RESUMO: Conforme dispõe o art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, a Administração Pública tem o dever de indenizar os danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. No tocante especificamente aos detentos do sistema carcerário, a Constituição da República dispõe que é obrigação do Estado assegurar o cumprimento dos seus direitos e deveres, garantindo-lhes condições dignas de vida no interior do estabelecimento, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o presente artigo se propõe a analisar o tipo e a abrangência da responsabilidade atribuída ao Estado quando danos são causados aos detentos e o entendimento dos Tribunais Superiores a respeito do tema.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil do Estado. Sistema carcerário. Reclusos. Administração Pública. Direitos e garantias constitucionais.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da responsabilidade civil objetiva do estado. 2.1. Teoria do risco administrativo. 2.2. Teoria do risco integral. 2.3. Teoria do Risco Suscitado ou Risco Criado. 2.4. Teoria adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando o dano decorre de omissão estatal. 3. Da responsabilidade civil do estado perante os detentos. 4. Considerações finais. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, o Estado não era responsável pelos danos causados em razão de sua atuação. Diante dos abusos cometidos, passou-se a entender que a Administração deveria ser responsabilizada somente quando atuasse no âmbito privado (atos de gestão), permanecendo a irresponsabilidade em relação aos atos de império.
Posteriormente, entendeu-se que essa distinção não seria suficiente e, então, surge o posicionamento de que o Estado responderia por seus atos se a vítima comprovasse que o agente estatal responsável pela conduta agiu com dolo ou culpa (teoria civilista).
Em virtude da excessiva onerosidade imposta ao ofendido, o qual, muitas vezes, não conseguia comprovar a culpa ou o dolo do agente, emerge a teoria da responsabilidade do estado pela culpa administrativa (culpa do serviço ou faut du service ou culpa anônima), bastando que a vítima comprovasse que o serviço estatal foi mal prestado, prestado de modo ineficiente ou com atraso.
Representando um grande avanço, surge a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, preconizando não ser necessária a comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa), bastando estar presente a conduta, o dano e o nexo de causalidade, sendo subdividida pela doutrina e jurisprudência em teoria do risco administrativo e teoria do risco integral, cuja distinção está relacionada à possibilidade ou não de se invocar causas excludentes de responsabilidade.
Nessa ordem de ideias, o presente artigo apresentará as controvérsias existentes no tocante à responsabilidade civil por danos causados aos que estão custodiados pelo estado e qual o entendimento dos Tribunais Superiores.
Utilizou-se, como metodologia, da análise de diversos julgados das Cortes Superiores sobre a matéria. Ademais, também foram estudadas as produções doutrinárias relacionadas com a temática, tendo se utilizado como base, ainda, as disposições do ordenamento jurídico concernentes à matéria.
2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO
O ordenamento jurídico brasileiro adota, como regra, a responsabilidade civil objetiva (art. 37, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), a qual possui três elementos essenciais: a conduta, o dano e o nexo de causalidade.
A conduta é aquela praticada por um agente público – em seu sentido amplo – que, valendo-se do seu ofício ou em razão dele, venha a ocasionar o dano. “Desse modo, se causar dano a terceiro no correr de sua vida privada, sua responsabilidade é pessoal e regida pelo Direito Civil” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 376).
A conduta que enseja a responsabilidade estatal pode ser lícita ou ilícita. Com efeito, mesmo havendo licitude há o dever de indenizar em razão do princípio da isonomia, como no caso de um ato administrativo de interdição de via urbana para reformas que, embora lícito, causem prejuízos significativos aos proprietários de edifícios-garagem.
Por outro lado, o ato ilícito impõe a responsabilização em virtude do princípio da legalidade, como, por exemplo, na hipótese da prática de tortura contra um preso, conduta absolutamente vedada pela ordem jurídica.
No que se refere ao dano, entende-se que não é necessário que seja econômico, tendo em vista que danos extrapatrimoniais também são indenizáveis.
Nos casos de lesões por atos lícitos, impõe-se a comprovação dos danos específicos para haver a reparação civil. Isso se justifica pelo de que os atos que geram danos gerais e usuais decorrem da própria atuação do Estado na vida cotidiana dos cidadãos (risco social).
