RESUMO: o presente trabalho analisa os recentes entendimentos dos tribunais superiores sobre os limites da soberania dos vereditos emitidos pelo conselho de sentença, bem como sua conciliação com o dever de prestação jurisdicional dos tribunais na apreciação recursal. Para tanto, fez-se uso do método dedutivo, com pesquisa bibliográfica em fontes doutrinárias e jurisprudenciais. Observa-se uma tendência de alargar a margem de apreciação dos tribunais incidente sobre as decisões tomadas no tribunal do Júri, tanto na primeira quanto na segunda fases, a fim de evitar arbitrariedades. No entanto, as premissas agasalhadas pelos precedentes dos tribunais superiores contêm imprecisões metodológicas que necessitam ser dissecadas, visando ao contínuo aprimoramento do debate e da prática do júri no Brasil.
Palavras-chave: Soberania dos vereditos. Íntima convicção. Apelação. Decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Dever de prestação jurisdicional. STJ. STF. TJCE. Nulidade do Júri.
ABSTRACT: The present work analyzes the recent understandings of the superior courts on the limits of the sovereignty of the verdicts issued by the sentencing council, as well as their conciliation with the jurisdictional duty of the courts in the appellate review. For that, the deductive method was used, with bibliographic research in doctrinal and jurisprudential sources. There is a tendency to widen the discretion of the courts on decisions taken by the Jury, both in the first and second stages, in order to avoid arbitrariness. However, the premises covered by the precedents of the superior courts contain methodological inaccuracies that need to be dissected, aiming at the continuous improvement of the debate and the practice of the jury in Brazil.
Keywords: Sovereignty of verdicts. Intimate conviction. Appeal. Decision clearly contrary to the evidence of the case. Duty to provide jurisdiction. STJ. STF. TJCE. Jury nullity.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Aportes doutrinários sobre a apelação contra decisão manifestamente contrária à prova dos autos. 3. Posições do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. 4. Entendimento atual do STJ no REsp. 1.803.562/CE. 5. Conclusão. 6. Referências.
1-INTRODUÇÃO
O presente artigo traça um panorama sobre o embate atual entre a soberania dos vereditos e os limites dos tribunais de segunda instância na apreciação das apelações interpostas contra decisões do Júri manifestamente contrárias à prova dos autos.
Historicamente, o sistema de julgamento popular remonta à Grécia antiga. Em Atenas, a decisão sobre crimes de sangue competia ao Areópago, órgão cujos membros eram escolhidos por sorteio entre os cidadãos atenienses, à semelhança do que ocorre no Direito brasileiro.
Na Roma clássica havia a distinção em relação à natureza dos delitos. A lex licinia, legislação de 55 a.C., previa a formação por sorteio de um corpo de jurados leigos, que prestavam compromisso de bem desempenhar suas funções judiciárias no processo penal.
Nascido nos sistemas antigos, o tribunal do júri evoluiu e percorreu diversos ordenamentos legais no mundo – tais como na Inglaterra, Alemanha e França –, chegando ao Brasil oficialmente em 1822, quando o príncipe regente Dom Pedro de Alcântara, por decreto imperial, instituiu o Tribunal do Júri do Brasil.
Atualmente, a demanda pelo tribunal do júri no país é alta: pesquisa do Conselho Nacional de Justiça de 2019 mostrou a existência de 185.898 ações de competência do júri em tramitação, das quais 43 mil já tinham a sentença de pronúncia.
O mesmo levantamento apontou que, entre 2015 e 2018, 52% dos julgamentos no tribunal do júri acabaram sem nenhuma punição ao réu, predominando as decisões que reconheceram a extinção da punibilidade, em especial a prescrição da pretensão punitiva.
Os tribunais de superposição laboram verdadeiras ginásticas hermenêuticas na tentativa de conciliar a garantia constitucional prevista no art. 5ª, XXXVIII, “c” da Constituição Federal e os limites de devolutividade do recurso de apelação previsto no art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal. Em consequência disso, também pairam questões relacionadas aos limites dos recursos excepcionais, como os recursos especial e extraordinário, interpostos contra o julgamento da apelação.
No âmbito dos recursos excepcionais, é vedada a incursão nas provas. No entanto, como se verá, essa restrição nem sempre é interpretada à risca pelos tribunais superiores, havendo entendimento atual do STJ sobre a possibilidade de este tribunal aferir a existência de provas no aresto vergastado em sede de apelo nobre, vedando apenas a operação mental de valoração da prova acaso existente.
2- APORTES DOUTRINÁRIOS SOBRE A APELAÇÃO CONTRA DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS.
A decisão manifestamente contrária à prova dos autos, que desafia a apelação prevista no art. 593, III, “d” do CPP, pode estar relacionada tanto ao fato principal, à autoria, às causas excludentes da ilicitude ou da culpabilidade, como versar sobre questão secundária, como o reconhecimento de uma qualificadora, causa de aumento ou de diminuição da pena.
Existe uma corrente doutrinária, francamente minoritária, que entende que o art. 593, III, “d”, do CPP seria inconstitucional, por violar a soberania dos vereditos. Assim, não seria possível que um tribunal superior composto por juízes togados determinasse a realização de novo julgamento, com a justificativa de manifesto desrespeito à prova dos autos. No entanto, a posição que prevalece é de que seria inconcebível uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos que não pudesse ser revista por meio de recurso, o que poderia afrontar o princípio do duplo grau de jurisdição, implícito na Constituição Federal, e explícito no art. 8º, item 2, “h” da Convenção Americana de Direitos Humanos.
À época da entrada em vigor do Código de Processo Penal, havia resistência dos Tribunais de Apelação em aceitar a soberania dos Júri, cujas decisões eram amiúde reformadas em grau de recurso.
A Constituição de 1937 silenciou acerca deste tema, dando margem a que o Decreto-Lei n.º 167/38, em seu art. 92, “b”, abolisse a soberania dos veredictos do Júri, permitindo o recurso de apelação quanto ao mérito da questão, nos casos de injustiça da decisão, por sua completa divergência com as provas existentes nos autos ou produzidas em plenário. Segundo o art. 96 do referido Decreto-Lei, o Tribunal de Apelação poderia aplicar pena mais justa ou mesmo absolver o réu. Tais normas foram posteriormente incorporadas pelo Código de Processo Penal de 1941. O art. 141, §28, da Constituição de 1946 recolocou a instituição do júri entre as garantias individuais, prevendo o número ímpar de seus membros, plenitude da defesa, sigilo da votação e soberania dos vereditos. A Lei nº 263/48 regulamentou a soberania dos vereditos prevista na constituição.
A alteração dos vereditos do Júri pelos tribunais sempre foi alvo de críticas da doutrina, desde sua instituição em 1822. Câmara Leal assinalou que, do modo como tem se interpretado a lei processual, arrogando-se os tribunais superiores o direito de reforma das sentenças do júri, sem respeito à livre apreciação das provas pelos juízes de fato, o júri tende a perder sua razão de ser, passando de tribunal popular, criado para julgamento pelos pares, a simples simulacro de tribunal, com suas funções constantemente usurpadas pela justiça togada, convertida em árbitro absoluto e soberano das decisões.
Modernamente, no entanto, a jurisprudência evoluiu nessa temática, restringindo a possibilidade de reforma das decisões dos jurados somente para os casos de evidente equívoco na análise da prova.
