RESUMO: A presente resenha científica examinará a função jurisdicional na prevenção e fiscalização da tortura praticada por agentes públicos, notadamente na obtenção de confissões e informações, e no cumprimento de penas pelos presos. Desse modo, este investigador procurará identificar dificuldades para efetivar normas que criminalizam sua prática, de impunidade generalizada. O presente ensaio abordará que a tortura é caracterizada por ser invisível, indizível, insindicável e impunível; que a tortura é um crime de oportunidade, racional, funcional e eficaz, resultante de modelo inquisitorial de investigação, que cria o ambiente propício à sua prática e impede sua investigação e punição. Ao mesmo tempo, serve-se de marcos teóricos do garantismo jurídico (nas vertentes de garantismo do Direito Constitucional, Garantismo do Direito Penal e Garantismo do Direito Internacional dos Direitos Humanos), e da concepção de integridade judicial, para apontar os desafios para os órgãos de atuação de fiscalização e controle externo das polícias e dos agentes prisionais, no esforço de tornar efetivo um controle judicial da tortura no Brasil. Por fim, navegar-se-á na perspectiva da vítima e seu papel no processo penal.
Palavras-chave: Tortura; Maus-tratos; Direitos Humanos.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. ASPECTOS CRIMINOLÓGICOS E DOGMÁTICOS; 3. A TORTURA NA LEI 9.455/97; 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
As circunstâncias pelas quais incide a prática da tortura no Brasil e os resultados obtidos por essa conduta afetam o exercício das funções do Poder Judiciário. Assim, a manifesta incidência da violência e tortura na sociedade agride substancialmente os fundamentos de um Estado Democrático de Direito.
A par de tal violação, é possível verificar sua ocorrência em duas grandes vertentes. A primeira, no âmbito judicial, conhecida na fase pré-processual, como meio utilizado pelas forças públicas de segurança para obtenção de informações ou confissões, como os chamados interrogatórios sombrios de calabouços, posto que praticados unilateralmente pela autoridade de segurança e desprovidos das garantias básicas asseguradas pela Constituição Federal de 1988 ao interrogado, são inseridas como peças de inquéritos policiais, as quais acabam contaminando a instrução criminal.
A segunda vertente ocorre quando as pessoas custodiadas pelo Estado são submetidas à tortura ou ao tratamento desumano. Em tais situações, o modo como permanecem presas, e as situações concretas de danos que sofrem, ou do risco de sofrê-las, vilipendiam o devido processo legal e o Estado de Direito.
Em ambas vertentes, a incidência da tortura afeta diretamente a administração da justiça. Na fase pré-processual, alterando, de modo ilícito, a maneira como provas são carreadas aos autos, destruindo o direito penal como garantia do cidadão de se ver acusar e punir segundo um devido processo legal. Já no outro plano carcerário, infligindo penas e punições não autorizadas por lei, e mesmo contrárias a ela.
De todo efeito, o que transcende os marcos aqui fincados é por que se tortura. Seria o Estado Vingativo? Por que há tanta reclamação de presos contra atos bárbaros e abusivos cometidos por quem detém sua custódia? Estaria o Brasil a fincar mastro do Direito do Inimigo, onde os direitos fundamentais seriam aniquilados em prol de uma segurança invisível social?
Ressalta-se que deve haver inúmeras respostas, subjetivistas, é claro, todavia, quando se compreende que a questão da tortura envolve relações de poder, fica fácil entender por que as coisas são como estão.
No estado de coisas atual, a tortura se caracteriza por ser um fenômeno invisível, indizível, insindicável e impunível, do ponto de vista do sistema de justiça e segurança. Daí, o objeto de atenção do presente trabalho é como o Poder Judiciário responde a esse fenômeno da tortura.
2. ASPECTOS CRIMINOLÓGICOS E DOGMÁTICOS
2.1 A CONSTITUINTE DE 1988 E A PROIBIÇÃO DA TORTURA NA CARTA MAGNA
Embora o Presidente José Sarney tenha designado uma comissão de alto nível para formular uma proposta de constituição para o Brasil (a chamada “comissão de notáveis”), a Assembleia Nacional Constituinte, instalada em fevereiro de 1987, adotou método inédito para construir o texto fundamental, já que organizou-se em oito comissões temáticas, que subdividiram-se em três subcomissões, sendo que cada subcomissão elaborava um texto abrangendo o subtema e o propunha como anteprojeto do relator.
Desde o primeiro documento produzido na Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias Individuais, da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, os constituintes de 1987/1988 compreenderam a importância de novamente ser proclamada a proibição da tortura, bem assim de serem estabelecidas garantias e salvaguardas contra essa prática hedionda.
Uma das primeiras versões trazia a seguinte redação:
Art. 45 - A tortura, a qualquer título, é crime de lesa-humanidade, inafiançável e insusceptível de anistia e prescrição.
1 - Considera-se tortura qualquer ato através do qual se inflige, intencionalmente, dor ou sofrimento físico, mental ou psicológico a uma pessoa, com o propósito de obter informação ou confissão, para puni-la ou constrangê-la, ou a terceiros, com o consentimento ou tolerância de autoridade pública ou de outrem investido oficial ou oficiosamente de autoridade.