Para Carvalho (2017, p. 344) existem atos que geram, concomitantemente, danos gerais e normais para alguns e danos anormais e específicos para outros (teoria do duplo efeito dos atos administrativos). Cita o exemplo de uma ferrovia de transporte de cargas que foi desativada e causou um dano anormal a uma fábrica que dela dependia. Essa fábrica sofreu um dano anormal, não usual, e por isso merece a reparação civil. Tal hipótese, contudo, não implica indenização a um morador da região que dela não dependia para nada, pois para ele o dano foi normal.
Por último, o nexo de causalidade é conceituado como o liame existente entre a conduta e a lesão. Adota-se a teoria da causalidade adequada, a qual condiciona a existência do nexo somente quando a conduta do agente público for realmente determinante para a ocorrência do dano.
2.1. Teoria do risco administrativo
A referida teoria admite a invocação de causas excludentes do nexo de causalidade, como a culpa exclusiva da vítima, o caso fortuito e a força maior.
A culpa exclusiva da vítima exclui a responsabilidade quando a vítima é a única responsável pelo dano que sofreu. Inexiste, portanto, um dos pressupostos da obrigação de reparar. Um exemplo é aquele em que um motorista está dirigindo em alta velocidade, embriagado e vem a colidir com uma viatura da polícia estacionada em local adequado. Nesse caso é fácil perceber que o Poder Público não contribuiu em nada para a ocorrência do prejuízo, não devendo indenizar a vítima simplesmente pelo fato de que aquele colidiu com um veículo estatal.
No tocante ao caso fortuito e à força maior, a doutrina majoritária entende que esta é originada de um acontecimento humano (como o roubo e a greve) e aquela surge de eventos da natureza (como tempestades e terremotos). Em complemento, dispõe Cunha Júnior (2015, p. 370):
[...] independentemente do conceito que se venha adotar, elas são, e somente são, causas excludentes de responsabilidade, na medida em que impeçam o nexo causal entre o comportamento estatal e o dano e que, ademais, não exista nenhuma outra causa paralela atribuída ao Estado que possa também haver contribuído para a provocação do dano. Caso contrário, não podem assim ser qualificadas. Explico melhor a partir do seguinte exemplo: imagine-se um roubo dentro de um ônibus operado por uma concessionária de serviço público de transporte coletivo. Evidentemente, a concessionária vai alegar força maior/caso fortuito (o roubo) para eximir-se da responsabilidade pelos danos que os usuários do serviço suportaram. Todavia, impõe-se verificar, junto aos elementos do caso concreto, se a rota coberta pela concessionária era imune a abordagens de assaltantes e se a empresa havia adotado todos os procedimentos de segurança necessários para garantir o bem estar dos usuários. Caso a rota seja um trecho conhecido pela prática frequente de assaltos e a empresa, sabendo desse fato, tenha se omitido de adotar os procedimentos de segurança (como escolta armada, etc.) haverá, nesse caso, uma concausa, isto é, uma causa paralela ao roubo, atribuível à concessionária, que consiste na omissão de prestar um serviço seguro, que contribuiu para o dano sofrido.
Por sua vez, Bandeira de Mello (2009, p. 526) entende não ser possível invocar o caso fortuito para afastar o direito de reparação:
O caso fortuito não é utilmente invocável, pois, sendo um acidente cu-ja raiz é tecnicamente desconhecida, não elide o nexo entre o com-portamento defeituoso do Estado e o dano produzido. O porquê da in-correta atuação do Estado não interfere com o dado objetivo relevan-te, a saber: ter agido de modo a produzir a lesão sofrida por outrem.
2.2. Teoria do risco integral
Para Carvalho (2017, p. 346) “a teoria do risco integral parte da premissa de que o ente público é garantidor universal e, sendo assim, conforme esta teoria, a simples existência do dano e do nexo causal é suficiente para que surja a obrigação de indenizar”.
Gasparini (2011, p. 1.114) faz uma interessante exposição em relação à essa teoria:
Por teoria do risco integral entende-se a que obriga o Estado a indenizar todo e qualquer dano, desde que envolvido no respectivo evento. Não se indaga, portanto, a respeito da culpa da vítima na produção do evento danoso, nem se permite qualquer prova visando elidir essa responsabilidade. Basta, para caracterizar a obrigação de indenizar, o simples envolvimento do Estado no evento. Assim, ter-se-ia de indenizar a família da vítima de alguém que, desejando suicidar-se, viesse a se atirar sob as rodas de um veículo, coletor de lixo, de propriedade da Administração Pública, ou se atirasse de um prédio sobre a via pública. Nos dois exemplos, por essa teoria, o Estado, que foi simplesmente envolvido no evento por ser o proprietário do caminhão coletor de lixo e da via pública, teria de indenizar. Em ambos os casos os danos não foram causados por agentes do Estado. A vítima os procurou, e o Estado, mesmo assim, teria de indenizar.