O art. 593, §3º, parte final, do CPP não admite mais de uma apelação em face de decisão contrária à prova dos autos. A esse respeito, não importa quem interpôs o recurso primeiro. Assim, se o Ministério Público recorre de um veredito absolutório, invocando o art. 593, III, “d”, e o tribunal determina novo julgamento, que porventura culmina em condenação do acusado, não poderá a defesa apelar em seguida, sob o argumento de que a decisão foi divergente da prova dos autos. Essa vedação decorre de imperativo lógico, ainda que sem previsão legal expressa. Afinal, se o primeiro julgamento absolutório do júri foi considerado manifestamente contrário à prova dos autos pelo tribunal, daí por que foi cassada a decisão, submetendo-se o acusado a novo julgamento, na hipótese de ser proferido um decreto condenatório pelo segundo júri, tal decisão não será considerada manifestamente contrária à prova dos autos pelo juízo ad quem, sob pena de o tribunal contrariar o quanto decidido por ele mesmo na apelação anteriormente apreciada.
A doutrina reconhece a dificuldade de estabelecer balizas objetivas na aplicação do art. 593, III, “d” do CPP. No entanto, é possível delimitar algumas premissas que o julgador não pode descurar.
Comentando o dispositivo legal citado, Eugênio Pacelli e Douglas Fischer obtemperam:
“A necessidade de relativização do princípio da soberania diante da norma em comento é de todo razoável para as circunstâncias excepcionais. Com efeito, não se pode esquecer que o julgamento de delitos contra a vida (sem embargo dos eventuais conexos) se dá em momento no qual as oratórias são fundamentais e a evocação de sentimentalidades podem influenciar diretamente na convicção dos jurados, mesmo que a prova não seja no sentido da sustentação. Independentemente da posição que se tome, favorável ou não à presença ainda do Conselho de Sentença para os crimes dolosos contra a vida, significa que é necessário haver um controle do que decidido, seja pelo tribunal (questão aqui tratada) ou então em hipótese de revisão criminal (art. 621, CPP).
Em casos manifestos, absurdos, não poderá prevalecer decisão que contrarie totalmente a prova existente nos autos criminais. Mas é preciso ter extremo cuidado. Não se poderá pleitear a nulificação do que decidido pelo Júri se houver nos autos provas que amparem tanto a condenação quanto a absolvição. Nesse caso, não se está diante de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, mas unicamente de adoção pelo Júri (pelo seu livre convencimento, sequer motivado – uma exceção ao art. 93, IX, CF/88) de uma das teses amparada por provas presentes nos autos. Nessas situações, não há de se falar em admissibilidade do recurso de apelação forte no art. 593, III, d, CPP. (Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, 9ª edição, 2017, editora Atlas, pág. 937)”.
De forma mais enfática, Gustavo Henrique Badaró expõe:
“A mais controversa das hipóteses de cabimento da apelação das sentenças do Tribunal do Júri é a da sentença em que a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos (CPP, art. 593, caput, III, d). Isto é, só será passível de cassação pelo tribunal de segunda instância a decisão dos jurados no caso de toda a prova indicar num sentido (por exemplo, a absolvição), e o conselho de sentença decidir em sentido oposto (por exemplo, condenam o acusado). Se as provas indicam duas possíveis soluções, cada uma delas admissível segundo um determinado segmento da prova, a decisão dos jurados que opte por qualquer uma delas não poderá ser considerada arbitrária e manifestamente contrária à prova dos autos. Fácil concluir que essa construção permite, em suma, que os jurados, tranquilamente, no caso de dúvida, optem por condenar o acusado. Ou seja, se o conselho de sentença aplicar o in dubio contra reum, rasgando a presunção de inocência, nenhuma censura poderá receber sua decisão. (Manual dos Recursos Penais, 2017, Revista dos Tribunais, págs. 186/188)”.
A questão é assim sintetizada por Noberto Avena:
“Somente é manifestamente contrária à prova dos autos a decisão dos jurados que se dissocia, integralmente, de todos os segmentos probatórios aceitáveis dentro do processo. Assim, se houver provas que amparem a decisão do Conselho de Sentença, não se anula o julgamento com base nesta alínea d, não importando o fato de existir número maior de elementos apoiando a tese rejeitada pelos jurados. (Processo Penal, 2017, editora método, pág. 837)”.
Guilherme de Souza Nucci minudencia a questão de forma detalhada:
“A quarta hipótese (alínea d do inciso III do art. 593) é a mais problemática, pois busca questionar diretamente o mérito do veredicto dos jurados, desde que se considere seja ele manifestamente contrário à prova dos autos. Não se trata de análise fácil distinguir entre a decisão que valorou a prova e proferiu o veredicto de acordo com a convicção íntima do Conselho de Sentença e aquela que se dissociou da prova, provocando o surgimento de veredicto totalmente estranho ao evidenciado nos autos.
Por vezes, o tribunal termina invadindo o âmbito exclusivo da apreciação do Tribunal Popular, reformando decisão que está em consonância com a prova, mas não com a orientação da corte togada. Cuida-se, nesse caso, de grave erro, que atenta contra o preceito constitucional da soberania dos veredictos. Exemplificando: se o Conselho de Sentença, valorando a prova, entende que houve recurso que dificultou a defesa da vítima, não pode o tribunal togado desacolher essa interpretação, a pretexto de que a Câmara tem posição firmada no sentido de que, naquela situação
fática, não se deve acolher a qualificadora.
Por outro lado, a simples existência do recurso de apelação voltando ao questionamento da decisão dos jurados não constitui, por si só, ofensa ao princípio constitucional da soberania dos veredictos; ao contrário, harmonizam-se os princípios, consagrando-se na hipótese o duplo grau de jurisdição. Além do mais, a Constituição menciona haver soberania dos veredictos, não querendo dizer que exista um só. A isso, devemos acrescentar que os jurados, como seres humanos que são, podem errar e nada impede que o tribunal reveja a decisão, impondo a necessidade de se fazer um novo julgamento. Isto não significa que o juiz togado substituirá o jurado na tarefa de dar a última palavra quanto ao crime doloso contra a vida que lhe for apresentado para julgamento.
Por isso, dando provimento ao recurso, por ter o júri decidido contra a prova dos autos, cabe ao Tribunal Popular proferir uma outra decisão. Esta, sim, torna-se soberana, porque essa hipótese de apelação só pode ser utilizada pela defesa uma única vez (art. 593, § 3º). (Manual de Processo Penal e Execução Penal, 2016, editora Forense, pág. 835)”.
Percebe-se claramente uma dificuldade na doutrina em estabelecer critérios objetivos acerca do alcance da atividade judicante na apelação referida. Essa indecisão doutrinária tem ecoado na jurisprudência, que oscila na aplicação do dispositivo legal. À falta de firmeza nos escritos doutrinários, os precedentes dos tribunais superiores se esforçam na busca de critérios objetivos e racionais que estabeleçam balizas para o exame da apelação. A despeito de todo o esforço hermenêutico em incontáveis julgados, a questão está longe de se consolidar.
3- POSIÇÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DO TEMA.
O julgamento pelo Júri possui um procedimento bifásico, onde na primeira fase ocorre o juízo de formação de culpa (judicium accusatione), e na segunda fase ocorre o julgamento da causa pelo Conselho de sentença (judicium causae). A primeira fase é encerrada pela decisão de pronúncia, uma decisão interlocutória mista não terminativa: mista porque encerra a primeira fase do júri e não terminativa porque não julga o mérito da causa. Já a segunda fase é encerrada pelo veredito dos jurados.