2 - Tais crimes serão apurados e julgados por denúncia da própria vítima, de seus parentes ou representantes legais, ou por representação da sociedade civil junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.
3 - A vítima terá direito a justa e adequada indenização, inclusive aos meios necessários à sua plena reabilitação.
4 - Em caso de morte, os dependentes ou herdeiros da vítima terão direito à indenização do Poder Público, assegurada a este ação de regresso contra os seus prepostos torturadores.
5 - Nos casos de tortura cometida por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, a estas incumbe a indenização.
Não é aqui o espaço para apreciar, com maiores detalhes, o conjunto das propostas sobre o tema na constituinte, posto que algumas ampliavam seu alcance, outras simplesmente retiravam por completo a menção à tortura no texto constitucional, por considerar questão de âmbito da legislação infraconstitucional. Basta informar que foram mais de 150 propostas de emenda aos projetos de texto constitucional.
Bem, ultrapassada as diversidades, o texto aprovado na redação final do art. 5º restou ainda lacônico. Contudo, fixou o princípio geral da proibição da tortura:
Art. 5º. [...]
III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia à prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
O texto constitucional acolheu a versão genérica, de proibição, sem preocupação em delimitar conceitos. Adotou, em grandes linhas, a proibição da tortura contida no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966, e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969.
Deliberadamente, o constituinte de 1988 deixou de adotar o já conhecido e consagrado conceito, lançado na Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Desumanos, Degradantes ou Cruéis, da ONU, de 1984, posto que incluir na Constituição a proibição da tortura não fez com que esta desaparecesse automaticamente do mundo fático.
A prática da tortura tem sido denunciada por organizações nacionais de direitos humanos - governamentais e não-governamentais – e também por entidades internacionais de direitos humanos, as quais têm realizado acompanhamento da situação de respeito ou violação aos direitos fundamentais no Brasil.
Tendo o Brasil apresentado Relatório Inicial Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em 1994[1], o Comitê de Direitos Humanos, órgão de monitoramento desse tratado, teve a oportunidade de formular observações finais em sua 57ª sessão periódica, realizada em 24 de julho de 1996, expressando sua profunda preocupação com os “numerosos casos de tortura, detenções arbitrárias e ilegais, ameaças de morte e atos de violência contra prisioneiros cometidos por forças de segurança”, lamentando que “o medo de represálias que possam adotar as autoridades das prisões e funcionários de prisões provoquem a inibição dos prisioneiros e detidos quanto à apresentação de denúncias”.
Em maio de 2000, o Brasil, através da Comissão de Direitos Humanos designou, em sua Resolução 1985/33, que fosse instado um Relator Especial para que examinasse as questões relativas à tortura. Convidou-se, daí, o Relator da ONU, Sr. Nigel Rodley, a realizar uma missão de levantamento de fatos no país.
O objetivo da visita, que ocorreu de 20 de agosto a 12 de setembro de 2000, consistia em permitir que o Relator Especial coletasse informações, em primeira mão, a partir de uma ampla gama de contatos, a fim de melhor avaliar a situação da tortura no Brasil, permitindo, assim, recomendações ao Governo brasileiro de um conjunto de medidas a serem adotadas, no intuito de assegurar o cumprimento de seu compromisso de pôr fim a atos de tortura e outras formas de maus tratos.
Durante sua missão, o Relator Especial visitou o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. Reuniu-se com o Presidente da República, o Ministro da Justiça, o Secretário de Estado para Direitos Humanos, a Secretária Nacional de Justiça, o Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, o Procurador Geral da República, o Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, bem como alguns membros da Comissão e o Presidente da Subcomissão de Prevenção e Punição da Tortura, além da Procuradora Federal para Direitos do Cidadão e alguns Promotores de Justiça do Núcleo Contra a Tortura do Ministério Público do Distrito Federal e territórios. Também entrevistou-se com Governadores, Secretários de Segurança Pública, Secretários de Justiça (ou de Administração Penitenciária), Chefes das Polícias Civis, Ouvidores da Polícia, Comandantes da Polícia Militar, Presidentes dos Tribunais de Justiça, Procuradores-Gerais de Justiça e Corregedores da Polícia Civil. Em todos os estados, o Relator reuniu-se, igualmente, com membros da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa respectiva.
O Relator Especial também parlamentou com pessoas vítimas de tortura e de outras formas de maus tratos, como também com organizações não-governamentais (ONGs).
Os “achados” e as conclusões serviram de balizas às recomendações que foram formuladas pelo Relator Especial Contra a Tortura, Nigel Rodley, conquanto examinou um exemplar de 348 casos em que foram formuladas alegações de práticas de tortura.
Pelas pesquisas de campo, colhe-se que o submundo prisional alberga reclusos quase que exclusivamente originários das classes mais pobres, sem educação e politicamente impotentes, estando estes à margem da sociedade, pra não dizer excluídos. Logo, considerando os altos índices de violência no Brasil, a apatia pública em relação aos abusos contra presos não seria surpresa.
