KÁDYAN DE PAULA GONZAGA E CASTRO[1]
(orientadora)
RESUMO: Combatida através da Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar deve ser prevenida a fim de que a integridade física e psicológica de suas vítimas sejam preservadas em todas as situações sociais. Com a chegada da Covid-19 no Brasil, a vida da população sofreu modificações, a grande maioria delas relacionadas à necessidade de permanecer em suas residências, isoladas socialmente dos demais indivíduos em sociedade, para impedir o contágio da doença. A partir desse novo contexto social, questiona-se o impacto dessa convivência nos índices nacionais de violência doméstica e familiar no decorrer da pandemia causada pelo Coronavírus. Desta feita, o objetivo geral da pesquisa consiste em apresentar os efeitos impactantes da pandemia da Covid-19 no Brasil nos índices de violência doméstica e familiar no período compreendido entre os anos de 2020 e 2021. A pesquisa é bibliográfica e se fundamenta em materiais e informações publicadas desde o início da pandemia, servindo como elemento de comparação aos períodos anteriores. Os dados usados na análise foram coletados em textos já publicados com suas devidas fontes citadas, mencionados através da transcrição de textos e confronto de informações. O resultado obtido é a exposição dos impactos reais da pandemia nos números nacionais de violência doméstica e familiar.
Palavras-chave: Violência doméstica. Pandemia. Covid-19. Índices. Brasil.
ABSTRACT: Fighting through the Maria da Penha Law, domestic and family violence must be prevented so that the physical and psychological integrity of its victims is preserved in all social situations. With the arrival of Covid-19 in Brazil, the lives of the population underwent changes, the vast majority of them related to the need to remain in their homes, socially isolated from other individuals in society, to prevent the contagion of the disease. From this new social context, the impact of this coexistence on the national rates of domestic and family violence during the pandemic caused by the species of coronavirus is questioned. This time, the general objective of the research is to present the impacting effects of the Covid-19 pandemic in Brazil on the rates of domestic and family violence in the period between 2020 and 2021. The research is bibliographic and is based on materials and information published since the pandemic started, serving as an element of comparison with previous periods. The indicated data were collected in texts already published, mentioned through the transcription of texts and confrontation of information. The result obtained is the exposure of the real impacts of the pandemic on national numbers of domestic and family violence.
Keywords: Domestic violence. Pandemic. Covid-19. Indexes. Brazil.
Sumário: Introdução. Material e Métodos. 1. A violência doméstica e familiar: definição, características e espécies. 2. A Lei Maria da Penha e seus mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica. 3. A Covid-19 e suas regras de restrição de convivência. 4. O isolamento social como facilitador da violência doméstica e familiar. 5. Os índices nacionais de violência doméstica e familiar no período de pandemia. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Por ofender os direitos fundamentais das vítimas e representar uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, a violência contra as mulheres é uma preocupação constante em todo o território nacional e por isso mantém-se em contínua análise.
Infelizmente, é alto o índice de violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil. Por esse motivo e pela precária punibilidade dos agressores, é que no ano de 2006 foi sancionada a popular Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006), responsável por impor sanções aos agressores e principalmente por oferecer o apoio às vítimas.
Com mais de 15 anos de vigência, mesmo com o desenvolvimento de mecanismos de proteção à mulher, o país ainda está longe de alcançar o resultado almejado, posto que, é possível afirmar que a violência é um problema renitente na sociedade brasileira.
Além de se tratar de uma prática cultural, existente desde os primórdios da humanidade, a violência doméstica, em todas as suas espécies, é agravada com ao aumento da convivência nos ambientes familiares, de forma íntima. Portanto, quanto maior o convívio da vítima com o agressor, maiores as chances de práticas violentas.
Ao levar em consideração as informações e especulações acerca do aumento dos casos de violência doméstica e familiar e também dos crimes de feminicídio em razão da pandemia, questiona-se quais os reais impactos causados pela situação pandêmica em relação aos índices de violência doméstica e familiar.
Os motivos dos questionamentos referem-se principalmente aos reflexos causados pela imposição de normas sanitárias de isolamento social, bem como a transferência de algumas atividades laborais para o tele trabalho, também reconhecido como home office.
Existem informações de que houve crescimento de crimes de violência doméstica e familiar no Brasil nos últimos anos, com ênfase no período de pandemia, sendo a presente pesquisa voltada a essa problemática.
