1916 e arts. 402 e 403 do Código Civil de 2012), por outro lado, ainda é lacônica a sua disciplina nas leis que versam sobre as contratações públicas.
A ausência de disciplina legal dos lucros cessantes na legislação sobre contratos administrativos pode ser interpretada como (i) mera lacuna ou (i) silêncio eloquente. Para cada uma dessas hipóteses o operador do direito deve assumir uma postura hermenêutica distinta. Antes, porém, de nos posicionarmos, convém expor o arco histórico legislativo da indenização nas contratações públicas para, ao final, chegar-se a conclusão sobre a espécie de omissão em tela.
Atribui-se ao Decreto-Lei n. 2.300, de 21 de novembro de 1986, o diploma primogênito sobre licitações e contratos da Administração Pública, dada a sua maior densidade no trato da matéria. O Decreto, no inciso XIII do seu art. 68, assegurava à autoridade administrativa a prerrogativa de rescindir o contrato por razões de interesse do serviço público. No artigo seguinte, assegurava ao contratado o direito de ser ressarcido dos (i) prejuízos regularmente comprovados, que houver sofrido, tendo, ainda, direito a (ii) devolução da garantia, (iii) pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão e, finalmente, (iv) pagamento do custo da desmobilização (§ 2º, art. 69). Conforme se infere das hipóteses legais, não foi contemplada a expressão “lucros cessantes” ou locução jurídica equivalente.
Na década seguinte, a Lei 8.666/93 revogou o Decreto-Lei n. 2.300/1986, mas manteve idêntico sistema indenizatório e, com isso, silenciou-se sobre a disciplina dos lucros cessantes, não obstante a experiência normativa então vigente do Código Civil de 1916, o que já caracterizava hipótese de silêncio eloquente para parte da doutrina.
A Lei assegurava ao contratado o direito de ser ressarcido dos (i) prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido se a rescisão do contrato, para a qual não concorreu, for justificada em razões de interesse público, além do direito a (ii) devolução de garantia, (iii) pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão e, finalmente, (iv) pagamento do custo da desmobilização.
Em 2021, foi publicada nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: a Lei nº 14.133/2021. O dispositivo foi alterado sensivelmente, mas, ainda assim, deixou a desejar sobre a disciplina dos lucros cessantes nos contratos administrativos, notadamente no âmbito do objeto deste estudo: rescisão do contrato por ato lícito da Administração. O regime de indenização decorrente de resilição por razões de interesse público consta nos art. 137, VIII c/c arts. 138 e 139 da Lei nº 14.133/2021
Preliminarmente, nota-se que a nova Lei substitui a expresão “rescisão dos contratos” por “extinção dos contratos”. O inciso VIII do art. 137 da Lei nº 14.133/2021 enlista, dentre outras hipóteses legais, razões de interesse público como motivo hábil para a extinção do contrato.
Em seguida, o art. 139, I da Lei nº 14.133/2021 estabelece que a extinção do contrato poderá ser determinada por ato unilateral e escrito da Administração, exceto no caso de descumprimento decorrente de sua própria conduta.
Segundo Maria Sylvia Di Pietro, a hipótese contemplada no inciso I do art. 139 abrange a do inciso VIII do artigo 138 - “razões de interesse público”-, pelas seguintes razões:
(...) tem-se a impressão de que a extinção por decisão unilateral só poderá ocorrer nos casos em que o descumprimento do contrato decorre de conduta do contratado, no caso de razões de interesse público e nas hipóteses de caso fortuito e força maior [...]. A nova Lei de Licitações não é tão clara ao especificar as hipóteses em que tem a aplicação da extinção unilateral. O art. 137 dá o elenco das hipóteses de extinção dos contratos, sem especificar a modalidade de extinção dentre as previstas no art. 138, o que significa que qualquer uma delas pode ser utilizada”.[6]
Finalmente, ao abordar o regime indenizatório decorrente dessa hipótese de extinção, a nova Lei prescreve que o contratado será ressarcido pelos (i) prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido e terá direito, ainda, (ii) a devolução da garantia; (iii) pagamentos devidos pela execução do contrato até a data de extinção (iii) e pagamento do custo da desmobilização (§ 2º, art. 138, da Lei 14.133/2021).
