WELLSON ROSÁRIO SANTOS DANTAS[1]
(orientador)
RESUMO: A responsabilidade social e jurídica por abandono afetivo é um assunto delicado, pois trata da responsabilidade de cuidar, amar, instruir um filho para a vida. É nesse momento que o Poder Judiciário adentra nas relações de família, contudo, não com o desiderato de obrigar alguém a amar, pois tal obrigação não possui previsão legal, apenas existe o dever de cuidado previsto na legislação pátria. Entretanto, existe o dever de cuidado disposto no Código Civil e Estatuto da Criança e Adolescente. Assim, o presente estudo busca discorrer a respeito da responsabilidade que os genitores possuem ao abandonar afetivamente os seus filhos. Nesse sentido, discute-se esse fato diante da pandemia provocada pelo surgimento da Covid-19 que dentre outras medidas de prevenção, tem-se o isolamento social, o qual tem sido utilizado como meio de abandono afetivo. Na metodologia, baseia-se numa pesquisa bibliográfica. Sendo uma revisão de literatura, este artigo teve como base livros, artigos científicos, doutrinas jurídicas e a jurisprudência. Pelos resultados obtidos, ficou evidente que a jurisprudência brasileira já vem decidindo que os pais ao abandonar afetivamente os seus filhos respoderão civilmente por esse ato. No período de pandemia, contudo, é preciso que haja consenso entre os genitores em detalhar os limites de visitação e convivência, sem deixar de exercer a responsabilidade afetiva.
Palavras-chave: Abandono afetivo. Pandemia. Consequências jurídicas.
ABSTRACT: Social and legal responsibility for affective abandonment is a delicate subject, as it deals with the responsibility of caring, loving, instructing a child for life. It is at this moment that the Judiciary enters into family relationships, however, not with the desideratum of forcing someone to love, since such an obligation has no legal provision, there is only the duty of care provided for in the national legislation. However, there is a duty of care provided for in the Civil Code and the Statute of Children and Adolescents. Thus, the present study seeks to discuss the responsibility that parents have when emotionally abandoning their children. In this sense, this fact is discussed in the face of the pandemic caused by the emergence of Covid-19 that, among other preventive measures, has social isolation, which has been used as a means of affective abandonment. The methodology is based on a bibliographic research. As a literature review, this article was based on books, scientific articles, legal doctrines and jurisprudence. From the results obtained, it was evident that Brazilian jurisprudence has already decided that parents, when emotionally abandoning their children, will be civilly responsible for this act. In the period of a pandemic, however, there needs to be a consensus between the parents to detail the limits of visitation and coexistence, while exercising affective responsibility.
Keywords: Affective abandonment. Pandemic. Legal consequences.
Sumário: 1. Introdução. 2. Metodologia. 3. Do afeto familiar. 3.1 Do abandono afetivo. 4. Contextualização da temática. 5. Das consequências jurídicas. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A instituição familiar é a maior garantia de desenvolvimento humano e social do indivíduo. É através da família que o ser humano amadurece e se torna um ser social. E é através dela, também, que o indivíduo pode aumentar e propagar a espécie humana (PEREIRA, 2015).
Sendo a família tão importante para a sociedade, o Direito, enquanto ciência social, não poderia de deixar de lecionar a seu respeito. Ao longo do processo jurídico brasileiro, a família teve diversas mudanças. Muito dessas modificações, respinga no fato de que a sociedade também se modificava, assim o direito também o fazia (CEGALLA, 2015).
A família se modificou tanto, que hoje existem diversas ramificações de formação familiar, não mais se sobressaindo aquela formada pelo pai, a mãe e seus filhos. Hoje, devido à pluralidade de gêneros e condições sociais, é possível verificar diversos tipos de família. Essa pluralidade é reflexo da mudança ocorrida na família nos últimos anos (CORREIA, 2017).
Dentro dessa estrutura familiar, encontra-se a relação entre pais e filhos, que como o próprio nome induz, se refere à relação familiar dos genitores e sua prole. Nesta relação, os pais, a priori, são responsáveis pela manutenção do crescimento dos filhos, dando-lhes condições para desenvolverem-se. Mas a responsabilidade vai além destas, chega-se também à obrigação afetiva (TARTUCE, 2017).
No decorrer da análise desse tema procura-se responder as seguintes indagações: qual o impacto da pandemia provocada pela Covid-19 nos casos de abandono afetivo? e; quais as medidas feitas pelo sistema jurídico na punição e prevenção desses atos?
