BRUNO VINÍCIUS NASCIMENTO OLIVEIRA[1]
(orientador)
RESUMO: A presente pesquisa trata de um estudo acerca da possível necessidade de revogação do artigo 235 do Código Penal Brasileiro, que tipifica o crime de bigamia. Com o advento da Constituição Federal, houve pertinentes evoluções nos Direitos de Família, com o surgimento de novas organizações familiares, que agora são pautadas na afetividade. O problema de pesquisa consiste na existência de normas jurídicas negativas que tutelam a bigamia prejudicando as uniões poliafetivas que existem no mundo fático e as pessoas que as compõe. Objetiva-se, pois, verificar, à luz dos preceitos fundamentais e dos princípios penalistas, se o artigo 235 do código penal merece ser revogado, trazendo fatos e fundamentos que amparam essa ideia. Utilizou-se de método dedutivo, reunindo dados legais, doutrinários, jurisprudenciais, que tratam do tema, fazendo-se presente a metodologia de pesquisa exploratória bibliográfica e documental. Concluiu-se, portanto, pela clara possibilidade de descriminalização da bigamia, frente aos modernos princípios e aos avanços sociais, em especial, os princípios da intervenção mínima e adequação social.
Palavras-chave: Bigamia; Afetividade; Intervenção mínima; adequação social.
ABSTRACT: The present research deals with a study about the possible need to repeal article 235 of the Brazilian Penal Code, which typifies the crime of bigamy. With the advent of the Federal Constitution, there were relevant developments in Family Rights, with the emergence of new family organizations, which are now guided by affectivity. The research problem consists of the existence of negative legal norms that protect bigamy, harming the polyaffective unions that exist in the factual world and the people who compose them. The objective is, therefore, to verify, in the light of fundamental precepts and penal principles, whether article 235 of the penal code deserves to be repealed, bringing facts and foundations that support this idea. A deductive method was used, gathering legal, doctrinal and jurisprudential data that deal with the subject, making present the methodology of exploratory bibliographic and documentary research. It was concluded, therefore, for the clear possibility of decriminalizing bigamy, in the face of modern principles and social advances, in particular, the principles of minimal intervention and social adequacy.
Keywords: Bigamy; Affectivity; Minimal intervention; social adequacy.
1.INTRODUÇÃO
A bigamia, um dos crimes elencados pelo código penal em seu artigo 235, é uma forma de constituição familiar não aceita pelo Estado. Ela nada mais é do que um casamento com mais de dois contraentes, assim punido pelo código penal e expressamente proibida pelo código civil.
A sociedade já passou e vem passando por várias mudanças, em consoante as definições de família se alteram conforme o passar dos anos e aos anseios sociais, e o direito tem que acompanhar essas evoluções. Diante disto, pergunta-se: nos tempos atuais, é possível haver a descriminalização da bigamia com a consequente revogação do artigo 235 do CP, frente aos modernos modelos de família e o princípio da intervenção mínima estatal?.
O projeto tem como tema a possível necessidade de revogação do artigo 235 do Código Penal, com o objetivo geral de verificar, à luz dos preceitos fundamentais e dos princípios penalistas, se o artigo 235 do CP que penaliza a bigamia merece ser revogado. O interesse pelo tema surgiu em razão de sua grande relevância e atualidade, haja vista os modernos conceitos de família e o pluralismo das suas entidades inseridas na nossa Constituição Federal.
O trabalho busca em linhas específicas, verificar qual é a intenção do legislador ao punir a bigamia na época, visto as influências de valores sociais e religiosos; explicar quais os princípios constitucionais atingidos e de qual forma a criminalização da bigamia os ofende; demonstrar que não compete ao Estado definir a forma de constituir família ao se tratar da bigamia, mas sim compete ao cidadão capaz e de forma consentida, regidos pelos princípios da liberdade e da autonomia privada no âmbito familiar; e averiguar a necessidade do legislador em estabelecer normas necessárias, visto que as evoluções da sociedade devem ser acompanhadas pelo direito.
O intuito no qual se embasa a pesquisa é o de averiguar o reconhecimento da bigamia sob a ótica dos princípios basilares da comunidade familiar, resgatando a liberdade de escolha, como um direito fundamental e atrelá-la as transformações sociais.
O método de abordagem teórica é o dedutivo, pois se partirá de teorias e concepções gerais, fazendo-se uso de conceitos doutrinários com o objetivo de compreender a problematização acerca dos princípios levantados, utilizando como fonte a Lei 13.964/2021 (Código Penal), Lei 14.306/2021 (Código Civil), Constituição da República Federativa do Brasil, bem como obras doutrinárias de Pedro Paulo Funari e Clóvis Beviláqua, que vão trazer os aspectos históricos do tema; Carlos Roberto Gonçalves que trará a visão civilista; Cezar Roberto Bitencourt, Fernando Capez e Miguel Reale trazendo os conceitos penalistas; e Maria Berenice Dias que decorrerá sobre os direitos de família.
A metodologia de pesquisa será exploratória bibliográfica e documental, para que por meio de conceitos doutrinários, leis e jurisprudências possa-se corroborar que não há nenhum tipo de violação presente no artigo 235 do CP, que mereça ser punido pelo Estado, a fim de que sirva de base para uma futura reforma no Código Penal Brasileiro.
