RESUMO: Em relação ao crime de lavagem de capitais, tem sido comum a utilização pela jurisprudência nacional da teoria da cegueira deliberada para fins de verificação do dolo do agente da conduta delitiva, o que, em alguns casos, nem sempre parece ser a melhor solução. Nesse sentido, a fim de se resguardar os princípios da legalidade, subsidiariedade, segurança jurídica e dever de fundamentação das decisões judiciais, serão estudadas as principais matrizes teóricas que deram ensejo à utilização da referida teoria no Brasil, a fim de que se possa melhor definir e afixar parâmetros seguros ao aplicador do direito, caso entenda pela aplicação desta teoria no caso concreto.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breves Considerações sobre o Delito de Lavagem de Dinheiro; 3. Da Teoria da Cegueira Deliberada. 3.1 Recepção doutrinária; 3.2 Recepção jurisprudencial. 4. A utilização de filtros para o uso da Teoria da Cegueira Deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro. 5. Considerações Finais. 6. Referências.
PALAVRAS-CHAVE: lavagem de capitais; teoria da cegueira deliberada; aplicabilidade.
1. INTRODUÇÃO
Se é certo que, para incorrer na prática do crime de lavagem de dinheiro, é preciso que o agente pratique uma das condutas previstas no tipo penal misto alternativo previsto no artigo 1º da Lei n.º 9.613/98, por outro lado, tendo em vista que no Brasil não se admite a responsabilização objetiva na esfera penal, quanto ao elemento anímico, essencial à configuração do fato típico, as maiores controvérsias residem na prova do dolo, esse último na condição de imprescindível, já que não se pune o delito de lavagem a partir exclusivamente do elemento culposo.
Nesse ponto, a despeito da constatação de uma explosão de estudos e obras jurídicas sobre o tipo penal objetivo do crime de lavagem de capitais, o que muito se justifica em razão de que o delito de lavagem é um crime de forma livre, que pode ser praticado sob as mais diversas formas, o que exsurge uma intrínseca tendência de se estudá-lo, por outro lado, vê-se que tem sido comum a utilização da teoria da cegueira deliberada para fins de verificação do elemento psicológico, sendo esse um ponto que demanda maiores digressões, sobretudo a partir de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, uma vez que seu uso indevido poderá propiciar uma indevida punição penal em situações não previstas pelo legislador, ao arrepio da legalidade.
Ciente dessa necessidade, fazendo-se valer do método dedutivo em todo o trabalho, a partir de uma abordagem qualitativa, com o objetivo explicativo, pretende-se neste artigo, aferir como a doutrina e os tribunais nacionais recepcionaram e aplicam a aludida teoria, bem como, ao final, lançar conclusões acerca da sua viabilidade ou não na persecução penal contra os crimes de lavagem de capitais, à luz da Constituição Federal de 1988 e do Código Penal Brasileiro.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
O crime de lavagem de dinheiro é previsto no artigo 1º da Lei n.º 9.613/98, com redação dada pela Lei n.º 12.683/12, cuja conduta consiste em:
Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
Com a aludida reforma legislativa, observa-se que a legislação que prevê os crimes contra a lavagem de capitais foi erigida ao que se denomina de legislação de 3ª geração, na medida em que, conforme alerta Marcelo Batlouni Mendroni (2013, p. 63), deixa-se ao poder discricionário do Poder Judiciário a emissão do juízo de tipicidade da lavagem de capitais conforme qualquer que seja o delito antecedente, analisando-se, à luz de um caso concreto, suas circunstâncias jurídico-penais relevantes, independentemente de qualquer rol enumerativo das condutas antecedentes a este crime.
Decerto, evidencia-se um importante passo rumo à efetividade da criminalização do delito em comento. De todo modo, para sua ocorrência no mundo sensível, não basta o elemento subjetivo, isto é, a culpa. Isso porque não há previsão legal nesse sentido, tal como determina o art. 18, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro. É necessário, portanto, o dolo para a sua configuração.
