Resumo A cessão de crédito, que encontra assento no art. 286 e seguintes do Código Civil, é instituto através do qual o credor cede a terceiro o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor. Se no âmbito das relações civis a possibilidade da cessão de crédito é indiscutível, sendo restrita apenas nas hipóteses previstas expressamente pelo legislador, no que tange aos créditos trabalhistas a questão jurídica da possibilidade deles mesmos serem objeto de cessão é tema que tem sido discutido contemporaneamente pela doutrina e pela jurisprudência, considerando a ausência de previsão legal específica, a natureza alimentar dos mesmos e a proteção do trabalhador. Ainda que se admita essa possibilidade de cessão de créditos trabalhistas, outra questão subjacente a ser analisada diz respeito à competência da Justiça do Trabalho para a discussão sobre o crédito, que a questão passaria a ser discutida entre ex-empregador e um terceiro, alheio à relação de emprego. O objetivo do presente artigo é analisar a questão jurídica posta e concluir sobre a possibilidade de os créditos trabalhistas serem objeto de cessão
Palavras-chave Cessão de crédito; Relação de emprego; Natureza alimentar; Proteção do trabalhador; competência da Justiça do Trabalho.
Sumário 1. Cessão de crédito – instituto de natureza civil; 2. Crédito trabalhista – natureza alimentar; 3. Competência da Justiça do Trabalho; 4. Cessão de crédito trabalhista – outras questões; 5. Conclusão.
1.Cessão de crédito – instituto de natureza civil
Como uma das espécies de transmissão de obrigações, a cessão de crédito, prevista nos artigos 286 a 298 do Código Civil é o negócio jurídico através do qual o credor de uma obrigação (cedente), transfere a um terceiro (cessionário), sua posição ativa na relação obrigacional. A cessão de crédito é possível se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção entre o devedor, e, não havendo qualquer desses impedimentos, independe da autorização do devedor (cedido).
Fabrício Zamprogna Matiello conceitua cessão de crédito como sendo “a transferência que faz o credor (cedente), a outrem (cessionário), de seus direitos creditórios em determinada relação obrigacional, no todo ou em parte. Tal transmissão, que pode ser onerosa ou gratuita, independe do assentimento do devedor (cedido) e o mantém atrelado ao dever jurídico, observada, porém, a alteração subjetiva no polo ativo da obrigação.”
A cessão de crédito pode se dar de forma gratuita ou de forma onerosa, sendo negócio jurídico que não exige qualquer forma especial para que tenha validade jurídica entre as partes.
No âmbito das relações civis, inclusive em decorrência da expressa previsão legal, a utilização da cessão de crédito como uma das formas de transmissão de obrigações é bastante utilizada, inclusive em relação a créditos obtidos em decorrência de processos judiciais.
No entanto, no âmbito trabalhista, como se verá nos itens a seguir, a aplicabilidade e a validade da cessão de créditos do trabalhador, em especial os obtidos em reclamações trabalhistas, não é tema pacífico e, exatamente por isso, o presente artigo pretende discutir a questão.
Antes de adentrarmos à análise específica, porém, e como forma, inclusive, de trazer elementos para a fundamentação do raciocínio a ser desenvolvido a respeito, é importante citar que a doutrina civilista aponta e analisa as hipóteses de restrição à validade da cessão de crédito, entre as quais estão situações que, aparentemente, levam à conclusão de não ser possível a cessão de crédito trabalhista.
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves afirma que não podem ser objeto de cessão, entre outros, os créditos referentes aos vencimentos de funcionários ou os créditos por salários. Ora, se os créditos salariais não podem ser objeto de cessão, considerando que os créditos trabalhistas obtidos em ações trabalhistas têm origem e são calculados a partir do salário, e têm natureza alimentar, como admitir sua cessão?
Flávio Tartuce aponta que não é possível ceder o crédito decorrente da obrigação de alimentos (art. 1.707, CC). Ora, considerando que o crédito trabalhista tem natureza alimentar, a questão que se coloca, mais uma vez, é como admitir sua cessão?
2.Crédito trabalhista – natureza alimentar
Os créditos trabalhistas são dotados de natureza alimentar, constituindo fonte de subsistência e necessidades básicas vitais do trabalhador e de sua família. São créditos, portanto, com destinação específica fundada na dignidade humana.
Exatamente por isso o ordenamento jurídico brasileiro reveste o crédito trabalhista de uma série de proteções, seja no curso da relação de emprego, seja quando o mesmo esteja sendo discutido no âmbito de processo trabalhista ajuizado pelo trabalhador em face de seu empregador.