Para fins de organização o artigo é dividido em três capítulos, o primeiro trata dos aspectos históricos do instituto família até os dias atuais; o segundo capítulo trata do crime de bigamia no código penal e da sua proibição no código civil; e o terceiro capítulo trata da possibilidade de revogação do crime de bigamia, trazendo argumentos com base nos princípios da intervenção mínima do direito penal e da adequação social.
2.EVOLUÇÃO DA COMPREENSÃO DE FAMÍLIA
É logicamente impossível propor uma definição absoluta ao termo família, sendo uns dos institutos mais antigos na organização humana, é difícil limitar e impor fronteiras.
Nos dias atuais, a família pode ser formada com o casamento que é um contrato civil que para ter seus efeitos no mundo jurídico necessita de validade e vontade entre as partes, e mais recentemente pelas uniões estáveis e uniões homoafetivas. Hoje em dia, a vontade está intimamente ligada com a afetividade, o que não se demonstrava nas relações familiares do passado.
No decorrer da história o instituto família vem sofrendo significativas transformações, sendo alguns entendimentos discutidos e reformados constantemente. Para entender melhor o tema proposto, faz-se necessário buscar a historicidade do instituto família, demonstrando as evoluções sociais e transformações estruturais familiares, alguns reflexos culturais e religiosos do passado e as barreiras rompidas visto às necessidades sociais.
A concepção de família existe desde os tempos ancestrais de selvageria, dadas às primeiras formas de civilização existentes no planeta. O vínculo familiar não é um conceito novo, há a necessidade do ser humano de se relacionar desde os primórdios, seja por interesse econômico, religioso ou afetivo.
Como conta Clóvis Beviláqua, nas famílias arcaicas, com cultura enraizada pela Grécia Antiga, a relação familiar era algo meramente contratual, de maneira arranjada, no qual o noivo e o pai da noiva firmavam contrato com o intuito de levar os bens econômicos pra frente. Não tinha o acordo de vontade entre os próprios cônjuges. A questão econômica era o principal motivo para constituir família, não sendo levados em conta vínculos jurídicos ou afetivos. (BEVILÁQUA, 1859).
Já em relação à família Romana, ensina Pedro Paulo Funari que esta era intimamente ligada com o pátrio poder, com uma cultura expressamente machista, havia o domínio da figura do homem sobre os demais membros da família. O que mais importava era a submissão dos demais membros ao poder do “chefe” (FUNARI, 2002).
A família Medieval também merece destaque, a qual, segundo as palavras de Carlos Roberto Gonçalves:
Durante a Idade Média as relações de família regiam-se exclusivamente pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único conhecido. Embora as normas romanas continuassem a exercer bastante influência no tocante ao pátrio poder e às relações patrimoniais entre os cônjuges, observava-se também a crescente importância de diversas regras de origem germânica. (GONÇALVES, 2020, p. 32).
Nesta fase, como complementa Pedro Paulo Funari, ficou evidente o intenso domínio da igreja no que tange a família, tendo seus efeitos presentes até os dias atuais, com a defesa da Monogamia e a forte desvalorização e exclusão da Bigamia no ordenamento jurídico (FUNARI, 2002). Como o costume e a cultura da idade média era fundada no cristianismo e no direito canônico, o instituto da bigamia começou a ser gradativamente abominado, frente aos ensinamentos da época.
Na idade moderna, o cristianismo perde significativamente o poder que exercia na idade média. Na família moderna, nos preceitos de Pedro Paulo Funari, ambos os cônjuges deveriam demonstrar o interesse para constituir casamento, e a criação dos filhos começou a ser primordial. Já se fala em casamento civil, e não somente o religioso. E ações de divórcio que antes eram repugnadas, começaram a ser aceitas. Outra evolução importante seria marcada pelo fim da família patriarcal, homens e mulheres trabalhavam para buscar o sustento (FUNARI, 2002).
Na idade contemporânea houve a evolução atual no entendimento de família, isso em prol da Constituição Federal de 1988. Como elucida Luiz Edson Fachin a família passou a ser fundada conforme a afetividade, solidariedade e cooperação, a felicidade passa a ser algo a ser buscado (FACHIN, 2015).
Carlos Roberto Gonçalves, acerca da família brasileira diz que:
Podemos dizer que a família brasileira, como hoje é conceituada, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica. É notório que o nosso direito de família foi fortemente influenciado pelo direito canônico, como consequência principalmente da colonização lusa. [...]. No que tange aos impedimentos matrimoniais, por exemplo, o Código Civil de 1916 seguiu a linha do direito canônico, preferindo mencionar as condições de invalidade. (GONÇALVES, 2020, p. 42 e 43).
Agora, como elucida Carlos Roberto Gonçalves, a promoção do afeto e da felicidade são primordiais para a constituição da família, “a família passou a ser vista como um instrumento de desenvolvimento pessoal de cada indivíduo, e não mais como uma instituição”. (GONÇALVES, 2020, pág. 41).
A CF/88, no seu artigo 226, traz a ideia da pluralidade das entidades familiares: (BRASIL [2021 a], N.p).
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
A partir da CF/88 foram reconhecidos novos padrões de núcleos familiares além do próprio casamento. Ao ser permitido o reconhecimento dessas uniões ligadas à afetividade, o direito de família sofre uma verdadeira revolução.
