RESUMO: O presente artigo analisará a temática da criminologia feminista a partir da investigação do tratamento dado pelas diversas escolas penais ao longo da história a respeito da matéria. Abordará o feminismo nas criminologias para introduzir as perspectivas criminológicas que problematizam o tratamento discriminatório sofrido pelas mulheres. Na esteira do pensamento feminista contemporâneo, questionará a lacuna de estudos sociológicos sobre a relação entre crime e gênero.
Palavras-chave: Feminismo; Criminologia; Crime; Gênero.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Recortes históricos do poder punitivo sobre a mulher. 3. Criminologia feminista. 4. Crime e Gênero. 5. Considerações finais. Referências.
1.INTRODUÇÃO
A criminalização da mulher constitui uma percepção da criminalidade que se encontra há séculos profundamente enraizada nas agências do sistema penal e no controle social informal.
Partindo-se desse referencial, deve-se constatar que a criminologia é uma ciência eminentemente masculina e, por consequência, há ainda uma evidente ausência de produção brasileira que assegure a autonomia de uma criminologia feminista. É notória, assim, a lacuna de estudos sociológicos sobre a relação entre o crime e o gênero.
Atentando para o caráter complexo dos estudos sobre as diversas expressões de criminalidade, bem como para a impossibilidade de se pensar o crime por meio de uma teoria geral de caráter universal, o presente artigo apresenta algumas reflexões acerca das mulheres como protagonistas de determinadas formas de criminalidade, seja como autoras ou como vítimas de delitos.
A construção de um referencial autônomo que permita compreender os diferentes contextos de criminalização e vitimização das mulheres é, portanto, necessária. Indispensável, assim, o desenvolvimento de uma criminologia feminista em respeito às diversidades de feminismos e suas correspondentes epistemologias. A produção desse tipo de conhecimento não se dá em um único campo, pois não é possível analisar a questão de gênero e o encarceramento feminino a partir de limites supostos.
2. RECORTES HISTÓRICOS DO PODER PUNITIVO SOBRE AS MULHERES
O hodierno e persistente tratamento discriminatório sofrido pelas mulheres deve ser compreendido pela construção histórica do feminismo nas criminologias, abarcando o exercício do poder punitivo em relação às mulheres como uma política multifária em atores e formas de atuação, vigilante, repressiva e perseguidora.
A submissão e a reclusão das mulheres já eram incipientes na Palestina de Jesus Cristo: o caráter perigoso, tanto quanto o papel doméstico reduzia fortemente a participação religiosa das mulheres, ou seja, sua expressão pública.
No entanto, a manifestação por excelência do poder punitivo vigilante, perseguidor e repressivo se deu na Inquisição. O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum) surge nesse contexto como um compilado de crenças afirmativas da propensão alardeada da mulher ao delito, estabelecendo uma relação direta entre a feitiçaria e a mulher.
Conforme se observa, não é no período medieval que as mulheres são afastadas da esfera pública, entretanto é a partir da Baixa Idade Média que se constrói um discurso coordenado e orgânico de exclusão e limitação da participação feminina na esfera pública, como também sua perseguição e encarceramento como pertencente a um grupo perigoso. E essa herança do período medieval inquisitorial ainda persiste no que concerne aos processos de criminalização das mulheres, perpetuando um poder punitivo sob as bases de um amplo esquema de sujeição, que teve nas mulheres seu principal alvo.
Com efeito, denota-se que ao longo dos tempos sempre existiu uma política criminal em relação à mulher fundada em causas biológicas que vão da histeria ao estereótipo masculinizado. O estabelecimento pode ter variado do convento ao presídio, para o manicômio ou casa de saúde. Mas a lógica do encarceramento da indesejável é a mesma (MENDES, 2014).
Entre o final da Idade Média e o início século XIX não há efetivamente um pensamento criminológico sobre a condição e a repressão e perseguição das mulheres, de modo que toda a liberdade e o garantismo da escola clássica em nada se refletiram para significativa parcela da humanidade.
A partir do momento que a autonomia da criminologia, enquanto ciência, passa a ser reivindicada, identifica-se habitualmente dois paradigmas fundamentais: o paradigma
etiológico, sobre o qual está assentada aquela que se convencionou chamar de criminologia tradicional – portanto, uma criminologia que se desenvolve a partir de uma perspectiva positivista –, e o paradigma da reação social, que edifica toda a crítica criminológica do século XX – que, apesar de ramificar-se em diferentes tendências, tem em comum o traço de não reconhecer o crime como dado pré-constituído (BARATTA, 1999).