Os tribunais superiores têm se debruçado sobre os limites das duas decisões indicadas acima. No REsp. Nº 1.740.921, a Quinta Turma do STJ entendeu ser incabível admitir a sentença de pronúncia de um acusado com base apenas em indícios derivados do inquérito policial.
Por sua vez, a Sexta Turma do STJ, ao julgar o REsp. Nº 1.373.356, considerou que as provas produzidas no inquérito, baseadas em depoimentos de testemunhas que afirmaram "ouvir dizer" sobre o delito, não poderiam amparar a decisão que pronunciou denunciados pelo crime de homicídio qualificado.
Ao contrário dos atos do inquérito policial, as evidências recolhidas durante a primeira fase do júri têm eficácia e validade perante o órgão julgador da causa, uma vez que foram produzidas na presença das partes e do juiz, pelo método do contraditório.
Embora não haja impedimento legal no Brasil ao depoimento de testemunha indireta, nesse tipo de testemunho por ouvir dizer (hearsay rule) – pouco confiável, visto que os relatos se alteram quando passam de boca a boca, – o acusado não tem como refutar o que o depoente afirma sem indicar a fonte direta da informação trazida a juízo.
De outro giro, no julgamento do AREsp nº 1.084.726, a defesa de um acusado pelo crime de homicídio alegava que não existiam indícios suficientes de autoria e, por isso, buscava a impronúncia. Entretanto, o STJ decidiu que na decisão de pronúncia, o ordenamento jurídico exige apenas o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando os requisitos necessários à prolação da condenação, de forma que as dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade, conforme previsto no artigo 413 do CPP. Como será visto adiante neste trabalho, o STF possui entendimento diverso.
No Habeas Corpus nº 243.452, o STJ entendeu que, quando no julgamento de apelação, o tribunal determina a realização de novo júri em razão do reconhecimento de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária às provas, não é possível conceder às partes o direito de inovar o conjunto probatório com a apresentação de novo rol de testemunhas a serem ouvidas em plenário. Este entendimento impacta diretamente nas consequências da decisão do STJ examinada no tópico seguinte deste artigo.
Por sua vez, no julgamento do Habeas Corpus nº 313.251, a terceira seção do STJ apontou que a absolvição do réu pelos jurados, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o tribunal cassá-la quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão do conselho de sentença com as provas apresentadas em plenário.
O art. 483, III, do CPP, prevê o quesito genérico e obrigatório de absolvição, trazido pela reforma operada pela Lei nº 11.689/2008. Como esse quesito é genérico, diversos doutrinadores sustentaram a tese de que os jurados passaram a gozar de ampla e irrestrita autonomia no momento de decidir pela absolvição, não se achando adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, às teses suscitadas em plenário ou a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica. É a chamada absolvição por clemência.
No entanto, analisando esse dispositivo legal, o STJ também impôs limites a essa decisão, conforme o seguinte acórdão:
“As decisões proferidas pelo conselho de sentença não são irrecorríveis ou imutáveis, podendo o Tribunal ad quem, nos termos do art. 593, III, d, do CPP, quando verificar a existência de decisão manifestamente contrária às provas dos autos, cassar a decisão proferida, uma única vez, determinando a realização de novo julgamento, sendo vedada, todavia, a análise do mérito da demanda.
A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição.
Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no art. 483, III, do CPP”. (STJ. 3ª Seção. HC 313.251/RJ, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28/02/2018). No mesmo sentido, o HC 560.668/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado pela 5ª turma em 18/08/2020.
De outro giro, no tocante à possibilidade de apelação pelo Ministério Público em face da decisão dos jurados de absolvição genérica, com esteio no art. 593, III, “d” do CPP, o STF tem se posicionado contrário ao seu cabimento, apesar de a questão pender de apreciação final, conforme se verá adiante:
“A absolvição do réu, ante reposta a quesito genérico de absolvição previsto no art. 483, §2º, do CPP não depende de elementos probatórios ou de teses veiculadas pela defesa. Isso porque vigora a livre convicção dos jurados. (STF. 1ª Turma. HC 178.777/MG, j. 29/09/2020)”.
Por sua vez, no RHC 170559/MT, julgado em 10/03/2020, a 1ª Turma do STF decidiu que:
“A anulação de decisão do tribunal do júri, por ser manifestamente contrária à prova dos autos, não viola a regra constitucional que assegura a soberania dos veredictos do júri (art. 5º, XXXVIII, c, da CF/88). Vale ressaltar, ainda, que não há contrariedade à cláusula de que ninguém pode ser julgado mais de uma vez pelo mesmo crime. Ainda que se forme um segundo Conselho de Sentença, o julgamento é um só, e termina com o trânsito em julgado da decisão”.
Como se observa, a oscilação da doutrina acerca do tema ecoa nos precedentes dos tribunais superiores, que não encontram um fio condutor que uniformize a jurisprudência. Isso decorre do dilema lógico-jurídico de conciliar na práxis forense dispositivos com domínios normativos antagônicos.
4- Entendimento atual do STJ no REsp. 1.803.562/CE.
Buscando reduzir a subjetividade na análise da apelação disposta no art. 593, III, do CPP, a 5ª Turma do STJ julgou por unanimidade o Recurso Especial nº 1.803.562-CE, em 2021. Pelo entendimento sufragado na corte, o exame da apelação pelo tribunal de segunda instância deve se limitar à constatação da existência de provas que embasam o veredito dos jurados, evitando emitir juízo de mérito na valoração das provas acaso existentes. O mesmo se aplica ao próprio STJ, na análise do recurso especial eventualmente interposto contra o julgamento da apelação, operação que não resvala na Súmula 07/STJ.
Os argumentos do voto condutor merecem ser dissecados, a fim de apontar as possíveis fissuras nas premissas utilizadas neste julgamento, que inovou o tema em diversos aspectos.
No acórdão em comento, a 5ª Turma do STJ buscou estabelecer critérios racionais de persuasão do julgador. Nas palavras do relator, Min. Ribeiro Dantas:
“O TJ/CE fez um salto cognitivo a partir dos fatos que entendeu comprovados pelas testemunhas - premissas fáticas indiscutíveis, nos termos da Súmula 7/STJ - para a confirmação da condenação. Definir se tal salto é válido e racional não é questão relativa ao conhecimento, mas sim ao mérito do recurso especial, a ser resolvida mediante a correta interpretação das normas processuais que montam nosso sistema probatório. Caso contrário, o controle da aplicação de grande parte da legislação processual penal - federal por natureza -, mormente os arts. 155 a 157 do CPP, seria permanentemente subtraída do exame desta Corte Superior, em violação do art. 105, III, "a", da Constituição da República.”
A questão que surge gira em torno das dificuldades em definir a manifesta contrariedade explicitada no art. 593, III, "d", do CPP. No exame desta apelação, o tribunal é limitado horizontal e verticalmente. No plano horizontal, a apelação possui fundamentação vinculada aos motivos da irresignação, não podendo analisar nulidades, por exemplo. Todavia, no plano vertical, o tema está em aberto. No julgado em comento, o STJ delimitou dois juízos distintos que o julgador deve realizar nas provas, o antecedente e o consequente. No juízo antecedente, o tribunal de segunda instância (TJ ou TRF) analisa se existem provas, sem valorá-las. No juízo consequente, o julgador irá meditar sobre as provas e chegar ao seu convencimento. Esse último juízo compete ao conselho de sentença.