No entanto, a realidade dos processos trabalhistas em trâmite na Justiça do Trabalho leva a diversos questionamentos sobre a prevalência dessa proteção do crédito de natureza alimentar, mesmo em situações em que a demora do trâmite processual pode levar o trabalhador a situação de necessidade, sem que essa natureza alimentar do crédito possa lhe assegurar a dignidade de prover o seu sustento e o de sua família.
A demora do Judiciário em entregar de forma rápida e efetiva o resultado da demanda judicial distribuída pelo trabalhador é realidade que não se pode negar. Segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho, o tempo médio entre o ajuizamento de uma ação e o seu encerramento, no próprio Tribunal Superior - em 2019 - era de 1 ano, 5 meses e 26 dias; nos Tribunais Regionais do Trabalho, 10 meses e 7 dias, e, nas Varas do Trabalho, de 7 meses e 28 dias na fase de conhecimento e de 4 anos, 2 meses e 23 dias na fase de execução.
Ou seja, a lentidão do Judiciário Trabalhista é fator determinante para que cessão de créditos trabalhistas seja vista como uma alternativa, juridicamente fundamentada e que dá garantia à natureza alimentar do crédito, já que é um meio de antecipar o pagamento ao reclamante da verba que já lhe foi constituída por decisão judicial, mas que por fatores diversos acabará sendo disponibilizada somente após longos períodos de tramitação processual.
Portanto, é nítido que o interesse dos reclamantes na venda do crédito judicial é enorme, ainda mais com a possibilidade de recebimento dos valores em tempo muito menor, se desvencilhando do próprio risco do processo, que passa a ser da empresa cessionária e não mais do reclamante cedente.
Não existe, em nosso entender, qualquer óbice para que o empregado ceda a um terceiro interessado o seu crédito reconhecido por sentença transita em julgado, legitimando, assim, o cessionário a promover a execução ou nela prosseguir, conforme o caso.
Segundo consta do Relatório Geral da Justiça do Trabalho publicado pelo TST relativo ao ano de 2019 (https://www.tst.jus.br/web/estatistica/jt/relatorio-geral), foram pagos aos reclamantes cerca de R$ 30.726.528.090,17, sendo que este valor é 1,2% superior ao de 2018, e traduz 47,0% de acordos judiciais e 40,8% decorrentes de execução de sentença.
Já o número de demandas processuais distribuídas em comparação ao ano de 2018, aumentou 5,4%; somando, ao final de 2019, 3.056.463 casos novos, que representa que a cada 100.000 habitantes do País, 1.454 pessoas ingressaram com pelo menos uma ação ou recurso na Justiça do Trabalho.
Se o número de ações trabalhistas é bastante grande, a maior demora da Justiça do Trabalho na solução dos casos parece uma conclusão lógica, demonstrada, inclusive, pelas estatísticas de tempo médio de duração do processo realizadas pelo Tribunal Superior do Trabalho. Se os valores envolvidos nas ações trabalhista são bastante elevados, também parece óbvio que o tempo de demora na tramitação dos processos até que se dê a efetiva satisfação do crédito faz com que a natureza alimentar do mesmo perca a sua força.
Assim, a cessão de créditos trabalhistas é, repita-se, solução juridicamente fundamentada que pode solucionar essa equação jurídica vivenciada diariamente no âmbito da Justiça do Trabalho.
No entanto, os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais contrários à cessão de créditos trabalhistas sustentam que a natureza alimentar do crédito é sim atingida à medida que a cessão se dá sempre de forma onerosa, ou seja, o cessionário “compra” o crédito com deságio, implicando em perda, pelo trabalhador, de parte do seu crédito.
Outro fundamento apresentado por quem entende não ser possível a cessão de créditos trabalhistas é a alteração da redação do art. 878 da CLT dada pela Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista): A legitimidade ativa atribuída pela CLT para iniciar a execução, antes da Reforma Trabalhista, era atribuída a “qualquer interessado” (redação anterior do art. 878); contudo, após a Reforma, o art. 878 limita às partes a promoção da execução.
Esse segundo argumento não nos parece impeditivo ao reconhecimento da possibilidade e validade da cessão de créditos trabalhistas, tendo em vista que o art. 567 do CPC, a nosso ver aplicável ao processo do trabalho, até porque a Instrução Normativa TST n. 39/2016, que dispõe, de forma não exaustiva, sobre as normas do Código de Processo Civil (CPC) de 2015 aplicáveis e inaplicáveis ao Processo do Trabalho, não indica esse dispositivo legal como sendo inaplicável, prevê que podem também promover a execução, ou nela prosseguir: (...) II – o cessionário, quando o direito resultante do título executivo lhe foi transferido por ato entre vivos.