Assim, o silêncio do legislador é reforçadamente eloquente, pois, durante a vigência da Lei 8.666/93 foi publicado o Código Civil de 2002 que, claramente, estabelecia sistema cartesianamente distinto para as perdas e danos, distinguindo-as em danos emergentes (prejuízos efetivos) e os lucros cessantes. Isto é, o silêncio eloquente na Lei na 8.666/93 sobre os lucros cessantes tornou-se ainda mais reforçado explícito na Lei 14.133/2021, pois houve oportunidade de ouro para o legislador corrigir a omissão e evitar que o tema fosse regrado, subsidiariamente, pelo Código Civil de 2002.
A subsunção do § 2º, art. 138, da Lei 14.133/2021 à resilição unilateral fundada em interesse público, porém, não é mais tão cristalina como a redação trazida na Lei 8.666/93.
Segundo Dinorá Grotti, como o dispositivo citado constitui parágrafo do art. 138, deve entender-se que as consequências nele previstas têm aplicação nas três modalidades de extinção previstas neste artigo, quais sejam: unilateral, consensual e arbitral[7].
Assim, o direito vigente reproduz o mesmo sistema indenizatório desde 1986 ao assegurar ao contratado o ressarcimento de quatro espécies de danos nas hipóteses em que a extinção do contrato decorra de ato exclusivo da Administração: (i) prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido, (ii) devolução da garantia, (iii) pagamentos devidos pela execução do contrato até a data de extinção e (iv) pagamento do custo da desmobilização.
A incursão sobre o arco histórico dos diplomas legais que disciplinaram, e que ainda disciplinam, as contratações públicas no Brasil, demonstram que essa omissão não possui status de mera lacuna jurídica, mas de verdadeiro de silêncio eloquente, pois a deficiência sobre a regramento do instituto no Decreto-Lei n. 2.300/1986 e na Lei 8.666/93 foi novamente reforçado na Lei 14.133/2021, apesar do Código Civil de 2002 separar os prejuízos efetivos e os lucros cessantes em duas categorias autônomas nos arts. 402 e 403.
4 DOUTRINA SOBRE OS LUCROS CESSANTES NA RESILIÇÃO DOS CONTRATOS ADMINISRATIVOS: INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO INFRACONSTITUCIONAL ESPECÍFICO
O exame, no capítulo anterior, do arco histórico legislativo sobre a disciplina das contratações públicas, bem como sobre a legislação vigente, foi importante para se depreender que o direito à reparação dos lucros cessantes, pelo menos sob essa fisionomia semântica, não foi, expressa e literalmente, assegurado ao contratado nos casos de rescisão por ato lícito da Administração Pública.
Não há na legislação de contratos administrativos, à semelhança do art. 1.059 do Código Civil de 1916 e dos arts. 402 e 403 do Código Civil de 2002, qualquer indicação ao direito (i) “do que razoavelmente deixou de lucrar” ou aos (ii) “lucros cessantes” propriamente ditos.
Apesar da omissão do legislador, predomina na bibliografia a tese pelo pagamento dos lucros cessantes nos contratos administrativos rompidos por ato da Administração, ainda que a ruptura seja fundada em razões de interesse público.
Para justificar esse posicionamento, distintos fundamentos jurídicos são invocados para embasar o direito à indenização, os quais foram sumarizados nesse breve estudo: (i) justa indenização assegurada na Constituição (5º, XXV)[8], (ii) garantia constitucional do equilíbrio econômico-financeiro, (iii) aplicação subsidiária das disposições do Código Civil; (iv) os prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido o contratado (§2o do art. 138 da Lei nº 14.133/2021).
Todavia, pelas razões jurídicas inicialmente examinadas no capítulo anterior, não se partilha dessa posição.
O exame da legislação vigente, bem como da que lhe antecedeu, permite concluir que há silêncio eloquente do legislador sobre à tutela dos lucros cessantes nas contratações públicas, e não mera lacuna jurídica passível de integração mediante a aplicação subsidiária do Código Civil (“fuga para o direito privado”[9]).
