LARISSA MARIA DE MORAES LEAL
(orientadora)
RESUMO: Este estudo objetivou analisar o cabimento da equiparação da união estável ao casamento dada pela jurisprudência do STF e STJ, bem como identificar se isso tem sido submetido aos valores constitucionais da segurança jurídica e da dignidade humana, a fim da manutenção do Estado Democrático de Direito. Para tanto, foi utilizado como método para coleta de dados a pesquisa bibliográfica, através da pesquisa doutrinária e jurisprudencial levantada no referencial teórico sobre a Teoria do Fato Jurídico, os aspectos da segurança jurídica e a natureza dos institutos. A partir dessa análise, foi possível perceber a importância que a segurança jurídica tem nesse assunto, tal como a natureza jurídica desses institutos, possibilitando observar se é cabível ou não a equiparação que está sendo dada à união estável em relação ao casamento. Infere-se nesse estudo, por meio das pesquisas realizadas, que tem sido inadequado o comportamento jurisprudencial, tendo em vista o tratamento dado ao tema estar sendo superficial.
Palavras-Chaves: Equiparação. União Estável. Casamento. Segurança Jurídica. Fato Jurídico. Princípios.
ABSTRACT: This study aimed to analyze the suitability of the equivalence between marriage and common-law marriage issued by the Brazilian supreme court and its jurisprudence, and likewise to identify if it has been suitable to legal certainty, human dignity, and the constitutional values, to maintain the democratic State ruled by law. For this purpose, data collection consisted in bibliographical research as a method, through doctrinal and case-law research raised in the theoretical frame on Legal Theory, aspects of legal certainty and the nature of the institutes. From this analysis, the importance of legal certainty has been highlighted, thus enabling an overview of the suitability of the equivalence between marriage and common-law marriage. Through this research, one can conclude the judicial behavior as unsuitable, because of the superficial approach for this theme.
Keywords: Equivalence. Common-law Marriage. Marriage. Legal Certainty. Legal Fact. Principles.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. PANORAMA DO DIREITO DE FAMÍLIA. 3. OS INSTITUTOS DA UNIÃO ESTÁVEL E DO CASAMENTO. 3.1. ACERCA DO CASAMENTO. 3.2. ACERCA DA UNIÃO ESTÁVEL. 3.3. JURISPRUDÊNCIA E A EQUIPARAÇÃO DOS INSTITUTOS DA UNIÃO ESTÁVEL E DO CASAMENTO. 4. A EQUIPARAÇÃO CONSIDERADA NO ÂMBITO DO ORDENAMENTO JURÍDICO. 4.1. SEGURANÇA JURÍDICA. 4.2. NEGÓCIO JURÍDICO E ATO FATO. 5. CONSIDERAÇÕES DIVERGENTES SOBRE O TEMA. 6. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
A Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 226 §3º, foi um marco brasileiro no direito de família, especialmente no que concerne a dar à União Estável caráter de entidade familiar, tal qual o casamento, conferindo a ambos igual hierarquia. Isso porque a união estável sempre existiu, só não era reconhecida como tal. Em 1960, começou se desenhar o que seria a união estável por meio da distinção entre concubinato próprio e o impróprio (relação adulterina), mas alcançou sua plenitude de entidade familiar hierarquicamente igual ao casamento em 1988. Naturalmente, tal falta de reconhecimento no passado gerou uma série de consequências desastrosas para o direito de família, que visa amparar juridicamente as famílias, inclusive em seus efeitos.
Nessa perspectiva, o direito brasileiro tem se estabelecido histórica e doutrinariamente diferenciando os institutos da união estável e do casamento, principalmente no tocante à sua natureza jurídica, respectivamente: ato fato e negócio jurídico. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2017, firmou entendimento no sentido de que, para fins sucessórios, o companheiro deveria ser equiparado ao cônjuge, no precípuo princípio da Dignidade Humana. Isso gera uma série de questionamentos, afinal, existe toda uma sistemática jurídica anterior a esse entendimento. Além disso, será que de fato há um desrespeito ao princípio constitucional da dignidade humana, ou pelo contrário (tendo em vista que, respeitando os institutos, pessoas têm sua vontade respeitada)? Parece-nos que o debate envolve questões de análise muito mais profundas, valendo um olhar mais atento ao conhecimento acerca do que se propõe o direito de família, os institutos do direito civil, a segurança jurídica e a doutrina como um todo frente a essa problemática.
Portanto, buscamos reunir informações com o propósito de analisar a seguinte questão: há viabilidade jurídica na equiparação da união estável ao casamento?
O objetivo é observar o cabimento ou não da equiparação dos efeitos da união estável ao casamento, denotando como eles se instituíram no ordenamento jurídico, como eles formaram-se e qual a atual posição dos mesmos.
Diante de uma sociedade em constante mudanças, é elementar que o direito de família esteja acompanhando tal realidade. O fato é que isso deve ser feito de forma responsável para que tenhamos um Estado em pleno gozo da ideia de democracia. Isso porque o sistema jurídico deve transmitir segurança - tal qual um dos valores fundamentais da Constituição Cidadã - observando como a doutrina tem se comportado e para que determinados institutos são formados.
Aplicando tais critérios na perspectiva das entidades familiares, tem-se que tal pluralidade existe porque as pessoas têm escolhido a forma como querem se relacionar e como querem que isso se desenvolva. Ao trazer equiparações dessas entidades, tem-se a aproximação uma do outra, e a existência de tal multiplicidade familiar termina sem sentido. Assim, esse trabalho tem ligação direta com a realidade de nossas famílias, além de observar o quadro constitucional e civil.
Para o desenvolvimento do presente trabalho, foram utilizadas pesquisas bibliográficas, as quais foram principalmente obtidas na doutrina jurídica do direito civil e constitucional e em publicações científicas.
O trabalho de conclusão de curso estrutura-se em 4 capítulos, apresentando-se no primeiro um panorama do direito de família, mostrando a relação intrínseca da sociedade, direito e núcleo familiar para localizarmos a importância do assunto aqui tratado. No segundo capítulo, iremos conhecer os institutos da união estável e do casamento, demonstrando suas origens, estabelecimentos doutrinários acerca da sua natureza jurídica, e por fim o comportamento jurisprudencial recente de como tais institutos têm sido tratados. No terceiro capítulo, tratamos de elementos essenciais que devem ser considerados antes da equiparação: a segurança jurídica e seus aspectos teóricos; e o fato jurídico, especificamente no tocante ao que nos interessa: negócio jurídico e ato-fato. No último capítulo, então, tendo a base necessária para a discussão, demonstram-se os entendimentos divergentes acerca do tema, e a importância dos diversos argumentos.
É importante ressaltar que a intenção não é esgotar o tema, mas chamar atenção aos aspectos jurídicos que envolvem a constituição dessas famílias e como isso pode de fato atingir a realidade social. Isso não exclui a possibilidade de exploração do tema na perspectiva de aprimorar o instituto da união estável.
2. PANORAMA DO DIREITO DE FAMÍLIA
A história do Direito das Famílias é um quadro em constante mudança, e indissociável da história do direito. Desde o Paleolítico Superior, em que os homens começaram a se organizar em grupo, aumentando inclusive a qualidade de vida deles - basta observar a técnica das artes e instrumentos altamente avançados (BURNS, 1983)[1]. Especificamente em relação às origens do direito, é possível percebê-las concomitantemente a partir da formação da sociedade.
John Gilissenn (2001)[2], em sua Introdução Histórica ao Direito, trata da evolução social dividida em quatro estágios: primeiro, a formação de laços pelos diferentes sexos; depois, a soberania da mãe, expressa pelo matriarcado, quando ainda não havia casamento; posteriormente, a formação do patriarcado com o casamento, e a expressa soberania dos pais sobre os filhos; e por último, o estágio dos clãs, em que estavam reunidos por famílias de mesmo antepassado, o qual seria cultuado - seria a origem da tribo.
