YURI ANDERSON PEREIRA JURUBEBA[1]
(coautor)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo principal tratar sobre a incidência do foro por prerrogativa de função na jurisprudência da Suprema Corte brasileira. Além de apresentar um apanhado geral acerca das características funcionais do referido instituto, serão elucidadas algumas questões que estão em constante debate na jurisprudência brasileira, tais como a excessiva abrangência da prerrogativa de foro no ordenamento jurídico e sua consequente disfuncionalidade, tendo como objeto de análise os casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, além de pesquisas bibliográficas na doutrina, monografias, outros artigos científicos e no texto da lei. Em síntese, por afetar diretamente parlamentares, membros do executivo e ocupantes de importantes cargos jurídicos, a prerrogativa de foro é assunto polêmico e de constante discussão, à vista disso é que foi pautado o interesse em dissertar sobre o tema.
Palavras-chave: foro por prerrogativa de função; caráter disfuncional; particularidades; polêmicas; questão de ordem; jurisprudência; mudanças; panorama atual; Suprema Corte.
ABSTRACT: The main objective of this article is to deal with the incidence of the forum by prerogative of function in the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court. In addition to presenting an overview of the functional characteristics of the aforementioned institute, some issues of constant debate will be elucidated, such as the excessive scope of the prerogative of forum in the Brazilian legal system and its consequent dysfunctionality, having as object of analysis the cases judged by the Brazilian Supreme Court.
Keywords: forum by prerogative of function; dysfunctional character; particularities; controversies; question of order; jurisprudence; changes; current overview; Supreme Court.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Do foro por prerrogativa de função em si: 2.1 Foro por prerrogativa de função x foro privilegiado; 2.2 Origem: 2.2.1 O foro por prerrogativa de função nas cidades-estados gregas; 2.2.2 O foro por prerrogativa de função no Egito Antigo. 3. A incidência do foro privilegiado em algumas constituições brasileiras. 3.1. A prerrogativa de foro na Constituição Federal de 1988. 4. Particularidades e polêmicas acerca do instituto do foro por prerrogativa de função: 4.1 A exagerada abrangência do foro por prerrogativa de função no Brasil em comparação com países desenvolvidos; 4.2 O caráter disfuncional do foro por prerrogativa de função e as críticas atinentes a ele; 5. A necessidade de mudanças no instituto em virtude da alta demanda de processos na Suprema Corte. 5.1 Ausência do duplo grau de jurisdição para indiciados com prerrogativa de foro. 6. O foro por prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro: 6.1 O entendimento jurisprudencial da Suprema Corte acerca do foro por prerrogativa de função; 6.1.1 A prerrogativa de foro nos casos de conexão ou continência; 6.1.2 A mitigação da importância às imunidades parlamentares no julgamento envolvendo o então deputado Jair Messias Bolsonaro; 6.2 A aplicação da prerrogativa de foro nos casos de improbidade administrativa; 6.3 A questão de ordem na ação penal 937: sentido e alcance da prerrogativa de foro. 7. Conclusão
1. INTRODUÇÃO
A Carta Magna de 1988 não apresenta um conceito que defina o foro especial por prerrogativa de função, ela apenas traz as hipóteses, por meio de um rol taxativo, dos cargos que são amparados por tal prerrogativa, cabendo à doutrina e à jurisprudência dissertar a respeito de seus aspectos instrumentais.
Trata-se de um mecanismo de modificação de competência utilizado para garantir um julgamento parcial nos casos que envolverem algumas autoridades públicas. Sob esse prisma, é possível extrair dois pilares do instituto: refere-se à hipótese de modificação de competência e proteção a cargos públicos, e não a pessoas.
O nascimento do instituto se deu então da necessidade de garantir um julgamento justo e imparcial àqueles que ocupam cargos de destaque na organização político-administrativa. Isso porque acreditou-se que caso pessoas ocupantes de funções de alta relevância fossem julgadas por juízes de primeira instância a imparcialidade estaria comprometida em virtude da relação hierárquica entre julgador e acusado. Note ainda que a prerrogativa de foro somente pode ser invocada em casos de matéria penal e quando se tratar de crimes de responsabilidade, não abarcando infrações de natureza cível.
Outra justificativa para a existência da prerrogativa de foro se apoia sobre a necessidade de proteção ao exercício de funções de alta relevância. Isso porque entendeu-se que ao realizar o julgamento de algumas autoridades públicas havia o risco de o juiz singular agir tomado pela sua própria ideologia e de acordo com suas vertentes políticas, não com base nas disposições legais em si.
O presente artigo tem então como propósito tentar elucidar a questão do instituto do Foro Por Prerrogativa de Função no ordenamento jurídico brasileiro a partir de uma análise de sua ocorrência nos casos de maior destaque julgados pela Suprema Corte.
Para conseguir chegar a tal resultado, preliminarmente, discutir-se-á a respeito da definição doutrinária atribuída ao instituto e ainda sobre sua disposição legal no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de tornar possível o entendimento acerca de seu funcionamento nos dias atuais. Importa fazer também um apanhado histórico sobre sua origem, o que possibilitará entender as bases e motivos que o criaram.