De todo efeito, a meu aviso, é relevante destacar a posição que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos conferiu ao Judiciário como primeira salvaguarda das garantias que oferece o Estado. Daí a crítica quando não se vê tal salvaguarda atuando em conformidade a seu destino institucional.
Não é de hoje que os estabelecimentos prisionais têm sua lotação superior às suas capacidades, o que é visível em todo o país, sendo que os lugares de detenção mais superlotados são os presídios masculinos, seguido dos CERESPs – Centros de Remanejamento e Acautelamento Provisórios, instituído no Estado de Minas Gerias e das delegacias de polícia. Em Minas Gerais, por exemplo, a Secretaria de Estado de Defesa Social assumiu a questão prisional, desativando, assim, o múnus das Polícias Civil, Militar e Federal na custódia de presos.
Por outro lado, aspecto curioso é a apreciação do papel – ou da participação - da vítima como dando causa à atuação dos órgãos de segurança. Dizendo de outro modo, a natureza dos crimes anteriormente praticados – ou suspeitos de terem sido praticados - pelas vítimas de tortura. Ou seja, que terá feito a vítima da tortura para que tivesse incidido sobre ela a reação do órgão da lei e da ordem?
Não há ousadia em dizer que a tortura não é mais utilizada como arma de repressão política, mas “ferramenta essencial” do policiamento diário. O mais grave é que, para algumas autoridades, para a imprensa e para uma gama da sociedade, um policiamento violento, atitudes hostis e truculentas, correm o risco de tornarem-se uma consequência aceitável do fato de sustentar-se um sistema de justiça criminal sob intensas pressões sociais, econômicas e políticas.
Segundo se observa, no começo do século XXI, o uso da tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, permaneceu generalizado e sistemático, não como política oficial, mas como método aceito de policiamento e controle dentro das instalações correcionais.
Quanto aos propósitos do uso da tortura, identifica-se que ela é utilizada como meio para extrair confissões, para dominar, humilhar e controlar os detentos, ou, de modo crescente, para extorquir dinheiro ou servir a interesses corruptos. É cometida por agentes do Estado – quanto com sua conivência; ou é facilitada por sua omissão em agir. Ocorre nos momentos das detenções, nas delegacias de polícia, nas prisões, nos centros de detenção juvenil. É um crime que persistentemente permanece impune, tanto por órgãos disciplinares, quanto nas Cortes de Justiça.
Acontece assim porque a vasta maioria das vítimas é composta de suspeitos que são pobres e sem nível de educação elevado, frequentemente afro-brasileiros ou indígenas, setor da sociedade cujos direitos têm sido consistentemente ignorados no Brasil.
O aumento da disparidade social coincidiu com um rápido crescimento do tráfico de drogas em todo o Brasil. Assim como se tornou uma das rotas principais do tráfico ilegal de drogas da América Latina, os níveis internos de consumo começaram a elevar-se em quatro vezes, quando considerada a década anterior. Os efeitos combinados da privação social generalizada e do crescimento no tráfico como o uso ilícito de drogas causou elevação dramática na incidência de crimes violentos durante as décadas de 80 e 90, especialmente nos centros urbanos.
Como os índices de criminalidade subiram rapidamente, a cobertura da violência urbana pela mídia sensacionalista fez crescer o medo popular. Programas de televisão especializados na cobertura de crimes violentos tornaram-se parte principal da grade de programação em diferentes horários em várias emissoras, ao tempo em que reportagens na mídia impressa também trabalham o medo da população de tornar-se presa de delinquentes. Assim, como resposta a esses temores, as autoridades têm decidido empregar medidas cada vez mais repressivas na tentativa de lidar com os crescentes números de delitos. Isso, por seu turno, pôs mais pressão ainda em todos os níveis do sistema de justiça criminal, o qual é claramente incapaz de conviver com a crescente demanda que lhe é endereçada.
Também a esse relato constata que a tortura ocorre com mais frequência nas delegacias de polícia, como método de investigação, para obter informações ou confissão e nos estabelecimentos prisionais, como modo de punir e castigar.
2.2 BREVES INCURSÕES CRIMINOLÓGICAS SOBRE A TORTURA
Os dados identificados tanto pelo Relatório de Nigel Rodley, quanto pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, apontam para a conclusão de que a tortura é um crime de oportunidade. Isso significa dizer que as oportunidades desempenham papel relevante para que a tortura ocorra.
Oportunidade diz respeito ao que é oportuno, ao que dá ensejo a algo, ou que faz surgir uma ocasião. É vista como uma situação ou circunstância adequada ou favorável a determinado propósito. Mas, no contexto da criminologia ambiental, dois aspectos são salientados: a atratividade do alvo (da vítima ou da coisa cobiçada), e sua acessibilidade. Dizer que um objeto é atrativo inclui tanto o seu valor (monetário ou simbólico), quanto o ser de fácil remoção (portabilidade). Afirmá-lo acessível significa que se pode ver, a ele ter acesso fácil, e, mais relevante, que está sem vigilância, fiscalização ou supervisão[2].