Observa-se a família tornando-se a base da sociedade, e por consequência do Direito, a partir de inúmeros exemplos na história. Um desses é a Babilônia, cujas regras jurídicas tinham base na sociedade patriarcal - sendo que as decisões do patriarca fundamentavam as decisões jurídicas do rei muitas vezes. Já no direito romano, com a Lei das 12 Tábuas, percebe-se que o pai tem direito de vida, morte e liberdade sobre os filhos, e sobre a esposa. No corpus juris civilis, trata-se de como se forma o poder sobre filhos e netos, o conceito de matrimônio e como funcionaria a união do homem com a mulher (HIRONAKA, 2015)[3].
Um pouco mais adiante nessa linha do tempo, em 1948, nota-se que ser família foi elevado ao patamar de um direito fundamental à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Ela declara que qualquer pessoa de maior idade tem direito a casar-se e fundar uma família, além de tratar da liberdade de contrair matrimônio como elemento de validade do casamento. Assim, ocorre a reiteração da família como elemento fundamental da sociedade sendo protegido pelo Estado. Com a evolução da noção de família dos tratados internacionais, passa-se inclusive a tratar como iguais filhos nascidos dentro e fora do casamento. Tudo isso demonstra o quanto um olhar sensível sobre a família por parte do direito influi na paz social e segurança jurídica, conforme expressa Giselda Maria Hironaka[4].
Quando se observa rapidamente o quadro brasileiro, Hironaka destaca que a legislação foi marcada, inicial e concomitantemente, pela autoridade canônica no mesmo tempo das ordenações Filipinas, as quais vigoraram no Brasil até o Código Civil de Beviláqua, de 1916. Já no Império, existe uma série de legislações que vigorariam de forma bem espessa até a edição do novo Código - fato que foi determinado pela Constituição de 1824, mas só editado com o Código Civil de 1916. Este destacou-se por incorporar os princípios morais, especialmente em relação a família - conforme dita Orlando Gomes[5]. Com a natural evolução da sociedade, principalmente das noções de família, instou necessária a criação do Código Civil de 2002, a fim de enquadrar as problemáticas humanas aos critérios trazidos pela Constituição Federal de 1988.
"[...] grandes, e de profundas repercussões, foram as transformações ocorridas no Direito de Família. A sociedade conjugal passa a ser formada pelo casamento civil ou religioso e pela união estável. A mãe solteira constitui família com seus filhos. Na separação, os filhos ficam com quem possua melhores condições de educá-los, e não mais necessariamente com a mãe. Iguala a condição jurídica dos filhos havidos dentro e fora do casamento e a dos filhos adotivos."[6]
Nessa perspectiva foi que o Código Civil trouxe tantas mudanças, tentando moldar-se aos valores e normas constitucionais - como consequência de um estado social focado em como se estabelece a vida privada.
"A constitucionalização das famílias apresenta alguns caracteres comuns nas Constituições do Estado Social da segunda metade do século XX: a) neutralização do matrimônio; b) deslocamento do núcleo jurídico da família, do consentimento matrimonial para a proteção pública; c) potencialização da filiação como categoria jurídica e como problema, em detrimento do matrimônio como instituição, dando-se maior atenção ao conflito paterno-filial que ao conjugal; d) consagração da família instrumental no lugar da família-instituição; e) livre desenvolvimento da afetividade e da sexualidade." ( LÔBO, 2011, p. 36)[7]
Conforme expressa o Professor Rolf Madaleno (2015)[8], houve certa discussão em que grandes doutrinadores, como Caio Mário da Silva, levantaram se o Código de 2002 já não teria nascido anacrônico devido ao tempo que levou para sua aprovação, o que Miguel Reale (organizador do referido código) rebate colocando o Código Civil como um abalizador para as relações que dali se desenvolveriam. De qualquer forma, a partir do código, vê-se uma série de novidades não inclusas no código, tais como a união homoafetiva, gestação in vitro, entre outros temas que têm ficado a critério da jurisprudência.
Resta saber, então, que o direito da família trazido pela Constituição e pelo Código Civil vigente está em constante mutação em suas diversas áreas, tendo muito a ser discutido em cada uma delas. Neste estudo, escolhemos como enfoque a discussão que envolve o casamento e a união estável nos dias atuais.
3. OS INSTITUTOS DA UNIÃO ESTÁVEL E DO CASAMENTO
Antes de tudo, para que se possa aprofundar o debate acerca da equiparação da união estável ao casamento, é válido conhecer os institutos estabelecidos conforme o direito civil e a doutrina, e qual o entendimento que se tem tido a partir desses conceitos.
No Código Civil Brasileiro de 2002, tem-se o casamento como um instituto de plena comunhão de vida, com base na igualdade de direitos e deveres do cônjuge (art. 1511 do CC/2002). Assim, no Livro de Família do Código, o casamento pertence ao Subtítulo I, dos arts. 1511 ao 1783, os quais irão discorrer acerca do funcionamento do casamento na sociedade brasileira: como se instituirá, a quais rigores formais deverá se submeter, como será feita a escolha do regime, capacidade, impedimentos, causas suspensivas, habilitação, celebração e registro, invalidade, eficácia e dissolução. Tudo isso demonstra o extremo controle estatal ao qual se submete o casamento.
Por sua vez, a união estável, com recente aceitação na história do nosso país, é formalmente disposta como entidade familiar com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 226 §3º, sem hierarquia entre as distintas entidades. Encontra-se no Título III, do Livro do direito de família, em que discorrerá sobre os polêmicos aspectos da devida união, sem, contudo, esgotar o tema, cabendo diversas discussões.
Nessa perspectiva, então, é que iremos aprofundar o conhecimento acerca desses institutos e tentar compreender por que motivo desde a Constituição até a legislação infralegal trataram de diferenciá-los.
Segundo Pontes de Miranda (1947)[9], o casamento no direito é a união do homem e da mulher regulado por um contrato de direito de família. como bem nos assegura Madaleno (2015)[10], por sua vez, o casamento não possui na doutrina uniformidade conceitual, tendo diversas correntes, em que, ao observá-las, Silvio Rodrigues localiza o casamento como ato complexo[11], pois depende em parte da autonomia da vontade dos nubentes somada à adesão dos noivos às regras preordenadas vigentes a fim de ocorrer a celebração do matrimônio (ato privativo do estado).
Para VENOSA (2015, p. 136) o casamento no Direito tem tanto destaque por ter sido tão importante à formação da sociedade e do Direito, tendo em vista que era fundamental sacramento na Igreja, a qual por sua vez teve grande influência na sociedade. Para esse autor:
O casamento é o centro do Direito de Família na sociedade contemporânea, embora as uniões estáveis sem casamento tenham conseguido estado de quase igualdade. Do casamento irradiam suas normas fundamentais. Sua importância como negócio jurídico formal vai desde as formalidades que antecedem a sua celebração, passando pelo ato material de conclusão até os efeitos do negócio que desaguam nas relações entre os cônjuges, os deveres recíprocos, a criação de assistência material e espiritual recíproca da prole.[12]
Como se pode verificar nessa citação, não há como tratar do direito de família sem observar suas origens, muito relacionadas ao casamento. Evidentemente, a aplicação pode ser utilizada para observar os demais institutos do direito civil.
Seguindo a corrente majoritária, a natureza jurídica do casamento seria ato jurídico complexo - marcado pela livre manifestação da vontade de escolha do cônjuge - ao passo em que também se subordina às normas do sistema legal, o qual legitima o matrimônio, autorizando-o e realizando suas formalidades. Dessa maneira, é claro o forte caráter negocial. Cita-se, como exemplo, quando queremos nos casar com alguém, devemos ir ao cartório realizar todos os trâmites para que ele ocorra, ainda que seja uma cerimônia religiosa com efeito civil, assinando um termo que será submetido aos proclames por um período, para após, observados todos os critérios, possa ser admitido pelo Estado e pelas autoridades por ele instituídas.