Controverte a doutrina acerca de qual seria a natureza do dolo admitida pela legislação. Com efeito, para Sanches (2020, p. 258) o dolo é direto ou tido como intencional quando o agente prevê um resultado, mobilizando sua conduta com a intenção de realizá-lo no mundo dos fatos.
Já o dolo é indireto ou indeterminado (2020, p. 258) quando não se visa um determinado resultado certo e determinado, podendo ser alternativo, quando se prevê uma gama de resultados, dirigindo-se a conduta para consumar qualquer um deles, ou eventual, quando se prevê os mesmos resultados, mas se quer realizar um determinado evento, assumindo-se o risco, porém, de ensejar outro.
Se é certo que não há maiores controvérsias acerca da aplicabilidade do dolo direto quanto ao crime em espécie, por outro lado, ainda ecoam na doutrina maiores dúvidas sobre o reconhecimento do dolo indireto, com ênfase no dolo eventual, especialmente em se tratando da modalidade equiparada à lavagem de capitais, prevista no art. 1º, § 2º, I, da Lei n.º 9.613/98, a seguir descrita:
§ 2o Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;
Para Marcelo Batlouni Mendroni (2013, p. 80), aceitar o dolo indireto em relação à referida conduta seria medida salutar para punir também o agente testa-de-ferro, o que seria coerente com o teor do art. 4º da Lei, para a aplicação, também em relação a ele, das medidas assecuratórias ali previstas.
O referido autor (2013, p. 106), todavia, afirma que não basta que o agente desconfie da atividade criminosa, devendo ser provado, pelos meios possíveis (por exemplo, escuta telefônica), que tal pessoa conhecia a ação criminosa.
Por outro lado, ao que parece seguir parcela intermediária da doutrina, Fausto de Sanctis (2008, p. 51) entende pelo cabimento do dolo eventual apenas nos dispositivos previstos no art. 1º, caput e parágrafo 1º, assim como no § 2º, inciso I, sendo tal posicionamento também adotado por Pierpaolo Cruz Bottini (2015, p. 171).
Em nossa perspectiva, não nos parece razoável afastar, a priori, a aplicação do dolo eventual para fins de tipicidade das hipóteses previstas na Lei n.º 9.613/98, o que costuma ser feito sob o argumento de que essa tese poderia impor ônus excessivo às atividades econômicas e financeiras, tal como conforme defende Pierpaolo Bottini (2015, p. 171), porquanto a origem do dinheiro sempre seria de duvidosa procedência.
Nesse ponto, há de se discordar do referido segmento intermediário, porque reconhecer a inaplicabilidade do dolo eventual se mostraria como uma violação àquilo que o legislador previu no artigo 18 do Código Penal, isto é, o fato do agente ter assumido o risco como fundamento hábil a justificar o dolo para fins de preenchimento do elemento interno da conduta.
Posto isso, passa-se a uma análise da teoria da cegueira deliberada, com vistas à sua aplicabilidade ou não nos crimes de lavagem. Vejamos.
3. DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
Cada vez mais as discussões sobre a possibilidade ou não de se atribuir à teoria da cegueira deliberada a suficiência para a sua configuração enquanto crime de lavagem despertam o interesse da doutrina nacional.
Essa hipótese, a bem da verdade, consiste em saber se o dolo eventual, comumente associado à teoria da cegueira deliberada, pode figurar como elemento subjetivo do crime insculpido no caput do artigo 1º da Lei de Lavagem. É o que se passa a debater.
3.1 Recepção doutrinária
Sobre o assunto, conquanto a doutrina brasileira ainda não adote posicionamento uníssono acerca dessa possibilidade, vale destacar, inicialmente, a perspectiva lançada no Brasil por Sérgio Moro (2007, p. 88), que, com base na construção da jurisprudência norte-americana intitulada de willful blindness ou conscious avoidance, foi o responsável por introduzir a teoria da cegueira deliberada no direito brasileiro.