Assim, a cessão de créditos trabalhistas é, desde há muito, acompanhada e vista com certa desconfiança pela Justiça do Trabalho em razão da caracterização da natureza alimentar do crédito trabalhista, que, em tese, não poderia ser objeto de cessão por meio de contrato civil, sob pena de desvirtuamento do conceito assistencialista que as verbas trabalhistas possuem em relação ao trabalhador.
3. Competência da Justiça do Trabalho
Outro aspecto que amplia a discussão sobre a cessão de créditos trabalhistas é o da competência da Justiça do Trabalho para continuar processando a ação após a assinatura do contrato de cessão do crédito, já que o novo titular da ação deixa de ser o trabalhador e passa a ser o terceiro (empresa cessionária), que tem objetivos e interesses diretamente ligados ao retorno financeiro daquele processo, e não mais no direito ali tutelado.
A questão não é simples, até porque o art. 114 da Constituição Federal define a competência da Justiça do Trabalho a partir da relação jurídica base (relação de trabalho, e não relação de natureza civil, entre as partes da cessão de crédito: cedente, cedido e cessionário).
As interpretações sobre a matéria são diversas nos Tribunais Trabalhistas e trazem relevantes contradições que carecem de pacificação pelos Tribunais Superiores.
O Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, por exemplo, entendeu que (...) “por se tratar a cessão de crédito de negócio particular, firmado extrajudicialmente, com terceiro estranho ao contrato de trabalho, o crédito cedido pelo trabalhador a terceiro perde sua natureza alimentar e, com ela, a própria natureza de crédito trabalhista propriamente dito, o que afasta a competência desta Especializada para a sua execução. De fato, a teor do disposto no art. 114, inciso I, da CF/1988, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho. E, no caso do crédito cedido pelo trabalhador a terceiro, este deixa de ser diretamente decorrente do contrato de trabalho, passando a se tratar de crédito oriundo de contrato particular de cessão de crédito, firmado entre o trabalhador e terceiro estranho à lide, o que afasta a competência desta Especializada para dar continuidade à execução, atraindo a competência da Justiça Comum.”[1]
No entanto, o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento n sentido de que a cessão de créditos constituído por meio de precatório, não altera a natureza jurídica do crédito – não perdendo, por exemplo, a sua condição de crédito alimentar e a sua preferência em relação a outros créditos (STF. Plenário. RE 631537, Rel. Marco Aurélio, julgado em 22/05/2020 [Repercussão Geral – Tema 361]).
Assim, inobstante os Tribunais Trabalhistas venham adotando entendimento mais restritivo sobre a cessão de créditos dos reclamantes, sob o fundamento da natureza alimentar dos mesmos e por implicar a cessão em deslocamento da competência material para o processamento e julgamento do processo, o fato é que o Supremo Tribunal Federal entende não haver afetação à natureza do crédito e, consequentemente, não há que se falar em incompetência da Justiça do Trabalho.
4. Cessão de crédito trabalhista – outras questões
Além dos questionamentos jurídicos acima apontados em relação à cessão de créditos trabalhistas, outras questões são objeto de discussão sobre o tema.
O TST recebeu em meados de 2017, informações das Centrais de Conciliação da Justiça do Trabalho, dando conta de que a cessão de crédito pelos reclamantes estaria inviabilizando a negociação de acordos judiciais em razão do detentor do direito já não mais ter interesse na causa, e o comprador do crédito só visar o valor que receberá ao final da ação.
À época dessa comunicação, o Ministro Emmanoel Pereira, que atuava como Vice-Presidente da Corte e era coordenador da Comissão Nacional de Promoção à Conciliação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, encaminhou consulta à OAB questionando se o advogado precisaria avisar o juiz sobre o contrato de compra e venda de créditos trabalhistas, já que “esse fato vinha comprometendo sobremaneira a efetividade das audiências de conciliação”.
Em reposta ao ofício do TST, o Órgão Especial do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), ratificou o entendimento de que a compra de créditos trabalhistas pelo advogado da causa, constitui prática antiética no seio da advocacia, sendo moralmente condenável ao permitir a sobreposição dos interesses do profissional aos do cliente, implicando em infração ética.
O próprio Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP (deontológico) já havia enfrentando a questão de cessão de precatórios estaduais, decidindo que a compra de créditos pelo advogado da causa ofenderia o artigo 5º do Código de Ética da Advocacia, segundo o qual “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização” (E-4.030/2011 - https://www.oabsp.org.br/tribunal-de-etica-e-disciplina/pareceres/e-4-030-2011).