Ilustra essa tendência, de fuga para o Direito Privado, a posição de Joel de Menezes Niebuhr, para quem a “Lei n. 8.666/93 não trata adequadamente do assunto, é omissa e, portanto, remete ao Direito Privado. Insista-se que, de todo modo, a indenização deve ser ampla, albergando danos emergentes, lucros cessantes e danos morais, tudo da mesma forma que ocorre em contratos privados” (sem destaques no original)[10].
Por outro lado, José Guilherme Giacomuzzi, que realizou importante estudo comparatista dos contratos públicos, adverte que a “lei, porém, nada diz sobre os lucros cessantes”.[11] E, de fato, a lei é silente.
O silêncio enfático do legislador justifica-se para atender o interesse público tutelado pelo regime jurídico das contratações públicas, pois se a Administração Pública fosse compulsada a ressarcir o contratado até dos lucros cessantes, esvaziar-se-ia a sua prerrogativa de rescisão unilateral, pois, neste caso, seria equiparada ao particular e, portanto, seria inútil a prerrogativa de rescindir unilateralmente o contrato.
Nesse sentido, o Ministro Herman Benjamin, em voto vencido proferido nos Embargos de Divergência em REsp nº 737.741-RJ, manifesta-se que não “faz sentido aplicar as regras de Direito Privado estabelecidas no Código Civil, esvaziando-se por inteiro o regime especial e colocando no mesmo patamar contratos administrativos e contratos privados”[12]. Por fim, conclui que o não pagamento de lucros cessantes não implica em injustiça, pois:
Se passasse pela imaginação e o desejo do legislador prever os lucros cessantes, ele o teria dito aqui, expressamente. Trata-se, a meu ver, de silêncio eloqüente. Porque falou do óbvio e, com muito maior razão, deveria ter tratado do que não o é.
E por que não é óbvio? Aqui encerro. Não é óbvio e não se cria injustiça alguma porque a expectativa do contratante particular no contrato administrativo não é igual à dos contratantes em avença privada. Ele sabe que, ao contratar, se submete aos regramentos e limites da lei de vigência, neste caso o Decreto 2.300/1986 mais a Lei 8.666/1993, e que a sua expectativa legítima, no caso de rescisão, no máximo, limita-se a não sofrer prejuízos. Noutras palavras, ele não sai do contrato com menos do que entrou.[13]
Dando prosseguimento, é forçoso reconhecer que, a partir de uma interpretação literal, que as locuções “deixou de lucrar” e “lucros cessantes”, respectivamente positivadas nos artigos 402 e 403 do Código Civil, jamais foram empregadas na legislação para as contratações públicas.
Além destas expressões não estarem expressamente internalizadas na legislação que disciplina os contratos administrativos, não se pode estender o sentido da oração “prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido”, contida no §2o do art. 138 da Lei nº 14.133/2021, para alcançar os lucros cessantes.
A locução jurídica “houver sofrido” está construída no particípio do passado, razão pela qual esse modal refere-se ao estado de coisas realizadas, e não ao estado de coisas porvir.
Se o prejuízo já foi sofrido, conforme indica o particípio do passado, significa que o prejuízo a que se refere o signo é o do estado de uma ação depois de terminada, e não a do estado de uma ação por acontecer.
Noutra palavras, o prejuízo efetivamente sofrido reconduz ao dano emergente e apenas esta forma de indenização foi abrigada pela Lei nº 14.133/2021. Por outro lado, os prejuízos futuros, que remetem aos lucros cessantes e que se expressam por outro variação de modal, não foram contemplados nessa Lei. Neste último caso, a função sintática da oração demandaria a utilização de outro modal que não o do particípio passado para se reportar aos lucros cessantes, pois essa modalidade de dano se refere a um dano futuro, isto é, “ainda por acontecer”.
Portanto, o lucro cessante não está contemplado textualmente no enunciado da Lei nº 14.133/2021.
Diante desse relato, caso fossem admitidos os lucros cessantes nas extinções de contratos públicos, a priori, o fundamento jurídico-positivo deveria encontrar respaldo em norma-regra contida em outro diploma legal ou em norma-princípio, mas não na Lei nº 14.133/2021, sucedâneo vigente da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que não abrigou essa tutela de direito[14].