Em sua visão, a teoria consistiria em reconhecer preenchido o elemento subjetivo desde que o agente se mostre conhecedor da alta chance de se estar lidando com ativos de origem ilícita e deliberadamente opte por ficar alheio dessa realidade. É dizer, para o autor, se revela aplicável:
desde que presentes os requisitos exigidos pela doutrina da ignorância deliberada, ou seja, a prova de que o agente tinha conhecimento da elevada probabilidade da natureza e origem criminosa dos bens, direitos e valores envolvidos e, quiçá, de que ele escolheu permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos, não se vislumbra objeção jurídica ou moral para reputá-lo responsável pelo resultado delitivo e, portanto, para condená-lo por lavagem de dinheiro, dada a reprovabilidade de sua conduta (Moro, 2007, p. 101). (grifo nosso).
O segmento da doutrina que pugna pela sua utilização no ordenamento nacional, liderado por Sérgio Moro, entende pela sua aplicabilidade por se tratar de um equivalente ao dolo eventual, que é instituto previsto no Código Penal.
Para melhor demonstrar essa perspectiva, interessa observar uma descrição realizada por Rodrigo Prado (2011, p. 241) de como a teoria foi implantada no Brasil. Assevera o aludido autor que a utilização da cegueira deliberada stricto sensu corresponderia a uma conduta pautada pelo dolo eventual, onde o agente assumiria o risco de produzir o resultado a partir do momento em que, ciente do risco da prática de um delito, optar por se privar do conhecimento de tal realidade, não prevenindo, por fim, a lavagem dos capitais.
Por outro lado, a doutrina contrária ao seu uso assevera que se poderia encontrar óbices a partir do que prescreve o Código Penal[1]. Assim delineia Rodrigo Leite Prado (2011, p. 240), no sentido de que “de lege data, parece intransponível a barreira da criação de um terceiro título de imputação dolosa no Direito brasileiro, a par do dolo direto e do dolo eventual”.
Em palavras simples, este segmento doutrinário repele a aludida teoria, simplesmente porque o sistema jurídico penal já oferece os institutos jurídicos suficientes para a reprimenda penal, não se mostrando necessária a criação de mais um outro.
Importa, ainda, destacar a doutrina de Pierpaolo Cruz Bottini (2015, p. 172), ao considerar que a sua aplicação sem limites poderá implicar em efeitos negativos, motivo pelo qual seria forçoso que o agente adote com total consciência barreiras ao conhecimento das circunstâncias, visando não entrar em contato com a atividade ilícita, caso ela aconteça.
À vista desse cenário nebuloso, parece, todavia, que o estudo da teoria da cegueira deliberada encontrou sua melhor disciplina e, ao mesmo tempo, a pretensão pela sua extinção, a partir das lições de Guilherme Brenner Lucchesi.
Em sua obra, Lucchesi (2017, p. 129) cuida inicialmente de evidenciar como a teoria é aplicada nacionalmente pela doutrina e pelo Poder Judiciário brasileiro, tendo-se chegado aos seguintes casos de aplicabilidade: a) ciência da elevada probabilidade de que os bens envolvidos tinham origem ilícita; b) o agir marcado pela indiferença quanto ao conhecimento dessa elevada probabilidade; e c) a escola deliberada pela ignorância em relação aos fatos.
Acontece que, no direito norte-americano, ambiente no qual esta teoria floresceu, sua aplicabilidade foi essencialmente restrita pela jurisprudência, construindo-se parâmetros claros sobre as hipóteses em que ela será aplicável, os quais, conforme será possível atentar, divergem daqueles comumente aplicados no Brasil.