Pode-se dizer que a tortura ocorre em circunstâncias de tempo e lugar bastante específicos, sendo fusão da convergência de potenciais transgressores e alvos apropriados na ausência de guardiães capazes.
Os alvos apropriados das torturas são pessoas suspeitas de práticas de delitos, que foram consideradas (pelos agressores) como detentoras de informações relevantes sobre práticas delituosas ou pessoas presas, merecedoras de castigo, para que aprendessem a respeitar a autoridade dos responsáveis por suas prisões, sendo considerados objeto atrativos.
Também, as pessoas suspeitas e as pessoas presas carregam a características de serem “de fácil remoção” ou detentoras de “portabilidade”. Estarem sujeitos à força, poder ou autoridade de agentes públicos – policiais civis ou militares, e agentes penitenciários – torna-os submissos às vontades prevalecentes desses agentes do Estado. Podem, sem dificuldade, ser transportados de um lugar para outro (seja o lugar de captura, para o de interrogatório, para o de detenção provisória, para uma cela de castigo ou isolado, etc.), sem qualquer possibilidade de resistência ou oposição eficaz.
Afirmá-los “acessíveis” significa que os agentes do Estado podem ter acesso fácil, e, mais relevante, que estão sem vigilância, fiscalização ou supervisão externos.
A tortura, portanto, é crime de oportunidade!
Volvendo-se à Comissão de Direitos Humanos da ONU[3], reunida em sua quinquagésima oitava sessão, o Relator Especial Contra a Tortura, Nigel Rodley, fez importantes considerações a partir de sua larga e intensa experiência vivida no combate à tortura. Reiterou o que declarara perante o Terceiro Comitê da Assembleia Geral, em 8 de Novembro de 2000, tecendo que o fator mais importante na proliferação e continuação da tortura era a persistência da impunidade, seja ela de direito ou de fato, enfatizando o dever dos Estados de trazerem à justiça os perpetradores de tortura como parte integrante do direito das vítimas à reparação, e ressaltou que “um dos principais fatores que constitui a condição da impunidade de fato é a prevalência da oportunidade para cometer o crime de tortura”.[4]
Para Nigel Rodley, “o paradigma básico, admitido por pelo menos um século, é que prisões, delegacias de polícia e coisas do gênero são lugares fechados e secretos, com atividades internas escondidas das vistas do público”. Em seguida, completou: “o que se impõe é a substituição do paradigma da opacidade pelo da transparência”.[5]
A conclusão de que a tortura é um crime de oportunidade é de absoluta relevância, especialmente para apreender seus sinais – potencial agressor, na presença de alvo apropriado, ausente guardião capaz – quando do julgamento de casos concretos, e para desenhar políticas públicas, objetivando sua prevenção, repressão, punição e reparação.
É igualmente relevante concluir-se que houve social e politicamente a construção da assim chamada “classe dos torturáveis”. A tortura revelou-se ser seletiva. Sempre pareceu saber escolher suas vítimas. Nem todos podiam ser torturados. Em Roma, inicialmente, só escravos poderiam ser submetidos à tortura, ou por suspeita de práticas de delitos, ou por suspeita de serem testemunhas de delitos.
Essa seletividade, ou a construção dos “torturáveis”, está presente em todos os documentos legais, do período medieval e da Idade Moderna, como as Ordenações Filipinas, que nos tocam mais de perto desse figurino, já que cavaleiros e nobres não poderiam ser atormentados por sua “essência nobre”. A mulher, por outro lado, apenas para não fazer mal à criatura de seu ventre, “que não merece mal”.
Luciano Oliveira[6], observando quem é a vítima preferencial das polícias – “o pequeno marginal das favelas e periferias”, “pobres, trabalhadores desqualificados, de preferência pretos e pardos etc.”, sintetiza quem integra a classe dos torturáveis, resgatando fala do “Capitão Segura”, personagem de Graham Greene: “Os pobres de meu próprio país... e de qualquer país latino-americano”.
A abolição da escravidão eliminou apenas um dos fatores de seleção dos torturáveis. Os demais, que acompanharam os negros libertos daquele cativeiro, aprisionariam suas gerações futuras, agrupando cor, classe, e cultura para serem estigmatizadas, marginalizadas, desrespeitadas, desumanizadas.
Finalmente, revisitando a história do direito penal e do processo penal no Brasil, bem assim relendo as circunstâncias e motivos invocados para o uso da tortura – quer como meio para obtenção de prova, quer como forma de castigo, ou outro – foi possível observar que: a) a tortura sempre foi instrumental, estando presente nas relações de poder, com supremacia de forças do torturador e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado; b) a tortura era praticada por se fazerem presentes oportunidades favoráveis, e ausência de vigilância sobre as condutas dos torturadores; c) a ambiência e as situações em que agressor e vítima se encontravam eram propensas às fricções e atritos; d) relações pessoais existentes entre agressor e vítima eram propensas às fricções e atritos; e) as vítimas da tortura – os “torturáveis” - nunca foram consideradas iguais aos seus carrascos, mas inferiores, menores que humanos, e merecedores do sofrimento ou castigo; f) as vítimas eram tornadas invisíveis no processo de aplicação dos tormentos: ou os processos eram secretos até para a vítima; ou as vítimas eram mantidas em segredo; ou as vítimas não tinham acesso a recursos jurídicos; ou todos os fatores em conjunto; g) as vítimas eram destituídas de poder, sendo presas fáceis nas mãos de seus algozes; h) a “racionalidade” da aplicação da tortura incluía processo de desumanização da vítima e colocava-a como ameaça concreta aos valores ou fundamentos da ordem da sociedade que os algozes representavam, sendo legítimo livrar-se da ameaça que representavam; ou eram vistas como portando algo de valor para o agressor (informação, confissão etc.); i) o medo da ameaça das vítimas e a retaliação pseudo-justiceira agiam como motores para a aplicação dos suplícios; j) o racismo e a ideologia que informam/permeiam o sistema político e normativo influenciará o modo como os órgãos de justiça e segurança atuam para a identificação, prevenção, punição e reparação da tortura.