MATERIAIS E MÉTODOS
Esta pesquisa é documental e se classifica como bibliográfica quanto às suas fontes, porque foi elaborada com informações e índices de casos de violência doméstica publicados por institutos especializados e mencionados por doutrinadores e estudiosos. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, já que a finalidade do estudo é apresentar, além das normas de responsabilização da violência doméstica, bem como os números registrados no período da quarentena decorrente da pandemia da Covid-19.
Realizada através de revisão de literatura, e os dados selecionados foram analisados através de técnicas de análise qualitativa dos textos coletados na bibliografia, sem variáveis para ao final expor o resultado de forma textual e com a utilização de trechos transcritos.
1 A VIOLENCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: DEFINIÇÃO, CARACTERÍSTICAS E ESPÉCIES
Após anos de simbólica punibilidade aos agressores de mulheres, a sanção da Lei Maria da Penha se deu no dia 7 de agosto de 2006. Com o advento da Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, a violência doméstica passou a ser penalizada no Brasil de forma mais severa que outros delitos de ameaça e violência em razão da forma como se dá, aproveitando-se dos ambientes e relações domésticas e familiares.
Trata-se de lei destinada à proteção da mulher, há muito tempo vitimada por violências reforçadas por pensamentos patriarcais e machistas, que a coloca em situação de vulnerabilidade social.
Uma das principais características da lei consiste na sua aplicação indiscriminada em proteção de toda mulher, conforme explicitado no artigo 2º, nos seguintes termos:
Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (BRASIL, 2006).
Apesar de o legislador exigir que a vítima seja mulher, não há obrigatoriedade quanto à figura agressora, que não precisa ser, necessariamente, do sexo masculino, uma vez que em relações homoafetivas também podem ocorrer violências domésticas.
Para saber se o caso é de competência da lei Maria da Penha, utiliza-se as disposições contidas na lei acerca da definição da violência doméstica:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, 2006).
Além do contexto em que são praticados os atos de violência, urge também a análise de como se dá essa violência, uma vez que, várias situações podem ser passíveis de responsabilização do agressor. Cinco são as formas enumeradas pela Lei Maria da Penha:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).
De acordo com o artigo 6º da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher é uma forma de ofensa aos direitos humanos (BRASIL, 2006). A partir dessa afirmação, justifica-se o fato de tais condutas serem comumente objeto de retaliação estatal, que deve promover políticas públicas de combate a tais violações.
2 A LEI MARIA DA PENHA E SEUS MECANISMOS PARA COIBIR E PREVENIR A VIOLENCIA DOMÉSTICA
Após a publicidade do caso Maria da Penha, que levou à edição da lei, bem como de várias outras situações de violência doméstica levadas a conhecimento da população, não bastaria apenas a imposição de sanções mais específicas, mas principalmente a necessidade de criação de mecanismos que previnam tais práticas.
Neste sentido, a Lei se propõe não apenas a punir o agressor, mas também a proteger e acolher as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
Sancionada em agosto de 2006 a Lei Maria da Penha, é uma legislação com extrema relevância para o enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil, tenciona tratar de forma cabal o problema da violência doméstica. Com o objetivo de proporcionar proteção e o acolhimento emergencial à mulher vítima da violência doméstica e familiar, a mencionada lei cria mecanismos para garantir a assistência jurídica e psicossocial à ofendida, e tende dirimir qualquer forma de violência no ambiente das relações íntimas (NOLETO e BARBOSA, 2019, p.1).
Ao estabelecer essa obrigação Estatal, a Lei Maria da Penha destina um artigo para expressar literalmente as garantias destinadas às mulheres no âmbito familiar e comunitário, com enfoque do dever do Poder Público em desenvolver suas políticas para atender a tais condições.
Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2006).
Além da responsabilidade estatal de criar e manter políticas de combate à violência doméstica, a Lei Maria da Penha já contém alguns instrumentos que merecem destaque, são eles: a inclusão da mulher no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal (§1º, art.9º); o acesso prioritário à remoção, em caso de servidora pública, a manutenção do vínculo trabalhista por até 6 meses, se necessário o afastamento, e o encaminhamento à assistência judiciária (§2º, art. 9º); o atendimento policial e pericial especializado (art. 10), entre outros (BRASIL, 2006).
Especialmente quanto ao registro da ocorrência nos primeiros atendimentos policiais, algumas medidas devem ser obrigatoriamente observadas pela autoridade responsável pelo atendimento da vítima para que não haja novas situações de violência, principalmente o afastamento do agressor.
