FRANCISCA JULIANA CASTELLO BRANCO EVARISTO DE PAIVA(1)
(orientadora)
RESUMO: Quando existe um afastamento do dever legal de cuidado de um pai em relação a um filho, o abandono afetivo resta configurado. Nessa situação, abre possibilidade para que o Poder Judiciário intervenha com a finalidade de resguardar a dignidade daquele filho abandonado. Caso surja a pretensão de retirar o sobrenome daquele que abandonou, esta conduta fica limitada ao disposto na Lei dos Registros Públicos, que proíbe, em regra. Assim, por meio desse estudo buscou-se entender se a relativização do princípio da imutabilidade do patronímico em razão do abandono afetivo no Brasil garante a dignidade do filho abandonado. Observou-se que a jurisprudência e a doutrina se posicionam de maneira favorável a esta relativização, vez que o abandono afetivo se enquadra como um justo motivo para tal, além do fato de que a dignidade da pessoa humana deve sempre ser resguardada. A metodologia do estudo se baseia em uma pesquisa bibliográfica do tipo narrativa, utilizando-se de revistas jurídicas, livros, teses, dissertações, jurisprudência e a legislação.
Palavras-chave: abandono afetivo, relativização do sobrenome, dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT: When there is a departure from the legal duty of care of a dad in relation to a child, affective abandonment remains configured. In this situation, it opens the possibility for the Judiciary to intervene in order to protect the dignity of that abandoned son. If the pretense arises to remove the surname of the one who abandoned it, this conduct is limited to the provisions of the Public Records Law, which as a rule prohibits it. Thus, through this study, we it was sought to understand whether the relativization of the principle of immutability of the patronymic due to affective abandonment in Brazil guarantees the dignity of the abandoned son. It was observed that the jurisprudence and the doctrine are positioned in a favorable way to this relativization, since the affective abandonment fits as a just reason for this, in addition to the fact that the dignity of the human person must always be protected. The methodology of the study is based on a bibliographical research of the narrative type, using legal journals, books, theses, dissertations, jurisprudence and legislation.
Keywords: affective abandonment, relativization of the surname, human dignity.
No judiciário brasileiro, são recorrentes as ações em que o interesse gira em torno da supressão do patronímico, seja ela paterno ou materna, em razão do abandono afetivo. Isso demonstra um grande crescimento do abandono afetivo, além do próprio sentimento negativo que o patronímico traz a essas pessoas.
Em 2020 veio a mídia o julgamento da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em que reformou uma decisão de 1° Grau, autorizando a retirada do sobrenome paterno de uma mulher em razão do abandono afetivo e material pelo genitor, mostrando ser um tema de extrema relevância social e gerando grande interesse pela pesquisa acerca do tema.
Nesse contexto, o presente estudo tem por problemática questionar: a relativização do princípio da imutabilidade do patronímico em razão do abandono afetivo no Brasil garante a dignidade do filho abandonado?
O estudo trata-se de uma pesquisa bibliográfica do tipo narrativa, tendo como base materiais bibliográficos devidamente aprovados pela comunidade científica, e parte de conceitos iniciais relativos ao abandono afetivo e o nome, direcionando para a possibilidade de relativizar o sobrenome em razão deste.
Foram utilizadas como fontes para fundamentar o presente trabalho os princípios constitucionalmente previstos, tais como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o Princípio da Afetividade, o Princípio da Paternidade Responsável, todos eles diretamente violados quando um indivíduo é abandonado afetivamente.
Para alcançar a conclusão, num primeiro momento, traz-se o conceito do abandono afetivo aproximando a temática aos princípios essenciais ao Direito das Famílias. Após, o nome civil é caracterizado com base no código civil de 2002, sendo demonstrado seus elementos inerentes e sua relevância. Por fim, demonstra-se que há elementos do nome civil que não podem, de acordo com a lei, serem modificados, mas, que a depender do caso prático, é necessária a relativização.
Justifica-se o desenvolvimento da problemática, socialmente, por viabilizar à sociedade, de maneira clara, sucinta e objetiva, o posicionamento jurisprudencial favorável à relativização do princípio da imutabilidade do patronímico em razão do abandono afetivo, num contexto social em que essa é a realidade de várias crianças e adolescentes no país, analisando se essa possibilidade é uma forma de resguardar um dos principais fundamentos constitucionalmente previsto: o da Dignidade da Pessoa Humana; já na seara acadêmica, por disponibilizar informações doutrinárias, jurisprudenciais, informações sobre códigos e leis, organizados acerca do tema, que servirá de base para futuras pesquisas ou para informações do dia a dia dos estudantes de Direito.