2.3 A CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA
Quando da proclamação da Independência, a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, decretou, em seu artigo 179, incisos 19 e 21, ficarem abolidos os “açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”.
O Código Criminal do Império, de 1830, posterior a esse diploma fundador, dispunha em sentido distinto, ao prever, no seu artigo 60, que
[...] se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites e, depois de os sofrer, será entregue ao seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de cinqüenta.
A Constituição Imperial, que se aplicava aos cidadãos do império, não protegia os escravos, nem os índios, porque não eram considerados gente, não eram tidos como inteiramente humanos. Eram coisa. Mercadoria. Propriedade.
No final do século XIX, com a Constituição Republicana de 1891, são abolidas as penas de galés, banimento e de morte, e novo Código Penal, incorporando valores e avanços da época, substitui as antigas penas corporais por perda da liberdade em prisões, estas sendo lugares não apenas para punição, mas também para “cura” e “reabilitação”, nos quais os condenados aprenderiam a “readaptar-se à sociedade civil”.[7]
A Constituição de 1934 proibiu penas de banimento, morte, confisco ou de caráter perpétuo (artigo 113, 29); a de 1937, do Estado Novo, reintroduziu a pena de morte para crimes contra o Estado, e também para o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade, além de vedar “penas corpóreas perpétuas” (artigo 122, 13). As Constituições de 1946 (artigo 141, § 31) e 1967 (artigo 150, § 11) trazem redação assemelhada à de 1934.
Finalmente, e como resposta específica ao regime militar instituído a partir de 1964 até 1985, a Constituição de 1988 é a que reintroduz a proibição expressa à tortura, nos seguintes termos: Artigo 5º. [...] III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
O conceito de tortura já era incorporado ao ordenamento penal pátrio, como prática violenta que abusava dos meios de produção da dor. Nesse sentido, tortura correspondia à imposição de tormentos, suplícios, intenso sofrimento, por crueldade ou instinto bestial de quem os aplicava.
O dispositivo do Código Penal traz a seguinte redação:
Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
[...]
II - ter o agente cometido o crime:
[...]
d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum [...].
A doutrina cuidou de consolidar a compreensão da tortura como meio cruel de execução de um delito, e, assim, como circunstância de agravamento da pena. Para Damásio de Jesus, “A tortura é meio cruel. Pode ser física ou moral”.[8] “Meio cruel é o que aumenta o sofrimento do ofendido, ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade”.[9]
Cezar Roberto Bitencourt faz coro com essa interpretação.
[...] relacionam-se aqui, exemplificativamente, os meios de cometimento do crime, que se caracterizam pela insidiosidade ou crueldade. Meio insidioso (veneno) é aquele capaz de iludir a atenção da vítima. Meio cruel (fogo, explosivo, tortura) é aquele que causa, desnecessariamente, maior sofrimento à vítima, ‘ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade’ (Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, n.38).[10]
Na mesma linha segue Júlio Fabbrini Mirabete, para quem “a tortura é um meio que inflige à vítima um mal ou sofrimento maior, desnecessário no mais das vezes para a prática do crime, denotando sadismo, insensibilidade e crueldade do agente”.[11]
Segundo esses vários autores – que expressam, em geral, a compreensão jurídica atual sobre o conceito de tortura – esta prática se caracteriza por um aumento do sofrimento do ofendido, revelando brutalidade fora do comum, ou contrastando com o mais elementar sentimento de piedade, porque causa, desnecessariamente, maior sofrimento, denotando sadismo, insensibilidade e crueldade do agente. Na concepção construída a partir daí, o torturador é brutal, impiedoso, sádico, insensível e cruel.
Essa imagem, construída a partir da definição da tortura como meio de execução de outro crime, tornará difícil a compreensão de que o perpetrador do delito não é, necessariamente, nem brutal, nem sádico, nem impiedoso, nem insensível, nem cruel. Antes, os estudos revelam que a tortura, como prática disseminada e sistemática, é absolutamente racional e funcional. Por isso, é muitas vezes difícil ao Judiciário reconhecer que determinado agente da lei, por vezes tão eficiente no cumprimento do seu dever e tão eficaz na elucidação de crimes, possa ser um sádico impiedoso, a ponto de ser acusado da prática de tortura.