Conforme o anúncio do artigo 226 da Constituição Federal, a união estável equipara-se ao casamento para os efeitos civis. Ela se diferencia do casamento segundo Maria Berenice Dias, na sua formação, pois o casamento é o vinculo jurídico entre duas pessoas, que desejam formar compromisso de constituir família, e deve ser validado por autoridade competente. Já para ser considerada união estável é necessário somente que os parceiros vivam sob o mesmo teto, a relação deve ter caráter público, duradouro e ambos devem ter a vontade de constituir família (DIAS, 2016).
Importante salientar que a Constituição Federal abriu portas para a interpretação das diferentes formas de família no Brasil, como exemplo, apesar de não estar exposto no texto do artigo 226 da CF/88, a união homoafetiva e a existência da poliafetividade já passaram a ser reconhecidas. A união homoafetiva foi considerada justa e permitida pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento da ADI 4277[2], o que em tempos antigos não era possível.
Já a questão do poliamor, em que os envolvidos tem ciência e vontade de firmar compromisso, ainda continua a margem da tutela jurisdicional, não sendo permitido o casamento por constituir crime de bigamia, porém, no ano de 2012 foi permitida a primeira escritura pública de união estável de um ‘trisal’, em São Paulo[3], e por conseguinte foram reconhecidos vários outros casos em cartório. Uma decisão do CNJ em 2018 proibiu que esses tipos de escrituras sejam feitas em cartório[4].
Segundo o entendimento de Rolf Hanssen Madaleno, a união poliafetiva pode ser conceituada como:
Esta é a família poliafetiva, integrada por mais de duas pessoas que convivem em interação afetiva dispensada da exigência cultural de uma relação de exclusividade apenas entre um homem e uma mulher, ou somente entre duas pessoas do mesmo sexo, vivendo um para o outro, mas sim de mais pessoas vivendo todos sem as correntes de uma vida conjugal convencional. (MADALENO, 2018, p. 25)
O doutrinador Flávio Tartuce segue a mesma linha de pensamento, deixando claro que para haver a união poliafetiva é extremamente necessário que todos os envolvidos na relação concordem e consintam da multiplicidade de parceiros (TARTUCE, 2019).
As uniões poliafetivas têm praticamente os mesmos requisitos que reconhecem a união estável, pois essas uniões devem ser públicas, duradouras e os envolvidos devem ter o objeivo de constituir família. A diferença está na possibilidade de mais pessoas firmarem e integrarem a união poliafetiva.
Mesmo com o repúdio do Conselho Nacional de Justiça sobre o reconhecimento das uniões poliafetivas em cartório, ainda persiste várias divergências entre doutrinadores e juristas acerca da decisão.
Maria Berenice Dias, uma das mais consagradas doutrinadoras do Direto de Família, defende a ideia da união poliafetiva como entidade familiar.
O fato é que descabe realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade frente a formações conjugais plurais e muito menos subtrair qualquer sequela à manifestação de vontade firmada livremente pelos seus integrantes. Não havendo prejuízo a ninguém, de todo descabido negar o direito de viver a quem descobriu que em seu coração cabe mais de um amor (DIAS, 2016, p.139).
Segundo José Sebastião de Oliveira a regulamentação do CNJ não reconhecendo a união poliafetiva vai contra o defendido pela Constituição Federal, visto que o ser humano possui plena liberdade de se relacionar e constituir família, desde que essa união seja consensual. Em suas palavras “[...] a regulamentação pelo CNJ tem que garantir os direitos dessas pessoas que estão envolvidas nessas relações e de todas aquelas que mesmo não tendo registrado sua situação fática se inserem nesses casos”. (OLIVEIRA, 2018, p. 213)
Assim como na doutrina, há divergências nos tribunais acerca da total exclusão da poliafetividade como um arranjo familiar. Antes da proibição feita pelo CNJ em 2018, alguns brasileiros fizeram de forma efetiva as escrituras comprovando que vivem em união poliafetiva, tendo o reconhecimento jurídico e a proteção estatal que merecem, como os direitos de sucessão e herança. Um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de 2006 caminha no sentido favorável as uniões poliafetivas:
EMBARGOS INFRINGENTES. UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÕES SIMULTÂNEAS. De regra, não é viável o reconhecimento de duas entidades familiares simultâneas, dado que o sistema jurídico é regido pelo princípio da monogamia. No entanto, em direito de família não deve permanecer no apego rígido à dogmática, o que tornaria o julgador cego à riqueza com que a vida real se apresenta. No caso, está escancarado que o de cujus tinha a notável capacidade de conviver simultaneamente com duas mulheres, com elas estabelecendo relacionamento com todas as características de entidades familiares. Por isso, fazendo ceder a dogmática à realidade, impera reconhecer como coexistentes duas entidades familiares simultâneas. Desacolheram os embargos, por maioria. (TJRS, Quarto Grupo Cível, EI 70013876867, Rel. Des. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. 10.03.06, por maioria).