É por essa razão que Bernardo Strobel Guimarães, por exemplo, socorre-se de fundamento constitucional para legitimar o pagamento de lucros cessantes nas resilições de contratos administrativos[15].
Beatriz Monzillo de Almeida defende a inexistência do dever da Administração de pagar lucros cessantes ao contratado na hipótese de rescisão unilateral do contrato por motivo de interesse público, posição a qual nos filiamos. A exposição clara e didática da autora merece transcrição literal do seguinte trecho, in verbis:
A lei não possui palavras inúteis, desta forma, se o conceito de lucro cessante estivesse compreendido dentro da locução "prejuízos regularmente comprovados", o artigo 403 daquele diploma legal não os teria distinguido, verbis.
[...]
Em verdade, prejuízos e lucros cessantes não se confundem. Ambos são espécies do gênero "perdas e danos", conforme previsto no artigo 402 do Código Civil, vejamos:
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar. (grifou-se)
Interpretando-se o dispositivo acima, percebe-se que, quando a lei se refere a "perdas e danos", estão abrangidos os prejuízos e os lucros cessantes. No entanto, quando a lei menciona apenas os prejuízos, parece claro que se refere apenas ao que o sujeito efetivamente perdeu, e não ao que ele razoavelmente deixou de lucrar. Logo, se a Lei de Licitações determinou apenas o ressarcimento dos prejuízos - e não o pagamento de perdas e danos - não se pode presumir que os lucros cessantes sejam devidos. Agiu com acerto o legislador da Lei de Licitações. De fato, segundo a didática explicação de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, pagar "perdas e danos" significa indenizar aquele que experimentou um prejuízo, uma lesão em seu patrimônio material ou moral, por força do comportamento ilícito do transgressor da norma". Em outras palavras, o pagamento de tal verba é uma "punição" àquele que agiu de forma ilícita ou culposa.
Salta aos olhos, portanto, a impertinência de se falar em "perdas e danos" na hipótese em que a Administração Pública extingue o contrato por razões de interesse público. Isso porque, sendo tal rescisão expressamente permitida em lei, evidente que não se trata de inadimplemento contratual e muito menos de comportamento ilícito ou culposo do ente público.
Ora, se a Administração não praticou ato ilícito e nem culposo, por que a Lei de Licitações prevê o ressarcimento do prejuízo em tal hipótese? Ao que parece, tal previsão tem fundamento no princípio da repartição equitativa dos ônus, segundo o qual um indivíduo não pode suportar isoladamente os prejuízos decorrentes de atos administrativos praticados no interesse de todos.
Como se pode perceber, o parágrafo segundo do artigo 79 da Lei de Licitações não é um dispositivo arbitrário, exorbitante ou injusto. Pelo contrário, caso a rescisão em exame fosse apreciada sob a ótica do Direito Privado, talvez o particular sequer tivesse direito ao ressarcimento dos prejuízos, pois, conforme já visto, a falta de culpa exonera o devedor do dever de ressarcir.”[16]
Assim, não se depreende do § 2º, art. 138, Lei 14.133/2021 a autorização para indenização de lucros cessantes, mas apenas de danos emergentes, na medida em que quando a extinção decorrer de culpa exclusiva da Administração, o contratado será ressarcido apenas pelos prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido.
5 a jurisprudência predominante sobre o tema e a necessidade de se revisitar as suas premissas.
A doutrina sugere, com certa razão, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a vexata quaestio está pacificada, tendo em vista o precedente fixado em sede de Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 737.741.
De fato, o recurso de embargos de divergência tem a finalidade, justamente, de uniformizar a jurisprudência interna, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sobre a aplicação da legislação federal (art. 1.043, inciso III, do CPC/2015).
No recurso citado, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o dever da Administração de indenizar o contratado na hipótese de rescisão unilateral do contrato por motivo de interesse público abrange não apenas os danos emergentes, mas também os lucros cessantes.[17]
Apesar do status com latitude superior do precedente, a matéria pode e deve ser reapreciada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Desde 2008, ano em que o colegiado do STJ se reuniu para o julgamento do referido dissídio, produziu-se adicional e relevante conhecimento teórico sobre o tema na doutrina especializada.