Os Tribunais Superiores reconhecem a incidência da responsabilidade objetiva, firmada pela teoria do risco integral, no caso de danos ambientais, veja-se:
RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AMBIENTAL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. DANOS DECORRENTES DO ROMPIMENTO DE BARRA-GEM. ACIDENTE AMBIENTAL OCORRIDO, EM JANEIRO DE 2007, NOS MUNICÍPIOS DE MIRAÍ E MURIAÉ, ESTADO DE MINAS GE-RAIS. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. NEXO DE CAUSALIDADE. 1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: a) a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua obrigação de indenizar; b) em decorrência do acidente, a empresa deve recompor os danos materiais e morais causados e c) na fixação da indenização por danos morais, recomendável que o arbitramento seja feito caso a caso e com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível socioeconômico do autor, e, ainda, ao porte da empresa, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de modo que, de um lado, não haja enriquecimento sem causa de quem recebe a indenização e, de outro, haja efetiva compensação pelos danos morais experimentados por aquele que fora lesado. 2. No caso concreto, recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1374284/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/08/2014, DJe 05/09/2014)
Carvalho (2017, p. 346) cita, ainda, outros casos de responsabilidade integral: os danos decorrentes de atividade nuclear exercida pelo Estado ou autorizada pelo mesmo; os acidentes de trânsito para o recebimento do seguro obrigatório do DPVAT; os crimes ocorridos a bordo de aeronaves que estejam sobrevoando o espaço aéreo brasileiro e danos resultantes de ataques terroristas.
2.3. Teoria do Risco Suscitado ou Risco Criado
A teoria do risco criado é aplicada nos casos em que o próprio Estado enseja situações de riscos diferenciados e específicos, como, por exemplo, quando enclausuram um indivíduo dentro de um presídio em razão da prática de um crime.
Nessas ocasiões, caso um dano venha efetivamente a ocorrer contra o detento, o Estado será objetivamente responsável pela reparação. Carvalho (2017, p. 349) acrescenta que a responsabilidade subsistirá mesmo que ocorra um fortuito interno que só foi possível em virtude da custódia estatal:
Em tais situações, a doutrina especializada entende que o Estado responderá, ainda que haja uma situação de caso fortuito, bastando a comprovação de que este fortuito só foi possível em virtude da custódia do ente estatal. Tal situações é o que a doutrina designa fortuito interno (ou caso fortuito). Logo, se, por exemplo, uma rebelião de presos causa a morte de um refém, o estado é responsável, não podendo alegar que se trata de caso fortuito. Em sentido contrário, se um preso é atingido por um raio dentro do presídio, a princípio, não haveria responsabilização do Estado, haja vista o dano decorrer de um fortuito externo (ou força maior), ou seja, totalmente alheio e independente da situação de custódia.
2.4. Teoria adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando o dano decorre de omissão estatal
Em sentido contrário à posição majoritária da doutrina e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal vem adotando, nos últimos anos, o entendimento de que no caso de omissão estatal a responsabilidade do Poder Público é também objetiva.
Referido posicionamento decorre da exegese do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, cujo texto não restringe a responsabilidade à ação do poder público. Assim, não poderia o intérprete criar distinções onde o texto constitucional não o fez. Veja-se a ementa do julgado:
Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Responsabilidade civil do Estado. Juiz de Paz. Remuneração. Ausência de regulamentação. Danos materiais. Elementos da responsabilidade civil estatal não demonstrados na origem. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que as pessoas jurídicas de direito público respondem objetivamente pelos danos que causarem a terceiros, com fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, tanto por atos comissivos quanto por atos omissivos, desde que demonstrado o nexo causal entre o dano e a omissão do Poder Público. 2. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame de fatos e provas dos autos. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. O Plenário da Corte, no exame da ADI nº 1.051/SC, Relator o Ministro Maurício Corrêa, entendeu que a remuneração dos Juízes de Paz somente pode ser fixada em lei de iniciativa exclusiva do Tribunal de Justiça do Estado-membro. 4. Agravo regimental não provido. (ARE 897890 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 22/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-208 DIVULG 16-10-2015 PUBLIC 19-10-2015, grifo nosso)
No mesmo sentido preconiza Tepedino (2008, p 221):
Não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando de legislador constituinte – ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. A Constituição Federal, ao introduzir a responsabilidade objetiva para os atos da administração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base em outros princípios axiológicos e normativos (dentre os quais se destacam o da isonomia e o da justiça distributiva), perdendo imediatamente base de validade qualquer construção ou dispositivo subjetivista, que se torna, assim, revogado ou, mais tecnicamente, não recepcionado pelo sistema constitucional.