Dando prosseguimento, é imprescindível a análise de como o instituto surgiu pela primeira vez no Brasil e como se deu seu desenvolvimento até a forma como é aplicado nos dias atuais.
Após realizado o estudo das disposições gerais que permeiam o “Foro Por Prerrogativa de Função” o presente artigo buscará apresentar suas particularidades e polêmicas, as quais são objetos de constante e permanente discussão. Neste tópico, questões como a eventual disfuncionalidade e a alta demanda de processos na Suprema Corte em razão da excessiva aplicabilidade da prerrogativa de foro serão apresentadas.
E, adentrando no tema central deste artigo, qual seja a ocorrência e efeitos do “Foro Por Prerrogativa de Função na jurisprudência da Suprema Corte brasileira”, serão apresentados casos emblemáticos que permitiram um novo entendimento sobre o instituto, dando enfoque à Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 937, responsável por definir uma interpretação extensiva acerca do sentido e alcance da prerrogativa de foro.
2. DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO EM SI
2.1 Foro por Prerrogativa de Função x Foro Privilegiado
Em razão do caráter polêmico que engloba a existência da prerrogativa de foro, uma vez que representa uma diferenciação no tratamento jurídico dado a pessoas que ocupam alguns cargos, questões acerca da legitimidade do instituto estão sempre em discussão. Grande parte dessas discussões consistem na alegação de que a prerrogativa de foro fere o princípio da igualdade, um dos pilares da Constituição Federal brasileira.
No entanto, é importante destacar que essa prerrogativa, como o próprio nome diz e como já foi mencionado acima, busca proteger o exercício de cargos ou funções públicas, pouco importando a pessoa física que os ocupa, e garantir um julgamento livre de parcialidade nesses casos. Não se trata, pois, de um privilégio, que nesse caso é concedido em razão de características pessoais e não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Sob esse aspecto são os dizeres de Távora e Alencar:
[...]Permite-se, assim, enaltecer a função desempenhada, e evitar as pressões indiretas que poderiam ocorrer se as diversas autoridades fossem julgadas pelos juízes de primeiro grau. Para proteger o exercício do cargo ou da função que tenha relevância constitucional estatal, contra investidas de toda a ordem, para assegurar ao acusado detentor de prerrogativa de função um julgamento com menor suscetibilidade a pressões externas (porque colegiado), bem como para proteger o julgamento contra ameaças de pressões do próprio acusado, prevê o ordenamento jurídico a prerrogativa de função. (2015, p. 377)
Nesse sentido é o entendimento do Ministro Marco Aurélio na ação de Habeas Corpus nº 88.536: “A prerrogativa de foro, prevista em norma a encerrar direito estrito, visa a beneficiar não a pessoa, mas o cargo ocupado”. (HC 88.536, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento 25-9-2007, Primeira Turma, DJE de 15-2-2008). Por conseguinte, vislumbra-se que o entendimento da Suprema Corte está direcionado no sentido de afastar qualquer hipótese que possibilite tratamento privilegiado a alguém em razão de características pessoais.
2.2 Origem
2.2.1 O foro por prerrogativa de função nas cidades-estados gregas
Antes de adentrar no estudo sobre o funcionamento do instituto do foro por prerrogativa de função e suas implicações nos casos reais, faz-se necessário entender sobre sua origem e desdobramentos que o transformaram na forma em que conhecemos hoje.
O primeiro indício de que se tem notícia sobre a origem do foro remonta à data de 1.100 a.C, no chamado Período Homérico, compreendido entre o fim da civilização Micênica e o início do surgimento das Cidades-Estados gregas, “[...] uma vez que, já nesta época, verificava-se a concessão de benefícios para aqueles indivíduos que detinham a função judicante ou que integravam o corpo estatal.” (BARROCAS, 2018 p. 12). Além do que, a organização social desse período era totalmente definida pela família a qual o indivíduo fazia parte, entendendo-se por família o grupo de pessoas que dividia a mesma terra. Sendo assim, somente as pessoas pertencentes aos grupos mais abastados tinham privilégio de participar das decisões políticas.
De forma gradual, as sociedades familiares foram se espalhando pelo território compreendido ao longo do Mar Mediterrâneo e assim formavam-se as pólis, cidades que detinham o controle sobre sua organização, possuindo leis e governos próprios e independentes. Apesar de serem consideradas como berço da democracia, esta não era vivenciada por toda a população. Apenas aqueles considerados cidadãos, homens livres nascidos na Grécia, tinham o privilégio de participar das decisões pertinentes à administração pública. Nesse sentido confirma Giordani (2001, p. 161): “Houve, desde a Grécia antiga, uma nítida estratificação dos segmentos sociais e foram concedidos privilégios àqueles que eram considerados cidadãos livres”.