Por ser um período de enorme complexidade, como medida de prevenção ao contágio da Covid-19 encontra-se o isolamento social, ao qual o limite de visitas e convivência familiar ficou mais restritivo. Nesse cenário, muitos genitores tem abandonado afetivamente sua prole, o que faz surgir uma série de efeitos, aos quais o Direito não pode negligenciar.
Diante disso, este estudo busca discutir o instituto da responsabilidade social e jurídica no âmbito das relações familiares no que concerne ao abandono afetivo. Buscando contextualizar esse tema, foca-se na discussão sobre o abandono afetivo ocorrido durante a pandemia provocada pela Covid-19.
2. METODOLOGIA
A metodologia utilizada para a realização do presente estudo se pautou no método indutivo. Caracterizada como uma revisão de literatura, a pesquisa bibliográfica foi feita através de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos científicos relacionados ao tema proposto.
A presente pesquisa foi realizada mediante o levantamento de documentos. Assim, a coleta de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google, dentre outros, entre os meses de janeiro a fevereiro de 2022.
3. DO AFETO FAMILIAR
Não há como discorrer sobre abandono afetivo sem falar da família. É por meio dela que o ser humano se desenvolve e amadurece. Portanto, o assunto referente à família é de extrema importância.
Essa importância inclusive é amparada pelo Direito, que enquanto ciência social, traz um capítulo específico sobre a família e a regulamentação da sua formação e relações.
Em termos conceituais, família pode ser entendida como um agrupamento de pessoas que estejam ligadas por um vínculo jurídico ou familiar. De acordo com Venosa (2014, p. 26) é as que “vivem sob um mesmo teto, sob a autoridade de um titular”.
Com esse conceito inicial, pode-se observar que a família é acima de tudo um grupo de pessoas ligadas entre si, mantendo assim um vínculo. Pode-se correlacionar que a família é também a fonte natural da sociedade, pois é através dela que o indivíduo se relaciona com o próximo e difunde-se com os outros grupos familiares, criando assim uma comunidade (VENOSA, 2014).
Juridicamente, a família encontra solo legislativo por meio do o art. 226, caput, da Constituição Federal/88 onde se tem que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988). Verifica-se que o Direito insere a família como sendo o alicerce de uma sociedade, dando a ela uma importância que vai além da formação grupal de indivíduos.
Para Ribeiro (2010, p. 30), “designa-se por família o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar”.
Tanto o direito dos pais quanto os dos filhos estão ligados juridicamente. Um é o complemento do outro, não podendo, portanto ser divisível. Com o passar dos anos, o menor passou a ter direitos. Esses direitos estão resguardados através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), implantado pela Lei Federal nº 8.069 de 1990 em conformidade com o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e a Convenção dos Direitos das Crianças.
A partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as crianças brasileiras, sem distinção de raça, classe social ou qualquer outra forma de discriminação ou segregação, passaram de objetos a sujeitos de direitos, como por exemplo à saúde, o lazer, a educação, etc. Desta forma, a criança e o adolescente têm resguardados os seus direitos e assegurados a sua proteção na formulação de políticas públicas. Dentre os direitos, para fins desse estudo, encontra-se o afeto.
A afeição é o principal laço que liga os indivíduos, configurando o conceito atual de família, no entanto, os laços consaguíneos e de afinidade, também são fonte dessa formação familiar.
Em sua definição, entende-se o afeto como um conjunto de fenômenos psíquicos que são demonstrados por meio de emoções e sentimentos, seguidos por ações humanas que tencionam mostrar esses sentimentos (CEGALLA, 2015).
Vários estudos apontam a importância do afeto no desenvolvimento humano. E as práticas afetivas são ainda mais importantes nos primeiros anos, ou seja, na fase infantil. É notório observar, como mostram os estudos, que desde a infância, a autoestima é reforçada, por exemplo, pela afetividade, haja vista que uma criança que recebe afeto se desenvolve com muito mais segurança e determinação (REGINATTO, 2013).
Como bem descreve Pereira (2017) não se precisa de muitas ações para que o afeto seja efetivo numa criança. Dispondo de meros minutos com a criança, no banho, no colo ofertado diante de uma situação de medo, o elogio sincero e preciso, uma risada bem humorada numa situação tensa, são atitudes extremamentes importantes para que haja uma maior interação entre pais e filhos.