A situação é bem explicada por Lucchesi (2017, p. 129), em que de acordo com construção jurisprudencial norte-americana, a teoria tem sua aplicação reservada aos casos em que o agente está: a) ciente da elevada probabilidade de existir uma circunstância verificada no elemento central do tipo penal; b) adota conduta deliberada de evitar comprovar a existência da referida circunstância, isto é, evitou buscar o seu conhecimento; e c) não acredita na inexistência do fato.
Como se vê, a dogmática canarinha se apoia em conceitos indeterminados, tais como “origem ilícita”, “indiferença”, “ignorância”, que destoam nitidamente daquilo que originariamente a jurisprudência norte-americana buscou racionalizar e parametrizar, para fins de aplicação.
Nesse particular, se é certo que uma tentativa desenfreada de se buscar o sentido original (originalismo) de um determinado instituto pode engessar a sua aplicação pelo intérprete, por outro lado, parece razoável exigir um mínimo de fidelidade da sua aplicação aos seus fundamentos, sob pena de se cada vez mais intensificar um cenário de segurança jurídica.
A problemática, contudo, não se resume a este ponto. Além disso, Lucchesi (2017, p. 150) alerta que a cegueira deliberada teria sido criada, em verdade, com vistas a suprir, por intermédio da ciência pelo agente da elevada probabilidade de existência de circunstância elementar caracterizadora de crime, o requisito do knowledge (quando exigível para a configuração do fato típico de um determinado delito naquele país), constituindo fato equivalente à sua verificação.
É dizer, reputa-se configurado o preenchimento do elemento do conhecimento a partir do desconhecimento provocado a partir de conduta do agente (Lucchesi, 2017, p. 152).
E é justamente com base nisso que Lucchesi (2017, p. 152) conclui que não seria permitida a sua utilização com base na legislação vigente no Brasil, isto é, os artigos 18 e 20 do Código Penal, uma vez que tanto o sistema jurídico-penal norte-americano de imputação, que a utiliza, possui limites menos intensos ao preenchimento do ‘conhecimento’, como porque corresponderia a uma ampliação indevida do alcance dos tipos penais.
Entrementes, para o aludido autor (2017, p. 156), sequer seria possível fazer-se valer da cegueira deliberada no Brasil por meio do dolo eventual, uma vez que a indiferença não é elemento exigível para a incidência da willful blindness em qualquer decisão nos Estados Unidos, assim como não haveria qualquer vínculo entre o dolo eventual e o requisito da indiferença, já que além da previsão normativa “assumir o risco de produzir o resultado” não corresponder necessariamente a qualquer grau de indiferença do agente, existem diversas teorias sobre o dolo, não sendo razoável reduzi-lo indevidamente à teoria da indiferença.
Em sendo assim, Guilherme Lucchesi (2017, p. 190) conclui que a teoria da cegueira deliberada se manifesta como desnecessária, já que o que se exige para que exista a punibilidade é a demonstração do dolo, isto é, se o conhecimento do resultado típico era algo que o autor detinha à época da conduta.
3.2 Recepção jurisprudencial
Seja como for, é se destacar que a jurisprudência nacional vem conferindo aplicabilidade ao instituto.
Fê-lo, em especial, o Supremo Tribunal Federal, conforme se pode aferir do julgamento dos autos da Ação Penal n.º 470. Nesse julgamento, embora o posicionamento de alguns Ministros, a exemplo do Ministro Dias Toffoli, tenha sido no sentido de aplicá-la apenas após a reforma ocorrida na Lei n.º 9.613/98 de 2012[2], por outro, a partir dos votos do Ministro Celso de Mello e da Ministra Rosa Weber, vê-se não haveria limites para a aplicação da tese do dolo eventual nos crimes de lavagem de capitais a partir de alusão à teoria da cegueira deliberada.