Nesse contexto, detinham privilégio os magistrados, que ao cometimento de algum ato ilícito eram julgados pelos chamados “reparadores”, que nas lições de Platão em sua obra “As Leis”:
[...] examinarão a gestão dos diversos magistrados, uns eleitos pelo acaso do sorteio para um ano de mandato, outros para vários anos e escolhidos a partir de um elenco de pessoas já seletas. O que poderíamos afirmar com propriedade a respeito deles? Quem terá competência para atuar como reparador relativamente aos magistrados em pauta? E se suceder que algum deles atue de maneira tortuosa ou que, vergando sob o peso de uma responsabilidade que não está a sua altura sua autoridade se mostre inferior ao que requer a dignidade de seu cargo [o que fazer]? Não é de modo algum fácil encontrar um magistrado dos magistrados, que a todos supere em virtude, mas de qualquer modo é preciso tentar descobrir alguns reparadores de uma qualidade divina. (1999, p. 478)
Essa característica aristocrática presente na democracia grega, que proporciona o poder participativo apenas a uma pequena parcela de homens, representa um indício da existência do foro por prerrogativa de função já a essa época, uma vez que os ocupantes de cargos públicos eram amparados por regramento distinto ao dos homens comuns em virtude da função que exerciam.
2.2.2 O foro por prerrogativa de função no Egito Antigo
Outra civilização que possuía o foro por prerrogativa de função instaurado em seu ordenamento jurídico é o Egito Antigo. Historiadores acreditam que a origem do foro por prerrogativa remonta a essa época, isso porque existia um tribunal específico para o julgamento de autoridades como senadores, profetas e chefes militares. Este tribunal era chamado de sinédrio, ou tribunal dos setenta, uma vez que era formado por setenta juízes com competência originária para realizar esses julgamentos. Segundo GÊNOVA:
A primeira notícia que se tem de um foro por prerrogativa da função remonta ao Egito antigo, no denominado sinédrio, ou tribunal dos setenta, assembleia esta composta por setenta juízes que possuíam a competência originária para o julgamento de senadores, profetas, chefes militares, cidades e tribos rebeldes. (2009, p. 14).
À vista disso, nota-se claramente a previsão da prerrogativa de foro no ordenamento jurídico do Egito Antigo, que determinava a modificação de competência para o julgamento de senadores, profetas, chefes militares, cidades e tribos rebeldes.
3. A Incidência do Foro Privilegiado em algumas Constituições Brasileiras
Apesar de já ser prevista em diversos lugares do mundo há tempos, a prerrogativa de foro foi disciplinada pela primeira vez no Brasil com o advento da Constituição Imperial de 1824, promulgada por Dom Pedro I. O referido texto legal determinava, em seu artigo 47, atribuição exclusiva do Senado para apreciar os crimes cometidos pelos seus próprios membros, membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado e Deputados. Atribuía ainda privilégio à pessoa do Imperador, que era inviolável e sagrada, não estando sujeita a nenhum tipo de responsabilidade. (BRASIL, 1824)
Em 1891, após a proclamação da República, a nova constituição foi promulgada. Em seu artigo 53 concedia prerrogativa de foro ao presidente da república nas hipóteses tanto de crimes comuns, quanto de responsabilidade (GÊNOVA, 2009), in verbis: “Art. 53 - O Presidente dos Estados Unidos do Brasil será submetido a processo e a julgamento, depois que a Câmara declarar procedente a acusação, perante o Supremo Tribunal Federal, nos crimes comuns, e nos de responsabilidade perante o Senado”. (BRASIL, 1891)
Durante o período da Segunda República foi publicada a Constituição de 1934, que trouxe inovações pertinentes ao campo da prerrogativa de foro. Uma dessas inovações consiste na alteração da competência para se julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelo Presidente e pelos Ministros da Corte Suprema, que passaram a ser apreciados por um tribunal criado especificamente para esse fim, composto por ministros, senadores e deputados. (AGUIAR E OLIVEIRA, 2017 p. 116).
O referido texto legal determina ainda, em seu art. 76, ser a competência originária da Corte Suprema para processar e julgar os crimes comuns cometidos pelos seus Ministros e pelo Presidente da República, e os crimes comuns e de responsabilidade cometidos pelos Ministros de Estado, Procurador-Geral da República, juízes dos Tribunais Federais e das Cortes de Apelação, Ministros dos Tribunais de Contas e os Embaixadores e Ministros diplomáticos. (BRASIL, 1934).
Posteriormente, a Constituição de 1937 modificou a competência para o julgamento do Presidente da República mais uma vez, determinando em seu art. 86 que nos casos envolvendo essa autoridade, o processo e julgamento seriam perante o Conselho Federal (BRASIL, 1937). No entanto, este diploma legal disciplinou sobre a impossibilidade de responsabilização do Presidente da República nos atos praticados por ele, mas que não tenham conexão com o exercício do cargo.
Essa Carta Magna disciplinava ainda sobre a competência do Supremo Tribunal Federal nas hipóteses de crimes comuns e de responsabilidade cometidos pelos Ministros de Estado e dos Tribunais de Contas, Procurador-Geral da República, Magistrados e Diplomáticos e Embaixadores. Era também de competência do STF processar e julgar, nos crimes comuns, seus próprios ministros. (AGUIAR E OLIVEIRA, 2017 p. 117)
3.1. A Prerrogativa de Foro na Constituição Federal de 1988
As normas de aplicação do foro por prerrogativa de função estão dispostas na Constituição Federal, que, como já mencionado, não traz uma definição do que vem a ser a prerrogativa de foro, apenas apresenta o rol dos cargos e funções públicas que fazem jus a ela. O texto constitucional preconiza em seu artigo 29 inciso X que o julgamento de Prefeitos deve ser realizado pelo Tribunal de Justiça nos casos que tiver praticado infração penal, até mesmo quando o crime for doloso e contra a vida. A única ressalva aqui é a de que o ilícito deve ser comum à justiça estadual, ou seja, quando se tratar de crime militar ou eleitoral, por exemplo, a competência será do tribunal da respectiva justiça especializada.