Se o Tribunal exceder tais limites e realizar o juízo consequente, terá afrontado a soberania dos vereditos prevista no art. 5º, XXXVIII, "c", da Constituição da República; se, por outro lado, exagerar na postura de autocontenção e não fizer sequer o juízo antecedente, incorrerá em nulidade por negativa de prestação jurisdicional.
Na fundamentação do julgado, o relator recorreu à doutrina e jurisprudência estrangeiras, em especial do direito norte-americano, que possui um sistema de júri bem mais amplo que o adotado no ordenamento brasileiro. A Sétima Emenda foi citada no voto condutor, no entanto, seu conteúdo se refere originalmente às ações cíveis, compondo a Carta de Direitos. Eis seu texto:
“Em concordância com a lei comum, onde o valor em controvérsia deverá exceder vinte dólares, o direito de julgamento por um júri deve ser preservado, e nenhum fato decisão feita por um júri, deverá ser reexaminada em nenhuma corte dos Estados Unidos, também de acordo com as regras da lei comum.”
Em termos atuais, vinte dólares em 1800 valem cerca de 300 dólares em valores correntes. Essa Emenda vedou a reforma das decisões do Júri pelos juízes togados, sendo estendida aos feitos criminais.
O voto condutor do julgado prossegue sua fundamentação aludindo à no evidence doctrine, aplicada em Thompson v. Louisville, que ficou conhecida como doutrina Thompson. Por ela, os tribunais poderiam reformar as decisões dos jurados quando não houvesse nenhum evidência do crime.
Em seguida, o voto cita o case Greenleaf v. Birth, de 1835. Neste julgamento, ficou estabelecido que, em não havendo provas que tendam a provar determinado fato, o tribunal é obrigado a instruir o júri quando solicitado, mas não pode juridicamente dar qualquer instrução que tire ao júri o direito de ponderar o efeito da prova. Uma instrução ao júri fundada apenas em parte da prova é um erro. Essa última frase foi omitida no voto condutor, mas é de importância capital para garantir a imparcialidade do julgamento pelo júri.
O voto cita ainda o case Lessee of Ewing v. Burnet, julgado em 1837. No entanto, esse precedente estrangeiro diz respeito a uma disputa civil, vinculada a direito possessório e usucapião.
Por fim, o voto condutor fundamentou suas premissas no célebre caso Jackson v. Virgínia, julgado em 1979 pela SCOTUS (Supreme Court of the United States). O caso se trata de um acusado por assassinato de primeiro grau com premeditação. No entanto, a premeditação não foi comprovada.
Conforme constou na decisão deste case:
“A questão relevante é se, depois de ver as provas sob a luz mais favorável à acusação, qualquer julgador racional do fato poderia ter encontrado os elementos essenciais do crime além de qualquer dúvida razoável. A regra de ‘sem evidência’ de Thompson é simplesmente inadequada para proteger contra aplicações errôneas do padrão constitucional de dúvida razoável (...). Cláusula do Devido Processo da Décima Quarta Emenda protege um réu em um processo criminal contra condenação ‘exceto mediante prova além de uma dúvida razoável de todos os fatos necessários para constituir o crime de que é acusado.’”
Como elementos essenciais do crime referidos nesta decisão, a SCOTUS aludia à premeditação. O diteito penal norte-americano difere do brasileiro nas categorias da teoria geral do delito, apesar de haver pontos de contato, tais como a Causalidade (causation of injury) e a voluntariedade (guilty state if mind).
No direito penal norte-americano, a mens rea (mente culpada) possui quatro divisões: intenção, ciência do resultado, imprudência e negligência. Já a actus rea é a ação praticada. Assim, a junção da mens rea com a actus rea perfectibiliza o delito nos países que adotam o sistema de common law. Essas categorias diferem dos elementos do crime tradicionalmente apontados nos ordenamentos penais dos países de sistema romano-germânico, tal como o brasileiro.
Por sua vez, first degree murder ou capital murder (por ser punido com a penal capital em alguns estados), julgado em Jackson v. Virgínia, é o assassinato de primeiro grau, com intenção de matar e com circunstâncias que o agravam. Pode ser equiparado ao homicídio qualificado do direito brasileiro. O assassinato de segundo grau se equipara ao homicídio simples. E o de terceiro grau se assemelha ao preterintencional. A premeditação do homicídio qualifica o crime no direito norte-americano, tornando-o de primeiro grau. No entanto, a premeditação não consta como qualificadora no CPB. A depender do caso, ela pode ser sopesada na dosimetria da pena base, negativando-se a vetorial “circunstâncias do crime”.
O voto condutor foi além do entendimento da SCOTUS em Jackson v. Virgínia, tomando de empréstimo o termo empregado pela Suprema Corte dos Estados Unidos (elementos essenciais do crime), que se referia apenas à premeditação (a qual sequer consta como qualificadora no CPB, mas que qualifica o assassinato nos EUA, tornando-o de primeiro grau). Em seguida, foi realizada sua adaptação à teoria geral do delito no Brasil, conformando o termo às estruturas do conceito analítico de crime.
Conforme o relator, Min. Ribeiro Dantas:
“A grande contribuição da decisão de Jackson foi a especificação de que, para cada ‘elemento essencial do crime’, deve haver prova suficiente para demonstrá-lo, sob pena de cassação do veredito condenatório”.
Parafraseando o acórdão ora em comento, houve um salto cognitivo no exame do referido precedente alienígena. Apesar de o precedente da SCOTUS referir-se a “elementos essenciais do crime” no plural, seu uso se resumiu à qualificadora da premeditação.
Prosseguindo na fundamentação do voto, o passo seguinte foi proceder à adaptação à teoria geral do delito, nos seguintes termos:
“Foi feliz a Suprema Corte de Jackson ao utilizar a expressão ‘elementos essenciais do crime’ como parâmetro de avaliação da suficiência probatória de um veredito condenatório, por implicar a existência de elementos acidentais que, como tais, não são decisivos para a manutenção da condenação. Não se pode, entretanto, importar tais termos para nosso direito sem antes explicitar seu significado à luz da teoria geral do delito predominante no Brasil (e, a bem da verdade, na maioria dos países de tradição jurídica romano-germânica).
No caso dos autos, foi precisamente esta última situação que aconteceu: apesar de analisar exaustivamente as provas produzidas ao longo do processo, o TJ/CE não logrou indicar alguma que comprovasse um elemento essencial do crime - qual seja, a autoria -, embora haja prova dos demais (materialidade, dolo e motivo qualificador).
Para os vereditos absolutórios, penso que os critérios de julgamento - apesar de similares - não são exatamente idênticos. Deve haver provas de materialidade e autoria delitivas, bem como a exclusão de alguma causa descriminante suscitada pela defesa. Ou seja: cada um dos elementos essenciais do delito - além das causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade. Seguindo a ordem lógica da concepção tripartite (que conceitua o crime como a conduta típica, antijurídica e culpável), o primeiro elemento essencial do crime é, justamente, a conduta.
Os próximos elementos essenciais são aqueles objetivos do tipo, tanto os descritivos (o verbo "matar", no caput do art. 121 do CP, por exemplo) como os normativos (o adjetivo "torpe", no § 2º, I, do mesmo artigo). Embora os segundos exijam do intérprete um raciocínio valorativo, e não apenas de constatação fática, sua apreciação também cabe aos jurados. Esse conjunto de elementares corresponde grosso modo ao que chamamos de materialidade delitiva.