Júlio Fabbrini Mirabete não consegue fugir do modelo de tortura como conduta a ser realizada por um sádico, quando resolve comentar o delito de tortura:
[...] não se configura o crime em apreço quando o agente causa, por violência ou grave ameaça, sofrimento físico ou mental se inexistentes as circunstâncias elementares dos tipos previstos na lei especial. Figure-se a hipótese da tortura infligida apenas por sadismo ou vingança. Nessas hipóteses, continua o fato a constituir, eventualmente, um delito menor, como constrangimento ilegal, lesão corporal leve etc., com penas reduzidíssimas, face à gravidade do fato. Nessa hipótese, como sempre tem ocorrido, somente será possível um mero aumento de pena pela ocorrência da agravante genérica do art. 61, II, d, do CP.[12]
Entrementes, a experiência cotidiana aponta em outra direção. Élio Gaspari anota sentido inverso: “O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar, apanha e fala. É sobre esta simples constatação que se edifica a complexa justificativa da tortura pela funcionalidade”.[13]
Saindo da generalidade de considerar a tortura como modo de execução de um crime, e, portanto, circunstância agravante, a primeira experiência nacional constituindo tortura um delito autônomo surgiu em 1990, com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em outubro de 1988, promulgada a nova Constituição, houve especial atenção à condição da criança e do adolescente. O art. 227 impunha como dever
[...] da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Ainda, o § 4º desse dispositivo determinava à futura legislação punir “severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Em novembro de 1989, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção Sobre os Direitos da Criança.[14] Segundo o art. 37 desse tratado internacional:
Os Estados Partes zelarão para que:
a) nenhuma criança seja submetida à tortura nem a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Não será imposta a pena de morte nem a prisão perpétua sem possibilidade de livramento por delitos cometidos por menores de dezoito anos de idade;
[...]
c) toda criança privada da liberdade seja tratada com a humanidade e o respeito que merece a dignidade inerente à pessoa humana, e levando-se em consideração as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em especial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos, a não ser que tal fato seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato com sua família por meio de correspondência ou de visitas, salvo em circunstâncias excepcionais;
Na esteira desses diplomas fundamentais, foi promulgada a Lei 8.069, em julho de 1990, dispondo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Desse diploma legal, dois dispositivos se revelam de maior interesse, para reflexões (arts. 232 e 233).
O art. 232 criminalizou a conduta de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”.
Por sua vez, o art. 233 criminalizou a tortura, quando praticada contra criança ou adolescente sob guarda, autoridade ou vigilância:
Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura:
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 1º. Se resultar lesão corporal grave:
Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 2º. Se resultar lesão corporal gravíssima:
Pena - reclusão de quatro a doze anos.
§ 3º. Se resultar morte:
Pena - reclusão de quinze a trinta anos.
Por esse dispositivo legal, a tortura passou a se constituir tipo penal distinto e diferenciado de lesão corporal, e homicídio, desde que estas últimas poderiam ser resultadas da prática da tortura, cujo efeito seria o de alterar o gravame da punição.
3. A TORTURA NA LEI 9.455/97
A Lei 9.455/97 traz a descrição de três condutas que constituem tortura, e uma quarta situação, que é a expressa punição pela omissão em evitar ou apurar sua prática.
O art. 1º, inciso I, prevê a modalidade de tortura mediante constrangimento:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
O art. 1º, inciso II, menciona a modalidade de tortura mediante subjugação:
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
No § 1º, do art. 1º, a Lei tipifica a situação de tortura mediante subjugação de preso, ou de quem esteja sujeito à medida de segurança:
§ 1º. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
Sem querer antecipar toda a apreciação dessas condutas, com suas especificidades, é relevante realçar, desde logo, que a hipótese prevista no § 1º, do art. 1º, da Lei, não contém o especial fim de agir, nem o intenso sofrimento. Aqui, o legislador retirou, portanto, os elementos que distinguem tortura de tratamento desumano, degradante ou cruel. Houve equiparação nas penas. O pressuposto parece ser que alguém preso, ou submetido a medida de segurança, seja particularmente vulnerável. Essa vulnerabilidade presumida faz aumentar o dever de proteção dos agentes do Estado. O desrespeito ao dever de proteção produz o agravamento da punição da conduta de submissão ou sujeição a sofrimento físico ou mental por prática ilegal.
Finalmente, no § 2º, do art. 1º, houve a criminalização expressa da omissão de evitar ou apurar o cometimento da tortura, porquanto “aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos”.
No direito brasileiro, portanto, várias condutas podem configurar o delito de tortura: é uso de violência ou grave ameaça, que provoque intenso sofrimento físico ou mental, tendo por motivo obter informação, declaração ou confissão; ou para provocar ação de natureza criminosa ou omissão de natureza criminosa; ou em razão de discriminação racial ou religiosa; ou, como forma de aplicar castigo ou como forma preventiva (ou de intimidação). Estas duas últimas aplicadas sobre pessoas sob guarda, poder ou autoridade de quem pratica a violência ou ameaça.