Para melhor aferir o exposto, vide trecho do Informativo n.º 684 do STF e do voto da Ministra Rosa Weber, no julgamento da referida ação penal (vide fl. 1273 do acórdão), a saber:
(Voto do Ministro Celso de Mello): Ato contínuo, o decano da Corte, Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida. Realçou que essa doutrina não se aplicaria em relação a Anderson Adauto, João Magno e Paulo Rocha, cujas condutas julgou impregnadas de dolo direto, porque buscaram conferir aparência lícita a dinheiro de origem ilícita. Versou que ao se utilizarem do mecanismo viabilizado pelo Banco Rural e pela SMP&B — a dificultar ou impossibilitar o rastreamento contábil do dinheiro ilícito —, os réus pretendiam ocultar o rastro de suas participações, sabidamente frutos de crimes contra a Administração Pública e o sistema financeiro nacional. Obtemperou que a legislação pátria consideraria ocultação, dissimulação ou integração etapas que, isoladamente, configurariam crime de lavagem. (Info 684). (grifo nosso).
(Voto Ministra Rosa Weber): Assim, parece-me que não admitir a realização do crime de lavagem com dolo eventual significa na prática excluir a possibilidade de punição das formas mais graves de lavagem, em especial a terceirização profissional da lavagem. O caso presente ilustra essa hipótese, pois houve, no caso do PP e do PL, a contratação de empresas financeiras que lavaram o numerário repassado pelas contas das empresas de Marcos Valério de uma forma bastante sofisticada. Ainda que tivessem ciência da elevada probabilidade da procedência criminosa dos valores lavados, é difícil, do ponto de vista probatório, afirmar a certeza dos dirigentes dessas empresas quanto à origem criminosa dos recursos. Sem admitir o dolo eventual, revela-se improvável, em regra, a condenação dos lavadores profissionais. (grifos nossos).
(...)
O Direito Comparado favorece o reconhecimento do dolo eventual, merecendo ser citada a doutrina da cegueira deliberada construída pelo Direito anglo-saxão (willful blindness doctrine). Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa. (grifos nossos).
A seu turno, atribuindo-lhe a necessidade de o agente fingir não perceber determinada situação de ilicitude para a verificação da teoria da cegueira deliberada, veja-se o entendimento Superior Tribunal de Justiça, a seguir descrito:
(...)
1. Para que ocorra a aplicação da teoria da cegueira deliberada, deve restar demonstrado no quadro fático apresentado na lide que o agente finge não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida. Óbice da Súmula 7/STJ. O Tribunal de origem baseou seu entendimento no contexto fático-probatório da demanda para firmar seu posicionamento no sentido de absolver o réu quanto à prática do delito previsto no art. 313-A, do Código Penal - CP. 2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 1565832 / RJ, Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, T5 - QUINTA TURMA, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DJe 17/12/2018). (grifos nossos).
Não é outro, pois, o entendimento que vem prevalecendo, qual seja a aplicabilidade da teoria no delito de lavagem de capitais, a revelar, portanto, a necessidade de se aprofundar cada vez mais com os estudos sobre o tema.
4 A UTILIZAÇÃO DE FILTROS PARA O USO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
Com efeito, é incontroverso afirmar que não é lícito, ao Poder Judiciário, ampliar o alcance do texto normativo penal ao arrepio da legalidade, sob pena se legitimar uma violação ao substrato que sustenta o direito penal, isto é, a subsidiariedade de sua aplicação às hipóteses em que o legislador considerou sobremaneira reprováveis a ensejar o exercício da punibilidade sob a ótica criminal.
Nesse ponto, dentre as mais diversas hipóteses em que se pode vislumbrar a violação dos princípios da subsidiariedade e da legalidade (artigo 5º, XXXIX, da CF/88), chama-se a atenção à possibilidade de utilização desvirtuada da teoria da cegueira deliberada como artifício para a punibilidade de crimes em que o legislador não previu a punição a título culposo, a exemplo da lavagem de dinheiro, situação essa que se revela reprovável e atentatória àqueles princípios.
