RESUMO: O estudo busca identificar os fundamentos da capacidade contributiva, partindo da solidariedade e da justiça fiscal, agregando também o ideal de igualdade tributária como pilar de sustentação da utilização da capacidade contributiva como causa da tributação, e como critério para a progressividade fiscal.
PALAVRA-CHAVE: Capacidade contributiva. Solidariedade. Justiça fiscal. Igualdade.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DA FUNDAMENTAÇÃO DA CAPCIDADE CONTRIBUTIVA PELA SOLIDARIEDADE. 3 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E JUSTIÇA FISCAL. 4 PRINCÍPIO DA IGUALDADE. 5 A IGUALDADE E A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. 6 CONCLUSÕES.
1 INTRODUÇÃO
Ao mesmo tempo em que a tributação pode ser descrita como uma forma de financiamento do Estado para promoção de política de acesso a educação por todos, de saúde pública e bem-estar social, não é raro de se presenciar manifestações rejeitando o tributo, como se fosse algo lesivo ao cidadão e à própria sociedade. Nesse sentido, em resposta a uma proposta para tornar mais isonômica a tributação, o Presidente da República já questionou se ser rico seria crime no Brasil,[1] indicando que a tributação seria uma forma de punição.
É preciso ressaltar que é possível que a má formulação da tributação, na formatação de um tributo específico, ou na múltipla tributação de uma mesma base de incidência, gere situação de injustiça, sendo até possível que a tributação resulte em confisco. Essa discussão, contudo, não é o objeto do presente trabalho. O que se pretende abordar são os fundamentos em si da tributação, ou, noutros termos, sobre os critérios que justificam a tributação e que justificam a própria gradação do ônus tributário imposto a cada contribuinte.
Há extensa literatura sobre os fundamentos da tributação, o que inclui o debate sobre a capacidade contributiva, seja em apoio à sua utilização, seja em repúdio, sob diferentes justificativas, como a teoria do benefício, ou a utilidade marginal do capital. Em continuidade, a própria noção de justiça fiscal, da busca pela justiça social sob a visão da tributação também perpassa pela noção de capacidade contributiva.
Contudo, além dessas noções, também a igualdade é fundamento da capacidade contributiva, embora com menos destaque na literatura. O presente estudo busca explicitar a associação entre igualdade e capacidade contributiva.
2.DA FUNDAMENTAÇÃO DA CAPCIDADE CONTRIBUTIVA PELA SOLIDARIEDADE
O sentido da capacidade contributiva é de servir como gradação para a tributação, no sentido de impor uma tributação de acordo com a manifestação de riqueza de cada um. Desse modo, aqueles que possuem menos riqueza terão uma tributação menor do que aqueles que possuem mais riqueza – e essa formulação não significa que os menos ricos serão privilegiados enquanto os mais ricos seriam punidos, através da tributação, pelo fato de serem mais ricos.
Em minucioso estudo sobre o tema, Ricardo Lodi aborda as manifestações na história sobre pensamentos que conduziram ao atual conceito da capacidade contributiva tal como a entendemos. Assim, já desde a Idade Média, se indicava a proporção como elemento essencial da tributação, para impedir uma tributação que cobrasse dos mais pobres mais ou ainda o mesmo que seria cobrado dos mais ricos.[2]
O ideal também se mostrou presente nas origens do Estado Liberal, nos pensamentos de Adam Smith e Stuart Mill, com manifestação através da teoria do benefício e na teoria do igual sacrifício.[3] No século XVIII, quando da teorização de Smith, os benefícios gerados pelo Estado eram limitados à segurança e à propriedade dos indivíduos, de modo que a atuação estatal gerava mais benefícios aos mais ricos, que, portanto, caberia suportar mais a tributação. Por outro lado, Mill buscou o fundamento não no benefício recebido, mas no real custo para cada contribuinte da imposição tributária, e, com base no ideal de utilidade marginal do capital, defendeu que a tributação não deveria seguir uma proporcionalidade estrita, devendo ser progressiva, aumentando a alíquota de acordo com o aumento da riqueza.