A tipicidade também comporta, como se sabe, uma dimensão subjetiva, e nos vereditos condenatórios proferidos pelo júri o elemento anímico é o dolo, por exigência do art. 74, § 1º, do CP. Havendo desclassificação para eventual modalidade culposa, a competência para julgamento será do juiz presidente, nos termos do art. 492, § 1º, do CPP
Caso suscitadas pela defesa causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, o Tribunal de apelação deverá examinar, também, se há ou não provas que as confirmem. O raciocínio aqui é inverso, até porque o juízo positivo de tipicidade já é um indício de ilicitude e culpabilidade”.
Neste ponto, o voto invocou a teoria da indiciariedade ou da ratio cognoscendi, adotada pelo direito brasileiro. Ao lado dela, a doutrina alude à teoria da ratio essendi, encampada por Mezger em 1930, que criou o conceito de tipo total do injusto, levando a ilicitude para o campo da tipicidade. Em outras palavras, a ilicitude é a essência da tipicidade, numa absoluta relação de dependência entre esses elementos do delito. Dessa forma, não havendo ilicitude, não há fato típico. Essa última teoria não encontra adeptos no Brasil.
Em conclusão de julgamento, o Min. Ribeiro Dantas ponderou:
“A cognição judicial, desse modo, se resume a aferir a presença de provas que fundamentam a opção dos jurados pela rejeição das causas excludentes, compreendidas como pressupostos negativos do crime: sendo típica a conduta, ela será antijurídica se não amparada pelas excludentes do art. 23 do CP, e culpável se não contemplada em seus arts. 21, 22, 26 e 28, § 1º.
Para os fins deste julgamento, o fundamental é compreender que, enquanto a autoria é um dos elementos essenciais de qualquer crime, o motivo nem sempre o é. Sem comprovação da autoria, é impossível a condenação do réu, nos termos do art. 386, IV e V, do CPP; por outro lado, a falta de demonstração do motivo do delito não é elencada no dispositivo como hipótese absolutória. Quando não qualifica as infrações, o motivo é um elemento acidental do crime, relevante para a dosimetria da pena em sua primeira (art. 59 do CP), segunda (arts. 61, II, "a" e "b", e 65, III, "a", do CP) ou terceira fases (por exemplo: art. 121, § 1º, 129, § 4º, 149, § 2º, II, e 163, parágrafo único, IV, do CP). Não é decisivo, contudo, para o mérito da procedência ou improcedência da pretensão punitiva em si.
Mesmo nos tipos qualificados pelo motivo - em que este figura como elemento essencial -, sua natureza é de elemento objetivo-normativo do tipo, o que se distingue claramente da autoria. É o caso, por exemplo, do homicídio qualificado por motivo torpe (art. 121, § 2º, I, do CP), pelo qual a recorrente foi condenada na origem. A torpeza do motivo é um elemento objetivo-normativo do tipo qualificado, porque seu reconhecimento exige um raciocínio valorativo que não se satisfaz com a simples observação dos fatos, mas demanda um segundo processo mental a fim de definir se estes caracterizam como torpe o motivo do crime. A autoria, contrariamente, é um dado objetivo-descritivo: basta a reconstrução histórica dos fatos para se concluir quem praticou o delito.
A teoria geral do delito nos auxilia a atingir uma conclusão aparentemente simples, mas que não foi percebida pela Corte de origem: sendo elementos distintos dentro do tipo penal, e inclusive com classificações diferentes, a prova do motivo não implica necessariamente prova da autoria, e vice-versa.
Difícil é, aliás, encontrar o ser humano que nunca tenha sido injustiçado por outro, ou brigado com seu semelhante, ou por ele nutrido uma forte inimizade. Confundir o motivo para a prática de um crime contra o desafeto com a prova de sua autoria colocaria quase toda a humanidade sob o risco de uma severa condenação penal”.
O voto condutor fez ainda duas citações bastante pertinentes: uma frase de Dostoiévki e a Navalha de Occam.
William de Occam foi um filósofo inglês do século XIV, que enunciou a teoria da “navalha de Occam”, segundo a qual devemos escolher, dentre as várias explicações válidas para o mesmo fato, aquela que for mais simples. De acordo com ele, o homem, em suas teorias, deveria sempre eliminar o supérfluo.
No entanto, uma análise da história das ciências humanas mostra o quanto Occam foi desautorizado. Imensos volumes são escritos para tratar de filigranas que não têm utilidade prática. Nesse contexto, o direito penal não fica de fora. Como exemplo, têm-se a complexidade que se atingiu com a teoria do crime. Qual a diferença prática entre causalismo e finalismo? Já se disse que ambas teorias são uma mera mudança de disposição dos móveis em uma casa, sem maiores implicações na praxe forense.
Deveras, o único reflexo prático reside na dignidade do agente. No finalismo, houve o deslocamento do dolo e da culpa da culpabilidade para o fato típico. Na teoria causalista, ausente dolo ou culpa, afastava-se a culpabilidade, mantendo-se a tipicidade. Na teoria finalista, a falta de dolo ou culpa importa em fato atípico, por ausência de conduta. O efeito prático das duas teorias é o mesmo, livrando o agente de qualquer reprimenda. No entanto, para o causalismo o agente é considerado um criminoso não culpável, enquanto para o finalismo não é criminoso. Ter cometido um crime, mas não ser reprovado por essa conduta, difere apenas moralmente de não ter cometido crime algum.
Ao lado do Princípio Kiss, a Navalha de Occam propugna que teorias com poucas e simples suposições são mais facilmente verificáveis do que aquelas com muitas e complicadas suposições. No entanto, a explicação mais simples nem sempre é a mais correta. A Navalha de Occam é um princípio metodológico, e não uma lei que diz o que é verdade e o que não é. Ou seja, ela não sugere que as explicações mais simples são sempre as verdadeiras e que as mais complexas devem ser refutadas em qualquer situação.
Conforme pontuou o min. relator em seu voto condutor:
“Embora seja tentadora a simplicidade de explicar um homicídio buscando de forma automática o rival mais próximo da vítima, esse procedimento pode provocar injustiças severas. A navalha de Occam, que tem na filosofia e até nas ciências naturais o seu nicho, não se aplica com o mesmo acerto no processo penal, em que o histórico do cometimento de um delito é, com frequência, extremamente complexo.
Isso não significa, é claro, que o inimigo de uma vítima de homicídio fique imune a qualquer investigação. A sua rusga com o ofendido - mormente quando acompanhada de outros fatores, como a oportunidade para o cometimento do crime, a ausência de um álibi etc. - pode, por certo, despertar a curiosidade das autoridades estatais, a quem cabe o dever constitucional (arts. 129, caput e VII, e 144, IV, e § 4º, da Constituição da República) de investigar infrações à lei penal. O ponto é que essa suspeita provocada pela existência de motivo, embora idônea para deflagrar uma investigação, não substitui a prova de autoria exigida a contrario sensu pelo art. 386, V, do CPP para a condenação no processo judicial. A suspeita que pode movimentar o aparato investigativo, em suma, não tem valia para decidir a procedência ou improcedência da ação penal”.
O art. 386, V, do CPP, citado na passagem acima, dispõe que o juiz absolverá o réu se não existir prova de ele ter concorrido para a infração penal. Uma interpretação a contrario sensu deste dispositivo legal avulta a exigência de prova da autoria ou participação do agente para sustentar um édito condenatório.