Tal decorre, inexoravelmente, da constatação de que o dolo, em sua acepção direta, de segundo grau ou até mesmo eventual, é requisito exigido pelo Código Penal (artigo 18, inciso I, combinado com artigo 20 do CPB) para a punibilidade de crimes como a lavagem de dinheiro.
Observada esta inafastável premissa, ainda que a teoria da cegueira deliberada possua, de per se, questionável utilidade a fim de melhor demonstrar o elemento anímico do agente, é inegável a sua aplicação pelo Poder Judiciário Nacional, o que leva a reconhecer a necessidade de se estabelecer parâmetros seguros pelo intérprete.
Nesse particular, propõe-se que a teoria seja aplicada a partir de dois filtros ou etapas. O primeiro, decorre de lição fundamental, qual seja a imperiosidade de que seu uso no caso concreto se atenha à observância dos parâmetros originariamente construídos e fixados pela jurisprudência norte-americana, afinal de contas, sem essa fidelidade, dar-se-á azo ao arbítrio.
São eles, de modo sumariamente descritos por Lucchesi (2017, p. 129), nos casos em que o agente está: a) ciente da elevada probabilidade de existir uma circunstância verificada no elemento central do tipo penal; b) adota conduta deliberada de evitar comprovar a existência da referida circunstância, isto é, evitou buscar o seu conhecimento; e c) não acredita na inexistência do fato.
A busca pela constatação à luz de um caso concreto dos referidos parâmetros se revela de sobremaneira importância ao intérprete da norma penal, que deverá realizá-la como um verdadeiro juízo negativo de animosidade. É preciso que o aplicador do direito se certifique e assim demonstre de que o sujeito efetivamente representou o objeto ilícito do risco penalmente protegido e solenemente decidiu prosseguir com sua conduta, alcançando a vantagem pretendida, no caso corporificada por alguma das condutas previstas no caput ou §§ 1º ou 2º da Lei n.º 9.613/98.
Afinal de contas, se em hipotética situação fática sequer seja possível aferir uma ciência da elevada probabilidade da existência de uma circunstância elementar do tipo penal, o eventual procedimento investigatório deverá ser arquivado ou, se já ajuizada a ação penal, sumariamente rejeitada, na forma do art. 395, III, do Código de Processo Penal.
Como segundo filtro, e neste ponto vale atentar, tendo em vista que apenas deverá ser analisado desde que ultrapassado o primeiro filtro (ou etapa), entende-se pela necessidade de que a utilização de conceitos indeterminados, como a “indiferença”, “ignorância”, “fingimento”, seja na peça acusatória (art. 41 do Código de Processo Penal), seja no próprio édito condenatório, sejam devidamente demonstrados e associados por intermédio de cotejo com todos os elementos de convicção apurados na investigação criminal e das provas produzidas em juízo, em especial a testemunhal e o seu interrogatório.
É dizer, não parece possível que se tenha como vislumbrada no caso concreto a teoria da cegueira deliberada mediante o uso de termos vagos, isto é, de muletas retóricas que não ilustrem e demonstrem, à toda evidência, que era dado ao agente aperceber-se de que muito provavelmente se praticou a elementar de um tipo penal, e que, crente não mais da sua inexistência, evitou tomar conhecimento dela, em atenção à segurança jurídica e ao dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88).
5. CONCLUSÃO
Ao final e ao cabo, vê-se que em relação ao crime de lavagem de capitais, tem sido comum a utilização da teoria da cegueira deliberada para fins de verificação do elemento interno da conduta, o que, em análise à sistemática do ordenamento jurídico nacional, nem sempre parece ser a melhor solução, sobretudo quando se pretende utilizá-la com vistas à punibilidade de crimes em que o legislador não previu a punição a título culposo, ao arrepio da legalidade, já que os fundamentos costumeiramente utilizados divergem daqueles que originariamente configuram o instituto.