A criminalidade foi construída com base em conceitos masculinos, reproduzindo a ordem patriarcal do gênero, subjugando a mulher. A criminologia, dentre as várias ciências, talvez tenha sido a que mais se aprisionou a esse androcentrismo, com seu universo até então inteiramente centrado no masculino, seja pelo objeto do saber (o crime e os criminosos), seja pelos sujeitos produtores do saber (os criminólogos). Portanto, na criminologia tradicional a visão da mulher era de um ser volátil, facilmente influenciável, fraco de caráter e de físico, por isso também, a necessidade de sua custódia, sua proteção, pelo pai, pelo marido e pelo Estado.
O positivismo marcado notadamente pelos estudos de Cesare Lombroso atualizou historicamente a ideologia criminalizante da Inquisição, marcada pelo método patologizante que só aparentemente abandona o caráter religioso e se agarra no cientificismo. Para a mulher, a moral religiosa prevalece implicitamente no discurso repressivo. Consolida-se nesse contexto um discurso médico e jurídico legitimante do exercício do controle social sobre a mulher, reforçando os papéis sexuais a partir de dados ontológicos naturais.
Ao longo de todo o desenvolvimento das teorias etiológicas individuais, a natureza criminosa do comportamento jamais foi confrontada a partir de uma análise das relações socioeconômicas e políticas que condicionam os processos de criminalização (BARATTA, 1999). O enfoque era estritamente segundo a natureza feminina, tratando como reflexo desta qualquer aspecto social do comportamento da mulher criminosa e ignorando a distinção entre sexo e gênero.
É somente a partir da teoria estrutural-funcionalista da anomia, introduzida inicialmente por Durkheim ao fim do século XIX, que a criminologia faz a virada sociológica que a caracteriza até hoje e que representa a primeira crítica ao modelo criminológico que buscava a causa do fenômeno criminal nos defeitos biopsicológicos do indivíduo (BARATTA, 1999). Assim, a relevância das teorias estrutural-funcionalistas no tocante à mulher está justamente em perceber que as características biopsicológicas do indivíduo não são decisivas para o comportamento criminoso, de modo que a compreensão do fenômeno criminal está muito mais atrelada à estrutura da sociedade e ao local de pertencimento do indivíduo a ela.
Superando de vez a criminologia tradicional, a Criminologia Crítica se apresenta com a proposta de ruptura da criminologia clássica, divergindo das demais criminologias quanto ao conceito e aos fatores do crime, já que analisa todas as condições sociais do indivíduo e a contribuição da sociedade para aquela conduta criminosa. Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 51) dispõe:
A Criminologia Radical – ao contrário da criminologia tradicional, limitada à definição, julgamento e punição do criminoso isolado, explicando o crime por relações psicológicas como vontade, intenções, motivação, etc. –vincula o fenômeno criminoso à estrutura de relações sociais, mediante conexões diacrônicas entre criminalidade e condições sociais necessárias e suficientes para sua existência.
Nada obstante, a Criminologia Crítica não foi capaz de abordar questões de gêneros e de certos grupos femininos que, por consequência, também sofriam por estas questões características, destacando os processos de criminalização da violência de gênero, que até então não eram objeto da criminologia. Fato é que as correntes criminológicas críticas falharam tanto quanto as antigas em não adotar uma perspectiva feminista. Como ocorre em todo o âmbito jurídico, a questão feminina permaneceu oculta, subordinada – e falsamente incluída – a um discurso androcêntrico acerca do crime e do criminoso.
3. CRIMINOLOGIA FEMINISTA
A produção da teoria feminista ocorreu em plena mudança paradigmática provocada pela chamada pós-modernidade. Foi em meio à crise epistemológica que marcou o fim das grandes narrativas, que o pensamento feminista se consolidou como uma das mais importantes vertentes teóricas das últimas décadas.
A partir da segunda metade do século XX a mulher, como sexo e como gênero, passa a ser definitivamente parte do interesse das ciências criminais.
A criminologia feminista apresenta por base fundante a diferenciação da criminalidade quanto ao gênero, isto é, os estudos de gênero, afastando-se da criminologia tradicional que traz a figura masculina como principal foco de estudos criminológicos.
O perfil mais crítico da criminologia feminista desenvolveu-se, principalmente, a partir das décadas de 70 e 80. Adotaram como ponto de partida não mais a “mulher desviante”, mas as circunstâncias que as afetam e a outros grupos marginalizados socialmente, assim “[...] compreenderam a intervenção penal como mais uma faceta do controle exercido sobre as mulheres, uma instancia em que se reproduzem e intensificam as condições de opressão mediantes a imposição de um padrão de normalidade.” (MAVILA, 2004).