Ainda para VENOSA (2015, p. 136), "a união do homem e da mulher preexiste à noção jurídica. O casamento amolda-se à noção de negócio jurídico bilateral na teoria geral dos atos jurídicos. Possui as características de um acordo de vontades que busca efeitos jurídicos. Desse modo, por extensão, o conceito de negócio jurídico bilateral de Direito de Família é uma especificação do conceito contrato. Nesse sentido, com propriedade, Sílvio Rodrigues o conceitua como contrato de direito de família. Não resta dúvida de que a celebração, conclusão material do negócio jurídico familiar, tem essa natureza". Nesse sentido, o casamento no Direito permite a realização de vontades submetidas ao sistema legal.[13]
Logo, é importante compreender que o conceito de casamento é fundamental para o estudo do direito de família, devido a seu peso histórico na construção da sociedade. Com toda a discussão doutrinária, percebe-se como ponto comum entendê-lo com forte caráter negocial, o que permite que possamos colocá-lo aqui como negócio jurídico. A partir disso, então, iremos desenvolver qualquer raciocínio acerca de ou comparado a ele. Nesse sentido, vamos exemplificar o casamento no Direito como ponto inicial de partida das nossas comparações.
Por sua vez, a união estável, segundo Lôbo (2011), é um estado de fato com aparência de casamento (more uxorio) ou posse do estado de casamento entre um homem e uma mulher a qual gera uma entidade familiar[14]. Apesar de parecido com o casamento, com ele não se confunde nem tem hierarquia, pois apresenta estrutura jurídicos próprios. Além dessas características, Pereira (2004) vê a União Estável como a relação afetivo-amorosa com estabilidade e durabilidade, não adulterina e não incestuosa, sob o mesmo teto ou não[15].
Para Rodrigo da Cunha Pereira (2015, p. 202)[16], a União Estável facilita incluir no rol de formas de família: aquela que se forma pela simples posse do estado de casado, ou ainda a mera aparência do casamento entre homem uma mulher. É diferente do casamento, pois cada um possui estatuto jurídico próprio, sem relação de hierarquia. Dessa noção, é possível observar que o instituto da união estável surgiu de uma necessidade histórica de legitimar as entidades familiares formadas sem o aval direto do Estado, afinal, muitas famílias existem independentemente de um documento. Sabendo que concubinato tem historicamente um conceito pejorativo (associado às prostitutas e afins), o qual não corresponde a todo seu arcabouço jurídico de fato, o ordenamento mudou a nomenclatura para união estável. Para diferenciar das relações concomitantes com outras, o Código Civil Brasileiro de 2002 trata a união estável como relação conjugal não adulterina, e o concubinato como uma relação adulterina, mantendo para esta última ainda as consequências no âmbito obrigacional. Insta dispor que Supremo Tribunal Federal ampliou o conceito de união estável, estendendo às uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Vale destacar que ainda que o interesse inicial não tenha sido formar núcleo familiar, a realidade poderá conduzir para isso gerando união estável. Para esse autor:
[...]a conceituação e a caracterização da união estável passam sempre pela forma paradigmática de constituição da família que é o casamento, assim todos os elementos aqui apresentados são como uma espécie de comparação, uma tentativa de se desenhar o casamento, com a diferença de não haver o ato civil."[17]
Como se pode verificar nessa citação, a União Estável aplica-se no reconhecimento pelo direito das diversas formações familiares. Evidentemente, a aplicação pode ser utilizada para onde a formalidade do direito muitas vezes não consegue alcançar: a constante mutabilidade social e nas relações que se formam independentemente de lei, juiz ou igreja.
Basicamente, a união estável não possui um conceito exato por ser fruto do costume, tendo apenas a doutrina e a jurisprudência, após a Constituição Federal de 1988, estabelecido uma série de critérios não cumulativos ou obrigatórios, encontrando-se geralmente uns ou outros. Tais quais: durabilidade, estabilidade, convivência (sob o mesmo teto ou não), relação de dependência econômica, lealdade, entre outros. A prova de que os critérios não são absolutos é que o prazo não necessariamente será de cinco anos, como foi o caráter costumeiro no Brasil, mas sim sendo suficiente a convivência duradoura e notória – critérios estes polêmicos na interpretação de tal entidade familiar, pois podem ser comprovados ainda que por amigos e pessoas íntimas da relação de ambos. Além disso, não necessariamente se deve conviver sob o mesmo teto[18].
Assim, caracteriza-se a forte natureza jurídica de ato-fato. Cita-se, como exemplo, conforme discorre Virgílio de Sá Pereira, "agora dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem ou uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é o fruto de seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o Juiz, com sua lei, ou o padre, com seu sacramento? Que importa isto? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural"[19].
Ainda para Rodrigo da Cunha Pereira (2015, p. 202):
"os elementos caracterizadores da união estável são aqueles que vão delineando o conceito de família. Não é a falta de um desses elementos aqui apresentados que descaracteriza ou desvirtua a noção de união estável. O importante, ao analisar cada caso, é saber se ali, na somatória dos elementos, está presente um núcleo familiar, ou na linguagem do art. 226 da CF, uma entidade familiar. Se aí estiver presente uma família, terá proteção do Estado e da ordem jurídica".[20]
Nesse sentido, a União Estável permite uma flexibilização nos critérios do que torna o casamento em instituto, a fim de formular um outro instituto pautado principalmente nas situações fáticas.
Logo, é importante compreender que não há uma hierarquia entre tais institutos, apenas são eles distintos, desde sua origem, formação e concretização. Nesse sentido, coloque-se a União Estável como uma das alternativas de entidades familiares propostas pela Carta Magna.
3.3. JURISPRUDÊNCIA E A EQUIPARAÇÃO DOS INSTITUTOS DA UNIÃO ESTÁVEL E DO CASAMENTO
A jurisprudência brasileira atual é fruto de todo o processo pós-positivista que culminou no neoconstitucionalismo. Agora não mais deve o jurista submeter-se em cega obediência à lei, mas sim compreendê-la à luz dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais[21] - os chamados “sobreprincípios” por Humberto Ávila. Assim, princípios seriam guias para a aplicação da regra - pois as regras se esgotariam em si mesmas, enquanto que os princípios seriam constitutivos da ordem jurídica[22], sendo de grande valia tal entendimento para o direito contemporâneo.
Por isso, amparado no Princípio Constitucional da Igualdade – em que se trata como igual os iguais e desigualmente os desiguais, no precípuo fundamento da Dignidade da Pessoa Humana[23] – a jurisprudência tem caminhado no sentido de equiparar o instituto do casamento ao da união estável.
Primeiramente, observa-se tal entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos recursos extraordinários 646.721 e 878.694, no dia 10/05/2017, em que, por 7 votos a 3, equipara a união estável ao casamento para fins sucessórios com repercussão geral, declarando o art. 1790 do CC inconstitucional.
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (grifos nossos)[24]
Diferentemente do que vigora para o cônjuge sobrevivente:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;[...] (grifos nossos)
Em decorrência dessas diferenças, decide o STF:
Ementa: Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.[25]
A partir disso, os julgados têm caminhado cada vez mais nesse sentido. Assim, o STJ já passou a aplicar tal entendimento desde agosto de 2017[26].
Vale destacar que essa mesma relação de regras e princípios preocupa Humberto Ávila no sentido da extrapolação dos limites do ordenamento, gerando, assim, uma insegurança jurídica[27].
Trazendo tal problemática ao direito de família, entendemos como imprescindível a valorização dos princípios, todavia não desvalorizando a norma, a qual foi construída como base em um sistema jurídico construído ao longo dos anos. Dessa maneira, é incabível simplesmente incorporarmos um entendimento, sem antes discutirmos se de fato é válida a desvalorização dos institutos que nos fizeram chegar até aqui.
4. A EQUIPARAÇÃO CONSIDERADA NO ÂMBITO DO ORDENAMENTO JURÍDICO
Nesse capítulo, é necessário discutir os aspectos que envolvem a equiparação, a fim de entender se, de fato, os aspectos doutrinários e legais estão sendo considerados pela jurisprudência brasileira. E por outro lado, se tal jurisprudência tem se comportado de maneira consciente acerca dos efeitos dessas decisões.
Uma vez observados os aspectos doutrinários no capítulo anterior, havemos de ressaltar que o direito não caminha só. Ele possui uma função social basilar: a estabilidade do ordenamento jurídico. Por isso, ponto a ser considerado na observação da equiparação da união estável ao casamento é a segurança jurídica em si.