É assim, por meio de gestos cotidianos e aparentemente despretensiosos, que os pais podem colocar em prática um consenso firmado pela neurociência: “o afeto oferecido à criança nos seus primeiros anos de vida moldará sua personalidade e servirá como efeito protetor contra doenças como a ansiedade e a depressão” (PEREIRA, 2017, p. ,02).
Nota-se, portanto que o afeto se inicia dentro do núcleo familiar. A família representa a base de todo indivíduo e interfere consideravelmente no seu desenvolvimento, sendo que o afeto, é a principal característica que define o que seja uma família, ou seja, é o principal propagador desse desenvolvimento.
Segundo acentua Reginatto (2013, p. 03) “nada pode suprir ou substituir o amor e a atenção familiar. Um indivíduo pode até encontrar alternativas que amenizam a carência provocada pela ausência de uma família, mas certamente não a substituirá”.
A falta de afeto traz péssimas consequências não somente para o indivíduo, mas também para a sociedade. Sobre esse fato, cabe citar:
[...] Duas das mais importantes do mundo e mais ativas instituições a pesquisar o assunto são as universidades americanas de Harvard e de Yale. Vêm de pesquisas conduzidas nessas instituições constatações de que crianças privadas de afeto apresentam, entre outros prejuízos, alterações no funcionamento de áreas cerebrais associadas ao processamento das emoções. É a ausência do amor comprometendo a arquitetura cerebral (PEREIRA, 2017, p. 03).
Corroborando com o citado acima, Tiba (2012, p. 50) afirma que a desconsideração “emocional praticada por pais e cuidadores em relação às crianças deixa marcas nos circuitos neuronais e no futuro, essas cicatrizes podem contribuir para o surgimento de sérios distúrbios afetivos”.
Além dos efeitos na área cerebral, pode-se afirmar que crianças que não desfrutaram de vínculos afetivos sólidos terão maior tendência à agressividade e ao desenvolvimento de doenças psiquiátricas (depressão, por exemplo) e tendência a comportamentos agressivos e destrutivos (REGINATTO, 2013).
3.1 DO ABANDONO AFETIVO
A imagem que se tem de uma família é aquela composta pelos seus membros que são intimamente ligados pelo afeto recíproco. Sendo base, é na família que se encontra o amor, a solidariedade, o companheirismo, a ajuda, a afinidade e a fraternidade. São esses elementos que pressupõe o que seja uma família.
Entretanto, o que ocorre é que mesmo nesses núcleos, existem situações que corrompem o ideal de família. São situações extremas que ocorrem dentro do seio familiar causando a desordem e a desestruturação do grupo familiar. São atos praticados por um ou mais dos componentes do núcleo familiar que prejudica os outros membros desse mesmo núcleo.
Ocorre que a possibilidade de reparação civil no Direito de Família carrega em si uma série de questionamentos e divergências a respeito desse assunto. São muitos os autores que não acatam a ideia de se indenizar moralmente um membro de uma família assim como há outros que defendem o contrário.
De todo modo, encontra-se na responsabilidade civil a reparação por danos que afetem o indivíduo, ou em outra colocação, que afeta a esfera personalíssima da pessoa. Aqui não se fala em reparação pecuniária, nem comercialmente redutível a dinheiro.
Nesse sentido, cabe citar:
O dano extrapatrimonial, especificamente o dano moral, considerado in reipsa, independendo de comprovação, possui caracterização vasta na doutrina, importando ressaltar as mais comumente abordadas como a ideia de violação a direitos personalíssimos, a afronta à dignidade da pessoa humana, bem como a apuração de sensações e emoções negativas tais como a angústia, o sofrimento, a dor, a humilhação, sentimentos estes que não podem ser confundidos com o mero dissabor, aborrecimento, que fazem parte da normalidade do dia-a-dia (STERN, 2016, p. 13).
No tangente a falta de lei, cabe ilustrar que o Judiciário deve sempre conceder respostas a todas as ações que batem a sua porta. Nesse caso, cabe indagar: como ficaria a resposta jurisprudencial diante do caso de reparação dos danos sofridos na esfera familiar? Em resposta a essa questão, grande parte da doutrina e jurisprudência militam em prol da aplicação do art. 186 do Código Civil de 2002, in verbis:
Art. 186. Aquele, que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
(BRASIL, 2002)
Assim, “não sendo expressa a falta de disposição legal, esta não inviabiliza sua aplicação. Para que fosse inviabilizada seria necessário que não houvesse nenhuma previsão concernente ao dano moral no âmbito maior do direito civil” (SAMPAIO; RIBEIRO, 2018, p. 42).