Outra jurisprudência nesse sentido é citada pelo Expresso de Notícias (2004, N.p.) [5]:
“A 8.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça reconheceu que um cidadão viveu duas uniões afetivas: com a sua esposa e com uma companheira. Assim, decidiram repartir 50% do patrimônio imóvel, adquirido no período do concubinato, entre as duas. A outra metade ficará, dentro da normalidade, com os filhos. A decisão é inédita na Justiça gaúcha e resultou da análise das especificidades do caso. (...) Para o Desembargador Portanova, ‘a experiência tem demonstrado que os casos de concubinato apresentam uma série infindável de peculiaridades possíveis’. Avaliou que se pode estar diante da situação em que o trio de concubino esteja perfeitamente de acordo com a vida a três. No caso, houve uma relação ‘não eventual’ contínua e pública, que durou 28 anos, inclusive com prole, observou. ‘Tal era o elo entre a companheira e o falecido que a esposa e o filho do casamento sequer negam os fatos — pelo contrário, confirmam; é quase um concubinato consentido’. O Desembargador José Ataides Siqueira Trindade acompanhou as conclusões do relator, ressaltando a singularidade do caso concreto: ‘Não resta a menor dúvida que é um caso que foge completamente daqueles parâmetros de normalidade e apresenta particularidades específicas, que deve merecer do julgador tratamento especial’”.
As jurisprudências que vão em sentido contrário ao poliamor, utilizam como base o fundamento de preservação da monogamia como único possível para reger as relações familiares, em contrapartida a existência do poliamor é uma realidade, e o direito brasileiro não pode “fechar seus olhos” sobre o tema, no qual deve ser inserido de forma efetiva no contexto social e no ordenamento jurídico, para assim serem respeitadas as garantias necessárias de todos.
Nas ideias de Carlos Roberto Gonçalves, a doutrina atualmente tem a responsabilidade de:
[...] abranger situações não mencionadas pela Constituição Federal. Fala-se, assim, em: a) Família matrimonial: decorrente do casamento; b) Família informal: decorrente da união estável; c) Família monoparental: constituída por um dos genitores [...] d) Família anaparental: constituída somente pelos filhos e) Família homoafetiva: formada por pessoas do mesmo sexo; f) Família eudemonista: caracterizada pelo vínculo afetivo. (GONÇALVES, 2020, p. 46 e 47).
Conclui Carlos Roberto Gonçalves em um contexto generalizado, que “o ideal de família evoluiu juntamente com a sociedade, evolução esta que ainda não se findou, vez que, como já dito, o conceito e a ideia de família é volátil e está em constante alteração” (GONÇALVES, 2020, pág. 50).
Porém, as questões relacionadas à bigamia são tratadas com descaso perante o direito, isso se deve pelo fato de ser impedido pelo lado jurídico, e ser moralmente condenado pelo lado religioso e social, afetando negativamente aqueles que interessam.
3.UMA ANÁLISE DO ARTIGO 235 DO CÓDIGO PENAL QUE PUNE A BIGAMIA E AS CONTROVÉRSIAS ACERCA DA CRIMINALIZAÇÃO
Segundo o ordenamento jurídico, para ser considerado crime se faz necessário lei anterior ao tempo do crime e para incidir pena ao agente é imprescindível que haja dispositivo que verse sobre. Se alguns destes elementos não ficarem evidenciados, não há a infração e muito menos o que punir.
Nesta linha, Damásio de Jesus apresenta que:
Para que haja crime é preciso, em primeiro lugar, uma conduta humana positiva ou negativa (ação ou omissão). Mas nem todo comportamento do homem constitui delito. Em face do princípio de reserva legal, somente os descritos pela lei penal podem assim ser considerados. (JESUS, 2019, p. 276).
O doutrinador Cezar Roberto Bittencourt descreve crime como uma “ação típica, antijurídica e culpável” (BITENCOURT, 2021, p. 587).
Assim, explica ainda Damásio de Jesus que o fato típico é uma ação humana que gera um resultado previsto nas sanções penais; a antijuricidade é o conflito entre o ordenamento jurídico e o fato praticado; e a culpabilidade é a desaprovação sobre aquele que praticou fato típico e antijurídico. (JESUS, 2019).
Deste modo, de forma resumida, crime é uma ação ou omissão (fato típico) prevista no código penal (antijuricidade) que cause reprovação social (culpabilidade).
3.1 A BIGAMIA EM ÂMBITO PENAL
Desde 1942, esta elencado no artigo 235 do Código Penal Brasileiro, o crime de bigamia:
Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.
§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime. (BRASIL [2021 b], N.p.).
Como disposto, é proibido e punido pelo código penal a hipótese da pessoa já casada contrair um outro casamento, sem dissolver o anterior. Sendo um o delito então considerado contra o casamento. A pena para quem comete tal crime é de 2 a 6 anos de reclusão, sendo considerada assim inflação de elevado potencial ofensivo.
Como afirma o doutrinador Rogério Greco o sujeito ativo do crime é o cônjuge que contrai o novo casamento, no qual já é casado. Podendo também ser autor do delito a pessoa que não é casada, porém se casa com a pessoa que tem o matrimônio, porém deve demonstrar ter conhecimento do casamento, embora punido de forma menos gravosa. Figuram como sujeito passivo os cônjuges enganados, assim como o Estado (GRECO, 2020).
Entretanto, como diz o §2º do Art. 235, “se o primeiro casamento for nulo, independente de motivo estranho à bigamia, a conduta será classificada como atípica” (BRASIL [2021 b], N.p).
A criminalização da bigamia, segundo Carlos Roberto Gonçalves, visa proteger a figura do casamento monogâmico, que é a forma de organização familiar regra do Brasil, onde os indivíduos somente podem casar-se com uma única pessoa, repudiando assim as relações poligâmicas (GONÇALVES, 2016).