Por sua vez, o art. 129 da CF, também citado no acórdão, elenca de forma exemplificativa as funções institucionais do Ministério Público. A função de investigar crimes foi consolidada em 2015 pelo STF, ao julgar o RE 593.727, conferindo o poder implícito de investigação ao órgão titular da ação penal. Essa função investigativa foi regulamentada pela Resolução nº 181 do CNMP. Em seus “considerando”, a referida resolução indica:
“Considerando a carga desumana de processos que se acumulam nas varas criminais do País e que tanto desperdício de recursos, prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais”.
Por sua vez, o art. 7º da Res. 181 elenca os poderes de investigação do Ministério Público, de forma exemplificativa, conforme a redação conferida pela Res. 183/2018:
“O membro do Ministério Público, observadas as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e sem prejuízo de outras providências inerentes a sua atribuição funcional, poderá:
I –fazer ou determinar vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências, inclusive em organizações militares;
II –requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades, órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
III –requisitar informações e documentos de entidades privadas, inclusive de natureza cadastral;
IV –notificar testemunhas e vítimas e requisitar sua condução coercitiva, nos casos de ausência injustificada, ressalvadas as prerrogativas legais;
V –acompanhar buscas e apreensões deferidas pela autoridade judiciária;
VI –acompanhar cumprimento de mandados de prisão preventiva ou temporária deferidas pela autoridade judiciária;
VII –expedir notificações e intimações necessárias;
VIII –realizar oitivas para colheita de informações e esclarecimentos;
IX –ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública;
X –requisitar auxílio de força policial”.
Conforme o art. 7º, inc. II, indicado acima, o Ministério Público pode requisitar perícias. O próprio órgão ministerial pode realizar perícias, se tiver estrutura adequada para tanto. No entanto, essa perícia se qualifica como prova unilateral, submetida a contraditório diferido, por não ter sido feita por perito nomeado pelo juízo.
Como ponderou o relator em seu voto, citando as provas referenciadas no aresto do TJCE:
“ISAIAS SOUSA DOS ANTOS: além de confirmar a referida inimizade, narrou que seu irmão, a vítima do crime, lhe disse em seus últimos suspiros que o marido de MARIA IARA o matou.
Ainda que fosse possível imaginar, em tese, que MARIA IARA determinara a seu ex-marido (e não a seu irmão, JOSÉ AIRTON) a execução material do delito, não há menção, no acórdão, a nenhum trabalho policial ou investigativo que tenha procurado apurar a suposta ocorrência dessa negociação, como exame de movimentações bancárias, interceptação telefônica, busca e apreensão na residência da recorrente, localização da arma utilizada no delito, perícia balística para identificar a origem da munição e rastreá-la etc.
A materialidade - o "matar alguém" do art. 121 do CP - não é controvertida, de maneira que não foi objeto de exame no aresto. De todo modo, a decisão de pronúncia mostra que o assassinato foi constatado pelo laudo de exame necroscópico; também por isso, parece indiscutível a ocorrência de uma conduta humana, porque a vítima foi baleada por disparo de arma de fogo. Sobre os elementos objetivo-normativos do tipo qualificado, o uso de meio que dificultou a defesa da vítima (art. 121, § 2º, IV, do CP) não é atacado pela defesa - e, sendo a morte causada por disparo de arma de fogo no tórax, cabe ao júri valorar o fato e subsumi-lo, ou não, à qualificadora.
Enquanto uma delas - ainda que por hearsay, já que relatou o que ouviu da vítima em seus momentos finais de vida - corroborou uma das teses da defesa. As afirmações de ISAIAS foram inclusive utilizadas pelo TJ/CE para cassar a condenação do irmão da recorrente e submetê-lo a novo júri”.
O Hearsay Rule ou Hearsay Evidence impõe a proibição das testemunhas de referência, que propagam boatos. Trata-se da testemunha que imputa uma conduta à alguém sem informar a verdadeira pessoa no qual a imputou, ou seja, o fato narrado foi feito por um interlocutor que ouviu uma outra pessoa detalhar fato ilícito, conhecido como testemunho de ouvir dizer. Isso porque, como dito acima, o boca a boca deturpa a versão original. No entanto, a testemunha indicada no aresto do TJCE ouviu da própria vítima, em seus últimos suspiros, quem teria atirado em seu peito.
Em conclusão de julgamento, o Min. Ribeiro Dantas arrematou em seu voto:
“Especificamente em relação à autoria, o presente caso encaixa-se com perfeição à no evidence rule da Suprema Corte dos EUA, proclamada naquele Tribunal desde o começo do século XIX.
Com as devidas vênias à acusação, parece simplesmente não ter havido investigação das circunstâncias em que faleceu JOÃO BATISTA. Uma vez descoberta a desavença entre MARIA IARA e a vítima, a Polícia Civil e o Parquet a elegeram como culpada, mas não procuraram realizar nenhuma diligência mais aprofundada para confirmar a versão apresentada na denúncia. Não dirijo censura a tais instituições, que exercem um papel importante e dificultado sobremaneira pela falta de recursos humanos e materiais - em especial no ano de 1994, quando ocorreram os fatos. Constato tão somente que, pela própria narrativa fática do aresto recorrido, a acusação não se desincumbiu de um ônus que lhe cabia. As dificuldades institucionais supracitadas são de responsabilidade do Estado, a quem compete arcar com os custos de viabilizar a persecução penal, mas não autorizam que se diminua o standard probatório exigido para uma condenação.
Não vejo o risco de que existam outras provas nos autos, não examinadas pelo aresto recorrido, capazes de manter a condenação - e não é este relator quem o afirma. Tanto o TJ/CE, ao rejeitar os embargos de declaração defensivos, como o próprio MP/CE, em suas contrarrazões ao recurso especial, argumentam que foi completa a análise das provas feita no acórdão, de maneira que nenhum elemento probatório lhe escapou. Assim, esta colenda Quinta Turma poderá ter a tranquilidade necessária para se debruçar exclusivamente sobre os fundamentos do aresto a fim de verificar se obedeceu aos critérios de formação da convicção, o que entendo não ter acontecido”.
O voto do relator neste julgado foi seguido à unanimidade pelos demais ministros da 5ª Turma do STJ. Neste precedente, restou consignado que a existência de motivo evidente para a prática do homicídio não configura prova da autoria, ainda mais quando se trata de autoria intelectual, onde não há provas do ajuste entre mandante e executor.
O motivo, tal como a premeditação, são anteriores à execução do homicídio em si, mas não dispensam a prova da autoria, por serem elementos essenciais do crime. Assim, a despeito de a Súmula 7 vedar a análise de provas, é possível ao STJ em sede de recurso especial averiguar se o tribunal local constatou a existência de provas que possam ser perfilhadas pelos jurados. No caso concreto, o STJ entendeu que o TJCE não apontou tais provas, determinando, assim, a realização de novo julgamento pelo tribunal do júri.
Como visto no aresto do TJCE, é perfeitamente possível que o mandante tenha um julgamento diferente do executor no tribunal do júri, a depender das provas dos autos. Sendo imputadas condutas diversas e autônomas, uma de executor e outra de mandante, podem os jurados reconhecer, perfeitamente, a suficiência de provas para condenar um e não o outro, não havendo nenhuma relação de dependência entre as formas de participação referidas.