Contudo, é somente na doutrina italiana, com Benvenutto Griziotti e Dino Jarach que se indica a capacidade contributiva como a causa jurídica do imposto.[4] Apesar de se aceitar outra causa para a tributação – a prestação de serviços estatais –, a vinculação da capacidade contributiva como causa do imposto permitiu o financiamento, por aqueles que mais detinham disponibilidade financeira, de serviços oferecidos à população em geral, em nome da solidariedade social.[5]
O ideal da capacidade contributiva foi alvo de críticas, por diversos doutrinadores, mas, recentemente, ganhou novos contornos, representando a Solidariedade e a Igualdade na fundamentação do imposto, além de servir como limite para a imposição tributária, quando não há manifestação de riqueza.[6]
A associação com a solidariedade fiscal é de singela constatação: os serviços estatais, dentro de um Estado Democrático de Direito, possuem atribuições muito além da proteção da propriedade e da vida, tal qual se verificava no Estado Liberal. São demandados do Estado prestações de saúde, educação e de assistência social, prestações essas que devem ser custeadas pela sociedade de modo geral. Contudo, adotado o princípio da capacidade contributiva, esse custeio será realizado em maior proporção por aqueles que possuem mais recursos. Há, assim, duas faces da relação que devem ser analisadas: na tributação, os mais ricos devem contribuir proporcionalmente mais, enquanto alguns serviços estatais, de saúde, educação e de assistência social, serão pelos mais ricos menos utilizados do que pelos mais pobres.
Verifica-se, nesse sentido, uma mudança daquele paradigma indicado por Adam Smith, pautado na teoria do benefício, de que a tributação deveria arcada em maior proporção por aqueles que se beneficiavam dos serviços estatais. Essa teoria possui uma forte conotação histórica, em relação aos serviços estatais prestados no século XVIII, que em muito beneficiavam os donos de terra e possuidores de bens, com pouco proveito para os mais pobres.[7]
A obra de Liam Murphy e Thomas Nagel buscou sepultar a ideia de que alguns direitos não teriam custos para o Estado, porque demandariam somente prestações negativas, abstenções por parte do Poder Público. Todos os direitos exigem dotação orçamentária, mesmo os direitos clássicos como a propriedade. Conforme demonstrado no trabalho dos professores norte-americanos, o orçamento estadunidense para proteção de direitos de primeira geração é elevado, não sendo de nenhum modo inferior ao montante destinado à prestação de educação.
Mas a teoria do benefício não poderia ser alegada pelos mais ricos para que a tributação fosse direcionada para cobrar de cada cidadão aquilo que ele usufrui dos serviços estatais, em plena aplicação do princípio da capacidade contributiva? É na contramão desse entendimento que a Solidariedade Fiscal existe, buscando impedir que o cidadão que precisa da prestação de serviços básicos como saúde, educação e assistência social, tenha de arcar com seus custos.
A escala da capacidade contributiva, que impõe o dever de pagar mais impostos para aqueles que são mais ricos, nesse sentido, é perfeitamente equilibrada com a escala, inversa, da necessidade de prestação de serviços estatais de cunho social. Há, assim, um descolamento entre a capacidade contributiva e a teoria do benefício: enquanto, no tempo de Adam Smith, aqueles que mais deviam pagar eram aqueles justamente que recebiam as maiores prestações estatais, atualmente o Estado presta tanto serviços para os mais ricos, na proteção da vida e de seu patrimônio, quanto presta serviço para os mais pobres, com prestações sociais. Assim, a capacidade contributiva deixa de ser informada pela teoria do benefício, passando a ser fundamentada pela Solidariedade.
Essa causa não é verificada em relação a algumas espécies tributárias, como as taxas e contribuição de melhoria por se caracterizarem como tributos contraprestacionais. Há, em ambas as espécies, uma atividade estatal que é diretamente ligada ao contribuinte e que justifica a tributação.
Conforme relatório da Receita Federal,[8] a composição das taxas na arrecadação global é ínfima se comparada aos impostos. Nesse sentido, a espécie tributária que possui maior relevância em termos de financiamento do Estado e das políticas estatais é o imposto – ainda que a União tenha buscado nas contribuições sociais uma fonte alternativa de financiamento, que não possui obrigação de divisão com os outros entes federados.