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. (BRASIL, 2006).
Nessas circunstancias, a imposição de medidas protetivas de urgência é comum para assegurar a integridade física e mental da vítima. O artigo 22 autoriza as seguintes medidas a serem adotadas em relação ao agressor: o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência; a proibição de determinadas condutas, dentre elas: aproximação da ofendida e de terceiros com a fixação de uma distância mínima; a proibição de contato e frequentação de determinados lugares; a restrição ou suspensão de visitas aos menores, etc. (BRASIL, 2006).
Visando garantir proteção, integridade e segurança às vítimas, algumas medidas rápidas e eficientes são propostas pela lei para evitar novos traumas e proteger mulheres que já se encontram situações ameaçadoras. Entre elas: o impedimento do agressor em possuir armas, recolhendo-as imediatamente por meio da ação de agentes do Estado; a retirada da mulher do ambiente em que sofre ameaça; a determinação de uma distância segura entre vítima e agressor; e a restrição ou suspensão de visitas do agressor aos dependentes menores. Além disso, a lei também garante uma condição digna para a agredida, com a determinação emergencial de prestação alimentar (IBDFAM, 2020, p.1).
Para proteger a ofendida, o artigo 23 autoriza a fixação de medidas protetivas que compreendem o encaminhamento a programas de proteção ou atendimento; determinar a separação de corpos; o afastamento sem prejuízo do direito a guarda, alimentos e bens; a recondução ao domicílio após o afastamento; etc. (BRASIL, 2006).
Nota-se que dentre os mecanismos apresentados anteriormente, a suspensão do convívio é a medida imediata aplicada na grande maioria dos casos, por impedir a aproximação entre ofendida e agressor. Tal fator demonstra que quanto maior a convivência, maior o risco de ocorrência de violência doméstica e familiar.
3 A COVID-19 E SUAS REGRAS DE RESTRIÇÃO DE CONVIVÊNCIA
A constatação de um novo vírus de alto nível de contágio deixou toda a população brasileira e as autoridades de sobreaviso acerca do perigo de sua propagação. Com isso, com a confirmação do primeiro caso em território nacional diagnosticado em 28 de fevereiro de 2020, o país passou a adotar medidas preventivas (AGENCIA BRASIL, 2021).
Uma das principais medidas impostas foi o isolamento social entre as pessoas, reduzindo as jornadas de trabalho presencial, substituídas pelo labor remoto, o fechamento de locais destinados a entretenimento, etc. Em dado momento mais crítico, apenas as atividades essenciais eram autorizadas a funcionar de forma presencial.
O distanciamento social envolve medidas que têm como objetivo reduzir as interações em uma comunidade, que pode incluir pessoas infectadas, ainda não identificadas e, portanto, não isoladas. Como as doenças transmitidas por gotículas respiratórias exigem certa proximidade física para ocorrer o contágio, o distanciamento social permite reduzir a transmissão. Exemplos de medidas que têm sido adotadas com essa finalidade incluem: o fechamento de escolas e locais de trabalho, a suspensão de alguns tipos de comércio e o cancelamento de eventos para evitar aglomeração de pessoas. O distanciamento social é particularmente útil em contextos com transmissão comunitária, nos quais as medidas de restrições impostas, exclusivamente, aos casos conhecidos ou aos mais vulneráveis são consideradas insuficientes para impedir novas transmissões. O caso extremo de distanciamento social é a contenção comunitária ou bloqueio (em inglês, lockdown) que se refere a uma intervenção rigorosa aplicada a toda uma comunidade, cidade ou região através da proibição de que as pessoas saiam dos seus domicílios – exceto para a aquisição de suprimentos básicos ou a ida a serviços de urgência – com o objetivo de reduzir drasticamente o contato social (AQUINO e LIMA, 2020, p.1).
Decorridos dois anos desde a confirmação do primeiro caso, ocorreram significativas mudanças e avanços no tocante à convivência entre as pessoas, principalmente em relação à vacinação e a tomada de medidas preventivas nos locais públicos. Todavia, no ambiente familiar ainda persistem os efeitos, especialmente quanto ao aumento de situações de violência.
4 O ISOLAMENTO SOCIAL COMO FACILITADOR DA VIOLENCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
É fato que a modificação drástica no comportamento entre os indivíduos reflete em todo o contexto social e as mudanças das condições de convivência influenciam também as relações familiares. Com o aumento do período de convivência entre as pessoas em razão do perigo de contágio da Covid-19 não foi diferente. O impacto já é observado em vários lugares do mundo.
