RESUMO: A Lei de Execução Penal (LEP), 7.210 /1984, estabelece uma gestão híbrida para o sistema penitenciário. Em seu artigo 61º a apresenta oito (8) órgãos gestores. Ocorre que esses órgãos, seja em uma relação de subordinação ou vinculação, fazem parte da estrutura dos Poderes Executivo e Judiciário, tendo atribuições diferentes, mas complementares. Em recente julgados RE 592.581/RS e ADPF347, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a situação de violação generalizada de direitos fundamentais no sistema penitenciário brasileiro, fixando tese orientadora no controle desta política pública, no que tange à tutela coletiva da pessoa presa ou em restrição de liberdade. Todavia, seria esse o melhor caminho, obrigar por força de uma sentença judicial o Poder Executivo cumprir com seu papel? Para responder essa pergunta, será necessário problematizar sobre a judicialização das politicas públicas e o arranjo institucional de gestão do Sistema Penitenciário brasileiro previsto na LEP.
ABSTRACT: The Law of Penal Execution (LEP), 7.210 / 1984, establishes a hybrid management for the prison system. In its 61st article it presents eight (8) management bodies. It happens that these bodies, whether in a subordinate or binding relationship, are part of the structure of the Executive and Judiciary Powers, with different but complementary attributions. n recent judgments RE 592.581 / RS and ADPF347, the Supreme Federal Court recognized the situation of generalized violation of fundamental rights in the Brazilian prison system, establishing a guiding thesis in the control of this public policy, with regard to the collective tutelage of the person arrested or in restriction of freedom. However, would this be the best way, to force the Executive Branch to fulfill its role by virtue of a judicial sentence? To answer this question, it will be necessary to discuss the judicialization of public policies and the institutional management arrangement for the Brazilian Penitentiary System provided for in the LEP.
Palavras-chave: Gestão; Políticas Públicas; Sistema Penitenciário.
SUMÁRIO: Introdução 1. A Política Pública do Sistema Penitenciário. 2. Judicialização das Políticas Públicas e o Sistema Penitenciário. 3. A natureza híbrida da Gestão do Sistema Penitenciário. 4. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
A Lei de Execução Penal, 7.210 /1984, estabelece uma gestão híbrida para o sistema penitenciário. Em seu artigo 61º, a norma apresenta oito (8) órgãos gestores que são responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena, são eles: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário, Juízo da Execução Penal, Ministério Público, Conselho Penitenciário, Departamentos Penitenciários, Patronato, Conselho da Comunidade e Defensoria Pública. É da vontade do legislador conferir a eles a responsabilidade da efetividade das disposições de sentença ou decisão criminal, bem como a integração social do condenado ou internado novamente ao meio social (Art. 1º, LEP, 1984).
Ocorre que esses órgãos, seja em uma relação de subordinação ou vinculação, fazem parte da estrutura dos Poderes Executivo e Judiciário, desempenhando atribuições diferentes, mas complementares. Tal condição nos leva a reconhecer o caráter híbrido da gestão da execução penal, por possuem atividades administrativas e jurisdicionais. Para a jurista Grinover, não se pode negar que “a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve entrosadamente nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estatais: o Judiciário e o Executivo” (1987, p.7). No entanto, ela, apesar de reconhecer as atividades administrativas, afirma que a Execução Penal é predominantemente jurisdicional e secundariamente administrativa. Assim, sem desmerecer a importância dos demais órgãos, indubitavelmente, esta formatação do arranjo institucional da política de execução penal, coloca o Judiciário, por meio do Juízo de Execução, na linha de frente, exigindo deste a capacidade de manter o diálogo constante com os outros órgãos para que haja efetividade da política pública sistema penitenciário.
Todavia, os dados produzidos por relatórios oficiais, estudos e sentenças judiciais sobre o sistema penitenciário brasileiros apontam para um total descompasso desses órgãos na execução da pena e uma incapacidade generalizada em sua gestão. Segundo dados de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro (INFOPEN, 2016), são mais de 726 mil pessoas encarceradas, em um sistema que tem o déficit de mais de 358 mil vagas. Em 1990 a população prisional brasileira era de apenas 90 mil pessoas privadas de liberdade. A população cresceu tanto que hoje ocupa a terceira posição em número de pessoas presas no mundo, ficando atrás somente da China e dos Estados Unidos.