Além disso, faremos uma breve análise acerca do fato jurídico, considerações elementares para que entendamos o mérito deste trabalho de forma clara. Desse modo, cabe um enfoque sobre negócio jurídico e ato fato.
Segundo Tércio Sampaio (2017)[28], a jurisprudência seria uma fonte do direito, e, como fonte é aquela capaz de suprir lacunas do direito, demonstra-se o papel fundamental da jurisprudência no tocante à influência no direito. Por isso, a decisão de equiparação tem um forte poder sobre a segurança jurídica, dado que as interpretações a partir da decisão da equiparação desses institutos podem mudar inclusive suas funções e aplicabilidade.
A inteligência da decisão jurisprudencial está em garantir simultaneamente a segurança jurídica e a sua correção. Desse modo, partindo-se da ideia de que a opção do Direito natural, que subordina o Direito vigente a padrões supra-positivos está superada. Para melhor solução de caso, resta ao aplicador do Direito o uso balizado de três alternativas: a da hermenêutica jurídica, a do realismo e a do positivismo jurídico. (Habermas, 1997).[29]
Conforme citado acima, é notória a preocupação que o direito tem em equilibrar valores e a estabilidade do direito. Isso foi, ao longo da história o grande debate das correntes interpretativas de tal ramo.
Com o advento do Positivismo, a valorização da norma e principalmente com o marco da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, o elemento justiça passa a ser colocado em segundo plano, ao passo que qualquer Estado, com a devida territorialidade, nacionalidade e governo, seria capaz de criar direito. Dessa maneira, o direito foi utilizado para inúmeros mandos e desmandos de várias nações, a culminar na Segunda Guerra Mundial, em sistemas como nazismo, comunismo, entre outros.
Com isso, surge o pós-positivismo, visando a assegurar que a justiça não fosse colocada de lado quando da busca pela normatividade - por meio da compreensão da lei à luz dos princípios constitucionais e direitos fundamentais[30]. Nesse momento, o sistema de regras e princípios é erigido para, tal qual expressa Humberto Ávila[31], haver uma interpretação do texto normativo. Assim, o neoconstitucionalismo se constrói, visando a ter uma superestrutura de princípios que guiariam todas as outras regras. Grandes nomes como Hart, Dworkin, Alexy e o próprio Ávila passam a discutir então sobre a natureza das regras e dos princípios. Vale ressaltar aqui a grande preocupação de Humberto Ávila, que, em sua obra "Teoria dos Princípios", trata sobre o nível de arbitrariedade que se poderia dar à interpretação da norma e como isso afeta nosso sistema jurídico, chamando, por isso, tal segurança de sobreprincípio.
"O estado ideal de coisas cuja busca ou preservação é imposta pelos princípios pode ser mais ou menos amplo, e, em razão disso, abranger uma extensão maior de bens jurídicos que compõe seu âmbito. Há princípios que se caracterizam justamente por impor a realização de um ideal mais amplo, que engloba outros ideais mais restritos. Esses princípios podem ser denominados de sobreprincípios. Por exemplo, o princípio do Estado de Direito impõe a busca de juridicidade, de responsabilidade e de previsibilidade da atuação estatal, ao mesmo tempo em que exige segurança, protetividade e estabilidade para direitos individuais [...] Exatamente por isso, o princípio mais amplo exerce influência na interpretação e aplicação do princípio mais restrito".[32]
Por outro lado, tem-se o raciocínio do Professor Marcelo Neves[33], o qual, interpretando a doutrina clássica de Dworkin e Alexy, o caráter de imprecisão dado aos princípios gera a incerteza cognitiva sobre qual norma deverá ser aplicada ao caso concreto, o que não seria para ele suficiente critério de diferenciação das normas, tendo em vista o nosso ordenamento jurídico ter inúmeras normas imprecisas. Por isso, ele passa a observar a noção de generalidade e abstração, na qual a primeira está relacionada à dimensão pragmática da norma, e a segunda dimensão semântica dos referentes da norma.
Em seu livro “Entre Hidra e Hércules”[34], Neves dispõe Hércules como o juiz tentando domar a Hidra, monstro de várias cabeças (a qual quando corta uma de suas cabeças, nascem outras), disposta como a tendência expansiva dos princípios. Nesse diapasão, após criticar as perspectivas de Dworkin, Alexy, Hart e Ávila, propõe um entendimento das normas à luz do sistema jurídico brasileiro. A proposta normativa de Marcelo Neves está relacionada a tratar os princípios como estímulos à abertura do sistema jurídico ao seu ambiente social, na perspectiva de Luhmann[35]. Para Neves, a distinção entre regras e princípios ocorre no plano da argumentação em torno do sentido, validade e condições do cumprimento da norma. Em sua noção de Estado Democrático de direito (NEVES, 2013, p. 97-98) seria o tipo constitucional para argumentação jurídica na finalidade de adaptar o direito à realidade de expectativas, valores e interesses diversos.
"Os princípios constitucionais são artefatos normativos que servem precisamente para absorver o dissenso, e, paradoxalmente, possibilitar-lhe e estimular-lhe a emergência sob as condições de um sistema jurídico complexo.” [36](NEVES, 2013, p. 97 – 98)
A partir disso, ele dispõe que o sistema jurídico só opera sistematicamente quando abalizado pelas regras a fim de alcançar a realidade. O fato é que, para Neves, as regras fundamentam a expectativa normativa – permitindo a certeza do direito a produção institucionalmente realizada – o que novamente remonta ao Estado Democrático de Direito. À luz do autor, tem-se o cuidado de observar paralelamente a visão do legislador e da realidade social em constante mutação a fim de alcançar a segurança jurídica.
Na mesma obra, em seu capítulo quatro, o professor Marcelo Neves irá fazer uma crítica sobre como a doutrina e a jurisprudência têm disposto dos princípios. Conforme o autor, o Supremo tribunal Federal tem dado vínculos simplistas a princípios e regras e democracia e autocracia, respectivamente. Dessa forma, tem o Supremo se comportado com foco de sopesamento a curto prazo, sem indicar de forma profunda e fundamentada a invocação dos princípios, o que pode gerar problemas futuros (ainda na metáfora da Hidra). Para ele, o juiz ideal seria Iolau, primo de Hércules, que iria cauterizar o corte de Hidra após cortar sua cabeça. Tudo isso denota a precípua inquietação de neves em relação ao sistema jurídico seguro. Os princípios seriam então filtro de expectativas – e dissenso – e como normas sobre normas”[37].
“Os princípios constitucionais servem ao balizamento, construção, desenvolvimento, enfraquecimento e fortalecimento de regras [...] Em suma, pode-se dizer, com o devido cuidado, que eles atuam como razão ou fundamento de regras, inclusive regras constitucionais, nas controvérsias jurídicas complexas. Mas as regras são condições de aplicação dos princípios na solução de casos constitucionais [...]. Ou seja, caso não haja uma regra diretamente atribuída a texto constitucional ou legal, nem seja construída judicialmente uma regra à qual o caso possa ser subsumido mediante uma norma de decisão, os princípios perdem seu significado prático ou servem apenas à manipulação retórica para afastar a aplicação de regras completas, encobrindo a inconsistência do sistema jurídico.”[38]
À vista disso, é notável que a segurança jurídica se expressa também como um princípio constitucional. Basta observar no art. 5º, XXXVI, da CRFB/88, que prevê o seguinte: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. E é claro que a coisa julgada se perfaz não somente na prolação da sentença, mas sim em torno de toda a construção jurisdicional e doutrinária que a cerca. Tal como dita Geraldo Ataliba, "seguras são as pessoas que têm certeza de que o Direito é objetivamente um e que os comportamentos do Estado ou dos demais cidadãos dele não discreparão"[39], o que demonstra a intrínseca relação do Direito seguro a um Estado seguro.