Em seguida, a Carta Magna apresenta em seu art. 53, § 1º que os casos envolvendo Deputados e Senadores devem ser remetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal a partir da expedição do diploma, tema restringido pela Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 937, que será explanada posteriormente.
Nos casos de crimes comuns praticados pelo Presidente da República, Vice-Presidente, membros do Congresso Nacional, Ministros do STF e Procurador-Geral da República, o Art. 102, I, b determinou que a competência originária é do Supremo Tribunal Federal. Ademais, aduz o Art. 52, inciso I que cabe ao Senado Federal processar e julgar os crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente e Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes das Forças Armadas nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles.
Nas hipóteses que envolverem Ministros de Estado, Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, Membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, incumbe ao STF a competência originária para processar e julgar tanto os crimes comuns, quanto os de responsabilidade, ressalvados os casos de conexão com crimes envolvendo Presidente e Vice Presidente da República, que como já foi mencionado serão de competência do Senado Federal. Importante mencionar que a Medida Provisória 2.049-22, de 28 de agosto de 2000, em seu art. 24-B, equiparou o cargo de Advogado-Geral da União à Ministro de Estado, dessa forma, aquele passou a também a ser amparado pela prerrogativa especial.
A Carta Constitucional determina ainda em seu art. 52, inciso II que quando se tratar de crime de responsabilidade praticado por Ministros do STF, membros do Congresso Nacional e do Conselho Nacional do Ministério Público, Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União, a competência privativa incumbe ao Senado Federal.
Finalmente, em seu art. 105 inciso I a CF/88 determina que compete aos Tribunais de Justiça processar e julgar os crimes comuns praticados por Governadores; nestes e nos de responsabilidade cometidos pelos Desembargadores dos próprios tribunais, membros dos Tribunais de Contas, Tribunais Regionais Federais, Regionais Eleitorais e do Trabalho, membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e ainda aqueles praticados por membros do Ministério Público da União que oficiem perante os tribunais.
Além dos casos acima mencionados cabe ressaltar ainda que existem mais algumas hipóteses de incidência da prerrogativa de foro dispostas no texto da Lei Maior. É o caso da competência dos Tribunais de Justiça para jugar os crimes comuns e de responsabilidade praticados por juízes estaduais, do Distrito Federal e de Territórios, disposta pelo art. 96, inciso III. É também a disposição da competência dos Tribunais Regionais Federais para processar e julgar originariamente os crimes comuns e de responsabilidade cuja autoria incide em Juízes Federais, Militares e da Justiça do Trabalho, além dos membros do Ministério Público da União.
A partir desta análise é possível verificar a alargada abrangência da prerrogativa de foro no ordenamento jurídico brasileiro, que é constitucionalmente aplicada a uma enorme quantidade de cargos e funções, tanto para prática de infrações penais comuns, quanto para os crimes de responsabilidade.
4. PARTICULARIDADES E POLÊMICAS ACERCA DO INSTITUTO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
4.1 A exagerada abrangência do foro por prerrogativa de função no Brasil em comparação com países desenvolvidos
Como já foi explanado no decorrer do presente texto, o foro por prerrogativa de função possui aplicabilidade no Brasil desde a época do Império, estando presente em todas as constituições que já regeram o país. Com o decorrer do tempo, o legislador constituinte alterou o instituto de diversas formas e atribuiu a prerrogativa de foro a um número cada vez maior de cargos e funções.
Fazendo uma análise comparativa entre a Constituição de 1824, que instituiu o foro por prerrogativa de função no Brasil, com a Carta Magna de 1988, atualmente vigente, observa-se com clareza a abrangência da aplicação do instituto com o passar dos anos, levando em consideração que, a princípio, só detinham a prerrogativa de foro os membros do Senado Federal, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, Deputados, e o próprio Imperador. Já nos dias atuais, do presidente ao prefeito, uma imensa gama de cargos possui a previsão da prerrogativa, como foi apresentado no tópico 1.5 deste artigo.
São as palavras do Ministro Luís Roberto Barroso na Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 937:
[...] A primeira constatação a que se chega sem grande dificuldade é que o sistema abrange gente demais. Embora essa seja uma mudança que dependa de emenda constitucional, não me parece relevante deixar de acentuar que, segundo levantamentos, o foro por prerrogativa atinge 37 mil autoridades no país. Só no Supremo Tribunal Federal são processados e julgados, em tese, mais de 800 agentes, que incluem o Presidente da República, o Vice-Presidente, 513 deputados federais, 81 senadores, os atuais 31 ministros de Estado e, ainda, os 3 comandantes militares, os 90 ministros de tribunais superiores, 9 membros do Tribunal de Contas da União e 138 chefes de missão diplomática de caráter permanente. Além disso, há mais de 30 mil detentores de foro por prerrogativa nos tribunais regionais federais e nos tribunais de justiça. (2018, p. 6).