Importante reforçar que “não se podem usar parâmetros de ressarcimento que levem em consideração o estado social ou econômico da pessoa lesada, e sim a gravidade e repercussão social causado pelo dano” (CORREIA, 2017, p. 37).
A doutrina tem se posicionado favorável à aplicação da responsabilidade civil no Direito de Família no que tange ao abandono afetivo pelos genitores. Também denominada de abandono paterno-filial ou teoria do desamor, tal aplicabilidade tem fundamento além do art. 186 supracitada no parágrafo anterior, no art. 3º, I da Constituição Federal de 1988 de maneira imediata a uma relação privada, resultando em eficácia horizontal (TARTUCE, 2017).
Sobre o posicionamento doutrinário, importante destacar as palavras de Pereira (2015, p. 401) nos dizendo que:
[...] o exercício da paternidade e da maternidade – e, por conseguinte, do estado de filiação – é um bem indisponível para o Direito de Família, cuja ausência propositada tem repercussões e consequências psíquicas sérias, diante das quais a ordem legal/constitucional deve amparo, inclusive, com imposição de sanções, sob pena de termos um Direito acéfalo e inexigível.
Insta salientar que além dos motivos impostos, tem-se como efeito do abandono afetivo o desrespeito à dignidade da pessoa humana. In casu, “afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele" (PEREIRA, 2015, p. 406).
No campo jurisprudencial, tem-se julgado essa situação com resultados diversos. De um lado encontram-se aqueles que não acatam a responsabilidade civil dos genitores que abandonem afetivamente seus filhos. Desse grupo, entende-se que a justiça não pode obrigar um pai ou uma mãe a amar seu filho (s).
Apesar desses posicionamentos, é majoritário o entendimento da doutrina e da jurisprudência sobre a possibilidade de aplicabilidade da responsabilidade civil dos genitores derivada de abandono afetivo aos filhos. Na primeira ação judicial do Brasil que reconheceu a indenização extrapatrimonial por abandono filial, encontrou-se a condenação de um pai ao pagamento de indenização de 200 (duzentos) salários mínimos a título de danos morais ao filho, devido a sua não convivência com o mesmo.[2]
A partir dessa última decisão citada, outras vieram com o mesmo entendimento: na ausência de afeto e de abandono ao filho, os genitores serão responsabilizados civilmente pelos danos causados.
4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA TEMÁTICA
Para melhor entendimento sobre a discussão aqui proposta, é importante contextualizar o cenário ao qual se debate o abandono afetivo. No caso em destaque, discute-se essa situação tendo como base o cenário atual situado por meio da pandemia provocada pela Covid-19. Sendo assim, nesse tópico será apresentado as principais informações sobre essa doença, para posteriormente relacioná-la ao tema central.
A Covid-19 é uma infecção respiratória aguda surgida através do coronavírus SARS-CoV-2. Contém alta taxa de transmissão entre humanos e é uma doença de nível grave. O seu surgimento se deu na cidade Wuhan, província de Hubei, na China em dezembro de 2019, onde fora encontrado em amostras de lavado bronco alveolar conseguidas de pacientes com pneumonia. Pertence ao subgênero Sarbecovírus da família Coronaviridae (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2021).
Produz sintomas semelhantes aos da gripe, febre, tosse, dispneia, mialgia efadiga. Perda repentina também foi observada cheiro e sabor (sem muco sendoa causa). Em casos graves, é caracterizado produzir pneumonia, síndrome de angústia respiratório agudo, sepse e choque séptico que leva cerca de 3% dos infectados ao morte, embora a taxa de mortalidade seja. Está em 4,48% e continua subindo (PEREZ et al., 2020).
O impacto social é o que mais tem sido afetado, uma vez que milhares de cidadãos vem morrendo diariamente em decorrência da Covid-19. Por esse fato, é possível verificar um cenário de calamidade nos centros de saúde, onde se observa hospitais lotados, poucos equipamentos disponíveis, dentre outros problemas. A vacinação nesse âmbito tem sido uma alternativa mais viável para a prevenção da doença (MEDEIROS, 2020).