Ainda que se considere as contribuições sociais – que são parcela extremamente relevante do orçamento, tendo respondido por mais de um terço de toda carga tributária do país em 2018, conforme relatório da Receita Federal já mencionado –, é preciso destacar que a solidariedade também está presente, seja diretamente, nos casos em que as contribuições sociais nada mais refletem que um imposto com uma destinação vinculada, seja indiretamente, nos casos em que a contribuição busca o benefício de um grupo específico.[9]
3.CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E JUSTIÇA FISCAL
A tributação não decorre de uma simples norma técnica de conteúdo qualquer – não é e não pode ser um ramo do Direito puramente formalista; é um ramo jurídico no qual se impõe valores, que influenciam tanto na relação dos cidadãos com o Estado quanto em relação aos cidadãos entre si.[10]
Conforme lições de Klaus Tipke e Douglas Yamashita, questões de justiça têm mais relevância quando a maior parte de um grupo de pessoas depende de prestações estatais.[11] Essa visão não está associada – ao menos não unicamente – à necessidade de prestação de serviços estatais, sendo intrinsecamente associada à imposição tributária, de modo que a “justiça fiscal é o valor supremo do Estado de Direito dependente de impostos e, ao mesmo tempo, o valor supremo da comunidade de contribuintes”.[12]
Tomando como objeto o sistema tributário nacional, tem-se uma economia de mercado com profundas desigualdades econômicas, o que necessariamente se reflete na base da tributação por impostos, que é essencialmente dirigida na busca por riquezas. A tributação tanto da renda e do patrimônio será naturalmente justa num mercado em que a divisão de renda e patrimônio seja justa. Considerando, contudo, um mercado real, que não é naturalmente justo, a tributação poderia acentuar a diferença existente entre as pessoas.
É justamente a solidariedade que impõe a redistribuição da carga tributária, aumentando a incidência sobre os mais ricos e reduzindo sobre os mais pobres, além de afastar por completo daqueles que estão abaixo do mínimo existencial, isto é, abaixo mínimo de sobrevivência[13]. É nesse sentido que Tipke e Yamashita afirmaram que o Direito Tributário é um ramo jurídico orientado por valores, sendo a carga tributária distribuída de modo a cumprir a justiça fiscal, não somente dividir em partes formalmente iguais entre os cidadãos.
Essa divisão tem por referência a simples questão de divisão da carga tributária do Estado, sem considerações quanto aos serviços públicos recebidos do Estado. De fato, não há que se falar simplesmente que os mais ricos arcam com os serviços estatais prestados aos mais pobres porque, como destacado por Holmes e Sunstein, todos os serviços públicos, todas as atividades estatais dependem de recursos públicos,[14] especialmente os serviços estatais que normalmente são destacados como simplesmente proteção de direitos fundamentais de primeira dimensão.
Há, assim, dois estudos possíveis: a primeira analisa somente a divisão da carga tributária pelos cidadãos, na busca de se saber se os mais ricos pagam mais tributos proporcionalmente que os mais pobres – caso em que o sistema tributário seria progressivo – ou não; enquanto na segunda existe uma comparação entre a carga tributária que cada cidadão arca em comparação com a utilização de serviços estatais.
O segundo estudo encontra dois óbices, sendo um deles a própria dificuldade em se analisar exatamente o quanto a proteção do Estado beneficia os mais ricos. Até o orçamento público destinado a combate a incêndios pode beneficiar muito mais os mais ricos que os mais pobres, como é o caso do exemplo dado por Holmes e Sunstein no início de seu livro. Além disso, certas prestações estatais sempre associadas aos mais pobres, como a prestação de saúde gratuita, pode gerar benefícios aos mais ricos, como no caso de um esforço bem-sucedido para contenção de uma doença, de modo a não atrapalhar o fluxo comercial.
Segundo óbice refere-se ao próprio caráter do imposto como um tributo cuja arrecadação não é vinculada, ou seja, não é possível discutir a imposição tributária com base em seu futuro gasto se esse gasto é essencialmente desvinculado da arrecadação. A eleição dos gastos públicos é uma atividade que envolve os três Poderes, através do processo de elaboração da Lei Orçamentária; além de ser influenciada pela sociedade.
Ainda que não se avalie os gastos do Estado, é possível identificar a justiça fiscal na divisão da tributação através da capacidade contributiva justamente pela constatação de que, além de se isentar aqueles que possuem riqueza abaixo do mínimo necessário para uma vida digna, os mais ricos devem contribuir mais pelo simples fato de possuírem maior disponibilidade de dinheiro. Não se trata simplesmente de contribuir mais porque uma mesma alíquota aplicada a uma base de cálculo maior gerará uma maior contribuição; o esforço dos mais ricos deve ser maior proporcionalmente do que os mais pobres tanto para representar um mesmo grau de sacrifício – numa perspectiva de utilidade marginal do capital – quanto para cumprir o princípio da igualdade material.