A cláusula do devido processo constante na Décima Quarta Emenda, citada no case Jackson v. Virgínia, menciona as provas “acima de dúvida razoável”. Este standard probatório não foi abordado no julgado em comento do STJ, havendo menção apenas à prova dos “elementos essenciais do crime” para legitimar o veredito dos jurados.
Quanto a esse standard probatório mínimo, o STF possui precedente que o exige para a fundamentação da decisão de pronúncia. No Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.067.392/CE, julgado em 2019, o STF rechaçou a tese do in dubio pro societate na decisão de pronúncia, adotada pelo TJCE. Esse entendimento do STF divergiu do AREsp nº 1.084.726, julgado pelo STJ, conforme citado no tópico anterior.
Segundo o relator deste julgado no STF, Min. Gilmar Mendes:
“Consta dos autos que os réus foram denunciados pela suposta prática do delito descrito no artigo 121, § 2º, incisos I, III e IV, do Código Penal, pois, em 28.6.2008, teriam agredido a vítima José Romário Lira de Oliveira com chutes, pontapés e mediante o uso de um instrumento contundente, ocasionando, posteriormente, o seu óbito no hospital. Após regular trâmite da instrução, os requerentes foram impronunciados pelo juízo de primeiro grau, nos termos do artigo 414 do CPP. Irresignado, o Ministério Público interpôs apelação criminal no TJ/CE requerendo, em suma, a pronúncia dos acusados. O recurso restou provido pelo TJCE.
Assim, ‘o simples fato dos denunciados (José Reginaldo e Cleiton Cavalcante) terem corrido atrás da vítima não indica sua adesão à conduta do corréu Bruno’, sob pena de se caracterizar uma inadmissível responsabilização objetiva em Direito Penal.
É imperativo, em um raciocínio lógico, que a testemunha que presenciou os fatos possa descrever com mais fidedignidade os acontecimentos do que aquela que tomou conhecimento dos fatos por ouvir dizer (testemunha de 2º grau)”.
A genitora da vítima teve contato com esta antes que ela falecesse no hospital. Em seu depoimento, citado pelo Min. Relator em seu voto, a genitora disse:
“Que no hospital em Fortaleza seu filho afirmou que tinham muitas pessoas correndo atrás dele e atirando pedras; que o mesmo disse que o principal foi Bruno; que afirmou também que Cleiton e Reginaldo arremessaram pedras.
Essa prova aparentemente esbarra na Hearsay Evidence, que veda os testemunhos de ouvir dizer. No entanto, tal como o caso julgado pelo STJ, comentado acima, trata-se do relato da vítima antes de falecer, que apontou os culpados pela sua morte.
O relato da própria vítima, antes de falecer, não pode ser equiparado ao um boato, ao menos quando testemunhado pelo ouvinte direto de suas últimas palavras. A vítima, tal como as testemunhas oculares, possuem limitações e vieses na coleta sensorial dos fatos. A vítima em fuga, em altercação, lutando pela vida ou em seus últimos suspiros, está tomada por adrenalina e nervosismo. Sua versão, assim, não pode ser adotada sem confrontações com as demais provas.
O IPEA realizou estudo que investigou as principais fatores que impactam na qualidade da prova testemunhal. Esses fatores podem ser aplicados ao depoimento das vítimas, ainda que em seus últimos suspiros, tais como sua condição pessoal, idade e outros fatores. Conforme indicado no estudo:
“Em relação aos fatores que influenciam a qualidade da prova testemunhal na etapa processual e seu impacto nas decisões judiciais, quatro categorias foram citadas pelos entrevistados: 1) tempo transcorrido entre o crime e a entrevista em juízo; 2) a forma de realização da coleta do testemunho: 3) a complexidade do crime envolvido; e 4) a credibilidade da testemunha ou da vítima. Foram constatados diversos fatores que influenciam na qualidade da prova testemunhal no processo penal e, que, consequentemente, acabam impactando no resultado das decisões judiciais. (Avanços científicos em Psicologia do Testemunho aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses, IPEA, 2015, pág. 55)”.
Acerca desta questão o Min. Gilmar Mendes ponderou:
“Além disso, o juízo recursal deu preponderância também a um testemunho de ouvir-dizer, a mãe da vítima, que teria ouvido suas declarações no hospital antes de falecer. Sem dúvidas, diferentemente do sistema estadunidense, não há uma vedação de admissibilidade de tal elemento no ordenamento brasileiro. Contudo, igualmente inegável que uma declaração de alguém que não presenciou os fatos, mas somente ouviu o relato de outra pessoa, tem menor força probatória do que outras testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo”.
Inaugurando a divergência, o Min. Edson Fachin asseverou em seu voto:
“Deste modo, a questão está em que aqui há uma sentença, ou melhor dizendo, aqui há uma decisão de pronúncia, tomada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Essa decisão de pronúncia levou em conta a presença de justa causa no plano de indícios mínimos, ou seja, nada obstante as dúvidas ainda presentes e nada obstante a não pronúncia do juiz sentenciante de primeiro grau, o Juízo colegiado operou a pronúncia daqueles em face dos quais se imputava a prática do homicídio”.
Acompanhando a divergência, a Min. Camen Lúcia arrematou:
“Reafirmo a importância do tema, mas o Princípio do ‘In Dubio pro Societate’ é a partir de indícios, que foram aproveitados exatamente pelo Tribunal de Justiça do Ceará. E, portanto, não se pode desconhecer que houve a aferição da sua existência e da sua conformação, não apenas coma legislação, mas, principalmente, com o que vem sendo a jurisprudência exatamente no sentido de permitir que sejam eles suficientes para que se tenha a atuação do Júri, que é o soberano para decidir sobre a suficiência como prova e não como conjunto de indícios”.
O Min. Ricardo Lewandowski acompanhou o relator, assentando que:
“O TJ do Ceará deu preponderância, inequivocamente, a relatos colhidos na fase inquisitorial de pessoas que não presenciaram o crime e deu também muito peso ao testemunho de ouvi dizer, como salientou o Ministro-Relator, insuficiente a gerar qualquer dúvida fundada sobre a participação dos recorrentes no crime e submetê-los ao Júri popular.
Por fim, em substancioso voto, o Min. Celso de Mello aderiu à corrente vencedora, capitaneada pelo ministro relator. Em conclusão de julgamento, o Min. Gilmar Mendes arrematou em seu voto:
“Sem dúvidas, para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias”.
Como visto, para sustentar o veredito dos jurados, o STJ exige a análise ao menos da existência de provas acerca dos elementos essenciais do crime, em especial da autoria e da materialidade, não bastando a presença de um motivo para o crime, ainda que evidente. Por sua vez, para o STF, a decisão de pronúncia exige um standard probatório mínimo, acima de dúvida razoável, com preponderância de teses incriminatórias. No entanto, essa análise das provas na pronúncia não pode ser exauriente, sob pena de influenciar os jurados por ocasião do julgamento.
Como referido acima, o Min. Ribeiro Dantas externou em seu voto no STJ que restringia sua análise ao escopo do recurso, evitando tratar do caso de veredito absolutório. No entanto, persiste a dúvida se o entendimento adotado à unanimidade pela 5ª Turma do STJ se aplicaria aos casos de absolvição.