Acontece que essa realidade, qual seja a imensa quantidade de cargos e funções amparados pela prerrogativa de foro, enseja muitas críticas ao instituto, principalmente levando em consideração o direito comparado. Isso porque, em comparação com o Brasil, os países considerados “desenvolvidos” possuem quantidade consideravelmente menor de cargos e funções com prerrogativa de foro. A seguir alguns exemplos.
Nos Estados Unidos, a Constituição Americana prevê a modificação da competência originária apenas nos casos que envolverem os cargos de embaixador, ministro ou cônsules, que são processados e julgados pela Suprema Corte (Artigo III, Seção 2 da Constituição Americana).
Já na Dinamarca, a Constituição de 1953 atribui a competência para julgar o impeachment dos Ministros de Estado à Alta Corte do Reino. Na Noruega, por sua vez, é de competência originária da Corte de Impeachment o julgamento das ações ajuizadas pelo Parlamento contra seus próprios membros, membros do Conselho de Estado e da Corte Suprema, que tenham cometido condutas criminosas no exercício de suas obrigações legais. (TAVARES FILHO, p. 11). Na Inglaterra, por outro lado, ninguém, nem mesmo o primeiro-ministro britânico, possui foro por prerrogativa de função. (GOMES e LOUREIRO).
4.2 O caráter disfuncional do foro por prerrogativa de função e as críticas atinentes a ele
Apesar de se tratar de direito constitucionalmente garantido no ordenamento jurídico brasileiro, o foro por prerrogativa de função é bastante criticado, tanto por juristas quanto pela população em geral. Para o Ministro Luís Roberto Barroso a prerrogativa de foro nada mais é que um objeto que estimula a fraude à jurisdição, uma vez que o indiciado pode modificar seu cargo, renunciando ou se candidatando, e consequentemente, alterar a competência de seu julgamento da maneira que melhor o beneficiar. Já o Ministro Celso de Mello acredita que toda hipótese de prerrogativa, exceto aquela direcionada ao Presidente da República, deve ser suprimida. (TAVARES FILHO, p. 18).
A aplicação desregrada do instituto também é motivo de críticas. Isso porque a Constituição Federal não apresentou os limites temporais de aplicação da prerrogativa de foro, o que possibilitou a diversos indiciados meios de burlar a jurisdição, alterando seus mandatos. São as palavras de Ministro Luís Roberto Barroso na Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 937:
O problema, além da quantidade de pessoas que é beneficiada pelo foro, é a extensão que se tem dado a esse foro privilegiado e a esse ponto que vamos enfrentar aqui, que é discutir se há algum fundamento para que se dê foro por prerrogativa de função para fatos que tenham sido praticados antes que o indivíduo tivesse sido sequer investido no cargo que é beneficiado pelo foro de prerrogativa de função ou pela prática de atos que não guardem qualquer conexão com o exercício do mandato que se deseja proteger. O fato é que não é difícil de demonstrar que, com essa quantidade de pessoas e com essa extensão, o foro se tornou penosamente disfuncional na experiência brasileira. (2018, p.07)
Outra questão bastante criticada quanto ao foro por prerrogativa de função diz respeito à sua aplicação aos membros do Congresso Nacional, disciplinada pelo Art. 53, parágrafo 1º da Constituição Federal. Nos dizeres de Ana Paula Barbosa de Sá:
Nesta esteira ocorre, em paralelo, uma crise do que se popularmente se denomina como ‘privilégios’ parlamentares, entendidos como as garantias conferidas aos membros do Poder Legislativo como forma de proteger a relevante função pública que desempenham.
Isso por que, no momento em que deixa de existir uma plena identificação entre representante e representado, a instituição parlamentar, aos olhos dos membros da sociedade, perde sua importância e, por conseguinte, a classe política passa a ser vista como pouco digna ou, pior, por utilizar a função como forma de obter ganhos pessoais em detrimento da coletividade. (2009, p. 61)
Outrossim, a partir da análise do excerto acima, nota-se que a prerrogativa de foro nesses casos pode acarretar um problema na relação entre parlamentar e população, isso porque apesar de possuir previsão legal, à primeira vista, soa como um privilégio conferido às funções políticas, e é visto com maus olhos pela população no geral.
5. A NECESSIDADE DE MUDANÇAS NO INSTITUTO EM VIRTUDE DA ALTA DEMANDA DE PROCESSOS NA SUPREMA CORTE
Outro ponto de bastante relevância que indica a disfuncionalidade do foro por prerrogativa de função em vigência no Brasil consiste na imensa quantidade de processos que se tornam de competência originária do Supremo Tribunal Federal em virtude da grande quantidade de cargos e funções que possuem a prerrogativa de foro. Essa modificação de competência, que atribui ao STF o papel de jurisdição penal de primeiro grau, o que em regras gerais é função dos juízes singulares, o afasta de sua função primordial, qual seja a de Guardião da Constituição (BARROSO, p. 8)
Outra crítica do ministro Luís Roberto Barroso é direcionada ao fato de que essa grande quantidade de processos em matéria penal que é de competência originária do Supremo acarreta um sobrecarregamento do sistema, e consequentemente, no desempenho insatisfatório da prática jurídica.