Não há consenso na doutrina sobre o conteúdo do princípio da igualdade – o que também inclui a própria posição do princípio da igualdade face a outros princípios constitucionais. São questões relativas não somente quanto ao conteúdo da igualdade, mas também quanto a sua classificação dentre as espécies de normas jurídicas, como regras, princípios ou postulados.
De fato, é possível que se alegue que a igualdade nada mais é que um subprincípio da dignidade da pessoa humana. Tratar-se-ia, desse modo, de um princípio constitucional geral que densifica o princípio da dignidade da pessoa humana. Essa não é, contudo, a melhor interpretação, uma vez que há aplicações da igualdade que não se incluem estritamente como uma ramificação do princípio da dignidade.
Segundo a lição de Paulo de Barros Carvalho,[15] a expressão semântica dos princípios pode ser entendida como norma jurídica de posição privilegiada (a) portadora de valor expressivo ou (b) que estipula limites objetivos, ou ainda como (c) valor inserto em regras jurídicas de posições privilegiadas, ou, por fim, (d) como limite objetivo estipulado em regra de forte hierarquia.
Há certa interseção entre a dignidade e a igualdade nas duas últimas hipóteses semânticas, porque, uma vez que a dignidade não é quantificável, todos possuem a mesma dignidade, sendo possível extrair tanto valores de regras de posições elevadas como limite objetivo estipulado de regras de alta hierarquia. Há, assim, um limite para o tratamento que uma pessoa pode receber, um limite mínimo de dignidade, bem como há deveres positivos, tanto pelo Estado quanto por particulares, para que se respeite a dignidade.
A igualdade, por outro lado, possui uma faceta em que é possível quantificar – não só isso, como o princípio possui uma forte carga sobre tratamento desigualitário. As questões mais difíceis envolvendo tal princípio envolvem o tratamento diferenciado daqueles que se encontram em situações diferentes, como saber o quanto deve ser a proteção do consumidor em face do fornecedor, o quanto deve incidir os direitos fundamentais em relações privadas, ou ainda o quanto se deve valer da progressividade tributária para tratar contribuintes com capacidade contributiva diferente.
Em nenhum dos casos apresentados haverá lesão ao princípio da dignidade no tratamento diferenciado – pode-se dizer, inclusive, mais gravoso – para aquele que se encontra em situação mais vantajosa.
Jorge Reis Novais aponta que o Princípio da Igualdade é, possivelmente, um princípio estruturante que possui presença mais constante nos diversos textos constitucionais, e justamente por esse motivo é possível verificar uma evolução do sentido intrínseco do princípio.[16] De fato, há uma acepção original, verificada no constitucionalismo liberal, na qual há uma associação profunda entre igualdade, tida como justiça, e dignidade da pessoa humana, na luta contra os privilégios que marcaram os estados absolutistas.
O que se verifica posteriormente é que o otimismo liberal oitocentista, que encarava a liberdade como mera falta de privilégios na aplicação da vontade geral emanada pelo Legislativo, não é suficiente para garantir a aplicação do princípio da igualdade. De fato, atualmente a ideia de que a lei é igual para todos, em decorrência da igualdade de todos perante a lei, decorre da própria lei, genérica e abstrata, ou seja, é o princípio da legalidade que assegura essa acepção de igualdade.