O Corona vírus, além de retirar prematuramente a vida de muitas de suas vítimas, ainda modificou de forma muito impactante a vida de toda a população, submetida às normas de isolamento social, que por outro lado, ocasionou maior convivência no ambiente doméstico e familiar.
Desde a descoberta da doença, têm sido adotadas, ao redor do mundo, medidas que já se mostraram indispensáveis à sua contenção: distanciamento social, isolamento e quarentena. Não há dúvida do acerto da escolha, todavia, ela trouxe um grave efeito colateral: o aumento das ocorrências de feminicídio e de numerosos casos de violência doméstica contra mulheres, meninas e jovens.
Diversos países registraram tal aumento, como é o caso de Alemanha, Canadá, França, Reino Unido, China, Estados Unidos, Singapura e Chipre. Trata-se, portanto, de um problema global (FERNANDES E THOMAKA, 2020, p. 1).
Neste contexto, a constante preocupação com a integridade das vítimas de violência se manteve, isto porque segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), pelo menos uma em cada três mulheres já passou por situação de violência de gênero, sofrendo alguma forma de abuso no decorrer de sua vida, sendo, geralmente, o agressor um membro da família ou de convivência familiar (NOLETO e BARBOSA, 2019).
Através da maior convivência, em uma situação de pandemia, o dever estatal de proteção às mulheres é dificultado pelo aumento do período de exposição das vítimas aos seus agressores.
Assegurar proteção às mulheres vítimas de violência doméstica que, agora, não têm alternativa senão permanecer 24 horas em casa com seus agressores é, portanto, um desafio a ser enfrentado pelos três Poderes da República, nas esferas federal, estadual e municipal (FERNANDES e THOMAKA, 2020, p.1).
Portanto, as notícias até o momento divulgadas levam a crer que “confinadas em seus lares por causa da pandemia da Covid-19, as mulheres são duplamente ameaçadas: por um vírus potencialmente letal e por pessoas violentas de seu próprio convívio doméstico” (FERNANDES E THOMAKA, 2020, p. 1).
Em razão dessas constatações, é necessária uma análise acerca dos efeitos observados nas estatísticas nacionais de violência doméstica em comparação com o período anterior à pandemia.
5 OS INDICES NACIONAIS DE VIOLENCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO PERÍODO DE PANDEMIA
A pandemia ainda não acabou e o Brasil ainda se encontra em estado de alerta devido ao risco de contaminação da covid-19, o Poder Público e o Judiciário já enfrentam as consequências das normas sanitárias na vida dos jurisdicionados. Tendo como resultado no âmbito doméstico e familiar as violências domésticas cresceram e os atos criminosos já são objeto de análise judicial.
Desde que as medidas de isolamento social, para quem pode ficar em casa, entraram em vigor, um triste número também começou a subir nas estatísticas, e não de casos da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Foram o de denúncias de violência doméstica: o aumento foi de cerca de 50% apenas no Rio de Janeiro, mas a realidade de avanço nos casos aconteceu em todo o mundo (MAZZI, 2020, p.1).
O efeito negativo de fato ocorreu e os dados oficiais comprovam o crescimento dos casos de violência doméstica no Brasil, especialmente por meio das denúncias realizadas através do canal Ligue 180.
Segundo a ouvidoria, na comparação com janeiro de 2019, o número de denúncias registradas por meio do Ligue 180 diminuíram 4,5% em janeiro deste ano. Já em fevereiro, houve um aumento de 15,6% das notificações quando comparado ao mesmo mês do ano passado. A tendência se manteve em março, quando o novo coronavírus chegou ao país e algumas unidades da federação começaram a adotar medidas para isolar a população e, assim, tentar conter a disseminação da doença (RODRIGUES, 2020, p.1).
Com dados mais recentes, publicados no ano de 2021, a pesquisa do Instituto Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, atestou que cerca de 17 (dezessete) milhões de mulheres brasileiras sofreram violências no ano de 2020 (IBDFAM, 2021).
Todas as formas de violência foram observadas, com maior frequência a violência verbal.