Pode-se dizer aqui que nossa intenção não é de forma alguma voltar aos ditames do positivismo, mas sim ser crítico em relação à aplicação dos princípios constitucionais, lembrando que um sistema jurídico seguro também integra a Carta Magna de forma elementar. Assim, dentre os principais recursos está a chamada técnica da ponderação, a qual se expressa com razoabilidade e proporcionalidade que pode ser utilizada em situação de casos difíceis em situações de conflito de princípios, assim como em conflito de normas[40]. Para Ávila, “a ponderação de bens consiste num método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam sem referência a pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento”[41].
Desse jeito, preservar a segurança do sistema jurídico vai além da tida dicotomia justiça versus segurança jurídica, mas sim cabendo a todo e qualquer operador do direito considerá-la, por ser intrínseca ao Direito no Estado. Tal preocupação não é pontual. Até mesmo alguns ministros, como Marco Aurélio - em entrevista ao site Consultor Jurídico -, discorre:
"Estamos editando súmulas vinculantes no calor das discussões. Mas só se progride quando se marcha com segurança. O verbete é algo que tem contornos definitivos. Quando o Supremo bate o martelo, não se tem a quem recorrer. Pode ser revisto, mas a história já mostrou que é difícil rever verbetes". (Ministro Marco Aurélio)[42]
Parece óbvio que há a consideração do princípio aqui em voga, mas na prática o que se vê é cada vez mais ele sendo posto de lado, na escusa de se estar colocando a justiça e os direitos fundamentais como foco. Sob o ponto de vista do direito como um todo, no entanto, é imprescindível a consideração da segurança jurídica para existir um direito, afinal, trata-se da superestrutura do próprio ordenamento ter decisões estáveis, assim como limites bem definidos. Essas questões são, contudo, delicadas, e devem ser tratadas com todo o rigor que o positivismo crítico exige.
4.2. NEGÓCIO JURÍDICO E ATO FATO
Observar a relação da equiparação da união estável ao casamento perpassa pela localização do casamento e da união estável na teoria do Fato Jurídico. Segundo Marcos Bernardes de Mello[43], como elemento necessário a manutenção da sociedade – ubi societas ubi jus –, cria-se um mundo jurídico, em que existe uma norma pautada em uma hipótese fática; a observação dessa no mundo dos fatos; a incidência da norma e uma consequente judicialização, com uma consequente entrada como fato jurídico no plano da existência no mundo do direito; o filtro do plano da validade sobre os fatos jurídicos lícitos; e, por fim, a chegada do fato jurídico ao plano da eficácia, em que se formam as situações jurídicas. Dessa maneira, é imprescindível a passagem do fato por todos os planos, dado que um é pressuposto do outro, para que haja de fato os efeitos jurídicos.
Ainda de acordo com Marcos Bernardes de Mello[44], a noção de suporte fático está relacionada a algo que ocorre no mundo que é considerado relevante o suficiente para tornar-se objeto da norma jurídica. Ou seja, somente após a ocorrência no mundo dos fatos é que haverá concretização da norma - fatos jurídicos.
De forma resumida, o Fato jurídico lato sensu é dividido por Pontes de Miranda, em fatos conforme o direito e fatos contrários ao direito[45]. Os fatos jurídicos conforme o direito são os lícitos, que de sobremodo nos interessam. Assim, conforme classificação de Marcos Bernardes, dividem-se em: fato jurídico stricto sensu e ato-fato lato sensu.
Seguindo a vertente doutrinária desse autor, inicialmente, tem-se o fato jurídico strictu sensu, o qual se trata de fatos da natureza que independem de ato humano para ocorrer, podendo estar ligado a um ato humano, mas que não compõem sua essência, pois são atos da vida, como por exemplo o nascimento e a morte.
Já o ato-fato jurídico constitui-se de situações que só se concretizam com condutas humanas, ainda que involuntárias, não importando se houve a vontade ou não de praticar o ato. Suas espécies subdividem-se em atos reais ou materiais, que importa em atos humanos que geram situações fáticas em detrimento do elemento volitivo; os atos-fatos jurídicos indenizativos, quando ato humano lícito gera prejuízo a um terceiro, cabendo indenização; atos-fatos jurídicos caducificantes, concretizam-se naquelas situações que os efeitos podem gerar extinção de determinado direito e da pretensão e exceção dele advindos, podendo gerar consequências de atos ilícitos culposos, e de intenção do titular do direito, independentemente de culpa.
O Ato Jurídico lato sensu tem como foco o elemento volitivo para a sua realização, assim como a consciência de manifestação da vontade, e para que o ato vise ao ato permitido, ou não, proibido pela lei, com objeto possível. A vontade manifestada deve existir, mas não carece de expressão solene, apenas que ela exista, dado ser elemento completante. Na consciência da vontade, o indivíduo deve saber o que significa a expressão de determinada vontade, não se confundindo a inconsciência – o não saber – com o erro – praticar de forma defeituosa. O Resultado lícito e possível visa a desconsiderar atos: não sério, o ato didático e o ato aparente; o ato cujo objeto seja gnosiológica ou logicamente impossível; o ato que tenha por objeto algo que não esteja incluído entre aqueles bens da vida que podem constituir objeto de direito, tornando inexistente o ato. Sua licitude, por seu turno, apenas invalida o ato, e a impossibilidade superveniente não altera a natureza do ato jurídico.
As espécies de Ato Jurídico subdividem-se em Ato Jurídico strictu sensu, que é o ato recebido em certo sentido, sem escolha de categoria jurídica, e com efeitos preestabelecidos (ex lege), ou inalteráveis pela vontade dos indivíduos; ou, ainda, em Negócio Jurídico, que visa à autorização de liberdade para autorregular seus interesses, com escolha de categorias jurídicas e conteúdo de eficácia das relações jurídicas decorrentes (efeitos ex voluntate), tudo dentro dos limites normativos.
Conforme verificado, não há o que se discutir acerca da fundamental importância da classificação dada ao supracitado fato, tendo em vista que Paulo Nader deixa claro que o fato jurídico está relacionado à criação, modificação ou extinção da relação jurídica[46].
Dando especial atenção ao ato-fato jurídico, tem-se esse um dos tipos de fato jurídico mais peculiares para classificar, pois está no meio caminho entre o fato jurídico stricto sensu e o ato jurídico em sentido amplo. O fato é que existe vontade, porém esta é a que menos importa, tendo em vista a importância do resultado fático. No entender de Pontes de Miranda, “o ato é recebido pelo direito como fato do homem (relação ‘fato, homem’) [...] pondo-se entre parênteses o quid psíquico, o ato, fato (dependente da vontade) do homem, entra no mundo jurídico como ato-fato jurídico”[47]. Por isso, os atos-fatos não se submetem aos princípios da validade, não podendo ser nulos ou anuláveis, assim como não se submetem aos vícios de vontade, conforme diz o autor Lôbo.[48]
Nesse sentido, a união estável não necessita de nenhuma manifestação da vontade para que ocorra, bastando para tanto ter os critérios não cumulativos comentados no subcapítulo 3.2. Ainda que a Carta Magna de 1988, em seu artigo 226 §3º fale sobre a possibilidade de conversão em casamento, são institutos completamente distintos, ainda conforme o autor.
Por sua vez, o negócio jurídico, outro protagonista de nosso texto, é uma espécie de ato jurídico. De forma elementar, o ato jurídico carece da expressão da vontade para que se perfaça. Segundo Padilha, "Negócio Jurídico é um ato, ou uma pluralidade de atos, entre si relacionados, quer sejam de uma ou várias pessoas, e tem por fim produzir efeitos jurídicos, modificações nas relações jurídicas no âmbito do Direito Privado”[49] Assim, deve-se ter a declaração da vontade, a idoneidade do objeto e a finalidade negocial.
Inegavelmente, demonstra-se o caráter negocial do casamento ao denotar-se a expressão da vontade de unir-se em matrimônio com outra pessoa; a idoneidade do objeto, quando enquadrado na forma e rigores da lei (respeitando os impedimentos e submetendo-se à série de requisitos legais para sua validade); e a finalidade negocial, quanto da aquisição do direito de ser casado e de seus efeitos.
Dessa maneira, entra-se novamente no âmbito da segurança jurídica, tendo em vista que a sociedade almeja que, ao realizar um contrato - seja ele matrimonial ou não -, esteja ele conforme com os rigores legais a fim de alcançar seu objetivo de forma clara.