Vale ressaltar que a análise de gênero não deve ser colocada de forma isolada nos estudos criminológicos, visto que a discriminação não é a mesma para todas, mas perpassa por variados âmbitos dentro das próprias questões de gênero, dando espaço para novos paradigmas criminológicos com a inclusão de marcadores sociais no campo da criminologia.
Assim, embora seja evidente que existam inúmeras vertentes teóricas que pensam as relações entre feminismo e direito, todas reconhecem um pressuposto fundamental (RENZETTI, 2013): intrínseco à organização de toda estrutura social está o gênero, como produto histórico, cultural e socialmente condicionado, derivado de distinções biológicas
sexuais ou reprodutivas, mas não a elas reduzido. Não se trata mais, como o fazia a criminologia tradicional, de perceber o gênero como simples variável ou estatística (HEIDENSOHN; SILVESTRI, 2012). Isso significa que, embora não se possa ignorar o aspecto biológico que informa o gênero, esta não é uma categoria determinada ou imutável, mas que se constrói e se reproduz na estrutura social: a complexidade das relações de gênero são refletidas nas estruturas e instituições sociais e são por elas também informadas.
Infere-se, por fim, que a criminologia feminista não só incluiu as mulheres na discussão das teorias criminológicas como, em seu desenvolvimento, trouxe a importância de discutir pautas para além das questões isoladamente de gênero, reconhecendo os novos e diferenciados sujeitos do feminismo.
4. CRIME E GÊNERO
É fato que pouco se discute a respeito do entendimento e identificação das mulheres em práticas delitivas, notadamente em posição de liderança criminosa. Nos discursos tradicionais da criminologia, a mulher foi genericamente ignorada ou analisada com base nos estereótipos de gênero inerentes ao discurso social dominante. Especificamente no caso da mulher transgressora, as perspectivas feministas têm criticado a conceptualização da criminalidade feminina com base, por exemplo, em fatores biológicos ou em estereótipos de gênero.
Com efeito, o movimento feminista por meio de suas abordagens no campo criminológico tem contribuído para o fomento da desconstrução dos discursos tradicionais sobre feminilidade e transgressão, nomeadamente do modo estereotipado como a mulher e o seu desvio vêm sendo representados ao longo dos séculos. Possibilita, assim, que a mulher transgressora deixe de ser considerada duplamente desviante e associada a crimes ‘tipicamente femininos’, resultantes da heterodeterminação e irracionalidade da mulher.
Há, portanto, dois elementos que são centrais para trabalhar crime e gênero: capitalismo e patriarcado. A realidade social está configurada pela formação econômico-social capitalista, que acentua a contradição fundamental de todos os modos de produção anteriores pela apropriação privada dos meios de produção e do produto do trabalho. Além disso, a dominação e subjugação específica que atinge as mulheres se dá na forma do patriarcado, como estrutura fundamental e análoga ao próprio capitalismo. Isso significa que não se trata de entender a opressão à qual estão submetidas as mulheres como um problema de origem singular e particularizada, mas como opressão estrutural, enquanto conjunto de disposições que condicionam a sociedade e determinam a dominação do gênero masculino sobre o feminino.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode olvidar que o pensamento feminista ainda é marginalizado na criminologia. A exclusão e discriminação das mulheres no palco dos discursos criminológicos pode ser justificada como fruto do reflexo da subordinação estrutural à qual estão submetidas marcado pela dominação estrutural do patriarcado.
De fato, a análise sobre o gênero na criminologia deve estar associada à percepção da negligência histórica da questão na criminologia.
Buscou-se, assim, demonstrar a importância e reforçar a necessidade de perspectivas criminológicas feministas frente ao processo estrutural histórico de exclusão das mulheres na criminologia. Por meio de uma análise histórico-criminológico da criminalização da mulher remontou-se a recortes históricos do poder punitivo exercido sobre as mulheres como uma política vigilante, perseguidora e repressiva, bem como a questionamentos quanto aos silêncios que ainda marcam os estudos criminológicos quanto à figura feminina.
Desse modo, a união entre a criminologia e o feminismo se faz imperiosa, ensejando por via de consequência o entrelaçamento entre a criminologia e as ciências sociais, capaz de criar uma verdadeira epistemologia feminista que refute a tendência de se pensar a mulher como um ser passivo e emocionalmente determinado.
REFERÊNCIAS
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Pós Graduada em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos na Internet (CEI). Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016). Advogada na cidade de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVICHIOLI, Mirela. O feminismo na criminologia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 fev 2022, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58091/o-feminismo-na-criminologia. Acesso em: 23 dez 2024.
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