Muitas dúvidas poderão ser dirimidas com o julgamento do Tema 1087 da Repercussão Geral do STF. Conforme a decisão de afetação da matéria:
“Primeiramente, embora a tradicional jurisprudência da Corte aponte para a compatibilidade entre o princípio da soberania dos veredictos e o juízo anulatório empreendido pelo Tribunal de Justiça em caso de decisões proferidas pelo Júri reputadas como manifestamente contrárias à prova dos autos, é certo que a questão está longe de se encontrar pacificada no âmbito doutrinário e jurisprudencial. No STJ, o tema foi recentemente debatido, no âmbito da Terceira Seção, a qual, por apertada maioria, decidiu, em síntese que a absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. (HC 313.251/RJ, Terceira Seção, relator Ministro Joel Paciornik, julgado em 28.02.2018). Nada obstante, a substancial corrente divergente instaurada naquele decisum, composta pelos Min. Sebastião Reis Júnior, Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e Antonio Saldanha Pinheiro, bem demonstra o quão intrincada e tortuosa é a matéria ora proposta”.
Como dito linhas atrás, no voto condutor do Min. Ribeiro Dantas consta epigrafada a seguinte frase de Dostoiévski:
“Os motivos humanos geralmente são muito mais complicados do que supomos, e raramente podemos descrever com precisão os motivos de outro.” (O Idiota, 1869).
Conforme explicitado no voto, os motivos humanos são por vezes insondáveis, e nem sempre cabem confortavelmente nas páginas de autos processuais. Para um indivíduo, uma manobra irregular de trânsito pode despertar sua fúria e movê-lo a matar alguém; para outro, nem mesmo o mais grave dos insultos o faria.
A ausência de motivo, quando não se descobre a razão do delito, não é a mesma coisa que motivo fútil, que exige comprovação efetiva. Ocorrendo a ausência de motivo, não pode ter incidência o motivo fútil. Quem comete o crime por puro prazer é um sádico e isso configuraria motivo torpe. O motivo fútil é o insignificante, com desproporção entre o crime e a sua causa moral.
Na visão do STJ, é possível haver autoria sem motivo, o qual pode qualificar ou não o homicídio, a depender das provas colhidas na investigação. Contudo, não pode haver motivo sem autoria, cabendo ao Estado-acusação demonstrar que o autor efetivamente praticou a conduta, não podendo esta ser inferida a partir do motivo para o crime, ainda que menifesto. Desta forma, se a apelação sustenta que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária às provas dos autos, o tribunal de segundo grau tem o dever de analisar se pelo menos existem provas de cada um dos elementos essenciais do crime, em especial a autoria.
A esse respeito, Danni Sales pondera:
“Todo jurado, concitado a compor o Júri, verte preocupações proemiais. Perceba, para nós, brasileiros, não é possível se fazer um julgamento sem saber o motivo do crime. Nosso jurado dá particular atenção ao motivo, porque, por temperamento e, por razões históricas, temos grande indulgência com o delito. Por exemplo, quando na Inglaterra, se diz que John matou Smith, a reação de um inglês é dizer: "Como? What? Matou? (KELSEN, 2001). Porque não entra na cabeça de um inglês que a morte seja a solução para as dificuldades humanas. Quando, no Brasil, dizemos que João atirou em José, matando-o, a reação imediata do ouvinte é questionar: Por quê? Nós temos no subconsciente, uma tendência natural a acreditar que, em determinadas circunstâncias, a violência pode ser a solução para as dificuldades humana. Em vez de termos uma reação de espanto, temos logo uma curiosidade que se traduz em querer saber o porquê. (Júri - Persuasão na Tribuna, Juruá, 2018, pág. 18)”.
Por seu turno, Roberto Lyra leciona que:
“Fala-se em dúvidas. Resolvendo dúvidas é que adquirimos certeza. E a certeza para o júri não depende de formalismos e ficções. Não há indícios? Eis aí mais um. A ausência de indícios indica a autoria de indivíduo experimentado e perito, com o acusado. Ninguém, nada confirma a palavra do jovem defensor que, certamente, conhece a sátira britânica armada com a parônima entre liar e lawyer. Em Londres, os próprios advogados, no seu toast de fim de ano, não dispensam um brinde ‘à ingenuidade dos juízes e à obscuridade das leis’” (Como Julgar, Como Defender, Como Acusar, editora Líder, 2003, pág. 103).
Extrai-se destes aportes a premente necessidade de estabelecimento de balizas objetivas para o manejo da apelação no julgamento pelo júri. Muitas decisões dos tribunais superiores têm buscado esse ideal, por vezes em caminhos tortuosos, esteando-se em premissas equivocadas. A verdade processual no âmbito do júri, seja em termos de correspondência ou em teorias coerentistas, ora deve obediência a um standard mínimo de provas, ora deve basear-se em provas dos elementos essenciais do crime. Em vista disso, o julgamento do Tema 1087 com repercussão geral deve estabelecer padrões racionais de exame da apelação contra decisão manifestamente contrária à prova dos autos.
5-Conclusão
O presente trabalho visou aclarar questões discutidas no âmbito da recorribilidade das decisões do júri, em especial na apelação contra veredito manifestamente contrário à prova dos autos. O exame das premissas adotas pelos tribunais superiores revela uma oscilação ambígua nos precedentes, catalisada pela falta de clareza da doutrina no tratamento da matéria.
Não raras vezes, o jurado decide a cédula do sim ou do não no exato instante em que a urna lhe é apresentada. A verdade que emana dos debates do Júri é analisada na íntima convicção do juiz leigo. Mostrou-se no decorrer deste trabalho testemunhos de relatos de vítimas em seus últimos suspiros, apontando a autoria delitiva. O jurado passa por idêntica agrura, escolhendo o veredito final muitas vezes já na fase de votação dos quesitos, quando aponta se o réu é culpado ou inocente. Isso decorre da estratégia da defesa, em germinar a dúvida durante todo o julgamento.
Como ocorre com frequência, a defesa explicita aos jurados que o libelo não passa de uma primeira impressão da acusação sobre os fatos, que será desmontada no decorrer dos debates, conforme as provas vão sendo apresentadas. Antes dos julgamentos, acusação e defesa estudam os autos, preparam as teses e selecionam as provas. Ao final, o jurado está no fio da navalha entre as diversas versões debatidas.
Conforme Fiódor Dostoiévski:
“A verdadeira verdade é sempre inverossímil; para lhe dar verossimilhança é preciso misturar-lhe um pouco de mentira”. (Os demônios, 1872).
A filosofia analítica tem na linguagem uma ferramenta para ajudar no entendimento humano acerca do mundo que o cerca. Do mesmo modo, a despeito das dificuldade ontológicas do Júri, o Direito deve ser uma ferramenta para trazer racionalidade e agilidade à ação humana de julgar.
6-Referências:
Avena, Noberto, Processo Penal, editora método, 2017.
Badaró, Gustavo Henrique, Manual dos Recursos Penais, Revista dos Tribunais, 2017.
Lyra, Roberto, Como Julgar, Como Defender, Como Acusar, editora Líder, 2003.
Nucci, Guilherme de Souza, Manual de Processo Penal e Execução Penal, editora Forense, 2016.
Pacelli, Eugênio e Fischer, Douglas, Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, editora Atlas, 9ª edição, 2017.
Sales, Danni, Júri - Persuasão na Tribuna, Juruá, 2018.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. O entrechoque entre a soberania dos vereditos e a prestação jurisdicional. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 maio 2022, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58321/o-entrechoque-entre-a-soberania-dos-vereditos-e-a-prestao-jurisdicional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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