Somando a superlotação, convivemos diariamente com inúmeras ocorrências de violação de direitos dos presos em função das más condições dos estabelecimentos penitenciários. Tais situações comprometem o acesso à assistência que o preso tem direito, e, consequentemente, a capacidade de reintegrá-lo novamente em sociedade.
Diante deste quadro, em recente julgados RE 592.581/RS e ADPF347, o Supremo Tribunal Federal (STF), fixou tese orientadora no controle desta política pública, no que tange à tutela coletiva da pessoa presa ou em restrição de liberdade. No RE 592.591/RS, estabeleceu-se que a intervenção do Poder Judiciário, para determinar obrigação de fazer reparos emergenciais nos presídios, na defesa da integridade do preso e de sua dignidade humana é uma atitude lícita e que não fere o princípio da separação de poderes. Já a ADPF347 reconheceu o “estado de coisas inconstitucional”, no Sistema penitenciário brasileiro, determinando, em caráter liminar, a realização de audiências de custódia, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, bem como o descontingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional.
A partir dessas decisões, muitos questionamentos surgiram sobre a capacidade de se efetivar as medidas que foram dispostas nas sentenças frente à argumentação de que são escassos os recursos públicos, sendo invocado pelo Poder Executivo em sua defesa o princípio da reserva do possível, além de destacar a interferência do Judiciário na agenda governamental. Este papel mais ativo do Judiciário é estudado e apontado hoje como judicialização das politicas públicas ou ativismo judicial (BARROSO, 2008, MENDES, BRANCO, 2018). De modo que este artigo pretende problematizar se o STF extrapolou os limites de sua competência, ao reconhecer a situação degradante em que estão submetidos os presos, ou, apenas está cumprindo com seu papel conforme estabelecem a Constituição e a Lei de Execução Penal, ao chamar para si a responsabilidade pela execução dessa política pública, já que ela também tem caráter jurisdicional, sendo que o não cumprimento das obrigações administrativas pelo Poder Executivo interfere significante no cumprimento da execução da pena.
Todavia, seria esse o melhor caminho, obrigar por força de uma sentença judicial o Poder Executivo cumprir com seu papel? Para responder essa pergunta, será necessário problematizar sobre a judicialização das politicas públicas e o arranjo institucional de gestão do Sistema Penitenciário brasileiro previsto na LEP, para entender esta nova postura do STF que ora se apresenta como implementador ora como impulsionador do Poder Executivo.
1. A POLÍTICA PÚBLICA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO
Antes de adentramos nas questões relativas ao sistema penitenciário, é fundamental entendermos o que é política pública. Souza (2006) ao fazer uma revisão literária sobre políticas púbicas apresenta uma síntese do pensamento teórico sobre o tema. Inicialmente, a autora afirma que não existe uma única definição do que seja politica pública. Todavia, ela traz uma síntese do pensamento de Mead (1995), que a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas. A de Lynn (1980), como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) como a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição de política pública como aquilo que o governo escolhe fazer ou não fazer.
Secchi (2010) também argumenta que qualquer definição de política pública é arbitrária, isto porque na literatura especializa não há um consenso quanto à definição do que seja uma política pública. Entretanto, o autor com base nas várias versões já desenvolvidas, traz de forma bem didática, setes fases principais, sequenciais, interdenpedentes e recorrentes no universo da pesquisa, que são úteis para visualização do ciclo de políticas públicas. São elas: Identificação do Problema, Formação da Agenda, Formulação de Alternativas, Tomada de Decisão, Implementação, Avaliação e Extinção. O autor também apresenta a definição de destinatários e problema público, respectivamente, como sendo aqueles indivíduos, grupos e organizações para os quais a política pública foi elaborada e a diferença entre o que é, e aquilo que se gostaria que fosse a realidade pública. Ele ainda esclarece que quem mais se preocupa em apresentar problemas públicos para agenda pública são os partidos políticos, os agentes políticos e as organizações não governamentais. “Do ponto de vista racional, esses atores encaram o problema público como matéria-prima de trabalho” (Secchi, 2010, p.35).