Não se busca defender, contudo, que esse ideário de igualdade é desnecessário, pelo contrário, uma vez que “a igualdade perante a lei continua a ser um mínimo que se impõe à observância de qualquer Estado de Direito enquanto exigência decorrente da igual dignidade de todos”.[17] Assim, o princípio da igualdade possui atualmente uma dimensão que vai além do mero tratamento sem discriminação – em verdade, a falta de discriminação pode, por vezes, ser fonte de maiores injustiça, uma vez que a lei geral e abstrata tem o condão de manter e até aprofundar situações de desigualdade.[18]
O autor indica como conteúdo mais contemporâneo para o princípio a necessidade de inclusão da igualdade no próprio conteúdo da lei, uma sujeição do Legislativo, no momento de criação da lei, ao comando constitucional da igualdade. A acepção mais tradicional da igualdade se referia mais ao Executivo, como executor da lei, no sentido de aplicá-la a todos indistintamente, ou seja, sem subtrair ninguém de sua aplicação, ou ao Judiciário, no sentido de assegurar a aplicação igualitária a todos. Assim, a aplicação para o legislador impõe que a lei não seja ela mesma a criadora de desigualdade, devendo-se considerar no momento da deliberação as diferenças fáticas a que os destinatários de aplicação da lei estão sujeitos. Exemplifica o autor:[19]
[...] o Estado actual adquire uma consciência aguda da importância da igual participação democrática na produção de resultado de igualdade. As preocupações com a representatividade das assembleias parlamentares, com a inclusão e protecção das minorias, a igualdade de oportunidades na competição eleitoral interpartidária, a igualdade do sufrágio e a generalização dos direitos políticos são, hoje, uma dimensão basilar da igualdade em Estado democrático
Há, assim, um conteúdo intrínseco referente à discriminação, ao tratamento diferenciado, que foge à ideia de aplicação igual perante a lei, a mostrar um conteúdo próprio da igualdade que não se confunde com o princípio da legalidade, bem como diferente do princípio da dignidade da pessoa humana, porque a discriminação não visa a retirar a dignidade de que não foi contemplado, nem visa a conferir por si dignidade a quem foi discriminado.
Demonstrada a diferenciação com demais outros princípios, é preciso verificar o conteúdo intrínseco do princípio da igualdade. Noutros termos, é preciso saber se, apesar de não se confundir com aquele princípio, a igualdade possui um valor intrínseco.
3.1 Conteúdo do Princípio da Igualdade
Há uma forma de se analisar a igualdade que a despe de qualquer significado, uma vez que a própria aplicação da lei, genérica e abstrata, há de ser igual para todos, bem como pelo fato de que a igualdade sempre exigirá um parâmetro, uma finalidade que não decorre da própria igualdade. Sobre o tema, Humberto Ávila faz a crítica:[20]
(...) a tradicional compreensão da igualdade como o dever de tratar igualmente os iguais não diria coisa alguma, por ser totalmente tautológico. Com efeito, se igualdade é apenas isso, ela diz muito pouco: quando uma norma atribui um direito a quem preencher determinados requisitos, decorre dessa própria norma a igualdade de aplicação a todos aqueles que preencherem seus requisitos, nada acrescentando a igualdade, enquanto tal, para esse efeito, pois é a própria norma substancial, e, não, a igualdade, que estabelece quais são os elementos relevantes para saber quem deve ser considerado igual, com implicações sobre o tratamento igual a todos os iguais.
Conclui o autor afirmando que, adotada tal premissa, a igualdade seria sem sentido ou supérflua, porque não é a igualdade que definiria o modo de tratamento igual entre as pessoas ou porque ela seria desnecessária para o tratamento igualitário. Até esse ponto, a lição coincide com os argumentos de Novais, que indicou que a simples aplicação igualitária da lei tem maior fundamentação no princípio da legalidade que no princípio da igualdade.
Ávila conclui, com base em doutrina estrangeira, que a igualdade possui sentido próprio, afirmando que as pessoas devem receber o mesmo tratamento pelo simples fato de estarem na mesma situação.[21] É igual se afirmar não ser preciso perquirir o motivo de alguém receber certo tratamento: caso haja outrem que se encontre nas mesmas condições, o sujeito deverá receber o tratamento sem que seja necessário perquirir qual seu fundamento.
Tal afirmação, contudo, não pode ser tomada como verdade absoluta. Porque nem sempre o mesmo tratamento deve ser aplicado a quem está rigorosamente na mesma situação, e porque estar na mesma situação nem sempre acarretará o mesmo tratamento.
Quanto ao primeiro caso, o Superior Tribunal de Justiça, no bojo do REsp 1.195.642-RJ, entendeu que mesmo aquele que não é o destinatário fático e econômico do bem ou serviço merece a proteção do Código de Defesa do Consumidor. Para a correta ilustração, será explicada, em síntese, o tratamento igualitário daqueles que não se encontram na mesma situação. A Lei Consumerista, em seu art. 2º, indica que consumidor é o destinatário final do produto ou serviço, e a jurisprudência uniforme do STJ é no sentido de que destinatário final deve ser considerado o destinatário fático e econômico. Noutros termos, o consumidor intermediário, que é aquele que usa o bem ou serviço dentro de uma cadeia de produção e distribuição, não pode ser considerado consumidor – trata-se da teoria finalista.