O Supremo Tribunal Federal, por não ser vocacionado para esse papel, não o desempenha de maneira desejavelmente satisfatória. Por quê? Exatamente pelo volume de processos e pelo tipo de formação que as pessoas aqui investidas têm. Esse não é um papel típico que os Ministros consigam desempenhar da maneira mais desejável, além do que o procedimento perante o Supremo Tribunal Federal é muito mais complexo do que perante o primeiro grau. De modo que, sem surpresas, nós constatamos que a existência do foro privilegiado, perante o Supremo, produz números muito ruins. (Questão de Ordem na AP 937. 2018, p. 8)
São ainda palavras do relator: “O foro de prerrogativa de função, na sua extensão, contribuiu para o congestionamento dos Tribunais, tornando ainda mais morosa a tramitação dos processos e mais raros os julgamentos e as condenações.” (BARROSO. 2018, p.30). Destarte, é possível concluir que a excessiva abrangência que tem a prerrogativa de foro no Brasil, além de contribuir para o sobrecarregamento do sistema jurídico do STF pode ser ainda via de impunidade aos indiciados em virtude da morosidade em que se dão os seguimentos processuais.
O V Relatório Supremo em Números de 2017, realizado pela Fundação Getúlio Vargas, demonstrou exatamente esse sobrecarregamento do sistema jurídico do STF ao concluir que, ao atuar como corte originária, muitas vezes não consegue analisar o mérito das investigações ou acusações apresentadas pelo Procurador Geral de Justiça (2017, p. 81). Nota-se aqui o caráter disfuncional que acarreta a impunidade nos casos que fazem jus à prerrogativa de foro.
5.1 Ausência do duplo grau de jurisdição para indiciados com prerrogativa de foro
Outra disfuncionalidade que permeia o instituto do foro especial no Brasil consiste na impossibilidade de se aplicar o princípio do duplo grau de jurisdição aos indiciados que fazem jus à prerrogativa. Trata-se de garantia individual, prevista implicitamente na Constituição Federal, voltada a assegurar que as decisões proferidas pelos órgãos de primeiro grau do Poder Judiciário não sejam únicas, mas submetidas a um juízo de reavaliação por instância superior. (NUCCI, 2013, p. 868).
Apesar de não estar expressamente previsto na Carta Magna, esse princípio consiste em um direito fundamental das partes processuais. No entanto, a aplicação da prerrogativa de foro pode impossibilitar a interposição de recurso a uma decisão desfavorável, isso porque, os indiciados que possuem tal prerrogativa apenas podem interpor recurso especial e extraordinário, que somente possibilitam o reexame de matérias de direito. São os dizeres de Marcelo Lessa Bastos:
O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição não existe apenas para permitir que a apreciação da controvérsia seja feita mais de uma vez, mas também para garantir que a primeira decisão seja proveniente do primeiro grau, pois salvo em hipótese de competência originária das instâncias superiores, o exame inicial de demanda realizado por estas fará com que o primeiro grau seja suprimido, caracterizando, igualmente, no ângulo inverso, uma violação ao princípio do duplo grau. (2020, p. 21)
Posto isso, nota-se que atribuir aos Tribunais superiores a competência originária para julgar determinados casos torna impossível que a decisão seja reavaliada, em virtude de já ter sido apreciada pelo órgão máximo do judiciário, demonstrando clara afronta a princípio infraconstitucional consolidado no ordenamento jurídico brasileiro.
6. O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
6.1 O entendimento jurisprudencial da Suprema Corte acerca do foro por prerrogativa de função
A primeira mudança promovida no instituto da prerrogativa de foro pelo entendimento jurisprudencial ocorreu com o julgamento da ADI nº 2.797/DF, que declarou inconstitucional a Lei nº 10.628/2002, a qual estendia a aplicação da prerrogativa de foro a indiciados que não mais estavam no exercício da função pública.
6.1.1 A prerrogativa de foro nos casos de conexão ou continência
Outra questão de bastante debate na Suprema Corte brasileira consiste nas hipóteses em que um crime é praticado por indiciado com prerrogativa de foro em conexão ou continência com outro crime praticado por quem não possua qualquer tipo de prerrogativa. Trata-se de hipóteses em que é possível a reunião de dois ou mais processos em um mesmo julgamento. Nesses casos o STF definiu, por meio do Informativo 888, no ano de 2014, como regra geral, o desmembramento dos processos que envolverem agentes com prerrogativa de foro e aqueles que não a possuem.