O autor afirma que essa interação acontece quando o ator político tem interesse na resolução de tal problema. Este poderá a vim a lutar para que tal problema entre na lista de prioridade de atuação. Essa lista de prioridades é conhecida como agenda, que em sua formação apresenta um conjunto de problemas entendidos como relevantes. De acordo com Cobb e Elder (1983, apud Secchi, 2010, p.36) existem dois tipos de agenda:
Agenda política: conjunto de problemas ou temas que a comunidade política percebe como merecedor de intervenção pública;
Agenda formal: também conhecida como agenda institucional, é aquela que elenca os problemas ou temas que o poder público já decidiu enfrentar (COOB E ELDER, 1983, APUD SECCHI, 2010, p.36).
No entanto, Secchi acrescenta uma terceira agenda, a “agenda da mídia, ou seja, a lista de problemas que recebem atenção especial dos diversos meios de comunicação.” Na visão do autor os meios de comunicação têm tanta força na formação da opinião pública, que não são raras as vezes que “a agenda da mídia condiciona as agendas políticas e institucionais.”
A partir deste entendimento, podemos afirmar que o sistema penitenciário é uma política pública, que faz parte da agenda formal do poder público, mas com pouco ou nenhuma relevância, haja vista as constantes violações de direitos encontradas nos estabelecimentos penitenciários, bem como a postura apática da sociedade que compreende ser um desperdício de recursos públicos o gasto com pessoas presas. Segundo Paixão (1997), a sociedade tem uma postura vingativa em relação àqueles que foram condenados por algum ilícito,
[...] o que ocorre com o sistema penitenciário brasileiro, indivíduos que foram condenados ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade são afetados, diariamente, em sua dignidade, enfrentando problemas como superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação, falta de cuidados médicos etc. A ressocializacão do egresso é uma tarefa quase impossível, pois não existem programas governamentais para sua reinserção social, além do fato de a sociedade, hipocritamente, não perdoar aquele que já foi condenado por ter praticado uma infração penal (PAIXÃO, 1997.p.106).
Destaca-se que essas mesmas condições de abandono e de violação dos direitos dos presos, também afetam os profissionais que atuam no sistema, pois mesmo que não estejam presos, sofrem com as mazelas do cárcere e estão sujeitos ao fenômeno conhecido como prisionalização, que se manifesta por meio de “sentimentos de inferioridade, empobrecimento psíquico, regressão, infantilização, perda de identidade, assim como compromete sua concepção sobre cidadania.”(SOUSA, CAMPOS, 2011, p.5)”.
Outro conceito utilizado no debate das políticas é o da existência de sistemas complexos. Furtado et al ( 2015 ) defende aplicação desse conceito e o relaciona com as políticas públicas, uma vez que sistema complexos “pressupõe sistemas dinâmicos, não lineares, que contêm grande número de interações entre as partes. Esses sistemas se modificam, de modo a aprenderem, evoluírem e adaptarem-se e geram comportamentos emergentes e não determinísticos (2015, p.23).” Infere assim que a formulação e a implementação de uma política pública é o resultado da ação da pluralidade de atores, isto é, trata-se de um processo que envolve diferentes atores não estáticos que são responsáveis pela sua execução, bem como o público alvo e a comunidade que indiretamente também é beneficiária. Trata-se de um processo interativo e plural que se encaixa perfeitamente na complexidade do sistema penitenciário. Entretanto, em relação ao sistema penitenciário pelos resultados obtidos pode-se dizer que a sinergia é baixa entre os atores envolvidos, o que certamente se constitui em um obstáculo central para efetividade desta política.
Em recente publicação do DEPEN com apoio da Organização das Nações Unidades (ONU), pesquisadores buscaram apresentar um modelo de gestão para o sistema penitenciário considerando toda a sua complexidade. Ao analisar o atual modelo, chegaram a conclusão que a gestão prisional carece de conceitos que amparem a sua especificidade, não havendo uma maior clareza entre as diferenças entre a política de segurança e a política penal e prisional. Para eles, existe um empréstimo de saberes de outras áreas, sobretudo da atividade policial. Cabe destacar que o aprofundamento das práticas policiais no sistema penitenciário tende a aumentar com a aprovação da emenda constitucional nº104, que alterou o artigo 144 da Constituição Federal, incluindo no rol dos órgãos de segurança a Polícia Penal.