Ademais disso, é importante sublinhar que o aresto, apesar de dispor de prestígio processual altaneiro na jurisprudência, não foi unânime. O voto vencido e muito bem fundamentado proferido pelo Ministro Herman Benjamin lança argumentos ainda não suficientemente rebatidos pelos seus pares divergentes.
Finalmente, a composição do sodalício oxigenou-se substancialmente nesta década e meia. A esse último fundamento de caráter sociológico, adiciona-se importante aspecto jurídico: a recente alteração do parâmetro normativo interpretado pelo STJ - tendo em vista a revogação da Lei 8.666/93.
Como cediço, o recurso de embargos de divergência visa a uniformização de interpretação da legislação federal tendo em vista pronunciamentos em sentidos distintos proferido pelas turmas do Tribunal.
In casu, o exame e uniformização realizou-se sobre o art. 79, § 2º da Lei 8.666/93 que, recentemente, deu lugar ao § 2º, art. 138, Lei 14.133/2021. Dessarte, o parâmetro normativo foi alterado e, com isso, carece de novo enfrentamento.
É forçoso reconhecer que a nova lei não altera substancialmente o regime indenizatório anterior. Se, de um lado, essa opção do legislador pode justificar a manutenção do precedente, por outro lado, pode corroborar a revisão, diante do reforçado silêncio eloquente na tutela dos lucros cessantes na seara das contratações públicas.
No famoso aresto, o STJ apontou as normas-regras específicas da legislação administrativa para justificar a indenização dos danos emergentes (art. 69, I, § 2º, do Decreto-Lei 2.300/86; art. 79, § 2º da Lei 8.666/93), e, paradoxalmente, reportou-se às normas do Código Civil para os lucros cessantes (CC/2002, art. 402). Logo, é salutar perceber que o próprio STJ não vislumbrou na expressão “prejuízos regularmente sofridos” base normativa suficiente para cobrir os lucros cessantes e, portanto, teve de recorrer ao Código Civil.
Ao não incorporar as locuções “lucros cessantes” ou “do que razoavelmente deixou de lucrar” na Lei 14.133/2021, doravante previstas no Código Civil de 2002 e que foram invocadas para aplicar-se subsidiariamente aos contratos administrativos por força da suposta omissão da Lei 8.666/93, agora, diante da nova oportunidade assegurada ao legislador para integrar a lacuna em 2021, defende-se que, de fato, não houve mera lacuna, mas, silêncio eloquente apto a afastar a incidência do instituto neste campo das contratações.
Por fim, interessante citar precedente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que julgou improcedente o pedido de lucros cessantes formulado por empresa-contratada diante da rescisão por razão de interesse público do contrato entabulado com o Governo do Distrito Federal.
Na espécie, foi realizada licitação para contratação de escola para ministrar aulas de língua inglesa para servidores que atendiam no âmbito da urgência e emergência da Secretaria de Saúde, a fim de capacitá-los para sua atividade-fim no período da copa do mundo de 2014, pelo valor total de quase um milhão de reais.
Ocorre que, não obstante contratada a empresa por pregão para ministrar curso presencial intensivo de conversação na língua inglesa para 819 (oitocentos e dezenove) alunos, o Governo do Distrito Federal apresentou termo de resilição contratual unilateral pouco após firmado o contrato sob o fundamento de superveniente perda do interesse público, tendo em vista que menos de 10% (dez por cento) do total previsto para alunos matricularam-se no curso.
No caso, a rescisão unilateral do contrato administrativo ocorreu sob o fundamento de superveniente falta de interesse público, prevista no inc. XII do art. 78 da Lei n. 8.666/93. A empresa ajuizou ação judicial para pleitear perdas e danos, inclusive os lucros cessantes (lucros que deixou de auferir durante a execução do contrato).