Violências sofridas pelas brasileiras de 16 anos ou mais durante a pandemia de covid-19 • 4,3 milhões de mulheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. Isso significa dizer que a cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus. • O tipo de violência mais frequentemente relatado foi a ofensa verbal, como insultos e xingamentos. Cerca de 13 milhões de brasileiras (18,6%) experimentaram este tipo de violência. • 5,9 milhões de mulheres (8,5%) relataram ter sofrido ameaças de violência física como tapas, empurrões ou chutes. • Cerca de 3,7 milhões de brasileiras (5,4%) sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais. • 2,1 milhões de mulheres (3,1%) sofreram ameaças com faca (arma branca) ou arma de fogo. • 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento (2,4%) (FBSP e DATAFOLHA, 2021, p. 11).
Boa parte das mulheres ouvidas, mais precisamente 21,8% (vinte e um vírgula oito por cento) alegaram que o aumento da convivência com o agressor em função da pandemia de covid-19 também contribuiu para a própria experiência de violência doméstica (FBSP e DATAFOLHA, 2021, p.13).
No isolamento, com maior frequência, as mulheres são vigiadas e impedidas de conversar com familiares e amigos, o que amplia a margem de ação para a manipulação psicológica. O controle das finanças domésticas também se torna mais acirrado, com a presença mais próxima do homem em um ambiente que é mais comumente dominado pela mulher. A perspectiva da perda de poder masculino fere diretamente a figura do macho provedor, servindo de gatilho para comportamentos violentos.
A desigual divisão de tarefas domésticas, que sobrecarrega especialmente as mulheres casadas e com filhos, comprova como o ambiente do lar é mais uma esfera do exercício de poder masculino. Na maioria das vezes, a presença dos homens em casa não significa cooperação ou distribuição mais harmônica das tarefas entre toda a família, mas sim o aumento do trabalho invisível e não remunerado das mulheres9. Durante o isolamento social, seja em regime de home office, seja na busca pela manutenção de uma fonte de renda no trabalho informal, o trabalho doméstico não dá folga. Pelo contrário, aumenta à medida que há mais pessoas passando mais tempo em casa (VIEIRA, GARCIA e MACIEL, 2020, p.1).
Em razão das normas sanitárias de isolamento social houve alteração significativa na rotina da população brasileira, o que desencadeou a modificação do ambiente familiar, tornando-o mais hostil para as pessoas. As pesquisas comprovam tal alegação.
Principais mudanças na rotina da população (homens e mulheres) em função da pandemia de covid-19 • 52,6% afirmam que permaneceram mais tempo em casa. • 48,0% afirmam que a renda da família diminuiu. • Para 44,4%, o período da pandemia de covid-19 significou também momentos de mais estresse no lar. • 40,2% informaram que os filhos tiveram aulas presenciais interrompidas. • 33,0% perderam o emprego. • 30,0% tiveram medo de não conseguir pagar as contas (FBSP e DATAFOLHA, 2021, p. 10).
Os números do Estado de São Paulo também são expressivos e refletem a realidade do estado brasileiro com maior população.
Apenas o Estado de São Paulo contabilizou 5.559 boletins de ocorrência por violência doméstica e o número de feminicídios ocorridos no primeiro semestre de 2020 foi elevado. Outro dado preocupante é que, segundo levantamento feito pelo G1, somente no primeiro semestre de 2020, a cidade de São Paulo apontou 97 casos de feminicídio, o maior percentual desde 2015, ano em que o feminicídio passou a ser considerado um crime hediondo (SANTOS, 2021, p. 13).
Acontece que, apesar da pandemia e seus índices elevados, o número de ocorrências apresentou estabilidade em comparação com o ano anterior, de 2019, contudo com diferenças que merecem uma análise.
De acordo com o novo levantamento, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência. O índice de 24,4% é inferior ao da pesquisa anterior, em que 27,4% relataram variadas formas de abuso. Contudo, houve um aumento nos casos em que o crime é cometido dentro de casa.
As agressões em ambiente doméstico representaram 42% em 2019 e 48,8% em 2020, enquanto as violências sofridas nas ruas foram de 29% para 19%. Cresceram também os casos em que o agressor são companheiros, namorados e ex-parceiros. Com as mulheres acima de 50 anos, há maior aparição de filhos e enteados nos casos de violência (IBDFAM, 2021, p.1).
Esses dados devem ser analisados com ressalva, uma vez que, de acordo com os estudos publicados, o isolamento repercutiu negativamente nos registros, posto que “ao mesmo tempo em que os casos aumentavam, os números de registros de boletins de ocorrências por violência doméstica apresentavam queda. (FBSP e DATAFOLHA, 2021, p.7) ”.