3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PERANTE OS DETENTOS
Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a garantia da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988), a qual é assegurada também para os presos, que, inclusive, possuem direitos específicos que lhes são garantidos, in verbis:
Art. 5º [...]
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...]
XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;
XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
Relevante mencionar que as normas constitucionais acima transcritas possuem aplicação imediata, não podendo ser entendidas como meras normas programáticas. Com efeito, os direitos e garantias fundamentais possuem força normativa, não se apresentando como simples promessas, de acordo com o artigo 5º, § 1º da Constituição.
Em consonância com o mandamento constitucional, a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210 de 1984) confere aos reclusos diversos direitos:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
I - alimentação suficiente e vestuário;
II - atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - Previdência Social;
IV - constituição de pecúlio;
V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI - chamamento nominal;
XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.
Em que pese existir categoria ampla de direitos, a realidade demonstra que esses dispositivos, muitas vezes, não são respeitados. Pelo contrário, os maus tratos, a violência e a precariedade prevalecem no sistema prisional brasileiro. Os assassinatos brutais, rebeliões e demais atrocidades, como as ocorridas recentemente nos sistemas carcerários do Rio Grande do Norte, Roraima, etc., evidenciam uma verdadeira falência da política pública carcerária brasileira.
Não há como se garantir a ressocialização de presos que se encontrem nessa situação. De fato, o que ocorre é o extremo oposto: indivíduos são enclausurados juntos, em celas minúsculas e superlotadas, onde muitas vezes não há a separação entre os criminosos contumazes, que praticam toda sorte de crimes graves, e os criminosos primários, que praticam condutas não tão lesivas quanto aquelas, como, por exemplo, furtos simples. Nesse sentido, assevera Barcellos (2010, p. 26), que “o tratamento desumano conferido aos presos não é um problema apenas dos presos: a sociedade recebe os reflexos dessa política sob a forma de mais violência”.
As prisões praticamente perderam a finalidade pela qual foram criadas, servindo, em verdade, como escolas da delinquência e comportamento antissocial, que ensejam a alta taxa de reincidência em vez da reabilitação.
Diante desse quadro, o Supremo Tribunal Federal possui diversas decisões aplicando a tese da responsabilidade civil do Estado perante os danos causados aos detentos.
Em 03 de março de 2016, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 841.526 do Rio Grande do Sul, sob a sistemática da repercussão geral, fixou a tese no sentido de que se for inobservado o dever específico de proteção dos presos previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição da República, o Estado é responsável pela morte do detento.
Em sentido semelhante, no Recurso Extraordinário número 580.252 do Mato Grosso do Sul (Relator originário Ministro Teori Zavascki, redação para acórdão Ministro Gilmar Mendes) julgado em 16 de fevereiro de 2017, pela sistemática da repercussão geral, a Suprema Corte firmou a posição de que é dever do Estado, imposto pela ordem constitucional e pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade, sendo de sua responsabilidade, de acordo com o artigo 37, §6º da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos causados aos detentos pela falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.
Nesse julgamento, elencou-se diversas normas internacionais e legais que obrigavam o Poder Público a garantir a dignidade dos detentos. Dentre eles, pode-se citar: A Constituição Federal (art. 5º, XLVII, “e”; XLVIII; XLIX); Lei de Execuções Penais (arts. 10; 11; 12; 40; 85; 87; 88); Lei de Tortura; Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, arts. 2; 7; 10; e 14; Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, arts. 5º; 11; 25; Princípios e Boas Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas – Resolução 01/08, aprovada em 13 de março de 2008, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Convenção da ONU contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; e Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros – adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes, de 1955.
Ressaltou-se, ainda, que não se aplicava a tese defensiva da reserva do possível, pois deve ser prestigiada a norma constitucional de eficácia plena que responsabiliza o Poder Público por suas ações e omissão, além de a referida tese não puder ser invocada para eximir-se de cumprir direitos e garantias fundamentais, notadamente a que prestigia a dignidade da pessoa humana.