O juiz de piso e o acordão do TJDFT julgaram improcedente o pedido de lucros cessantes. Inclusive, a sentença prestigiou o argumento, também invocado no voto vencido do Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 737.741, no sentido de que a prévia ciência por parte do contratado do regime de prerrogativas do Poder Público para a defesa do interesse público justifica a prerrogativa de rescisão unilateral pela Administração sem direito aos lucros cessantes (expectativas de ganhos).[18]
Todavia, supondo-se que solução distinta fosse aplicada ao caso, várias questões tormentosas se colocariam, tais como: (i) os lucros cessantes poderiam ser pagos mesmo no caso de a Administração rescindir o contrato por intermédio de ato lícito e, neste caso, previsto na minuta do contrato que acompanhou o Edital (insuficiência de alunos para abrir a turma)? (ii) teria a empresa contratada (curso de inglês) direito ao pagamento do que deixou de lucrar razoavelmente no período inicialmente estipulado na avença? (iii) esse período contemplaria, inclusive, aquele projetado com as prorrogações por termo aditivo? (iv) a imposição desse dever não significaria esvaziar a própria prerrogativa da Administração de rescindir unilateralmente o contrato por interesse público e, neste caso, equipará-la a um verdadeiro particular na relação contratual? (v) a indenização do que de lucrar e por atividade não prestada não viola o princípio da indisponibilidade do interesse público?
Estes são os vários pontos que o Tribunal não precisou enfrentar, pois, apesar de entender que o contratado tem o direito à lucros cessantes, no caso, afastou esse direito sob o fundamento de que não os comprovou.
A nosso ver, se, por um lado, é evidente que a empresa contratada responsável pelo curso de inglês deverá ser ressarcida pelos gastos até então efetuados, que se enquadram na categoria de danos emergentes (verbi gratia: compra de equipamentos, materiais e contratação de pessoal), por outro, não parece lógico que aufira lucros por um serviço que não será realizado, que seriam os lucros cessantes.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho, a partir de uma pesquisa jurídico-dogmática, pretendeu reexaminar as premissas jurídicas fixadas na doutrina e na jurisprudência sobre o pagamento de lucros cessantes ao contratado pela Administração em caso de rescisão contratual motivada por ato administrativo fundado em razões de interesse público.
Ao longo da pesquisa, obteve-se uma série de conclusões parciais que, reunidas, confluem para atingir e reforçar o seu resultado final, sumarizadas do seguinte modo:
1. A delimitação do sentido e alcance dos lucros cessantes deve ser melhor examinada pela doutrina publicista para a sua adequada aplicação às hipóteses de extinção prematura dos contratos administrativos, pois a atual fisionomia do instituto, produto de reconhecidos esforços epistemológicos da literatura de direito privado, não leva em consideração a prerrogativa da Administração Pública de rescindir unilateralmente o contrato por razões de interesse público e, tampouco, a exorbitância própria do regime jurídico administrativo para a proteção do interesse público tutelado pelo Ordenamento Jurídico.
2. Predomina na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de se indenizar o contratado por lucros cessantes na resilição dos contratos administrativos, mas sob diversos fundamentos jurídicos para justificar a natureza jurídica desse direito: (i) justa indenização (art. 5º, XXV, CR); (ii) cláusula econômico-financeira (art. 37, XXI, CR); (iii) lucros cessantes previstos no arts. 402 e 403 do Código Civil e (iv) “prejuízos efetivamente comprovados” (§2o, art. 138 da Lei nº 14.133/2021).
3. A incursão sobre o arco histórico dos diplomas infraconstitucionais que disciplinaram, e que ainda disciplinam, as contratações públicas no Brasil demonstram:
3.1. (i) a inexistência de positivação de qualquer signo ou locução jurídica que sirva de moldura semântica para enquadrar direta e adequadamente o direito à indenização de danos materiais sob a modalidade lucros cessantes, à simetria da sua disciplina e terminologia nos arts. 402 e 403 do Código Civil.
3.2. (ii) que omissão legislativa sobre os lucros cessantes na legislação examinada possui natureza jurídica de silêncio eloquente, e não de mera lacuna jurídica, pois a deficiência sobre a regramento do instituto no Decreto-Lei n. 2.300/1986 e, sucessivamente, na Lei 8.666/93, foi igualmente reforçada na Lei 14.133/2021, apesar de, neste hiato temporal, ter sido editado o Código Civil de 2002, que distinguiu nitidamente os “prejuízos efetivos” dos “lucros cessantes” em duas categorias autônomas nos arts. 402 e 403.