Ainda, constitui tortura submeter pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
Como visto, antes da Lei 9.455/97, a tortura era crime apenas quando praticada contra crianças e adolescentes, em razão de lei especial disciplinando a matéria.
Das várias condutas que podem tipificar o delito de tortura, apenas as referidas no §1º, do art. 1º, são exclusivas de agente público. A lei brasileira, contrariamente às convenções internacionais, optou por criminalizar a tortura como tal, deixando de lado a tendência consolidada nas Nações Unidas, e, mesmo no âmbito da Organização dos Estados Americanos, de relacioná-la especificamente a agentes do Estado.
Para análise jurídica do delito de tortura, é importante identificar e examinar o conteúdo, sentido e alcance dos elementos objetivos, subjetivos e normativos do tipo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando todo acima exposto, verifica-se que foi possível perceber que o sistema acusatório corre riscos frequentes de ser comprometido pelos trabalhos desenvolvidos, ou que deixaram de ser desenvolvidos, no inquérito.
Isso se torna mais perceptível quando se percebe que o modelo de investigação, adotado no Brasil, permite se criar o ambiente e as oportunidades para a tortura, além de impedir sua investigação. Isto foi evidenciado pela circunstância de, como regra, as provas serem colhidas inquisitorialmente, sem contraditório. Há fortes traços de continuidade autoritária, herdada da colônia e do império, quando escravos não tinham poder de queixa ou testemunho contra seus senhores. É herança agravada, pois até mesmo no período da Inquisição, prova oral não confirmada em juízo não tinha serventia, enquanto que no Brasil, hoje, a não confirmação da confissão ou informação em juízo exige de quem se retrata demonstrar falsidade do contido no inquérito, ou provar coação anterior, em um contexto em que advogados estão ordinariamente ausentes do interrogatório policial.
Nada obstante a força e a autoridade da polícia, e o seu poder, na fase inquisitorial, o Judiciário construiu o mito do caráter “meramente” informativo do inquérito. Este mito serviu para desprestigiar os argumentos dos abusos, praticados pela polícia, na fase inquisitorial, que, também, na opinião predominante do Judiciário, não maculariam a fase seguinte, acusatória. Entretanto, a quase absoluta ausência de mecanismos eficazes de controle da atividade policial e dos riscos de abuso confirmam, na prática, que o inquérito policial é a peça informativa básica, suporte para acusação e condenação na quase totalidade dos casos submetidos ao Judiciário.
Avulta-se que a ausência de salvaguardas efetivas aumenta o risco da incidência da tortura, porque permite a manutenção de ambiente propício à mesma.
Os atos de espancamentos nas diversas unidades prisionais do nosso país são camuflados pela confecção de Autos de Resistência lavrados pelos agentes penitenciários, como forma de justificar as lesões constatadas nos internos. Os presos feridos são, muitas vezes, encaminhados para o COC – Centro de Observação Criminológico, local, de início, reservado para observação dos custodiados que ingressam na Unidade Prisional. Contudo, na verdade, o COC vem sendo destinado como local de castigo e de manutenção de presos machucados, até que desapareçam vestígios de suas escoriações, posto que no COC há a mitigação de alguns direitos dos internos, como o de receber visitas e banho de sol.
Se não bastasse toda essa dissimulação, há ainda dificuldade de identificação dos agressores, pois há a troca de tarjetas de identificação dos nomes dos agentes penitenciários nos uniformes. Além disso, não há garantia da idoneidade da documentação enviada pela unidade prisional quando requisitada, posto que passível de adulteração.
Por sua vez, o quadro deficitário de profissionais da saúde e técnicos jurídicos, de fundamental resgate e inserção dos custodiados no meio social, agravam ainda mais a situação dos internados.
Por outro lado, também, restou demonstrado que ausência de compreensão adequada das condutas previstas nas várias hipóteses da Lei 9.455/97 produz desclassificação e conduz à impunidade. E eventuais dificuldades conceituais e de obtenção de prova servem como escusas para tal impunidade.
Entretanto, ficou caracterizado que, de longe, o fato mais relevante para explicar a generalizada impunidade, de que gozam os perpetradores da tortura, é atribuir-se ao torturado o ônus de provar a tortura, em contexto de ausência de reconhecimento de ter a vítima direito a uma investigação daquela alegada violação a seu direito. Ser ônus da vítima e não haver investigação resulta em impunidade.
Com efeito, a prática da tortura se revelou racional e eficaz. Pode até significar “disfuncionalidade”, se considerado o funcionamento ideal das polícias. Mas estas terminam sendo movidas por utilitarismo. Esse viés utilitarista e essa racionalidade “disfuncional” estão presentes na prática policial como estiveram na racionalidade normativa das Ordenações Filipinas, e no Código Criminal do Império, como modo legal de punição. Na ditadura, foi método negado em público e ensinado nos porões.
A tortura é um crime de oportunidade, instrumental, estando presentes relações de poder, com supremacia de forças do torturador e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado. É praticada quando um propenso ou potencial agente identifica a presença de oportunidades favoráveis e ausência de vigilância sobre as condutas dos torturadores, em ambiência e situações, em que agressor e vítima se encontravam sendo propensas a fricções e atritos.