A gravidade do tema não se limita às agressões físicas e violências domésticas, mas principalmente ao resultado negativo devido ao aumentou dessa prática violenta no período de pandemia. O feminicídio, que é uma qualificadora do crime de homicídio, previsto no artigo 121, inciso IV, do Código Penal, também aumentou em um percentual de 22% (vinte e dois por cento).
Na primeira atualização de um relatório produzido a pedido do Banco Mundial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destaca que os casos de feminicídio cresceram 22,2%,entre março e abril deste ano, em 12 estados do país, comparativamente ao ano passado. Intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, o documento foi divulgado hoje (1º) e tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos estados brasileiros (BOND, 2020, p.1).
Sobre os feminicídios, no ano de 2019, grande parte ocorreu em razão de relação doméstica e familiar.
Dos 3.739 homicídios de mulheres em 2019 no Brasil, 1.314 (35%) foram categorizados como feminicídios. Isso equivale a dizer que, a cada sete horas, uma mulher é morta pelo fato de ser mulher. Ao analisar o aspecto vínculo com o autor, revela-se que 88,8% dos feminicídios foram praticados por companheiros ou ex-companheiros7. Assim, é comum que as mulheres estejam expostas ao perigo enquanto são obrigadas a se recolherem ao ambiente doméstico. (VIEIRA, GARCIA e MACIEL, 2020, p.1).
O aumento do feminicídio comprova que tiveram melhor êxito as tentativas de silenciamento definitivo das vítimas de violência de gênero. O fato de muitas agressões fatais terem ocorrido neste período decorrem também da maior exposição das mulheres aos agressores, facilitada pelo impedimento de livre circulação e convívio social.
CONCLUSÃO
As mudanças sociais de convivência em razão da Covid-19 e seu elevado perigo de contágio já começam a apresentar suas consequências danosas à sociedade. Além dos impactos na economia, saúde, vida profissional e etc., a segurança dos indivíduos também foi colocada em risco.
Quando se tratam de violências praticadas no interior das residências, em ambiente doméstico e convívio familiar, o efeito da privação de locomoção é inegável. Os números já demonstram que a pandemia facilitou o cometimento das agressões contempladas pela Lei Maria da Penha ao aumentar a exposição das vítimas aos seus agressores.
Em pesquisas realizadas desde o ano de 2020, as mulheres relataram maior animosidade no ambiente familiar, o aumento do stress dos agressores, causado pelo trabalho remoto ou mesmo pelo desemprego, entre vários fatores. A preocupação das autoridades nacionais e internacionais reside em proteger as mulheres dessas situações, através da responsabilização dos agressores.
Um dos problemas observados é a dificuldade em registrar as ocorrências e fazer a denúncia, especialmente pelo temor de não ser possível o afastamento do agressor do ambiente familiar. Apesar de todo o receio das vítimas, a mudança na aplicação de algumas leis não modificou as medidas de proteção impostas pela Lei Maria da Penha. Portanto, ainda que as estatísticas não sejam precisas quanto ao crescimento da violência familiar desde o início da pandemia, os números de feminicídio comprovam que muitas agressões não foram impedidas, levando ao resultado fatal.
Desta feita, conclui-se que o combate à violência de gênero deve ser contínuo e que o Poder Público tem o desafio de facilitar as denúncias das vítimas e conscientizar que mesmo que a pandemia ainda esteja em curso, ainda serão responsabilizados os autores do delito, com a imposição de medidas protetivas e as sanções penais condenatórias.
REFERÊNCIAS
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BOND, Letycia. Casos de feminicídio crescem 22% em 12 estados durante pandemia. Agência Brasil, 2020. Disponível em < https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/casos-de-feminicidio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia>. Acesso em 12 nov. 2021.
BRASIL. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 11 nov. 2021.
FBSP, Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Datafolha. Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil - 3ª edição – 2021. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf>. Acesso em 20 fev. 2022.
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[1] Professora Especialista do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – Unirg. Mestranda em Direito Digital na UniVem. E-mail: [email protected].
Bacharelanda em Direito pela Universidade De Gurupi - UNIRG. Pós graduanda em Direito e Processo do Trabalho - UFT
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, JANNIELLY NERES SARAIVA. Pandemia causada pela Covid-19 e seus efeitos colaterais em relação aos índices de violência doméstica e familiar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 abr 2022, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58207/pandemia-causada-pela-covid-19-e-seus-efeitos-colaterais-em-relao-aos-ndices-de-violncia-domstica-e-familiar. Acesso em: 23 dez 2024.
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