4. O direito de ser indenizado por “prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido”, assegurado na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), bem como nos diplomas legais que lhe antecederam (Lei 8.666/93 e Decreto-Lei n. 2.300/1986), refere-se apenas ao direito ao pagamento dos danos emergentes, e não dos lucros cessantes, pois:
4.1. O exame das normas do Código Civil de 1916 e 2012 revelam a existência de duas categorias distintas e autônomas de perdas e danos: (i) os danos emergentes, que são expressos pelos signos “prejuízo” e “prejuízo efetivo” e (ii) os lucros cessantes, também representado pela expressão “deixou de lucrar”.
4.2. A frase “prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido”, contida na Lei 14.133/2021, é oração que apenas pode se referir aos danos emergentes (danos negativos), pois emprega o verbo no modal do particípio do passado, razão pela qual se refere ao estado de uma ação depois de terminada, e não àquela ação por acontecer. Assim, o estudo da norma sob o plano sintático reforça a hipótese jurídica defendida no plano semântico e pragmático: os prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido referem-se aos danos emergentes (já sofridos), pois os que estão porvir referem-se aos lucros cessantes.
5. Finalmente, reconhecer, a priori, o direito à indenização dos lucros cessantes contra o Estado significa negar o próprio regime jurídico de proteção do interesse público e esvaziar a necessidade da prerrogativa especial e exorbitante da rescisão unilateral do contrato instituída em defesa do interesse público. Se a Administração deve pagar até pelos lucros em perspectiva do contratado (mesmo que o dano seja objetivamente provável), então a prerrogativa torna-se oca e, com efeito, as partes nivelam a suas posições jurídicas na relação jurídica contratual.
Diante dos argumentos expostos, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, fixada nos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 737.741, no sentido de que o dever de indenizar o contratado na hipótese de rescisão unilateral por motivo de interesse público abrange os lucros cessantes, carece de mais apropriado aprofundamento, pois erige-se sob inapropriada aplicação subsidiária do Código Civil.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Beatriz Monzillo de. A rescisão do contrato administrativo por razões de interesse público e o pagamento de lucros cessantes pela Administração. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte, ano 9, n. 108, dez. 2010.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Forense, 2021.
GIACOMUZI, José Guilherme. Estado e Contrato: Supremacia do Interesse Público “versus” Igualdade – Um estudo comparado sobre a exorbitância no contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011.
GROTTI, Dinorá. Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada: Lei 14.133/2021. Coordenadores: Augusto Neves Dal Pozzo, Márcio Cammarosano, Maurício Zockun. 1ª ed. São Paulo: Editora RT, 2021.
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Fundamentos constitucionais para indenização dos lucros cessantes em caso de extinção de contratos administrativos por interesse da Administração Pública. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 4, p. 9-29, set. 2013/fev. 2014.
HOOG, Wilson Alberto Zappa. Perdas, danos e lucros cessantes em perícias judiciais. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2012.
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015.
[1] STJ - REsp: 1553790 PE 2015/0222835-9, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 25/10/2016, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/11/2016.
[2] HOOG, Wilson Alberto Zappa. Perdas, danos e lucros cessantes em perícias judiciais. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2012. p 190.
[3] Nesse sentido, Bernardo Strobel sustenta que daí “por que a dicção do art. 402 do Código Civil aludir que integram as perdas e danos aquilo que o credor da obrigação “razoavelmente deixou de lucrar”. O advérbio razoavelmente chama precisamente atenção para o fato de que os valores pagos a título de lucros cessantes são incertos (pois futuros), e, portanto, devem ser arbitrados segundo parâmetros de razoabilidade. O que conduz ao seu pagamento é a expectativa justa de que esses lucros ocorreriam caso o evento que causa o dano não se implementasse (GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Fundamentos constitucionais para indenização dos lucros cessantes em caso de extinção de contratos administrativos por interesse da Administração Pública. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 4, p. 9-29, set. 2013/fev. 2014, p. 19)”.