Ademais, é possível que todos os indiciados sejam julgados perante o Tribunal Superior, isso porque, nesses casos, a Súmula nº 704 do STF entendeu ser possível o julgamento conjunto, uma vez que o corréu, que a princípio não fazia jus à prerrogativa de foro, permaneceria amparado pelas garantias do juiz natural, ampla defesa e devido processo legal, e assim determinou, in verbis: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.” Foi o que ocorreu na Ação Penal 470, conhecida popularmente como “Mensalão”, onde o STF decidiu pelo julgamento conjunto de todos os réus (com e sem prerrogativa de foro).
Aqui o STF entendeu que a CF/88 não deveria ser interpretada restritivamente, sob alegação de que essa inclusão na jurisdição penal originária do próprio Supremo de pessoas não mencionadas na Carta Magna se daria com o intuito de evitar julgamentos contraditórios por juízos diversos e porque, por vezes, se trata de casos de conexão probatória (CAMPOS, p. 39).
6.1.2 A mitigação da importância às imunidades parlamentares no julgamento envolvendo o então deputado Jair Messias Bolsonaro
Outro ponto destacado pela jurisprudência da Suprema Corte brasileira diz respeito à importância das imunidades parlamentares para garantir a independência do Poder Legislativo, em razão “de conferirem aos parlamentares proteção no exercício de suas funções, contra abusos, ingerência e pressões dos demais poderes” (TEIXEIRA e ROSA, p. 8).
No entanto, apesar de conferir tamanha importância às imunidades parlamentares, o STF decidiu, por meio do Inquérito 3.932/16, restringir a aplicação do foro ao então deputado Jair Messias Bolsonaro, investigado pelo delito de injúria. A 1ª Turma, por maioria dos votos, entendeu não ser cabível a prerrogativa ao caso em questão, uma vez que o deputado não estava no exercício de sua função no momento dos fatos. Foi assim decidido:
EMENTA: PENAL. DENÚNCIA E QUEIXA-CRIME. INCITAÇÃO AO CRIME, INJÚRIA E CALÚNIA. TRANSAÇÃO PENAL. NÃO OFERECIMENTO. MANIFESTAÇÃO DE DESINTERESSE PELO ACUSADO. IMUNIDADE PARLAMENTAR. INCIDÊNCIA QUANTO ÀS PALAVRAS PROFERIDAS NO RECINTO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. ENTREVISTA. AUSENTE CONEXÃO COM O DESEMPENHO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA. INAPLICABILIDADE DO ART. 53 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL QUANTO AOS DELITOS DE INCITAÇÃO AO CRIME E DE INJÚRIA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA E REJEIÇÃO PARCIAL DA QUEIXA-CRIME, QUANTO AO CRIME DE CALÚNIA. (sem grifos no original).
Ademais, reitera-se que o supracitado entendimento do STF, qual seja a limitação da prerrogativa de foro a crimes praticados durante o exercício da função e em razão desta, veio a ser pacificado posteriormente por meio da Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 937, que será mencionada com mais detalhes posteriormente.
6.2 A aplicação da prerrogativa de foro nos casos de improbidade administrativa
Outra questão bastante polêmica nos tribunais superiores diz respeito à aplicação da prerrogativa de foro nos casos de improbidade administrativa. Isso porque, o julgamento desses crimes, de acordo com o entendimento doutrinário, se dá por meio de ações de natureza civil, e não há previsão de foro especial para os casos alheios à esfera penal. “Analisando o artigo 37, § 4º da Constituição Federal não há como deixar de compreender que a ação de improbidade administrativa tem natureza estritamente civil, pois não descarta a possibilidade da propositura de uma ação penal, utilizando a expressão sem prejuízo da ação penal cabível”. (SARTI e SIMON, p. 164).
No entanto, acerca deste tema, o STF entendeu que possui competência para o julgamento quando o ato de improbidade for cometido por um de seus membros, precedente criado pela Questão de Ordem suscitada na PET 3211/DF, de autoria do Ministro Marco Aurélio. Segue Ementa do referido julgamento:
EMENTA Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade administrativa. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns.
1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros.
2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais. (PET3211/DF, relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/2008). (Sem grifos no original)
Ademais, importa ressaltar que devido ao caráter polêmico do tema, o entendimento da Suprema Corte pode vir a sofrer mutações futuramente.
6.3 A Questão de Ordem na Ação Penal 937: sentido e alcance da prerrogativa de foro
Em 2015, tramitava perante o Supremo Tribunal Federal a Ação Penal 937, que possuía como objeto a acusação do então prefeito do Rio de Janeiro, Marcos Mendes, pelo crime de captação ilícita de sufrágio. Acontece que a marcha processual do referido caso se deu de forma um tanto quanto turbulenta.
Isso porque, desde o recebimento da denúncia, a competência para julgar a mencionada Ação Penal sofreu inúmeras alterações, todas se deram em virtude das modificações no cargo ocupado pelo denunciado. Acontece que à época do início do processo, o indiciado estava exercendo o cargo de prefeito, portanto, a competência era do Tribunal Regional Eleitoral; porém, posteriormente, ao finalizar o mandato, os autos da ação foram remetidos ao Juízo 256ª da Zona Eleitoral do Rio de Janeiro. É então que em 2015 o acusado assumiu como Deputado Federal, transferindo novamente a competência, desta vez para o STF.