O impacto da Covid-19 também afetou a rotina diária da sociedade. Nos dias atuais, o que é normal é o uso constante de máscara, a aplicação de álcool em gel, o isolamento e distanciamento entre indivíduos, dentre outras mudanças (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2021).
Através das presentes buscas é notório ressaltar-se que não se pode afirmar a exatidão do índice de mortalidade (óbitos) de vítimas da COVID-19, em razão da constante propagação e agravamentos que variam de caso a caso.
Diante desse cenário, a presente doença - que tem como principal medida preventiva o isolamento e distanciamento social - tem afetado sobremaneira as relações familiares, dentre os quais emerge o abandono afetivo feito por um ou por ambos os genitores. A respeito dos efeitos dessa ação, apresenta-se o tópico seguinte.
5. DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
Para se falar de abandono afetivo é preciso entender que no Direito Civil existe o direito de convivência que se encontra normatizado pelo art. 1.589. Tal regra constitui um princípio importante para o Direito de Família, uma vez que consagra o direito à convivência, a companhia, as visitas, a aproximidade estável e próxima dos genitores e seus filhos (BRASIL, 2002).
Esse artigo é um importante aliado à afetividade nas relações familiares, porque traz em seu bojo o entendimento de que os pais devem estar próximos de seus filhos, exercendo assim, na prática, o laço afetivo com a sua prole (VÍTOR, 2021).
Ocorre que quando há configurado um distanciamento ou total ausência de afeto dos pais com seus filhos, surge para o direito civil o instituto da reparação. Isso se dá porque entende-se que o afeto é o principal elo que liga os indivíduos, o que também corresponde a formalização de uma família, conforme já expressado anteriormente.
Imperioso destacar que a reparação civil por abandono afetivo já é uma realidade no meio jurídico brasileiro. Alguns julgados em décadas recentes tem estabelecido que o negligenciamento dos pais em relação ao afeto para seus filhos configura uma dano tão impactante e profundo, que há a possibilidade de repará-lo judicialmente (PEREIRA, 2017).
Como já mostrado em tópicos anteriores, no Brasil já existe a possibilidade de reparação civil em casos de abandono afetivo. Ocorre que essa ação ficou ainda mais evidente com o surgimento da Covid-19 que “obrigou” pais e filhos a manterem um distanciamento, em razão da expansão do contágio da presente doença.
São inúmeros os casos onde se configura filhos de pais separados. O que antes era comum ter em certa medida uma convivência compartilhada entre os genitores, no período pandêmico, muitos pais ou mães tiveram que se ausentar presencialmente do convívio de seus filhos.
Uma vez estabelecido esse cenário, também notou-se que muitos genitores aproveitaram a obrigatoriedade de afastamento social para não mais dispor do afeto com seus filhos, ou seja, os abandonou. Essa atitude tem sido corriqueira no presente momento, o que torna essa situação um facilitador ou uma ‘desculpa’ para justificar a ausência.
No Judiciário ficou a indagação de como lidar com a questão do isolamento social sem que isso afete a convivência familiar, principalmente em famílias onde os genitores moram em domicílios diferentes. Na busca por soluções, no campo legislativo adentrou a Recomendação emitida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), ao qual traz em seu texto as orientações para a proteção integral a crianças e adolescentes no período de pandemia; a saber:
18. Que crianças e adolescentes filhos de casais com guarda compartilhada ou unilateral não tenham sua saúde e a saúde da coletividade submetidas à risco em decorrência do cumprimento de visitas ou período de convivência previstos no acordo estabelecido entre seus pais ou definido judicialmente. Para tanto, devem ser observadas as seguintes orientações:
a. As visitas e os períodos de convivência devem, preferencialmente, ser substituídos por meios de comunicação telefônica ou on-line, permitindo que a convivência seja mantida;
b. O responsável que permanece com a criança deve manter o outro informado com regularidade e não impedir a comunicação entre a criança ou adolescente com o outro responsável;
c. Em casos que se opte pela permissão de visitas ou períodos de convivência, responsáveis que tenham voltado de viagem ou sido expostos à situações de risco de contágio devem respeitar o período de isolamento de 15 dias antes que o contato com a criança ou o adolescente seja realizado;
d. O deslocamento da criança ou do adolescente deve ser evitado;
e. No caso de acordada a visita ou permissão para o período de convivência, todas as recomendações de órgãos oficiais devem ser seguidas;
f. O judiciário, a família e o responsáveis devem se atentar, ao tomarem decisões relativas à permissão de visitas ou períodos de convivência, ao melhor interesse da criança e do adolescente, incluindo seu direito à saúde e à vida, e à saúde da coletividade como um todo.