Contrair novo casamento seria o núcleo jurídico do crime de bigamia, ou seja, se concretiza quando os cônjuges celebram o casamento. Cezar Roberto Bittencourt diz que “[...] O erro sobre a subsistência do matrimônio anterior exclui o dolo, mas a existência de dúvida é suficiente para configurar o dolo eventual”. (BITENCOURT, 2012, p. 493).
A bigamia possui o concurso necessário como uma de suas características, pois como afirma Rogério Greco depende de duas pessoas para firmar o casamento. Porém, ambas as partes não serão punidas pelo crime, pois a outra só responde se tiver ciência do primeiro casamento do seu parceiro (GRECO, 2020).
Segundo Fernando Capez ainda há crime de bigamia se um dos cônjuges estiver ausente, ou seja, após um dos cônjuges ter sido declarado ausente, e não ter o contrato de casamento sido desconsiderado, acabará praticando a bigamia (CAPEZ, 2012).
O delito de bigamia não tem previsão na modalidade culposa, como afirma Cezar Roberto Bitencourt, sendo o elemento subjetivo para que se concretize a bigamia o dolo (BITENCOURT, 2020). Ou seja, somente se consuma de forma dolosa.
Sobre a tentativa, Fernando Capez traz que a corrente minoritária defende que se mostra possível no crime de bigamia, quando as partes só não se casam por motivos alheios a sua vontade. Já a corrente majoritária defende que os atos anteriores ao casamento são somente atos preparatórios, classificando como celebração interrompida pela verdade e não tentativa (CAPEZ, 2020).
O crime de bigamia para se concretizar, se faz necessário omitir com a verdade, no caso mentir sobre seu estado civil. Com essa mentira, se consumaria o crime de falsidade ideológica. Como ensina o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt se houver a consumação da bigamia, o delito de falsidade ideologia é absorvido. E se não houver a consumação da bigamia, o ato será julgado apenas por falsidade ideológica por haver somente os atos preparatórios (BITENCOURT, 2020).
Consoante ao tipo de ação penal, Cezar Roberto Bitencourt narra que se tratando do crime de bigamia, será pública incondicionada a representação (BITENCOURT, 2020). Ou seja, o Estado denunciará o sujeito ativo pelo crime de bigamia, mesmo que os envolvidos não o queiram.
Esse delito está previsto no Brasil desde 1603 com as ordenações Filipinas, no Livro V, Título XIX, sob a narrativa que “Do homem, que casa com duas mulheres, e da mulher, que casa com dois maridos” (PORTUGAL, 1603), porém era tratado de forma mais rigorosa do que vemos hoje, punível até mesmo com pena de morte.
O legislador à época seguia a forte influência moral e religiosa trazida principalmente pela idade média, tratava a bigamia como um delito pecaminoso, e as pessoas que a cometiam eram pecadores, por isso eram punidas. Essa visão preconceituosa do legislador perdura até os dias atuais com a condenação da bigamia pelo direito penal e a proibição da bigamia no direito civil, mesmo com as evoluções sociais e familiares decorrentes.
No código civil a bigamia expressa uma das causas de impedimento para o casamento, conforme artigo 1521, VI, do código civil, in verbis: “Art. 1.521. Não podem casar: VI - as pessoas casadas” (BRASIL [2021 c], N.p).
Ou seja, pelo Código Civil é considerado nulo o casamento de três ou mais pessoas, além disso, há a possibilidade de ser penalizado caso o casamento ocorra conforme o artigo 235 do Código Penal.
O referido dispositivo traz outras causas que impedem o casamento[6], além da bigamia, e essas causas são punidas, no artigo 237 do Código Penal, in verbis: “Contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta: Pena - detenção, de três meses a um ano” (BRASIL [2021 b], N.p). Sendo consideradas inflações de menor potencial ofensivo.
O legislador penalista erra ao dar ênfase somente a uma das causas de impedimento ao casamento, tendo a Bigamia um tratamento mais gravoso, enquanto as outras causas de impedimento do artigo 1521 do código civil recebem punição mais branda.
3.2 A BIGAMIA EM ÂMBITO CIVIL
Mais de um casamento civil ao mesmo tempo é a conduta a ser punível na bigamia. Clóvis Beviláqua conceitua casamento como:
O casamento é um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por eles suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e interesses, e comprometendo-se a criar e a educar a prole, que de ambos nascer. (BEVILÁQUA. 1859, pág. 210) .
Como afirma o Código Civil, em seu artigo 1.511, o “casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” (BRASIL [2021 c], N.p.).
Concluindo que a natureza jurídica do casamento é um ato de autonomia privada, do qual os possíveis cônjuges decidem se vão se casar ou não. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda ainda ensina que “os requisitos essenciais do casamento são: consentimento e celebração na forma da lei. Faltando apenas um desses requisitos, o casamento será inexistente” (MIRANDA, 2006, N.p.). Já a doutrina tradicionalista compreende que além desses, a diferença de sexo seria também um pressuposto. Porém esse requisito já tem entendimento superado com o julgamento do STF da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADIN nº 4277), no sentindo de que há casamento válido, existente e eficaz entre pessoas do mesmo sexo.
Sobre a validade do casamento, o artigo 104 do Código Civil demonstra que:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei. (BRASIL [2021 c], N.p.).