Outro aspecto levantado está relacionado à deficiência na formatação de fluxos e rotinas impedindo que as pessoas privadas de liberdade tenham acesso aos serviços, direitos e políticas previstas na Lei de Execução Penal. Tal análise é fundamental para compreendermos o papel dos órgãos de execução penal, em especial do Poder Executivo que é responsável diretamente pelo acesso do preso às assistências, previstas no art.11º da LEP, em cumprimento ao que diz o artigo 3º, que assegura o condenado e ao internado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Assim, o preso recolhido em estabelecimento penitenciário perde o seu direito a liberdade temporariamente, mas mantêm os demais direitos intactos. Isto significa, que no âmbito da Administração Pública está sob a coordenação do órgão Departamento Penitenciário, assegurar ao preso o cumprimento de sua pena em condições de dignidade.
Entretanto, pelo caráter intersetorial da execução penal, o orgão Departamento Penitenciário terá que necessariamente estabelecer parcerias com outros órgãos da Administração Pública, para assegurar o direito do preso e do egresso à assistência material, a saúde, a assistência jurídica, educacional, social e religiosa. Nota-se que é da vontade do legislador que haja sinergia entre diferentes órgãos da Administração Pública, pois se trata de um modelo de gestão que requer capacidade de articulação com outras áreas. De modo que o Departamento Penitenciário além de outras políticas, terá que necessariamente interagir com dois outros sistemas já constituídos, que é o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema de Assistência Social (SUAS).
Assim, se não houver diálogo entre os responsáveis por essas áreas, é praticamente impossível de se obter resultados na execução da política do sistema penitenciário.
Na outra ponta temos o Judiciário com grande responsabilidade pelo aumento da população carcerária no Brasil. Segundo estudo publicado pelo DEPEN, o Judiciário manda para os presídios aqueles, que sem prejuízo do exercício regular do poder punitivo do Estado, poderiam cumprir outras medidas ou penas. Isto porque dos 726 mil presos apontados pelo INFOPEN (2016), 290 mil presos são provisórios, ou seja, ainda não tiveram sua sentença transitada em julgado, isso significa um percentual de 41% da população carcerária.
Esta perspectiva também é apresentada nos dados mais recentes sobre a população carcerária, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De acordo com levantamento o Brasil possui uma superpopulação carcerária de 812.564 presos, considerando os presos sentenciados ou provisórios do regime fechado, semiaberto e os que cumprem pena em abrigos. Destes, 41,5% de presos provisórios. O estudo apontou ainda que o país tem 366,5 mil mandados de prisão pendentes de cumprimento, dos quais 94% de procurados pela Justiça, 6% foragidos. O quadro é assustador se considerarmos que na no inicio da década de 90 o Brasil tinha pouco mais de 90 mil presos no país.
2.JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E O SISTEMA PENITENCIÁRIO
É diante desse quadro assustador que atua o órgão Juízo da Execução Penal, pois cabe a ele, a responsabilidade pelo acompanhamento do cumprimento da pena e o adequado funcionamento dos estabelecimentos penitenciários (art.66, LEP). Compete ao Juiz, nos termos do artigo 66, incisos VII e VIII, realizar a inspeção mensal dos estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade e interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos da LEP.
Como uma bomba relógio o sistema penitenciário, inflado em função da superlotação e a ampliação da atuação das facções criminosas nos presídios (FURUKAWA,2008, LIMA, 2003, SHIMIZU,2011), emite sinais claros de explosão com ocorrência de rebeliões, motins e fugas. A ausência de um modelo de gestão integrado do sistema penitenciário, faz com que o Estado, e, consequentemente, a sociedade, acumule derrotas e mais derrotas, devolvendo diariamente ao convívio social pessoas que não passaram por um processo de ressocialização, tendentes a reincidir na prática criminosa.
Diante dessa situação, o judiciário vem assumindo um maior protagonismo na busca de soluções efetivas. Vimos isso, em recentes julgados RE 592.581/RS e ADPF347 no Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a situação de violação generalizada de direitos fundamentais e a inercia dos órgãos públicos em solucionar os problemas do sistema penitenciário.