(BRASIL, 2020)
Apesar de possuir uma boa intenção, essa orientação normativa não gerou o efeito esperado, uma vez que diversas interpretações fora emitidas. Ao discorrer sobre essa questão, Silva (et al. 2021) explica que essa recomendação não representa uma lei ou uma norma limitadora, mas sim, uma sugestão para que famílias possam superar esses problemas de modo a não prejudicar seus filhos.
No campo jurisprudencial, os Tribunais já se posicionaram de diversas formas, como por exemplo, em autorizar a suspensão de convivência familiar quando configurado um risco para a saúde do filho. Nesse caso, o genitor deverá manter o distanciamento em um período estabelecido, até que se volte a normalidade e o risco seja sanado.
Essa situação mesmo que justificável, gera outros problemas. Além do abandono afetivo, há a possibilidade de surgir a alienação parental, onde o genitor responsável direto pela criança aproveita da prerrogativa do afastamento do outro genitor para praticar atos que o desabone, afastando seu filho do mesmo.
Silva (et al. 2021) entendem que não se deve em hipótese alguma sanar qualquer direito da criança e do adolescente em ter convivência familiar, exceto em casos onde há uma justificativa plausível, como o ocorrido na pandemia. Mas ainda assim, defendem os autores, não há e nunca deverá haver espaço e justificativa para qualquer tipo de alienação parental.
Justamente para evitar o abandono afetivo e até mesmo a prática de alienação parental é que os Tribunais brasileiros tem flexibilizado a convivência familiar no contexto aqui analisado. Em determinadas decisões, há o entendimento de que a pandemia provocada pela Covid-19 não pode sobrepor aos direitos dos pais em ter a convivência familiar com seus filhos.
Nessa situação, o que pode (e deve) ser feito é uma adaptação temporária, de acordo com o caso apresentado. Algumas sugestões para driblar a ausência de um dos genitores tem sido divulgadas pelos órgãos públicos e pela mídia.
Tem-se como exemplo, a família pode aplicar após o período de pandemia, uma nova readaptação das férias, com a criança estando em períodos mais extensos, geralmente 15 dias com cada um dos genitores, o que diminuiria o deslocamento (DORIA, 2020).
Soma-se a isso o uso da tecnologia. In casu, pode ser utilizada toda a tecnologia disponível para que a distância física seja reduzida. O uso da internet, de Smarthones e computadores podem ser utilizadas pelas partes a fim de manter o contato (PEREIRA, 2020).
Cabe mencionar que a questão de guarda dos menores adentra nesse cenário como forma de garantir que a pandemia não afete de modo significativo a relação estabelecida judicialmente. No entanto, frente a excepcionalidade da situação aqui analisada, a questão de guarda pode ser alterada, conforme expressa o seguinte julgado:
RECURSO DE APELAÇÃO. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. GUARDA COMPARTILHADA. LAR DE REFERÊNCIA. GENITOR. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. POSSIBILIDADE DE MODIFICAÇÃO POSTERIOR. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. [...] 4. A excepcionalidade da situação de pandemia atualmente vivenciada acarreta a necessidade de maior cuidado com mudanças abruptas na rotina e referência da criança, haja vista a possibilidade de modificação do panorama fático com o retorno à normalidade. 5. As decisões que tratam de guarda e a estipulação de visitas não possuem a qualidade da inalterabilidade de seus julgamentos, mas, ao contrário, podem ser revistas a qualquer tempo, desde que modificadas as situações de fato (artigo 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente). 6. Recurso conhecido e não provido. (TJDFT Processo nº 07501809520198070016 - (0750180-95.2019.8.07.0016 - Res. 65 CNJ) - Segredo de Justiça. 8º Turma Cível. Relator: Eustáquio de Castro. Data de Julgamento: 07/07/2021. Publicado no PJe: 08/07/2021).