Após recebido o processo na Suprema Corte, o Ministro Luís Roberto Barroso (relator da Questão de Ordem) entendeu que o “zig-zag” que ocorreu nesse caso teve como motivo a excessiva abrangência do foro por prerrogativa de função, isso porque até então não era definida uma delimitação a respeito da aplicação do foro.
Tomando como base apenas o dispositivo constitucional, a prerrogativa de foro abrange todos os crimes praticados pelas autoridades públicas que fazem jus a ela, ainda que praticados antes da investidura do cargo e que não tenham relação com ele.
Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. (BARROSO, 2018 p. 1)
Assim, o Ministro propôs duas questões: a primeira sobre o sentido e alcance da prerrogativa de foro, buscando limitar sua aplicação aos crimes cometidos apenas durante o exercício do cargo e que possuam conexão com ele; e a segunda quanto ao momento de fixação definitiva da competência do STF, a fim de se delimitar um marco processual sobre o qual a competência não mais pode ser alterada.
Dessa forma, os Ministros da Suprema Corte decidiram em sua maioria por concordar com a Questão de Ordem nos termos do relator, ficando determinado que o acusado apenas faz jus à prerrogativa especial nos casos em que praticar crimes que possuam conexão com o cargo que exercem e desde que os crimes sejam praticados durante esse exercício. Ficou deliberado ainda que a competência não mais pode ser alterada, independente de modificação no cargo do indiciado, a partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação das alegações finais. (Decisão AP 937 QO/RJ).
Sob esse prisma, são as palavras de Danielle Christianne Lima Rocha e Sebastião Ricardo Braga Braz no artigo intitulado “O aspecto restritivo da Ação Penal 937 como garantia ao princípio constitucional da isonomia para senadores e deputados federais”.
Diante do contexto, embora praticada sob o manto legítimo de garantia constitucional, percebe-se que a prerrogativa de foro dissociava-se da concepção original do instituto, de forma totalmente incompatível com o conceito de função pública. Nesse sentido, a decisão analisada buscou conferir sentido completo, em consonância com os princípios constitucionais republicano e da isonomia, de modo que pôde afastar a literalidade do texto, dando-lhe interpretação restritiva para preservar o sentido original da prerrogativa constitucional. (2019, p. 284)
Destarte, mostra-se evidente a importância da Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 937 para a delimitação dos parâmetros de aplicação do instituto do foro por prerrogativa de função no Brasil, uma vez que foi capaz de reduzir, se não sanar, uma das maiores disfuncionalidades atinentes à prerrogativa especial, qual seja sua utilização como tentativa para burlar a competência de julgamento.
7. CONCLUSÃO
O presente trabalho possui o objetivo de tentar elucidar alguns pontos atinentes à prerrogativa de foro vigente no país, a título de facilitar a compreensão deste polêmico e importante instituto. Após analisados os pontos elencados neste texto, é possível observar a tamanha importância que tem a prerrogativa de foro no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que esta possui como objetivo primordial garantir um julgamento parcial nos casos que envolverem algumas autoridades públicas, além de vislumbrar a proteção ao exercício de funções de alta relevância.
Entretanto, com a explanação de algumas particularidades do instituto tornou-se possível observar seu caráter disfuncional. A priori, foi elencado o fato de que no Brasil, a prerrogativa de foro abrange cargos e situações em excesso, ao comparar com a aplicação do instituto por países desenvolvidos. Outro ponto mencionado foi a alta demanda de processos na Suprema Corte em virtude da supramencionada excessiva abrangência, o que acarreta o sobrecarregamento do sistema.
Em seguida e por fim, abordou-se o entendimento jurisprudencial da Suprema Corte sobre o foro por prerrogativa de função, entendimento esse responsável por balizar as disposições constitucionais do instituto, o que permite a conclusão de que o foro por prerrogativa de função no Brasil é tema controverso, diante disso inúmeras foram as vezes em que os tribunais superiores tiveram que lançar decisões capazes de aperfeiçoar o instituto e interpretar as disposições constitucionais.
Por isso tornou-se tão importante a análise da Questão de Ordem suscitada na AP 937, que, como pôde ser observado, foi responsável por atribuir interpretação extensiva à norma constitucional e limitar a aplicação das prerrogativas especiais, delimitando um momento processual onde a competência não mais pode ser alterada e determinando a aplicação da prerrogativa apenas a infrações cometidas durante o exercício do cargo ou função e relacionadas a eles. É possível concluir então que o referido julgado foi capaz de aperfeiçoar o instituto da prerrogativa de foro, restringindo sua aplicação.
Todavia, importante mencionar que o foro por prerrogativa de função no Brasil está longe de ser perfeito, isso pois ainda que a Questão de Ordem acima mencionada conseguiu delimitar a aplicação desenfreada do instituto, ainda há de se lembrar que, utilizando-se do direito comparado, o sistema jurídico brasileiro atribui a prerrogativa especial a um demasiado número de cargos e funções políticas, o que pode ser visto como uma forma de privilégio à essa classe.
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[1] Doutorando em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professor da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Assessor Jurídico de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. E-mail: [email protected].
Bacharelanda do Curso de Direito da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS)/ Palmas – TO, Brasil.
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