O princípio da conservação dos negócios jurídicos assenta-se sobre a necessidade de conferir segurança jurídica para todas as relações negociais. Repugna à consciência do intérprete a decretação de ineficácia de negócios jurídicos quando igual resultado se possa alcançar de modo diverso, como antes alertara Silvio Rodrigues(GUERRA, 2016, p. 169).[50]
O autor, então, deixa bem claro que essas relações deverão ser desenvolvidas de forma a assegurar que o conteúdo daquele contrato seja cumprido, afinal, a intenção é de fato um contrato eficaz. No nosso olhar, isso influencia a decisão de optar por um contrato ou não, pois é óbvia a necessidade de cumprimento da mesma.
Fica claro, diante dos conceitos apresentados, que as definições de ato-fato e de negócio jurídico para a análise da equiparação são fundamentais, tendo em vista as naturezas jurídicas de união estável e casamento serem bem distintas. Dessa forma, ao ignorar tais conceitos, possibilita uma confusão no sistema jurídico, pois é condição para a escolha de um dos tipos de família saber como funcionará e quais serão seus efeitos.
5. CONSIDERAÇÕES DIVERGENTES SOBRE O TEMA
Após as explanações demonstradas sobre os institutos, vale apresentar como tem se comportado a opinião dos estudiosos do ramo. Nesse diapasão, iremos mostrar os dois lados opinativos sobre esse assemelhamento desses dois sistemas de família.
Inicialmente, cabe demonstrar o posicionamento a favor da equiparação. Alguns estudiosos entendem que a união estável seria uma espécie de casamento de fato, apoiando-se na noção de que, principalmente devido à facilidade constitucional em transformar a união estável em casamento, poderia ser uma etapa preliminar do próprio casamento.[51] No entanto, o posicionamento mais forte encontrado de um tema tão recente é o do Professor Anderson Schreiber, que diferencia o casamento da união estável em relação à chancela estatal, porém iguala no que se refere aos direitos do cônjuge. Afinal, as consequências jurídicas decorrentes de tal chancela caberão apenas ao casamento, enquanto que as decorrentes da convivência familiar caberão a ambos institutos. Para ele, a ideia de os direitos dados à união estável serem menores que os dados ao casamento é inconstitucional, sendo apenas instituições diferentes, e não inferiores ou superiores umas às outras. Assim, o autor não concorda com uma equiparação dos institutos, mas sim com os efeitos jurídicos relacionados ao ato de conviver com o outro. Ele, então, ater-se-á aos aspectos sucessórios.
É sob essa ótica que se deve examinar a sucessão do companheiro. Ora, qual a razão para que a lei diferencie o companheiro do cônjuge em relação aos seus direitos sucessórios? O cônjuge herda não porque tenha havido prévia chancela do Estado à sua relação familiar, mas porque conviveu familiarmente com o de cujus. E tal convivência familiar existe de igual modo na união estável. Assim, não há razão legítima para que o legislador diferencie o cônjuge do companheiro em relação ao seu quantum hereditário. O mesmo vale, registre-se, para a quota mínima de um quarto prevista no artigo 1.832, bem como para o direito real de habitação (art. 1.831). São direitos que encontram sua ratio no convívio familiar, não havendo razão para que sejam atribuídos apenas ao cônjuge, e não ao companheiro.(SCHREIBER, 2017).[52]
Fato é que a jurisprudência tem equiparado os efeitos para alguns assuntos, tal qual a pensão.
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO À PENSÃO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPROVAÇÃO DE DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. REPERCUSSÃO GERAL. POSSIBILIDADE. DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. COMPETÊNCIA DO STF. SOBRESTAMENTO DO FEITO. DESNECESSIDADE. 1. Verifica-se não ter ocorrido ofensa ao art. 535 do CPC, na medida em que o Tribunal de origem dirimiu, fundamentadamente, as questões que lhe foram submetidas, apreciando integralmente a controvérsia posta nos presentes autos. 2. Comprovada a união estável, a dependência econômica é presumida. Precedentes: REsp 1.376.978/RJ, Rel. Ministro Ari Pargendler, Primeira Turma, julgado em 21/05/13, DJe 4/6/2013 e REsp 614.191/RS, Rel. Ministro Paulo Gallotti, Sexta Turma, julgado em 28/09/2004, DJe 13/03/2006. 3. Não cabe ao Superior Tribunal de Justiça, ainda que para fins de prequestionamento, examinar na via especial matéria constitucional, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. 4. A repercussão geral reconhecida pela Suprema Corte, nos termos do art. 543-B do CPC, não enseja o sobrestamento dos recursos especiais que tramitam neste Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido: AgRg no REsp 1.344.073/RS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 06/09/2013; e AgRg no AREsp 244.747/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 08/02/2013. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ - AgRg no AREsp: 391737 RS 2013/0298036-6, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 28/04/2015, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/05/2015)
O autor deixa claro que, dada a convivência familiar, não se pode diferenciar cônjuge e companheiro quanto ao que irá receber da herança. Afinal, conforme citado, nessa prática convivência do dia-a-dia, os dois cumprirão similar função.
Por outro lado, tem-se a visão dos que compreendem o comportamento jurisprudencial como uma equiparação, e que são contra esse entendimento. Um dos fortes posicionamentos está relacionado à autonomia da vontade.
A vontade do sujeito, então, para valoração jurídica de seus atos, é também essencial ao Direito da Família, tão quanto o é ao Direito Civil como um todo. Tanto é que, ausente a sua capacidade, tem-se como inexistentes os atos jurídicos praticados e, por conseguinte, não se tem deles irradiados quaisquer efeitos, seja em relação ao casamento, seja em relação às uniões de fato. E, sendo assim, dada a relevância da vontade para tais atos, não pode ela (a vontade) ficar relegada a segundo plano no momento em que se for interpretar, juridicamente, os efeitos de uma ou de outra união. A equiparação da união estável ao casamento pelos tribunais nacionais, no exercício de sua interpretação das leis, parece, portanto, suprimir ou ignorar a força propulsora da questão: a intenção de um ou de outro se unir conforme suas preferências ou conveniências (OLIVEIRA, 2016).[53]
Consequentemente, na medida em que há a equiparação dos institutos aqui em voga, a vontade do Estado toma lugar sobre a vontade de escolha do indivíduo - o que em tudo tem a ver com a segurança jurídica. Isso porque os institutos são completamente diferentes, porém de hierarquia igual, de igual forma valorizados pela Constituição. Pelo caráter de ato-fato da união estável, muitas vezes é difícil identificar (até mesmo para os envolvidos) quando um namoro deixou de o ser para virar união estável, quando aquele afeto tomou a intenção de se reunir como família e se tornar uma união estável. Por outro lado, no casamento, as pessoas escolhem aquele sistema e seus efeitos, expressando sua liberdade de decisão.
O fato é que, quanto mais se regulamenta, mais se aproxima a união estável do casamento, distanciando-se aquela de sua original função, e vai deixando de existir aos poucos (PEREIRA, 2015)[54]. Dessa maneira, há um excesso desnecessário de intervenção na vida dos cidadãos, o que em nada tem a ver com o Estado Democrático de Direito e o Princípio Constitucional da liberdade de expressão. Ora, se não há hierarquia entre princípios constitucionais (ADI 2404/DF e Informativo 837 do STF), o Princípio da Igualdade não há de prevalecer a todo custo. Além disso, conforme expressa decisão do TJ/SP, por meio do Relator Des. Maurício Vidigal, " princípio da dignidade humana nada tem a ver com direito sucessório. Ninguém é mais ou menos digno por ter ou não direito à herança" no âmbito das sucessões.[55] Assim, inconstitucional passa a ser igualar os institutos.
(...) Entretanto, em que pese não ter a Constituição Federal equiparado o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente estabelecido, no artigo 226, § 3o, que “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, da leitura desse mesmo dispositivo se vê que realmente não se poderia concluir pela equiparação da união estável com o casamento, pois tal entendimento implicaria na desnecessidade de se converter a união estável. (TJSP – Agravo de Instrumento n.o 578.361-4 – 10a Câmara de Direito Privado – Rel. Des. TESTA MARCHI – Julgado em 01 de dezembro de 2009.)