Ou seja, para o CFOAB e TED-SP, “é indiscutível que a compra de créditos resulta a certeza de que o advogado – conhecedor da condição econômica ou financeira de seu constituinte – se encontra em situação privilegiada, passando a figurar não como operador do direito, mas, à margem da relação processual da qual participa, como comerciante de ativos”.
Contudo, e quando quem compra o crédito está fora da relação processual? O entendimento seria o mesmo?
Para o mesmo TED de São Paulo, onde está a maioria dos advogados do Brasil e onde estão instalados os dois maiores Tribunais Trabalhistas do país a resposta é não. Segundo a Turma julgadora da questão, a cessão de créditos trabalhistas só pode ser feita à pessoas ou empresas de fora da relação processual da causa e em processos em fase de execução com valores já definidos judicialmente (E-4.498/2015 - https://www.oabsp.org.br/tribunal-de-etica-e-disciplina/ementario/2015/E-.498.2015).
Portanto, admitindo-se a cessão de crédito na Justiça do Trabalho, o entendimento que se deve adotar é no sentido de que a negociação só é válida se envolver pessoas ou empresas de fora da relação processual e desde que o processo já esteja em fase de execução de sentença.
Outra questão, porém, ainda merece análise sobre o tema, partindo-se do conceito de cessão de crédito, que é o negócio jurídico através do qual o credor, denominado cedente, transfere a um terceiro, denominado cessionário, seus direitos e créditos em uma determinada relação obrigacional (contrato de cessão).
Veja-se que o artigo 288 do Código Civil de 2002, preceitua que para que a cessão seja oponível a terceiro, a sua celebração deve ser feita por instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades previstas no artigo 654, §1º do Código Civil.
Portanto, em regra, toda e qualquer obrigação pode ser objeto de cessão, porém, o art. 286 do CC/02, elenca três hipóteses excepcionais em que a cessão não será permitida: i) Se a natureza da obrigação for incompatível com a cessão; ii) Se houver vedação legal; iii) Se houver cláusula contratual proibitiva, fixada pela vontade das partes contratantes.
E é justamente sobre o item “i “, que está o grande problema envolvendo a cessão de créditos trabalhistas: a possibilidade de consideração do crédito trabalhista como de natureza de obrigação incompatível com a cessão.
Muitos estudiosos defendem que o crédito trabalhista não pode ser objeto de cessão pois essa prática desvirtuaria os mecanismos criados pelo legislador para a proteção dos direitos trabalhistas - em especial, a proteção ao salário -, que é dotado de natureza alimentar e indisponível, como já ressaltado e analisado acima.
Sobre essa proteção, Maurício Godinho Delgado registrou em sua obra que “esse articulado sistema de proteções justifica-se socialmente. As verbas salariais, na qualidade de contraprestação principal paga pelo empregador ao obreiro no contexto da relação de emprego, atendem a necessidades essenciais do trabalhador, como ser individual e ser social, respondendo, em substantiva medida, por sua própria sobrevivência e de sua família. (...) Do ponto de vista jurídico, esse articulado sistema de proteção também claramente se justifica. É que a ordem jurídica reconhece no salário um caráter essencialmente alimentar, deferindo, em consequência, à parcela o mais notável universo de proteções que pode formular em contraponto com outros direitos e créditos existentes”.
Ocorre, porém, que a aplicação literal dessa rede de proteção em prol do trabalhador, sem se observar outros fatores determinantes para a satisfação do seu interesse processual e material, acaba por criar outro mecanismo desqualificador da vontade do titular daquele direito, o tratando como agente incapaz de decidir – ainda que representado por advogado -, o destino daquela verba reconhecida judicialmente e que é de sua plena titularidade.
Veja-se que essa ideia de incapacidade do trabalhador conferida pela rede de proteção que lhe é garantida pela Justiça do Trabalho, faz perder de vista direitos tão importantes quanto a própria tutela conferida pelo estado, qual seja, leva à perda da liberdade e autonomia de sua vontade como sujeito dotado de personalidade própria. Seria como se o estado agisse como tutor daquele que não necessita mais ser tutelado.
Carlos Alberto Mota Pinto também registra que “o negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade, subjacente a todo o direito privado. A autonomia da vontade ou autonomia privada consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica. Significa tal princípio que os particulares podem, no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas. Esta ordenação das suas relações jurídicas, este autogoverno da sua esfera jurídica, manifesta-se, desde logo, na realização de negócios jurídicos, de actos pelos quais os particulares ditam a regulamentação das suas relações, constituindo-as, modificando-as, extinguindo-as e determinando o seu conteúdo”.