[4] GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 223.
[5] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 479
[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Forense, 2021, p. 301.
[7] GROTTI, Dinorá. Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada: Lei 14.133/2021. Coordenadores: Augusto Neves Dal Pozzo, Márcio Cammarosano, Maurício Zockun. 1ª ed. São Paulo: Editora RT, 2021, p. 625.
[8] Para Bernardo Strobel, o regime constitucional que impõe o dever ao Estado de indenização justa, prévia e em dinheiro constitui um regime protetivo do direito fundamental de propriedade de proteção e, portanto, pode ser invocado para justificar o direito do contratado à indenização por lucros cessantes (GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Fundamentos constitucionais para indenização dos lucros cessantes em caso de extinção de contratos administrativos por interesse da Administração Pública. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 4, p. 9-29, set. 2013/fev. 2014).
[9] A expressão “fuga para o direito privado” é de Fritz FLEINER: “Flucht ins Privatrecht”. (cf.. Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts. 8 ed. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1928, p. 326).
[10] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 515.
[11] GIACOMUZI, José Guilherme. Estado e Contrato: Supremacia do Interesse Público “versus” Igualdade – Um estudo comparado sobre a exorbitância no contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 355.
[12] STJ - EREsp: 737741 RJ 2008/0110646-7, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 12/11/2008, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 21/08/2009.
[13] STJ - EREsp: 737741 RJ 2008/0110646-7, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 12/11/2008, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 21/08/2009.
[14] Compartilha desse mesmo entendimento José Guilherme Giacomuzzi que, após examinar a Lei 8.666/93 (que tem semelhante redação a da Lei nº 14.133/2021), afirma assertivamente: “A lei, porém, nada diz sobre os lucros cessantes (GIACOMUZI, José Guilherme. Estado e Contrato: Supremacia do Interesse Público “versus” Igualdade – Um estudo comparado sobre a exorbitância no contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 355)”.
[15] “O presente estudo visa a defender que os lucros cessantes são integralmente devidos em todos os casos em que a Administração opta — por razões de conveniência e oportunidade suas — por extinguir o contrato administrativo validamente celebrado. Isso porque tais situações equivalem a inequívocos sacrifícios de direito, a fazer incidir as prescrições referentes à desapropriação para tais casos. Além disso, pretende-se advogar a tese de que, em homenagem ao princípio da legalidade, o direito à indenização plena não pode ser restringido pelo instrumento contratual, bem como, em regra, o pagamento da indenização devida deve ser prévio e em dinheiro” (GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Fundamentos constitucionais para indenização dos lucros cessantes em caso de extinção de contratos administrativos por interesse da Administração Pública. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 4, p. 9-29, set. 2013/fev. 2014).
[16] ALMEIDA, Beatriz Monzillo de. A rescisão do contrato administrativo por razões de interesse público e o pagamento de lucros cessantes pela Administração. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte, ano 9, n. 108, dez. 2010.
[17] STJ - EREsp: 737741 RJ 2008/0110646-7, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 12/11/2008, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 21/08/2009.
[18] TJ-DF 20140111711177 DF 0043672-47.2014.8.07.0018, Relator: SANDRA REVES, Data de Julgamento: 18/07/2018, 2ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 03/08/2018 . Pág.: 264/271.
Procurador do Município de Niterói. Mestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-Graduado lato sensu em Direito: Estado e Regulação pela FGV-Rio (LL.M). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa. Professor substituto da Universidade Federal de Viçosa (2008-2009). Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador – IDASAN. Procurador do Estado de Rondônia (2012.1). [email protected] Lattes: [http://lattes.cnpq.br/4128260075865444]. ORCID: [https://orcid.org/0000-0002-8490-9750].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, RAPHAEL DIÓGENES SERAFIM. O (não) cabimento dos lucros cessantes na rescisão unilateral dos contratos administrativos: proposta de revisão do tema Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 fev 2022, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58071/o-no-cabimento-dos-lucros-cessantes-na-resciso-unilateral-dos-contratos-administrativos-proposta-de-reviso-do-tema. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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