Pela decisão judicial acima, fica nítido observar que independente do tipo de guarda firmada judicialmente (unilateral ou compartilhada), no período de pandemia, essa situação pode ser revisada e alterada, sempre observando o melhor interesse da criança. No entanto, ela não é definitiva, podendo ser revista a qualqeur tempo, desde que extinta a situação geradora da decisão, vide o texto do art. 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Diante do exposto, o que se entende é que o abandono afetivo praticado pelos genitores resulta em dano irreparável e que de fato prejudica moralmente e materialmente os seus filhos, sendo plenamente cabível a responsabilidade civil dos pais. Não há porque a jurisprudência negar esse direito, uma vez que o afeto é fundamental para a caracterização da família e mais ainda importante para o desenvolvimento do indivíduo, o qual sem esse instrumento pode-se fatalmente influenciar na sua construção como cidadão civil.
Desse modo, fica claro constatar que durante o período de pandemia, a responsabilidade civil dos genitores frente ao abandono afetivo é mister necessária, fazendo com que mesmo que uma família se divida territorialmente ou estruturalmente, o afeto deva continuar intacto.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No mundo jurídico a família possui enorme importância, protegida por leis e atos normativos. Assim como é fundamental o apoio financeiro e alimentar de pais com os filhos o afeto também o é. Isso se dá porque a família para a legislação brasileira, além de outros atributos, é constituída pelo afeto. Por conta disso, o afeto se torna essencial para a formação e manutenção de uma família.
Ocorre que em alguns casos há o abandono afetivo por parte dos genitores em relação aos seus filhos, ou vice-versa. Isso causa consequências sérias não apenas a eles, mas também ao mundo jurídico.
Frente a esse cenário, no decorrer desse estudo, ficou claro que o abandono afetivo traz uma série de consequências aos membros familiares; efeitos estes que são sentidos ao longo de toda uma vida e de difícil reparação. Aqueles que são efetivamente abandonados, em muitos casos não conseguem ter uma vida plena e digna, principalmente quando o abandono ocorre ainda nos primeiros anos de vida. Discutir os efeitos e a sua reparação do abandono efetivo, se torna assim fundamental para a área jurídica.
Soma-se a isso, o fato de que a pandemia provocada pela Covid-19 que se instalou no mundo em meados do fim de 2019 trouxe um enorme impacto não apenas na área da saúde, mas também na área familiar. Como o isolamento e distanciamento social é uma das mais importantes medidas para a expansão da doença, muitos membros familiares se “aproveitaram” dessa brecha para abandonar seus entes. Essa ruptura trouxe situações de total ausência de responsabilidade familiar e solidariedade ao próximo, além de ferir a dignidade humana.
No caso de medidas de prevenção a essa situação, a posicionamentos doutrinários que entendem que o melhor caminho a ser percorrido é a adaptação dessa situação, com o auxílio das redes sociais e meios diversos de comunicação nesse período. O genitor ou genitora afastado pode ainda manter contato por meio de conversas online, possibilitando o acompanhamento dos filhos.
A doutrina tem se posicionado favorável à aplicação da responsabilidade civil no Direito de Família no que tange ao abandono afetivo pelos genitores. Também denominada de abandono paterno-filial ou teoria do desamor, tal aplicabilidade tem fundamento além do art. 186 supracitada no tópico anterior, no art. 3º, I da Constituição Federal de 1988 de maneira imediata a uma relação privada, resultando em eficácia horizontal.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2015.
CORREIA, Eveline de Castro. A Alienação Parental e o Dano Moral nas relações de família. Artigo apresentado à Universidade Fortaleza. Fortaleza-CE, 2017.
DORIA, Isabel I. Z. Guarda compartilhada em tempos de pandemia de COVID-19. 2020. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1397/Guarda+compartilhada+em+tempos+de+pandemia+de+COVID-19>. Acesso em: 07 fev. 2022.
MEDEIROS, Daniel. Coronavírus: impactos históricos e sociais provocados pela pandemia da COVID-19. 2020. Disponível em: <https://saudedebate.com.br/noticias/coronavirusimpactoshistoricosesociaisprovocados-pela-pandemia-da-covid-19>. Acesso em: 08 fev. 2022.
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[1] Advogado e Docente do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: [email protected]
[2] TJMG - Apelação Cível 2.0000.00.408550-5/000, Relator (a): Des.(a) Unias Silva, Relator (a) para o acórdão: Des.(a), julgamento em 01/04/2004, publicação da súmula em 29/04/2004.
BBacharel em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Mylla Duarte do. O abandono afetivo em período de pandemia no Brasil: reflexos jurídicos e sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2022, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58213/o-abandono-afetivo-em-perodo-de-pandemia-no-brasil-reflexos-jurdicos-e-sociais. Acesso em: 23 dez 2024.
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