Ou seja, consoante o Código Civil para o casamento ser válido é necessário que os agentes tenham atingido a idade núbil e que não sejam impedidos pela legislação; que seja respeitado o contrato do casamento, com a devida forma de distribuição de bens; e deve corresponder aos interesses dos nubentes, ambos devem ter a vontade de firmar o casamento (BRASIL [2021 c]).
A bigamia, não é só condenada pelo direito penal, como também é proibida no direito civil em seu artigo 1521, inciso VI: “Não podem casar: [...] VI – As pessoas casadas” (BRASIL [2021 c], N.p.). Sendo considerada no âmbito civil como uma causa que impossibilita a realização do casamento.
A criminalização da bigamia no direito penal e a proibição pelo direito civil tem como base a defesa da monogamia pelo Estado, no qual se impõe na forma de tutelar o instituto casamento. Nas palavras de João Pereira Lima Filho
O Princípio da Monogamia proíbe o matrimônio com mais de uma pessoa e determina que haja fidelidade recíproca do homem com a esposa e vice-versa. Dessa forma, é imposto que todas as relações de afeto, comunhão, carnais, de deveres e obrigações sejam realizadas com apenas um cônjuge. Este tornou-se a base para instituir a entidade que detêm tutela especial do Estado para sua proteção, a Família. (FILHO, 2015, n.p)
Importante destacar que o princípio na monogamia não se encontra na Constituição Federal de forma implícita, mas está presente no nosso ordenamento desde tempos antigos, sendo um dogma capaz de influenciar as relações familiares.
Por ser segundo o artigo 226 da CRFB/88 constitucionalmente equiparado ao casamento, as uniões estáveis tem os mesmos efeitos civis, a diferença é que o casamento é mais formal, necessitando para sua formação o Registro Civil, já na União Estável, não existe essa obrigatoriedade de registro.
Uma jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul reconheceu a união poliafetiva entre três pessoas, para efeitos de herança e partilha dos bens:
APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. PARTILHA. "TRIAÇÃO". ALIMENTOS PARA EX-COMPANHEIRA E PARA O FILHO COMUM. Viável reconhecer união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que restou cabalmente demonstrada a existência de união estável entre as partes, consubstanciada em contrato particular assinado pelos companheiros e por 03 testemunhas; e ratificada pela existência de filho comum, por inúmeras fotografias do casal junto ao longo dos anos, por bilhetes e mensagens trocadas, por existência de patrimônio e conta bancária conjunta, tudo a demonstrar relação pública, contínua e duradoura, com claro e inequívoco intento de constituir famílias e vida em comum. Reconhecimento de união dúplice que impõe partilha de bens na forma de "triação", em sede de liquidação de sentença, com a participação obrigatória da esposa formal. Precedente jurisprudenciais. Ex- companheira que está afastada há muitos anos do mercado de trabalho, e que tem evidente dependência econômica, inclusive com reconhecimento expresso disso no contrato particular de união estável firmado entra as partes. De rigor a fixação de alimentos em prol dela. Adequado o valor fixado a título de alimentos em prol do filho comum, porquanto não comprovada a alegada impossibilidade econômica do alimentante, que inclusive apresenta evidentes sinais exteriores de riqueza. Apelo do réu desprovido. Apelo da autora provido. (TJ-RS - AC: 70039284542 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 23/12/2010, Oitava Câmara Cível).
Até então as pessoas que querem formar uma união poliafetiva, agindo de boa-fé e cumprindo os requisitos da união estável, podem ter esse tipo de organização familiar, não sendo punidos pela lei penal.
A criminalização da bigamia fere o princípio constitucional da isonomia, pois a união estável é equiparada ao casamento, entretanto, a pessoa que se casa com mais de uma pessoa comete o crime de bigamia, e o indivíduo que vive em união estável com mais de uma pessoa não comete crime algum , até porque, em regra, não se permite fazer no código penal analogia “in malam partem”.
4 A POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DO ARTIGO 235 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
Como afirma a Wesley Caetano, a revogação é a retirada da vigência de uma lei por meio de outra lei. Em regra, somente os costumes não tem força suficiente para revogar as leis. Continua o autor (CAETANO, 2019, N.p):
A revogação se subdivide em ab-rogação (revogação absoluta, total) e derrogação (revogação parcial), podendo ser expressa (a lei indica em seu corpo os dispositivos legais revogados; exemplo: o art. 75 da Lei de Drogas postula expressamente a revogação da Lei n. 6.368/75 e 11.409/2002), tácita (a lei nova se revela incompatível com a anterior, apesar de não haver indicação expressa de revogação) ou global (quando a lei nova disciplina inteiramente a matéria regulada pela lei anterior, a qual passa a ser ultrapassada e desnecessária).
Ou seja, seguindo a linha de pensamento de Wesley Caetano o princípio da continuidade das leis, uma lei somente é revogada por outra lei. Sendo assim possível a necessidade de revogação de alguma norma que contrarie princípios (CAETANO, 2016, n.p).
Muitos delitos classificados no código penal já foram revogados, visto o desenvolvimento coletivo, e a evolução do direito para suprir as necessidades sociais. Como exemplo o delito de adultério que estava previsto no artigo 240 do Código Penal[7], que foi revogado, pois as questões poderiam ser resolvidas no direito civil e não havia a necessidade do código penal intervir nas relações. Até porque o delito de Adultério historicamente punia de forma mais severa as mulheres, em decorrência da forte influência machista no meio social.