Porém, antes de vermos os principais pontos das sentenças, convém explicar o entendimento doutrinário sobre a postura ativa do Judiciário em relação ao Poder Executivo e a execução de políticas públicas. Para o Ministro Barroso, o ativismo judicial ocorre para concretizar os objetivos da Constituição, o que requer uma maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem:
(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de atente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2008. p.1).
Todavia, Mendes e Abboud (2019), chamam atenção para o perigo que constitui o ativismo judicial, quando este extrapola os limites da intepretação da Constituição. Para eles, o juiz ativista, sendo ele progressista ou o conservador, pode incorrer em erro nas suas decisões quando ele deixa de procurar a resposta no direito e a fabrique a partir da ideologia. Críticos da existência de qualquer divisão entre o bom e o mau ativismo, asseguram que o ativismo deve ser compreendido como a concretização da Constituição, atribuindo-lhe força normativa. Isto, portanto, não seria uma opção, e sim uma imposição constitucional.
No Estado Constitucional, pode-se divergir sobre aspecto políticos; contudo, na solução de questões jurídicas, não deveria haver discordância acerca da origem de toda e qualquer decisão judicial: as leis e a Constituição Federal. Qualquer outra coisa é, como adiantamos acima, discricionariedade (MENDES E ABBOUD, 2019, P.5).
Os autores argumentam ainda que “o ativismo judicial é uma postura discricionária do Poder Judiciário, que redunda em uma ingerência insidiosa frente ao Legislativo e ao Executivo (MENDES E ABBOUD, 2019, p.5).” A defesa da mudança de mentalidade jurídica dominante que tem como ideia de bom ativismo, é neste sentido, um desafio a ser superado, já que para eles, defender o bom ativismo é defender o caráter discricionário da justiça.
No seu lugar, há de se colocar, como premissa inquestionável, que nenhum julgador – pouco importando sua posição na hierarquia judicial – tem o direito de ignorar os textos legais. Sob o jugo de uma Constituição como a de 1988, todos os julgadores são colocados “under the rule of law”, conforme o aviso que nos fora dado, já em 2008, por Augusto Zimmermann (MENDES E ABBOUD, 2019, p.5).”
Em última análise, para os autores, o ativismo judicial levaria à interferência irregular e nociva do Poder Judiciário nas demais esferas do Estado, uma vez que a Constituição de 1988 previu para o Poder Judiciário, e para os demais poderes, funções atípicas, sendo o seu exercício restrito aos parâmetros desenhados pela engenharia constitucional.
Neste contexto, imperioso observar o que concluiu Ingeborg Maus (2000), ao analisar o crescente papel ativista da Corte Superior Alemã. A jurista demostra preocupação quando o judiciário traz para si a instância moral da sociedade, isto porque agindo assim escaparia ela de qualquer mecanismo de controle social, que todas as instituições de Estado devem ser subordinadas. A autora tece críticas a postura do Judiciário Alemã, que age como a suprema instância definidora dos valores da sociedade que merecem ser protegidos.
Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social — controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito "superior", dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração sócia l ( MAUS, 2000, p.187).
Assim feita às observações pertinentes, de que existem limites para atuação judicial que residem na própria Constituição e nas leis, passamos a analisar inicialmente o voto do relator Ministro Lewandowski, no Julgado RE 592.581/RS. Em síntese, trata-se de Ação Civil Pública na qual o MPE requeria ao Judiciário determinar ao Executivo a realização de obras em estabelecimento prisional Albergue Estadual de Uruguaiana, que se encontrava em situação precária, submetendo aos presos à violação de sua integridade física e moral, situação vedada pela Constituição da República. No entendimento dos doutos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que reformou a decisão de primeira instância, não cabe ao Judiciário interferir e determinar ao Poder Executivo a realização de obras, “mesmo pleiteadas a título de direito constitucional do preso, sob pena de fazer às vezes de administrador, imiscuindo-se indevidamente em seara reservada à Administração.” Ou seja, para o TJRS trata-se de uma violação e não cumprimento do que estabelece a Constituição, uma vez que viola o princípio da separação dos poderes, não cabendo ao Judiciário determinar ao Poder Executivo o cumprimento de ações que são de sua competência.