É a ausência de mecanismos de fortalecimento da vítima (para torná-la menos vulnerável) e de mecanismos de vigilância e monitoramento das situações propícias à prática da tortura, ou seja, a não efetivação de salvaguardas administrativas e processuais, é que permite a tortura ou assegura sua impunidade. E o exame do modo como as normas penais substantivas e adjetivas vêm sendo implementadas revela que o Judiciário, o Ministério Público e os advogados ainda não se deram inteiramente conta do seu imenso papel no combate à tortura.
A vítima da tortura policial raramente está em posição de levar a juízo provas dos atos dos seus algozes, se não houver instituição independente que faça levar adiante investigação séria, imparcial e independente.
O Poder Judiciário satisfaz-se em desacreditar as alegações das vítimas, por serem “suspeitos” de delitos. Agrava o quadro, construindo interpretação do tipo penal tortura, ainda, sob influência da figura de meio agravante da pena, equiparado a meio insidioso ou cruel, compreensão que produziu, na jurisprudência, o entendimento de só caracterizar tortura à conduta violenta desencadeada por “sadismo imotivado”, desconsiderando a racionalidade disfuncional da tortura policial.
Nessa toada, verifica-se que para a melhoria das condições de vida dos encarcerados é necessário que o Estado implemente medidas que lhes proporcionem condições básicas de acomodação, saúde, educação, trabalho e ressocialização, e, sobretudo, garanta assistência psicossocial e jurídica a todos, sendo imprescindível a reestruturação das unidades prisionais para a garantia de todos os seus direitos.
Aliais, esse é o ideal proclamado também pelo quadro de servidores enfatizam a necessidade emergencial de reestruturação física dos pavilhões, adequação da população carcerária e a distribuição correlata de contingente humano ao número de abrigados, a fim de sanar as falhas que comprometem a saúde dos presos, agentes e visitantes.
Não estamos condenados a repetir erros do passado. Há novas avenidas que se abrem. Cabe-nos decidir o caminho a seguir. Podemos insistir em continuidades autoritárias. Ou descontinuá-las, reconstruindo o tecido social, com o entrelaçamento do respeito do fio de vida e dignidade que há em cada pessoa humana. É possível combater a tortura. É necessário combater a tortura. Não é preciso nenhum esforço sobre humano. Antes, basta simplesmente ver no outro a mesma condição humana que há em cada um de nós.
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NOTAS:
[1] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Relatório Inicial Relativo Ao Pacto Internacional Dos Direitos Civis E Políticos de 1966. Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da USP. Brasília: FUNAG, 1994.
[2] Em interessante decisão, o TJRS entendeu residir nisto as qualificadoras para agravamento da pena, em casos de furto. Vale à pena conferir a decisão, que identificou maior vulnerabilidade da vítima, por ter bem desvigiado, e, portanto, mais sujeito à apreensão por terceiros. “No caso do furto, presentes as qualificadoras, cuidou o legislador de proteger, com punição mais severa, o ataque ao patrimônio desvigiado da vítima, que, em razão delas, mais vulnerável se torna, e mais fácil torna sua apreensão, pelo criminoso. Por isso que em razão delas o aumento de pena há de ser maior. (TJRS – ACr 70004045993 – São José do Ouro – 6ª C.Crim. – Rel. Des. Newton Brasil de Leão – J. 19.12.2002)
[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão de Direitos Humanos. Quinquagésima oitava sessão. Item 11(a) da agenda provisória. Direitos Civis e Políticos, incluindo as questões de Tortura e Detenção. Relatório do Relator Especial, Sir Nigel Rodley, submetida de acordo com a Resolução 2001/62 da Comissão de Direitos Humanos. E/CN.4/2002/76.
[4] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão de Direitos Humanos. Relatório sobre a tortura no Brasil. Disponível em: <http://www.rndh.gov.br/>.
[5] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão de Direitos Humanos. Qüinquagésima oitava sessão. Item 11(a) da agenda provisória. Direitos Civis e Políticos, incluindo as questões de Tortura e Detenção. Relatório do Relator Especial, Sir Nigel Rodley, submetida de acordo com a Resolução 2001/62 da Comissão de Direitos Humanos. E/CN.4/2002/76.
[6] OLIVEIRA, Luciano. Do Nunca mais ao eterno retorno. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 11/12. N.A. O professor Luciano Oliveira ainda esclarece que o personagem integra o romance Nosso homem em Havana, “passado em Cuba no tempo de Fulgêncio Batista”.
[12] MIRABETE, Julio Fabbrini. Tortura: notas sobre a Lei 9.455/97. Revista Jurídica RJ nº 248, jun. 1998. p. 30.
Bacharel em Direito pela Unifenas. Oficial do MP/MG. Agente Fiscal do Procon/MG. Pós-graduado em Direito Civil, Penal, Consumidor.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PACHECO, Eder Jose. A proteção dos atos de tortura perante o sistema penitenciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 mar 2022, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58166/a-proteo-dos-atos-de-tortura-perante-o-sistema-penitencirio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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