4.1 - INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL
Como já existe a possibilidade de tutela civil no que diz respeito à bigamia, não se faz necessário a existência de sanção penal sobre o mesmo assunto, havendo assim pouca aplicabilidade da lei penal. Como elucida Luiz Flávio Gomes
O Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, é o último recurso ou último instrumento a ser usado pelo Estado em situações de punição por condutas castigáveis, recorrendo-se apenas quando não seja possível a aplicação de outro tipo de direito, por exemplo, civil, trabalhista, administrativo, etc. (GOMES, 2007, pág. 24.).
O direito penal deve intervir somente quando os demais ramos do direito não forem capazes, e o previsto no artigo 1.521, VI, do código civil brasileiro traz o impedimento para o casamento de pessoas já casadas, o mesmo tutelado pelo artigo 235 do código penal, sendo assim, o direito penal no caso narrado não tem tido a sua atuação como “ultima ratio”.
É extremamente importante que cada indivíduo tenha a privacidade e a intimidade protegida pelo direito, e o Estado deve intervir em assuntos referentes a organização familiar somente quando for extremamente necessário.
A doutrinadora Sylvana Machado Ribeiro conta que nessas situações o Estado apenas tem o dever de garantir e resguardar o gozo de exercício da autonomia privada, não oprimindo a liberdade de escolha, seja em casos de organização familiar, liberdade sexual, concepção de filhos, dentre outros aspectos (RIBEIRO, 2014).
No passado o adultério era punido pelo código penal da mesma forma que a bigamia. O Adultério, segundo José Náufel, pode ser definido como “a quebra intencional da fidelidade conjugal, consistindo em ter a pessoa casada, tanto o homem como a mulher, relações sexuais com pessoa de sexo oposto que não seu cônjuge.” (NÁUFEL, 2000, pág. 588). Ou seja, o crime de adultério que se trata da relação de três ou mais pessoas sem a consentimento dos entes foi revogado, e ainda se perdura o delito de bigamia que trata da relação de três ou mais pessoas com o consentimento de todos os envolvidos, com desejo de manter uma relação familiar baseadas no afeto.
A doutrinadora Sylvana Machado Ribeiro critica fortemente a posição do direito brasileiro, afirma que não existe ética alguma em considerar a bigamia crime e não o adultério, defendendo que legislador deveria fazer uma releitura acerca da bigamia de forma consentida (RIBEIRO, 2014).
Não cabe ao direito penal impor sanção a quem não tem uma organização familiar de praxe, mas sim cabe ao Estado dar suporte objetivando a felicidade e o bem-estar garantidos pela dignidade da pessoa humana a todos os cidadãos.
Da mesma forma que o delito de adultério, o crime de Bigamia está ultrapassado, dessa forma deveria ser tutelado por outros ramos do direito e não pelo direito penal. Até porque, o Estado utiliza o direito penal para defesa da coletividade e dos interesses sociais, e nos dias atuais, consagrados com as evoluções sociais e as diversas formas de organização familiar, com a criminalização da bigamia o Estado não protege, mas sim oprimi o indivíduo de exercer seus interesses individuais.
4.2 - ADEQUAÇÃO SOCIAL
O princípio da adequação social, norteado pelos costumes, prega que as normas penais que condenam condutas consideradas toleradas pela sociedade, merecem ser revogadas. Nas palavras de Denise Cristina Mantovani Cera
Concebido por Hans Welzel, o princípio da adequação social preconiza que não se pode reputar criminosa uma conduta tolerada pela sociedade, ainda que se enquadre em uma descrição típica. Trata-se de condutas que, embora formalmente típicas, porquanto subsumidas num tipo penal, são materialmente atípicas, porque socialmente adequadas, isto é, estão em consonância com a ordem social. São exemplos: a circuncisão praticada na religião judaica, a tatuagem, o furo na orelha para colocação de brinco etc. Referido princípio, admitido num caso concreto, pode constituir causa supralegal de exclusão da tipicidade. (Cera, 2010, N.p)
A sociedade evolui, e o direito deve evoluir também para solucionar os anseios sociais, esse principio juntamente com o princípio da intervenção mínima do direito penal foram os fundamentos norteadores para a revogação do adultério. Pâmela de Souza Gonçalves defende que em decorrência da evolução social, com avanços em aspectos familiares, o crime do já revogado artigo 240 do Código Penal, passou a ser uma letra de lei morta (GONÇALVES, 2018, n.p).
Atualmente, as discussões envolvendo as relações poliafetivas vêm trazendo grandes debates no país, os que defendem a criminalização da bigamia utilizam como argumento a instituição da monogamia no Brasil e a imoralidade desses arranjos familiares. Já aqueles que defendem a descriminalização professam que a bigamia, núcleo conjugal não monogâmico, deve ser pautada conforme os princípios da afetividade, dignidade, liberdade e do livre-exercício da autonomia privada, sendo uma entidade familiar que merece reconhecimento jurídico e tutela estatal.
Em meios sociais, em 2022, o site jornalístico G1 publicou uma matéria escrita por Jesana de Jesus intitulada ‘[...] é possível viver um amor livre’[8] contando a história de três pessoas que compartilham um relacionamento amoroso. O assunto repercutiu em todo Brasil de forma positiva, visto as várias mensagens de apoio que o ‘trisal’ recebeu, participando até de vários programas na televisão.