Na perspectiva da coisa julgada, tem-se ainda muitas outras decisões tratando o tema da mesma forma.
Ao indeferir o pedido de efeito suspensivo da decisão agravada, restou consignado que, apesar da divergência encontrada na doutrina e na jurisprudência acerca do tema, o juízo singular entendeu que o casamento e a união estável diferem entre si, o que se extrai da própria Constituição, inexistindo equiparação entre tais institutos. Afirmou o magistrado, ainda, que “o regime diferenciado de sucessão não fere o princípio da razoabilidade, da dignidade da pessoa humana ou qualquer outra advindo da carta magna, restando, pois, constitucional a dissimilitude entre o tratamento dado aos institutos”. Invocou precedente do Conselho Especial do TJDFT, no qual a arguição de inconstitucionalidade do citado artigo 1790, inciso III, do Código Civil foi rejeitada à unanimidade. Confira-se:
CONSTITUCIONAL E CIVIL. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 1.790, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL. DIREITO SUCESSÓRIO DO COMPANHEIRO DIFERENCIADO EM RELAÇÃO AO CÔNJUGE SUPÉRSTITE. UNIÃO ESTÁVEL NÃO EQUIPARADA AO CASAMENTO PELA CONSTITUIÇÃO. ARTIGO 226, § 3º, DA CF. ARGUIÇÃO REJEITADA.- Embora o legislador constituinte tenha reconhecido a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, não a equiparou ao casamento de modo a atrair a unificação do regime legal acerca do direito sucessório, haja vista a observação final no texto constitucional da necessidade de lei para a facilitação de sua conversão em casamento - artigo 226, § 3º, da CF. - Não incide em inconstitucionalidade o tratamento diferenciado conferido pelo artigo 1790, inciso III, do Código Civil, acerca do direito sucessório do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite quanto à concorrência daquele com outros parentes sucessíveis do de cujus. - Arguição rejeitada. Unânime. (Acórdão n.438058, 20100020046316AIL, Relator: OTÁVIO AUGUSTO, Conselho Especial, Data de Julgamento: 01/06/2010, Publicado no DJE: 18/08/2010. Pág.: 28)
Nesse contexto, confrontando o teor do artigo 1790, do Código Civil, com o artigo 226, da Constituição da República, e o festejado princípio da isonomia, não vislumbro malferimento à Lei Maior.
Isto porque a Constituição da República, inegavelmente, admitiu a união estável como entidade familiar; contudo, não a equiparou ao casamento. Ao contrário, no mesmo artigo 226, § 3º, o constituinte fez constar a diferença entre tais institutos, razão pela qual determinou que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento.
O legislador ordinário, por sua vez, normatizou ambos os institutos, que, frise-se, são essencialmente diferentes. Nessa toada, entendeu por bem conferir tratamento diferenciado à destinação da herança da pessoa casada e da pessoa que vive em união estável.
Assim, por decorrência lógica, não há evidências de malferimento ao citado dispositivo constitucional, tampouco ao princípio da isonomia, haja vista que a própria Constituição não equipara o companheiro ao cônjuge.
E quanto à inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, por ferir o princípio da isonomia entre os filhos, se frutos do casamento ou da união estável, também não se vislumbra o alegado vício. Nesse sentido, este Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido de que:
CÓDIGO CIVIL. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. MEAÇÃO E SUCESSÃO. No caso de união estável, o Código Civil de 2002 disciplinou a sucessão do companheiro de maneira diversa da do cônjuge. Diante do art. 1790 do CC é correto afirmar que a intenção do legislador é no sentido de que o companheiro sobrevivente manterá a sua meação e, adicionalmente, participe da sucessão do outro companheiro falecido. Referido dispositivo legal ao dispor sobre a forma de concorrência entre a companheira e herdeiros, restou omisso quanto aos casos de filiação hibrida, ou seja, quando há herdeiros em comum dos companheiros e herdeiros somente do autor da herança, o que não implica na sua inconstitucionalidade, cabendo ao aplicador do direito solucionar a controvérsia por outros meios. A melhor solução é dividir de forma igualitária os quinhões hereditários entre o companheiro sobrevivente e todos os filhos. Recurso de apelação e agravo retido providos em parte. (Acórdão n.355533, 20050610031880APC, Relator: ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO, Revisor: JAIR SOARES, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 29/04/2009, Publicado no DJE: 12/05/2009. Pág.: 140 - grifos nossos)
AGRAVO INTERNO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. HERANÇA. PARTICIPAÇÃO. ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL. PRIVILÉGIO EM RELAÇÃO A CÔNJUGE SOBREVIVENTE. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. DESCABIMENTO. 1. A Constituição Federal não equiparou o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente reconhecido aquele como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF). 2. O tratamento diferenciado conferido pelo Código Civil a esses institutos, especialmente no tocante ao direito sobre a participação na herança do companheiro ou cônjuge falecido, não ofende o princípio da isonomia, mesmo que, em determinados casos, como o dos presentes autos, possa parecer que o companheiro tenha sido privilegiado. 3. O artigo 1.790 do Código Civil, portanto, é constitucional, pois não fere o princípio da isonomia. 4. Agravo Regimental não provido. (Acórdão n.638632, 20120020213017AGI, Relator: FLAVIO ROSTIROLA, 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 28/11/2012, Publicado no DJE: 06/12/2012. Pág.: 75 - grifos nossos)
Destaca-se que, em relação aos efeitos já equiparados, são situações distintas equiparar quando não há uma legislação guiando esses efeitos, e quando ela existe – caso das sucessões em relação à união estável.
Não é exagero, então, afirmar que inconstitucional seria a equiparação dos institutos, dado que a própria Constituição Cidadã diferencia os regimes jurídicos, igualando-os hierarquicamente, mas os distinguindo em sua natureza.
Enfim, o que se quer deixar demonstrado é que, nas situações dinâmicas do dia-a-dia, as pessoas têm a chance de escolher sob qual regime patrimonial preferem se unir: através do casamento ou através da união estável. Cada qual com suas vantagens e desvantagens, avaliáveis por cada um na oportunidade em que puderem optar. Sendo assim, identificada a distinção entre as duas modalidades, ambas garantidas constitucionalmente como unidades familiares, tem-se perfeitamente adequada a aplicação do artigo 1.790 do Código Civil nacional, cuja validade e eficácia se perfazem irretocáveis. (OLIVEIRA, 2016)[56].
Parece óbvio que a equiparação seria uma forma de manutenção da dignidade da pessoa, porém o autor deixa claro que a dignidade também está em manter a liberdade de escolha do ser humano. Sob o ponto de vista de Alexandre Araújo Costa (2018), "o exercício da liberdade é um exercício de escolha, e a escolha implica a opção entre diferentes modos de agir"[57]. Afinal, conforme explicado acima, trata-se de um princípio constitucionalmente elencado, o que tem implicações inclusive no regime de família escolhido pela pessoa. Essa questão é, obviamente, uma questão delicada e que ainda terá muito para se estudar acerca dos pontos que a cercam.
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise acerca do que são os institutos da união estável e do casamento, à luz da intensa mutabilidade do direito de família, porém não esquecendo a medida da segurança jurídica. Dessa maneira, foi possível observar como a doutrina tem considerado esses valores para, por fim, refletir sobre o posicionamento da jurisprudência acerca da equiparação da união estável ao casamento.
De modo geral, a doutrina não se estabilizou acerca de tal equiparação. É unânime o entendimento de que o casamento é um negócio jurídico e que a união estável é um ato-fato. Todavia, as divergências existem em relação aos efeitos desses institutos. Por um lado, os estudiosos a favor dizem ser necessária a equiparação a fim de respeitar o princípio da igualdade assim como o da dignidade humana, tendo em vista não serem institutos diferentes - o que permite inferir que o tratamento sucessório ao cônjuge e ao companheiro deve ser o mesmo. Por outro, está a corrente por nós considerada mais forte, tendo em vista levar em conta a liberdade de escolha dos institutos (o que leva em consideração suas consequências), a segurança jurídica - ambos pautados como princípios constitucionais tão fortes quanto o da igualdade - além de não considerar a não-equiparação um desrespeito ao princípio da dignidade humana, pelo contrário, pois colocaria o Estado e o ser humano em seus respectivos lugares de direito.