No entanto, esse não foi o entendimento do STF que reformou a decisão do TJRS, sendo acompanhado pelos demais ministros, firmando a seguinte tese de repercussão geral,
É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes (RE 592.581/RS, 2015).
Já na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 347 de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o STF, também em 2015, o plenário do STF reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do Sistema Carcerário Brasileiro e determinou, em caráter liminar, a realização de audiências de custódia, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, bem como o descontingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional. O reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” aplicada no referido julgamento, é uma tese jurídica adotada na Corte Colombiana, desde que presentes três pressupostos: situação de violação generalizada de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a situação; a superação das transgressões exigir a definição e implementação de políticas públicas pelo STF. Seguindo o Relator, a Corte entendeu que “a ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa uma verdadeira "falha estrutural" que gera ofensa aos direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação.”
A análise doutrinaria dessas decisões, coloca os juristas em duas frentes opostas: uma que defende a intervenção do Judiciário, em função do Princípio do mínimo existencial que decorre do princípio constitucional dignidade da pessoa humana. E outra contrária, pois fere a autonomia dos poderes, além de invocar o princípio da reserva do possível para execução de politicas públicas estruturantes, uma vez que estamos diante de um quadro cada vez mais de escasso dos recursos humanos, materiais e financeiros.
Neste contexto, é importante destacar o que já vimos anteriormente sobre o risco a ser considerado quando o Judiciário chama para si a responsabilidade de intervir nas atribuições dos demais poderes, especificamente do Poder Executivo, na implementação das politicas públicas. Todavia, nas hipóteses em análise, nos filiamos àqueles que acreditam que a Corte atendeu preceitos constitucionais que são fundamentais para assegurar a dignidade da pessoa humana e fez uma intepretação conforme. As decisões reafirmam na verdade o caráter híbrido, misto, complexo da Execução Penal, exigindo a absoluta integração entre os poderes, sobretudo o Poder Executivo e Judiciário, que necessariamente precisam convergir, por força da LEP, para juntos executarem a Execução Penal. Há dúvida, está na funcionalidade deste arranjo, já que não nasce de um processo dialógico e sim de uma decisão judicial. Seria esse formato a melhor solução para a resolução dos problemas do sistema penitenciário? É o que trataremos a seguir.
3. A NATUREZA HIBRIDA DA GESTÃO DO SISTEMA PENITENCIARIO
Como vimos até aqui a gestão do sistema penitenciário envolve atos administrativos e jurisdicionais, tem natureza híbrida, o que obriga, necessariamente, a sinergia entre os diferentes atores para que tenhamos eficiência e efetividade em sua execução. Assim, recuperando o que nos ensina Secchi, mencionado no início deste artigo, podemos afirmar que não existe por partes dos atores, quais sejam, os partidos políticos, os agentes políticos e as organizações não governamentais uma sinergia para que haja uma agenda planejada, com alinhamento de eixos, diretrizes e ações conjuntas. Parte hoje do Poder Judiciário, decisões judiciais para que o Poder Executivo cumpra com seu dever. No entanto, quando isso acontece, o caminho adotado não é o do diálogo e sim da imposição judicial, portanto, deve ser cumprida.
Entretanto, a imposição judicial confronta com a natureza do arranjo institucional do Sistema Penitenciário, pois este exige um entrosamento entre os órgãos do Poder Judiciário, Executivo e, em certa medida, do Legislativo, em sua execução. É necessário ter complementaridade em função da interdependência, o que faz com que o diálogo permanente entre eles se torne em algo necessário. Portanto, antes das decisões judiciais, é preciso estabelecer canais permanente de diálogo, sendo esse um velho desafio e, porque não dizer, o principal desafio a ser superado.
Um exemplo da ausência de diálogo entre os diferentes atores que atuam na execução penal pode ser observado, quando se acompanha inúmeros casos de pessoas que cumpriram a sua pena, mas que permanecem por anos nos estabelecimentos penitenciários. Um balanço do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2013) sobre os 53 meses de funcionamento dos mutirões carcerários, que começaram em agosto de 2008, revela que é assustador o número de detentos que permaneceram encarcerados depois de extinta a pena: dos 451.828 processos analisados, pelo menos 47 mil detentos, ou 10,40% do total, estavam presos indevidamente e foram postos em liberdade.