Ocorre que a Corte Cidadã aceita a aplicação do CDC em relações entre sociedades empresárias, mesmo que a adquirente do produto ou serviço utilize-os para sua atividade econômica – fala-se em teoria finalista mitigada, abrandada ou aprofundada. Noutros termos, o STJ trata de modo igual o destinatário final e aqueles que, em determinadas hipóteses, mesmo incluindo o produto ou serviço dentro da cadeia de produção e distribuição, não são consumidores finais.
Não se pode alegar que o consumidor pela teoria finalista mitigada e o consumidor pela teoria finalista pura são iguais porque ambos apresentam alguma vulnerabilidade, porque a exigência de que consumidor deve ser destinatário final está contida no próprio artigo 2º do Código, bem como que não é feita qualquer análise acerca da vulnerabilidade do destinatário final. Ainda que o consumidor final do bem não seja vulnerável, a Corte Cidadã não exige que se avalie sua capacidade técnica, jurídica, informacional ou fática, de modo que é possível que um consumidor final não vulnerável tenha o mesmo tratamento de um consumidor intermediário vulnerável.
Por outro lado, é possível verificar casos em que pessoas na mesma situação recebem tratamento diferenciado – e não é pelo simples fato que uma delas possui uma situação melhor que a outra deve receber o mesmo tratamento. Trata-se, contudo, de situação de mais difícil verificação, em decorrência da própria afirmação de Ávila de que a igualdade formalmente considerada pode vir a ser taxada como sem sentido ou supérflua.
Tais situações, contudo, ocorrem na exata afirmação que ora se busca impugnar: não é possível simplesmente dar o mesmo tratamento apenas porque duas pessoas estão na mesma situação. Sempre será necessário buscar a origem do tratamento distinto entre as pessoas, em especial porque a colisão com outros princípios justifica o afastamento da igualdade – como princípio, é característica intrínseca do princípio da igualdade a ponderação com outros e a chance de ser afastado no caso concreto, conforme o próprio autor reconhece.[22]
Dito de outro modo, nos casos em que não houver uma norma válida que fundamente o tratamento diferenciado de alguém, é possível que seja mantido o tratamento desigual. É possível indicar como exemplo a previsão do art. 146, do Código Tributário Nacional, segundo o qual a modificação nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa em relação ao mesmo sujeito passivo somente pode ser efetivada quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.
Assim sendo, caso, por algum erro da autoridade administrativa quando do lançamento de determinado tributo, haja um tratamento diferenciado em relação a algum contribuinte – considerado que o ato já tenha produzido seus regulares efeitos, isto é, não possa ser refeito pela autoridade lançadora – a correção desse critério, para esse contribuinte específico, somente poderá ser feita para fatos geradores futuros. Desse modo, dois contribuintes na mesma situação fática poderão ser tratados de modo diferente, e aquele contribuinte que não foi beneficiado com o erro da autoridade lançadora não poderá exigir que o mesmo critério lhe seja aplicado, porque o que o dispositivo veda é a alteração retroativa para o contribuinte específico, em razão da legítima expectativa dele.
Trata-se de aplicação do princípio da segurança jurídica, que impede a modificação de situações jurídicas já consolidadas, previsão essa que possui tratamento mais abstrato no art. 5º, XXXVI, CRFB, que veda até mesmo a lei de prejudicar o ato jurídico perfeito.
Não se trata, todavia, de se afirmar que o princípio da igualdade não possui conteúdo próprio. A crítica indicada é unicamente em relação à afirmação pura e simples de que se deve aplicar o mesmo tratamento apenas porque se está na mesma situação, que não pode ser tomada em termos absolutos.
A igualdade possui um valor intrínseco, que é o de impor o dever de se tratar diferente aqueles que estejam em situações jurídicas diferentes. Se duas pessoas se encontram em situações distintas e são tratadas da mesma maneira, há uma atuação grave em desfavor de uma delas. Impor que dois sujeitos com capacidades absolutamente distintas, um claramente em posição de vantagem em relação ao outro, sejam tratados de modo igual é prejudicar um deles.
No campo da tributação, há previsão constitucional explícita para se tratar de modo diferente aqueles que se encontram em situação diferente: art. 145, § 1º, que impõe que os impostos sejam graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. A graduação dos impostos, portanto, por previsão constitucional, deve acompanhar a capacidade contributiva, devendo pagar mais do que proporcionalmente mais capacidade econômica possui – denominado progressividade tributária.