Para que fique claro, não se advoga aqui a desnecessidade de intervenção do Estado na relação empregado-empregador cuja atuação certamente equilibra as forças exercidas por ambas as partes. Obviamente o Estado tem um papel importantíssimo de suprir eventual posição de vulnerabilidade do empregado diante de qualquer situação em que estiver sendo confrontado de forma desmedida pelo outro lado da relação jurídica. Porém, esse papel não pode ser tamanho ao ponto de interferir sobremaneira na própria vontade do trabalhador, deixando de preservar a sua autonomia privada em relação àquele direito que já lhe foi reconhecido judicialmente, sob pena desta atuação do estado caracterizar-se como sendo totalitária e não humanitária.
Sérgio Pinto Martins, registrou em uma de suas obras que “vedada seria a cessão de situações pessoais, como a estabilidade, pois diz respeito apenas à pessoa do trabalhador”, fato, este, que não ocorre com a mera cessão do crédito constituído judicialmente em favor do trabalhador ao terceiro interessado na compra do crédito.
Para Vólia Bomfim, é possível a cessão de crédito pelo trabalhador, porém, desde que seja feita na fase de execução, registrando que “só será válida com a expressa concordância do ex-empregado exequente e desde que homologada pelo juiz”.
Ou seja, a cessão seria possível somente na fase de execução, quando o crédito já está constituído, e não na fase de mérito onde as discussões para constituição do direito e, consequentemente, do crédito, ainda estão em curso e dependem da atuação isenta das partes para a entrega da tutela jurisdicional.
Veja-se que a referida doutrinadora também segue a tendência de outros juristas e do próprio Superior Tribunal de Justiça (em contraponto ao entendimento do STF sobre precatórios) de que “a cessão de crédito trabalhista perde a condição de crédito privilegiado, de acordo com o art. 83 VII §4º da lei 11.101/05, pois passa a ser considerado como crédito quirografário.”
Nesse aspecto, percebe-se que embora a questão esteja longe de ser pacificada na Justiça do Trabalho, ao menos em parte a doutrina entende que a cessão de crédito trabalhista é ato legal e plenamente possível, inclusive, sob o argumento de que o antigo artigo 100 da Consolidação de Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho - que proibia a cessão de crédito trabalhista -, não foi reproduzido nas consolidações posteriores, o que permitiria a interpretação de que a ausência normativa de impedimento da cessão creditória indicaria a autorização para a plena efetivação perante a Justiça Laboral.
5. Conclusão
É de se concluir que embora parte da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais Trabalhistas ainda veja problemas na cessão de crédito trabalhista, a tendência é que a referida prática efetivamente possa se mostrar como uma solução para a resolução de milhares de processos que se arrastam por anos perante a Justiça do Trabalho.
Assim, a demora na resolução de ações judiciais pode ser prejudicial ao trabalhador, que muitas vezes não consegue nem mesmo gozar do benefício obtido judicialmente em razão dos anos aguardando a solução do processo. Assim, a cessão de créditos, ocorrida no processo e, portanto, sob o crivo do Poder Judiciário, retira a posição de vulnerabilidade do empregado, agindo como solução para a demora na prestação jurisdicional almejada.
Portanto, se este mercado efetivamente vingar e começar a crescer nas proporções que se vem desenhando nos últimos anos, juízes, tribunais e demais agentes atuantes na Justiça Especializada do Trabalho deverão se acostumar com o respeito à autonomia privada e vontade de quem cede o crédito (reclamante), não se esquecendo obviamente dos princípios basilares do Direito do Trabalho, especialmente aqueles da proteção, inalterabilidade e irrenunciabilidade de direitos trabalhistas, trazendo segurança jurídica para os interessados nesta modalidade comercial, agindo para a pacificação da tendência jurisprudencial sobre a matéria.
Reconhecida como válida e eficaz, havendo a cessão do crédito trabalhista, evidentemente ocorre a transferência a outrem da qualidade de credor, passando a ser o cessionário detentor do direito respectivo. Trata-se de alteração subjetiva da obrigação: o credor passa a ser o cessionário, sendo que a ele é que o devedor deve pagar, e não mais ao reclamante, que já recebeu antecipadamente quando da celebração do negócio jurídico em que cedeu seu crédito.[2]
BIBLIOGRAFIA
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Mestrando em Direito do Trabalho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela mesma instituição. Advogado responsável pela área contenciosa Cível e Trabalhista de escritório full service em São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIA, Marcos D´Angelo. Cessão de créditos trabalhistas – análise jurídica frente à natureza alimentar do crédito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2022, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58217/cesso-de-crditos-trabalhistas-anlise-jurdica-frente-natureza-alimentar-do-crdito. Acesso em: 23 dez 2024.
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