Outro velho desafio, como vimos anteriormente, parte da constatação de que são péssimas as condições dos estabelecimentos penitenciários brasileiros, agravada pela incapacidade do governo federal e dos estados construírem estabelecimentos penitenciários adequados, para que a pessoa presa cumpra a sua pena em condições de respeito a sua dignidade. As condições são tão precárias, que o ex-Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, disse em um jantar organizado por um grupo de empresários paulistas, que preferia morrer do que passar anos na prisão (UOL NOTÍCIAS, 2013).
Frente a esse contexto, sem dúvida, a instalação da audiência de custódia, com todas as limitações para sua implementação, nos parece ser uma iniciativa importante, cujo seu funcionamento depende do diálogo com Poder Executivo. A ação foi determinada na ADPF 347 e visa implementar o Pacto de São José da Costa Rica, que assegura a pessoa presa apresentação a um juiz no prazo máximo de 24 horas. Essas mesmas disposições também são objeto do Termo de Cooperação Técnica assinado em 2015, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Justiça (MJ), que tem como objetivo fundamentalmente conjugar esforços para dar efetividade à execução da audiência de custódia.
visando à efetiva implantação do projeto Audiência de Custodia, de modo a fomentar e viabilizar a operacionalização da apresentação pessoal de autuados (as) presos (as) em flagrante delito à autoridade judiciária, no prazo máximo de 24 ( vinte e quatro) horas após sua prisão. Contando com o apoio do efetivo funcionamento de Centrais Integradas de Alternativas Penais, Centrais de Monitoração Eletrônica e serviços com enfoque restaurativo e social, aptos, em suma, a oferecer opções concretas e factíveis ao encarceramento provisório de pessoas (TERMO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA, 2015, p.02)
Com exceção de poucas iniciativas, a exemplo da audiência de custódia, não existe uma ação integrada, o que temos é na verdade a reação de gestores públicos que trabalham na lógica da agenda formulada pela mídia, que na concepção de Secchi, quase sempre é construída no calor dos acontecimentos, e ao invés de se buscar a construção de um arranjo institucional integrado, foca-se em decisões paliativas. E, no caso do sistema penitenciário, a construção de novos presídios sempre se apresenta como a uma estratégia central para a resolução do problema da superlotação.
Para muitos, o caminho para Administração Pública em relação ao sistema penitenciário é envolver o setor privado na construção e gestão de estabelecimento prisionais. De acordo com Rostirolla (2015), não é uma novidade no Brasil a parceria púbica privado no sistema penitenciário, todavia ele defende que essa parceria se estenda a todos os serviços assumindo por completo a administração prisional.
No Brasil, a iniciativa privada já participa da gestão prisional há algum tempo. A ideia de gestão compartilhada é aplicada em larga escala país afora, onde a administração pública terceiriza serviços pontuais do dia a dia prisional, como alimentação, serviços de lavanderia, uniformes etc. O sistema de gestão compartilhada/terceirização já é amplamente explorado por dezenas de estados da federação, não havendo novidades nesse sentido. O que é novidade é o ente privado assumir por completo a administração prisional, ou seja, por meio das PPP, que consolidam e aprimoram o sistema de gestão do serviço público por uma empresa privada (ROSTIROLLA, 2015, p.76).
É bem verdade que a terceirização do sistema penitenciário existe há tempos no Brasil, por essa razão pode-se afirmar que nem mesmo a iniciativa privada foi capaz de impedir a superlotação dos presídios e a ocorrência de novos ilícitos nas unidades prisionais. Em 2016 e início de 2017, o mundo acompanhou estarrecido as rebeliões que ocorreram nos estados do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte. No Estado da Amazonas a gestão era a época terceirizada e de acordo com relatório produzido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) morreram 67 pessoas, deixando pessoas não localizadas e feridas. O relatório apontou ainda as principais causas para ocorrência dos massacres,
Em Manaus, onde 67 presos mortos em três prisões, 60 mortos só no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), de janeiro de 2016, identificou problemas e características que poderiam estar relacionadas à violenta rebelião, tais como a omissão estatal frente à execução penal, afetando a segurança jurídica e a vida das pessoas presas. Ademais, foi apontada a privatização, modelo adotado pelo sistema prisional amazonense, como um dos fatores de fragilização do sistema. Diante do cenário encontrado, foram realizadas recomendações ao estado, como a elaboração de um Plano de Redução da População Carcerária, envolvendo órgãos do poder público estadual e federal; a aplicação de medidas alternativas à prisão; a realização de concurso público para contratação de agentes penitenciários.