É claro que ainda há muito a se desenvolver sobre um tema tão novo, apesar de serem relações tão antigas, base da sociedade. Todavia, entendemos que o comportamento jurisprudencial está equiparando os institutos, o que não entendemos como correto pelos argumentos supracitados.
Com base nas pesquisas bibliográficas, buscando as origens dos institutos, assim como analisando os aspectos da segurança jurídica, percebe-se ser muito mais profunda a noção de equiparar do que simplesmente cumprir a função constitucional de igualdade, o que demonstra ser a abordagem do Supremo, extremamente superficial ao desconsiderar tais aspectos tão elementares ao debate.
Dada a importância do tema, torna-se necessário buscar conhecer outros sistemas jurídicos ocidentais e observar qual o tratamento dado a esse tema tão complexo, a fim de continuar o aprofundamento necessário que ele merece em outras pesquisas.
Reitera-se que a intenção aqui não é encerar o tema ou colocar de lado as importantes questões fáticas relacionadas à união estável e a grande população que a ela se submete. Portanto, abre-se a possibilidade de não equiparar efeitos por si só, mas quem sabe aprimorar a união estável de forma independente.
Nesse sentido, tem-se aqui um pontapé inicial para a análise da equiparação ao observá-la como um caminho que afronta princípios constitucionais, como a segurança jurídica e a liberdade – expressa na autonomia da vontade –, as quais decaem na necessária dignidade humana.
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[1] BURNS, Edward Mcnall. História da civilização ocidental. Tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado e Leonel Vallandro. 25.ed. Rio de Janeiro: Globo, 1983. p. 12.
[2] GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Caçpuste Gulbenkian, 2001, p.38. apud PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Tratado de direito das famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 28.
[3] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. O conceito de família e sua organização jurídica. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de direito das famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015. p.42.
[4] Idem, ibidem.
[5] GOMES, Orlando. Raízes históricas e ecológicas do código civil brasileiro. Salvador: Progresso, 1958. p. 23.
[6] PASSOS, Edilenice; LIMA, João Alberto de Oliveira. Memória legislativa do código civil. Brasília: Senado Federal, 2012, p.17.
[7] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.36.
[8] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 110; p. 115.
[9] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família. 3. Ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. p. 93.
[10] MADALENO, Rolf. Op. Cit. p. 110.
[11] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, direito de família. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 18.
[12] VENOSA, Silvio de Salvo. A família conjugal. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (organizador). Tratado de direito das famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015. p. 136.
[13] Idem, ibidem.
[14] LÔBO, Paulo. Op. Cit. p. 168.
[15] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 28-29.
[16] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. União Estável. In: 2. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (organizador). Tratado de direito das famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 202.
[17] Idem, ibidem.
[18] LÔBO, Paulo. Op. Cit. p.178.
[19] PEREIRA, Virgílio de Sá. Direito de família. 2. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p.89. apud CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 1-2.
[20] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. Cit. p.202.
[21] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Ed. Malheiros. 2005.
[22] ZAGREBELSKY, Gustavo. O direito útil. Madrid: Trotta, 2005. P.118.
[23] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2.Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P.157.
[24] Código Civil Brasileiro de 2002.
[25] RE 878694, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 05-02-2018 PUBLIC 06-02-2018.
[26] Foi noticiado pelo próprio STJ em seu sítio eletrônico. Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Quarta-Turma-equipara-regime-sucess%C3%B3rio-entre-c%C3%B4njuges-e-companheiros. Acesso em: 20/04/2018.
[27] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. P. 45.
[28] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução aos estudos do direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Atlas Editora, 2017. p.
[29] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1 (Coleção Biblioteca Tempo Universitário, n. 101) apud AQUINO, Jorge Inácio de. O Direito e sua interpretação na atualidade. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11415&p=2>, acesso em 01/06/2010.
[30] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 51.
[31] ÁVILA, Humberto. Op. Cit. p. 89.
[32] ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 40.
[33] NEVES, Marcelo. Entre hidra e hércules: princípios e regras como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 25 – 60.
[34] Idem, Ibidem.
[35] LUHMANN, Niklas. La restitution du douzième chameau: du sens d’une analyse sociologique du droit. Droit et Société. Paris, vol. 47, pp. 47-57, 2001.
[36] NEVES, Marcelo. Op. Cit. p. 97-98.
[37] FERREIRA, Gustavo; LABANCA, Marcelo; FELICIANO, Ivna Cavalcanti. Direito em dinâmica: 25 anos da Constituição de 1988. Recife: Instituto Frei Caneca, 2014.
[38] NEVES, Marcelo. Op. Cit. p. 134-135.
[39] ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 180-181.
[40] NASCIMENTO, Samira Rocher do. O princípio da segurança jurídica e sua fragilização diante da relativização da coisa julgada. 2007. p. 5. Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25515-25517-1-PB.pdf.
[41] ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p.56.
[42] Marco Aurélio em entrevista ao site Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-out-16/aprovacao_agil_sumula_vinculante_gera_divergencias. Acesso em: 18/04/2018.
[43] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. São Paulo: Saraiva, 2015. p.37.
[44] Idem, ibidem.
[45] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4ª ed. São Paulo: RT, 1977, Tomo II, p. 183-185.
[46] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 30. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.87.
[47] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit. p.186.
[48] LÔBO, Paulo. A concepção da união estável como ato-fato jurídico e suas repercussões processuais. Disponível em: http:// www.egov.ufsc.br/portal/ conteudo/concep%C3%A7%C3%A3o-da-uni%C3%A3o-est%C3%A1vel-como-ato-fato-jur%C3%ADdico-e-suas-repercuss%C3%B5es-processuais. Acesso em: 19/04/2018.
[49] PADILHA, Sarah. Disposições gerais sobre o negócio jurídico. Disponível em: https://sarahpg.jusbrasil.com.br/artigos/335131832/disposicoes-gerais-sobre-o-negocio-juridico. Acesso em: 19/04/2018.
[50] GUERRA, Alexandre. Princípio da conservação dos negócios jurídicos. São Paulo: Almedina, 2016. p. 169.
[51] SCHREIBER, Anderson. União estável e casamento: uma equiparação? Disponível em:http://genjuridico.com.br/2017/08/23/uniao-estavel-e-casamento-uma-equiparacao/. Acesso em: 19/04/2018.
[52] Idem, ibidem.
[53] OLIVEIRA, Alexandre Gindler de. União estável e casamento: atos jurídicos distintos com efeitos sucessórios distintos. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI245333,61044-Uniao+estavel+e+Casamento+ Atos+ jurídicos +distintos +com+efeitos. Acesso em: 19/04/2018.
[54] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Em nome da liberdade, união estável tem
de se manter diferente do casamento. Disponível em: https://www.conjur.com.br/ 2015-out-04/processo-familiar-liberdade-uniao-estavel-diferente-casamento. Acesso em: 20/04/2018.
[55] TJSP – Agravo de Instrumento n.o 641.861-4 – 10a Câmara de Direito Privado – Rel. Des. MAURÍCIO VIDIGAL – Julgado em 25 de agosto de 2009.
[56] OLIVEIRA, Alexandre Gindler. Op. Cit.
[57] COSTA, Alexandre Araújo Costa. Direito e Liberdade. Disponível em: http:// www.arcos.org.br/ monografias/introducao-critica-ao-direito/direito-e-liberdade/8-direito-e-liberdade-. Acesso em: 20/04/2018.
Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões, pela Faculdade Damásio; pós-graduanda em Psicologia e a Síndrome da Alienação Parental, pela UNIBF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MESQUITA, Erika Caroline Feijão Bezerra. Uma análise acerca da equiparação da união estável ao casamento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2022, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58142/uma-anlise-acerca-da-equiparao-da-unio-estvel-ao-casamento. Acesso em: 23 dez 2024.
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