Por outro lado, ainda que a teoria da cegueira deliberada possua, por si só, questionável aplicabilidade, os parâmetros por ela utilizados, desde que na sua acepção original construída pela jurisprudência norte-americana, podem guiar o aplicador do direito no exercício da identificação do dolo do agente no crime de lavagem de capitais, já que se em hipotética situação fática sequer seja possível aferir uma ciência da elevada probabilidade da existência de uma circunstância elementar do tipo penal, o eventual apuratório deverá ser arquivado ou, se já ajuizada a ação penal, sumariamente rejeitada.
Propõe-se, dessa forma, que se faça uma análise do dolo do agente a partir de dois filtros. O primeiro deles, com vistas a identificar se lhe era dado aperceber-se de que muito provavelmente se praticou a elementar de um tipo penal, e que, crente não mais da sua inexistência, evitou tomar conhecimento dela. O segundo, por sua vez, de ordem mais pragmática, pugna pela necessidade de que a utilização de conceitos indeterminados seja parcimoniosa, em virtude de que seu uso desmoderado, alheio de uma vinculação aos elementos de convicção e provas produzidas no processo, pode ensejar um cenário de violação à segurança jurídica e ao dever de fundamentação das decisões judiciais.
6. REFERÊNCIAS
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Prevenção à Lavagem de Dinheiro: Novas Perspectivas sob o prisma da Lei e da Jurisprudência. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 67/2015 | p. 163 - 195 | Jan-Mar / 2015, DTR\2015\7989.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral (arts. 1º ao 120). – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPODIVM, 2020.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a Culpa como Dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. - 1. ed. - São Paulo: Marcial Pons, 2018.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro. - 4 ed. - São Paulo: Atlas, 2018.
MORO, Sérgio Fernando. Sobre o Elemento Subjetivo no Crime de Lavagem. In: MORO, Sérgio; JÚNIOR, José Paulo Baltazar (Org.). Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. 1 ed. - Rio Grande do Sul: Livraria do Advogado, 2007, p. 91-112.
SANCTIS, Fausto Martin. Antecedentes do Delito de Lavagem de Valores e os Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. In: MORO, Sérgio; JÚNIOR, José Paulo Baltazar (Org.). Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. 1 ed. - Rio Grande do Sul: Livraria do Advogado, 2007, p. 55-69.
PRADO, Rodrigo Leite. Dos Crimes: Aspectos Subjetivos. In: Lavagem de Dinheiro: Prevenção e Controle Penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011, p. 223-250.
[1] Art. 18 - Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; (grifos nossos).
[2] Vide fl. 3274 do Acórdão da AP n.º 470. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=236494, Acesso em 09/08/2019.
A título ilustrativo, veja-se: “O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Exatamente. Com a nova legislação, eu penso que já é possível refletir sobre a aplicação do dolo eventual na questão da lavagem, porque todo e qualquer crime dá ensejo à tipificação da lavagem. Então, esse era um segundo ponto que eu gostaria de deixar aqui esclarecido aos Colegas e à comunidade jurídica. O terceiro ponto que eu gostaria também de trazer é que eu não compactuo com a ideia do exaurimento. No caso do João Paulo Cunha, como eu o absolvi, eu não entrei nesse debate. Mas, hoje, votou a Ministra Rosa, acompanhando, no ponto específico, o Ministro Cezar Peluso”. (grifo nosso).
Assessor no Ministério Público Federal em Alagoas. Pós-graduando em Direito Constitucional. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Lucas Medeiros de Moura Barreto. A possibilidade da adoção ou não da teoria da cegueira deliberada no Brasil, com enfoque no crime de lavagem de capitais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58141/a-possibilidade-da-adoo-ou-no-da-teoria-da-cegueira-deliberada-no-brasil-com-enfoque-no-crime-de-lavagem-de-capitais. Acesso em: 23 dez 2024.
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