Assim, o que temos no Brasil hoje são iniciativas individuais com pouco sucesso de modelo de gestão do sistema penitenciário e quase nenhuma sinergia entre os poderes para encontrar uma solução que seja definitiva. A posição do Judiciário em determinar judicialmente que o Poder Executivo abandone sua inércia diante desta política pública é relevante e tem um caráter educativo, mas é pouco eficiente. Andrade (2017), analisou o resultado efetivo das ações civis públicas impetradas pelo MPE do Paraná com vista a obter melhorias para o sistema penitenciário daquele estado. Para ele, apesar das ações, não houve melhoras significativas, concluindo que o melhor caminho ainda é o do diálogo entre os poderes até mesmo com meio de concretizar o importante papel do Ministério Púbico frente à Politica do Sistema Penitenciário.
[...] cabe o alerta de que, sozinho, o Ministério Público nada fará. As soluções perpassam pelo diálogo, de modo que o Poder Público – e também o Judiciário – têm de estar engajados na melhoria do problema, a despeito de interesses políticos. Aí, e apenas aí, residirá o poder de demanda do Promotor de Justiça, fiscalizador dos demais poderes. Cabe à Administração o estudo de políticas públicas capazes de minar a superpopulação, ao Judiciário a adoção de medidas descaracterizantes e efetivamente cumpridoras dos objetivos da LEP, e ao Legislativo a edição de legislações capazes de possibilitar tal intento (ANDRADE, 2017, p.461).
Considerações finais
Este artigo buscou problematizar se ativismo do Judiciário frente aos problemas enfrentados pelo sistema penitenciário é o melhor caminho a seguir. Pelo arranjo institucional de gestão do Sistema Penitenciário brasileiro, previsto na Lei de Execução Penal, ainda que seja positiva a postura do Judiciário, em especial do STF em fazer valer os princípios constitucionais de não violação à dignidade humana, não se pode lograr êxito em sistema complexo que envolve diversos atores a simples imposição judicial.
Acreditamos que o único caminho passa definitivamente pela capacidade do diálogo entre os poderes e todos os demais atores envolvidos. Mas para isso, o Brasil precisa entregar para sociedade um arranjo institucional que efetivamente, transforme a gestão do sistema penitenciário pela sua complexidade em algo unificado, de caráter nacional e integrado com todos os órgãos de execução penal, tomando como modelos, no que couber, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema de Assistência Social (SUAS), que apesar dos problemas enfrentados, tem na sua origem o diálogo com diferentes atores uma premissa a ser observada.
Assim, a integração dos diferentes atores envolvidos com a gestão do sistema penitenciário não é um ato de discricionário, mas um dever para com os presos que tem os seus direitos constantemente violados nos estabelecimentos penitenciários, e dos próprios servidores que também sofrem, pois desempenham suas atribuições em condições precárias.
Enquanto isso não acontece, vamos acompanhar decisões não sendo cumpridas, em alguns casos, não por má vontade dos gestores, mas pela incapacidade orçamentária e financeira para fazer cumprir as determinações judiciais. Por consequência, muitos responderam ações que poderiam ser resolvidas caso à busca da solução fosse pautada no diálogo sério e responsável de todos os envolvidos, afinal, os problemas do sistema penitenciário não é de um governo, de uma gestão, mas é resultado do descaso de décadas, tanto por parte dos poderes constituídos quanto da própria sociedade.
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Advogada, Jornalista, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutoranda em Direito Constitucional. Professora Universitária. Ex-Secretária de Cidadania e Justiça do Estado do Tocantins (2015-2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Gleidy Braga. Judicialização das políticas públicas e a gestão híbrida do Sistema Penitenciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 mar 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58178/judicializao-das-polticas-pblicas-e-a-gesto-hbrida-do-sistema-penitencirio. Acesso em: 23 dez 2024.
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