Assim, o princípio da igualdade impõe um dever ao legislador de tratamento diferenciado quando houver circunstâncias que assim se justifique. É uma situação que se verifica em todos os ramos do Direito, com reflexo tanto no Direito Privado quanto no Direito Público. Isso se verifica porque a igualdade não é um princípio destinado única e exclusivamente à atividade julgadora, também influenciando a atividade legislativa.
O princípio da igualdade impõe que o legislador, para que não incida em inconstitucionalidade, não trate da mesma maneira situações que são diferentes. Esse dever de legislar de modo diferenciado é uma decorrência lógica do princípio da igualdade – um dever maior que o de simplesmente obrigar ao tratamento igual daqueles que estão em iguais condições. Há violação da igualdade tanto no caso de um tratamento discriminatório daqueles que se encontram em igual posição quanto no tratamento igualitário daqueles que não estão. Noutros termos, também há violação ao princípio da igualdade no tratamento isonômico.
A igualdade, no caso, pode ser lida como justiça distributiva ou igualdade material, pela qual se mostra legítima a criação de fatores dinâmicos ou de equalização que geram tratamento privilegiado daqueles que se encontram em situação de discriminação sistemática, que não conseguem obter resultados iguais com a simples garantia de igualdade de oportunidade.[23] Ressalte-se que não se trata apenas e tão somente de tratamento diferenciado, sendo possível, a depender da situação, conferir efetivo tratamento diferenciado, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, no RE 597.285, sobre o sistema de cotas em universidades públicas, entendimento reiterado na ADC nº 41, que reconheceu a constitucionalidade da Lei de Cotas no serviço público federal.
Quanto à consequência de aplicação do princípio da igualdade, que não deve simplesmente conduzir à conclusão de que a igualdade permite, irrestritamente, a concessão de tratamento igualitário pelo simples fato de se estar numa condição similar, Novais argumenta, com fundamento nas lições de Dworkin, que
[...] a cláusula da igualdade não garante a cada indivíduo [...] o mesmo tratamento ou benefício que é concedido a outros, mas garante-lhe apenas que no processo de formação da vontade política e na concessão de benefícios ou imposição de sacrifícios por parte do Estado ele deverá ser tratado com igual consideração de respeito que são devidos aos demais.
Esse dever de diferenciação exige, todavia, uma análise com parcimônia da estrutura dos elementos constitutivos da igualdade, para que não haja diferenciação daqueles que são, no plano fático, iguais. Deve então haver uma análise detida da relação entre sujeitos com base em determinado critério de diferenciação para atingir certa finalidade, conforme estrutura indicada por Ávila.[24]
5.A IGUALDADE E A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
A fundamentação da capacidade contributiva, como medida da tributação, passa pelo princípio da igualdade, não na acepção de tratar igual aqueles que se encontram na mesma situação, mas na acepção de tratar de modo diferente aqueles que se encontram em situações distintas. Há, assim, nítida associação à ideia já apresentada de utilidade marginal do capital.
Enquanto os mais ricos conseguem guardar parte de sua renda, inclusive investir parte desse montante para aumentar a renda futura, os mais pobres têm uma tendência a consumir toda sua renda em gastos essenciais, como comida e aluguel. Desse modo, há uma tendência de que, quanto mais uma pessoa aufira de renda, menos essa renda será essencial para seu padrão de vida.
Nesse sentido, retirar um mesmo percentual da renda daqueles que ganham mais em relação àqueles que ganham menos não será tratar de modo igual os contribuintes, mas tratar de modo prejudicial aqueles que recebem menos. Isso se deve ao fato de que o sacrifício sentido pelos mais pobres ser muito maior do que o sacrifício sofrido pelos mais ricos, porque o mesmo percentual tributado retirará proporcionalmente mais recursos necessários dos mais pobres, afetando em muito pouco os recursos dos mais ricos.
Assim, a igualdade exige que haja uma tributação proporcional ao nível de riqueza. Os mais ricos, estando em situação diferente dos mais pobres, não podem ser tributados de modo igual a esses, devendo ser tributados na proporção de sua riqueza. A tributação deve ser maior para os mais ricos, o que, ao invés de violar o princípio da igualdade, está-lo-á concretizando, ao mesmo tempo em que se concretizará o princípio da capacidade contributiva.