Esse caso demonstrou de forma prática o quanto a sociedade evoluiu, não condenando aquele tipo de organização familiar com base em dogmas religiosos como ocorreu no passado, mas sim demonstrando tolerância e respeito na escolha deles.
No Brasil os casos de pessoas que almejam formar família com mais de duas pessoas só aumentam, e por ser extremamente condenado pelo direito, essas pessoas ficam sem o amparo que merecem, excluídas pela tutela do Estado.
O direito brasileiro erra ao condenar o que já não é mais condenável perante o meio social, o artigo 235 do Código Penal já demonstrou ser letra de lei morta, e não ter efeitos nos dias atuais. O Estado deve respeitar a autonomia privada de todos, não sancionando criminalmente quem se casa com mais de uma pessoa e sim trazendo a tutela necessária pra esse tipo de arranjo familiar, para que todos gozem dos direitos de família, ao casamento digno, direitos sucessórios e afins.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo buscou uma análise acerca da criminalização da bigamia expressa no artigo 235 do código penal brasileiro em consoante com a sociedade atual, descrevendo motivos para a revogação do referido artigo.
Para a realização dos fundamentos, fez-se necessário apresentar a historicidade do instituto família, narrando desde os tempos antigos como eram as formas de organização familiar e como a sociedade evoluiu principalmente com a Constituição Federal de 1988, apresentando as várias formas familiares que passaram a ser reconhecidas no direito.
A concepção de família no passado era limitada por dogmas religiosos, e ações como divórcio, e até relações homoafetivas eram tratadas de forma pecaminosa e truculenta, e graças ao desenvolvimento social esses pensamentos arcaicos se contiveram.
Porém ainda é muito presente pelo legislador o pensamento preconceituoso acerca das uniões anormais de mais de duas pessoas, das quais desejam formar família consensualmente, sendo proibidas a realizar o casamento civil e muitas vezes excluídas dos direitos que as convém.
O artigo 235 do código penal merece ser revogado, pois, o direito penal deve somente agir de forma extremamente necessária, e no caso da bigamia, pode ser tutelada pelo direito civil. E graças às evoluções sociais, as relações poliafetivas não são vistas como algo condenável socialmente. Assim, não compete ao Estado definir a forma de constituir família ao se tratar da bigamia, mas sim compete ao cidadão capaz e de forma consentida, regidos pelos princípios da liberdade e da autonomia privada no âmbito familiar;
Diante exposto, a criminalização da bigamia se tornou ineficaz na sociedade moderna, assim como o já revogado delito de adultério, pois pode ser solucionado por outros ramos do direito e pelo princípio da ultima ratio, o direito penal só deverá ser utilizado em última hipótese, quando os demais ramos do direito falharem, o que não acontece com relação à bigamia, passível de ser tutelada pelo direito civil.
Além do mais, houve uma importante evolução social no que se trata das organizações familiares. Em tempos passados, relações poligâmicas eram vistas com profundo preconceito, principalmente derivados de dogmas religiosos, e nos tempos atuais, esse pensamento retrogrado vai se mostrando desatualizado e obsoleto. A nossa sociedade atual é capaz de compreender e não condenar relações poliafetivas, isso se deve principalmente com as recentes evoluções trazidas pela Constituição Federal acerca das formas de constituir família, sendo a bigamia, em tempos de afetividade, adequada socialmente.
Por esses e outros motivos apresentados no decorrer do artigo científico, existe a clara possibilidade de revogação do artigo 235 do código penal brasileiro, que pune a bigamia.
REFERÊNCIAS
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[1] Me. Bruno Vinicius Nascimento Oliveira. Professor da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP). E-mail: [email protected]
[2] STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341. Disponível em< https://portal.stf.jus.br/ ADI:4277>.
[3] Instituto Brasileiro de Direito de Família. Escritura reconhece união afetiva a três. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/4862/novosite>.
[4] CNJ, Pedido de Providência. 0001459-08.2016.2.00.0000, Rel. Min. João Otávio de Noronha.
[5] EXPRESSO DE NOTÍCIAS. Justiça determina divisão de bens entre esposa, concubina e filhos. Disponível em: <https://expressonoticia.jusbrasil.com.br/noticias/136622/justica-determina-divisao-de-bens-entre-esposa-concubina-e-filhos>.
[6] Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. (BRASIL, [2021 c], N.p.)
[7] Trata-se do art. 240 do Código Penal de 1940, revogado pela Lei n. 11.106/05, publicada no Diário Oficial da União em 29.03.05.
[8] JESUS, Jesana de. G1. Advogada e empresário casados há 15 anos assumem trisal com influencer e criam perfil para dividir experiências: 'é possível viver um amor livre'. Disponível em: < https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2022/03/23/advogada-e-empresario-casados-ha-15-anos-assumem-trisal-com-influencer-e-criam-perfil-para-dividir-experiencias-e-possivel-viver-um-amor-livre.ghtml>.
Bacharelando em Direito pela União Educacional de Ensino Superior do Médio Tocantins (UNEST)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Thalles Luan Alves. A possível necessidade de revogação do artigo 235 do Código Penal brasileiro que tipifica a bigamia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58288/a-possvel-necessidade-de-revogao-do-artigo-235-do-cdigo-penal-brasileiro-que-tipifica-a-bigamia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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