Registre-se que o Ministro Relator do julgado de 2016 apontou que se aplica a teoria do risco administrativo (e não a teoria do risco integral), sendo possível a invocação de causas excludentes de responsabilidade. Portanto, nem todas as lesões ou mortes (em suas diversas formas de manifestação) ocorridas no contexto da custódia estatal acarretariam necessariamente o dever de reparação pelo Estado.
Assim, no caso de suicídio, por exemplo, deve ser observado todo o histórico do detento e verificado se o Poder Público podia ou não agir para evitar o evento danoso. Se constatado que todas as ações possíveis por parte do Estado não seriam capazes de evitar o trágico evento, a morte não poderia ser imputada à Administração.
De igual modo, no caso de mortes naturais, o Poder Público só seria responsabilizado se, por exemplo, não tivesse garantido assistência à saúde adequada ao detento e tal fato tenha sido determinante para o óbito. Por outro lado, no caso de mortes acidentais, se estas ocorrerem por motivos impossíveis de serem previstos ou evitados pelo Estado, como no caso em que um raio mata um preso que estava no pátio da penitenciária, não seria possível a condenação do estado à reparação do dano.
Nessa linha de intelecção, importante transcrever trecho no voto do Ministro Relator Luiz Fux:
[...] Até mesmo no caso de homicídio, poderá haver situações em que não se poderá responsabilizar o Estado pela morte do detento. À guisa de exemplo, podemos aqui apontar a situação em que um preso mata o outro em legítima defesa. Nessa situação, é o falecido quem age de forma contrária à lei, atentando contra a vida de outro preso, que reage licitamente, matando-o. Ora, se o ato praticado pelo homicida é lícito (artigos 23, inciso II, do Código Penal, e 188, inciso I, do Código Civil) e visa a afastar injusta agressão imputável exclusivamente ao falecido, não há como se sustentar que de tal situação exsurja qualquer dever de reparação pelo Estado. (STF. Plenário. RE 841526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 30/3/2016. Repercussão Geral)
Nessa ordem de ideias, é possível a comprovação de causas impeditivas da atuação protetiva do Estado que evidenciem a ruptura do nexo causal da sua omissão com o resultado danoso.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do estudo realizado, observa-se que o estado vem falhando em garantir o principal objetivo da pena, que é a ressocialização. Com a atual situação do sistema prisional e com a falta de estrutura para o tratamento adequado e o resguardo de direitos dos presos, não há como ser garantido o retorno saudável desses indivíduos à convivência em sociedade.
A execução penal no Brasil, ao contrário, acaba por torná-los mais agressivos e preparados para o cometimento de crimes mais bárbaros e sofisticados, fomentando a criação e fortalecimento de organizações criminosas que reiteradamente vem causando temor e insegurança à população.
Nessa perspectiva, a violação de direitos fundamentais enseja a responsabilidade do Estado. Predomina, atualmente, de acordo com a jurisprudência das Cortes Superiores, a responsabilidade civil objetiva, firmada pela teoria do risco administrativo, sendo necessária a comprovação da conduta (omissiva ou comissiva), o dano e o nexo causal, admitindo-se a invocação de causas excludentes do nexo de causalidade, como a impossibilidade de o estado ter agido para evitar a lesão sofrida pelo recluso.
5. REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado: 1988.
BRASIL, Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 15 fev. 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE DETENTO. ARTIGOS 5º, XLIX, E 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RE 841.526. Relator LUIZ FUX. Data de Julgamento: 30/03/2016. Tribunal Pleno. Data de Publicação: DJe 01/08/2016. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur352983/false>. Acesso em: 15 fevereiro 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ART. 37, § 6º. RE 580252. Relator GILMAR MENDES. Data de Julgamento: 16/02/2017. Tribunal Pleno. Data de Publicação: DJe 11/09/2017. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur373162/false>. Acesso em: 15 fevereiro 2022.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de direito administrativo. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.
BARCELLOS, Ana Paula de. Violência urbana, condições das prisões e dignidade humana. Revista de Direito Administrativo, nº 254, p.85, 2010.
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
TEPEDINO, Gustavo. A evolução da responsabilidade civil no direito brasileiro e suas controvérsias na atividade estatal, in Temas de Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
Servidor Público Federal, Bacharel em direito na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), pós-graduado em Direito Administrativo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIRES, Lucas Maia. Da responsabilidade civil do Estado perante os reclusos no sistema carcerário brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2022, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58097/da-responsabilidade-civil-do-estado-perante-os-reclusos-no-sistema-carcerrio-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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