A despeito das oscilações doutrinárias, é certo que a capacidade contributiva ainda é vista por parcela significativa da doutrina como componente da teoria da tributação. Por outro lado, eventual crítica deve ser lida em conjunto com a doutrina que aponta a inconsistência da ideia de teoria do benefício, quando indica que o Estado gasta mais dinheiro com aqueles que são mais pobres.
Todos os direitos exigem recursos orçamentários para seu exercício, ainda que esse direito seja encarado como uma mera abstenção do Estado. Diversos são os custos do Estado para proteção da propriedade, da vida e da incolumidade física, direitos esses que geram muito mais benefícios aos mais ricos que aos mais pobres.[25] Nesse sentido, Sunstein e Holmes afirmam que “os direitos de propriedade dependem de um Estado que esteja disposto a tributar e gastar”.[26]
Ainda assim, aqueles que possuem menos riqueza têm uma tendência a usar mais serviços públicos do que conseguiriam arcar se esses serviços fossem cobrados, como é o caso de serviço público de educação e de saúde. Para esses cidadãos, a solidariedade justifica uma tributação com base na capacidade contributiva, tributando-se mais ao mais ricos, menos os mais pobres e isentando aqueles que não possuem meios para sua própria subsistência.
Por outro lado, o próprio princípio da igualdade também justifica a capacidade contributiva, porque mesmo entre pessoas com mais renda, haverá aqueles que possuem mais riqueza e que, por isso, poderão contribuir proporcionalmente com mais, de modo que o sacrifício dos dois seja igual.
Dito de outro modo, enquanto a solidariedade fundamenta a capacidade contributiva na distinção entre aqueles que utilizam certos serviços públicos sem a capacidade para arcar com seu custeio diretamente e aqueles que não usam esse serviço, mas podem custeá-lo, o princípio da igualdade tem cabimento para além dessa divisão. Entre cidadãos que possuam riqueza, a justificativa para uma tributação mais gravosa de uns em detrimento de outro está justamente no princípio da igualdade e o que essa tributação representará de sacrifício para cada um.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário - 30a edição de 2019. Ano edição 2019. São Paulo: Saraiva Jur, 2018.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass Robert. O custo dos direitos: porque a liberdade depende dos impostos. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019.
LODI, Ricardo Ribeiro. Estudos de direito tributário: Tributação e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016.
NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes de Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2019. (Coleção Manuais universitários).
TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
[1] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/08/02/bolsonaro-se-opoe-a-imposto-sobre-fortunas-virou-crime-ser-rico-no-brasil
[2] LODI, Ricardo Ribeiro, Estudos de direito tributário: Tributação e direitos fundamentais, Rio de Janeiro: Multifoco, 2016, p. 44–45.
[3] Ibid., p. 45–46.
[4] Ibid., p. 46–47.
[5] Ibid., p. 49.
[6] Ibid., p. 51–52.
[7] LODI, Ricardo Ribeito. Op cit, p. 56.
[8] https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf
[9] TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 300–301.
[10] TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas, Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 15.
[11] Ibid., p. 18.
[12] TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Op cit., p. 18.
[13] TORRES, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, p. 301.
[14] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass Robert, O custo dos direitos: porque a liberdade depende dos impostos, 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019, p. 30–35.
[15] CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de direito tributário - 30a edição de 2019, Ano edição 2019. São Paulo: Saraiva Jur, 2018, p. 176.
[16] NOVAIS, Jorge Reis, Princípios estruturantes de Estado de Direito, Coimbra: Almedina, 2019, p. 67.
[17] Ibid., p. 69.
[18] Ibid., p. 70.
[19] Ibid., p. 71.
[20] ÁVILA, Humberto, Teoria da igualdade tributária, 3a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 147.
[21] ÁVILA, Humberto. Op cit., p. 148.
[22] ÁVILA, Humberto. Op cit., p. 153.
[23] NOVAIS, Princípios estruturantes de Estado de Direito, p. 71.
[24] ÁVILA, Teoria da igualdade tributária, p. 31.
[25] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass Robert. Op cit., p. 50–51.
[26] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass Robert. Op cit., p. 47.
Mestrando no PPGD UERJ na linha de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Rafael Barroso de. A igualdade como fundamento da capacidade contributiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 abr 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58228/a-igualdade-como-fundamento-da-capacidade-contributiva. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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