Tem-se por objetivo, então, analisar se a possibilidade de relativização do princípio da imutabilidade do patronímico em razão do abandono afetivo no Brasil resguarda o princípio da dignidade da pessoa humana, identificando a possibilidade de retirada do patronímico, relativizando o princípio da imutabilidade, em razão do abandono afetivo e discutindo se no Brasil a retirada do patronímico em razão do abandono afetivo vai ao encontro do princípio da dignidade humana.
O conceito de família evoluiu consideravelmente com o passar dos anos, principalmente após a Constituição Federal de 1988. Para essa, o termo “família” não é algo rígido e imutável, sendo regido por diversas formas de organização, mas sempre se pautando na relação de afetividade entre os membros. É o que se extrai da leitura do art. 226 e seus respectivos incisos, in verbis:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (BRASIL, 1988).
Nota-se, portanto, que a base da família é a afetividade, não sendo ponto de extrema relevância a existência de lações sanguíneos ou apenas de convivência. Em face disso, mesmo que de forma implícita, a afetividade se tornou o cerne das relações e a ausência dela poderá ser causa inclusive de responsabilizações na seara cível.
Para Dias (2016), em razão dessa centralização da família em torno do afeto, surge aos pais o dever de cuidado, e não apenas uma faculdade. Entende-se a expressão “cuidado”, como o dever de zelar, ensinar e oferecer toda a base necessária para que a criança e/ou adolescente se desenvolva.
Nader (2016) entende que a família, antes de representar uma instituição jurídica, tem grande relevância no âmbito moral, social e biológico. Para ele, se uma família está desestruturada, sem a união e cooperação esperada, poderá ser a grande base para o surgimento de hostilidades e mazelas sociais.
Desses entendimentos, se percebe a grande relevância que a instituição Família representa na sociedade, existindo uma influência extremamente forte, seja para formação de indivíduos socialmente harmônicos, ou mesmo, em caso de ausência de afeto, para a formação de indivíduos marginalizados.
Demonstrada a relevância dessa instituição, importante se faz a conceituação do abandono afetivo e a explicação desta no contexto fático. Pereira (2021) entende o abandono afetivo como uma conduta omissa, seja dos pais em relação aos filhos, ou desses em relação aos pais, que não exerce uma função juridicamente instituída.
O abandono afetivo pode ser entendido, como o próprio nome sugere, pela ausência de afeto necessária na relação paterno-filial. Como afirmam Bonini e Rolin (2017), não se trata de uma análise do viés do amor. Não pode ocorrer essa confusão entre o abandono afetivo e o amor, este é um complexo maior, em que abarca aquele. Esse entendimento é importante para que não haja o pensamento de que o Direito está entrando em searas que normalmente não lhe cabem, tais como a análise do “amor” em uma relação paterno-filial.
Ainda no entendimento de Bonini e Rolin (2017), o abandono afetivo não seria a ausência de amor de um pai em relação a um filho, mas um não cumprimento de uma imposição legal, tais como o cuidado na fase de desenvolvimento, seja físico ou psicológico, do menor.
Observa-se, então, que o cuidado e o zelo de um pai em relação ao filho não se trata apenas de mero capricho ou mesmo uma opção, é uma necessidade intrínseca ao desenvolvimento saudável daquela criança e/ou adolescente, sendo completamente inaceitável o abandono afetivo, apesar de ser “comum” no contexto brasileiro.
2.1 Afetividade: Princípio fundamental ou postulado do Direito das Famílias?
Como exposto, o afeto, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, é a base das famílias, não sendo mais exclusivamente valorizado apenas os laços sanguíneos. Nesse contexto, a afetividade alcançou um significativo espaço dentro do Direito das Famílias.
No que se refere à controvérsia quanto a posição da afetividade no ordenamento jurídico, para Diniz (2021), esta é a base das famílias constituídas ao longo do tempo e assume posição de valor jurídico no ordenamento, ou seja, é um principal fundamental do Direito.
Ainda em seu entendimento, de nada interessa o fato de que expressamente não é citado na Constituição Federal de 1988, uma vez que, para ela, decorre de vários princípios que estão expressamente dispostos, especialmente da Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, para ela, apenas a caracterização da afetividade como um princípio fundamental justificaria diversos avanços na interpretação e aplicação das leis, podendo ser citado o reconhecimento da união estável (DINIZ, 2021).
Nessa mesma linha de pensamento, Calderón (2017) considera que muito além do que está expresso na Constituição Federal ou nos demais códigos, o Direito se vale de mecanismos de interpretação para responder questões omissas. Dessa forma, pela análise hermenêutica, que se utiliza muito além da própria codificação, considera-se a afetividade um princípio implícito do Direito das Famílias.
Justifica-se isso pela própria análise das leis infraconstitucionais e do próprio posicionamento jurisprudencial majoritário. No que se refere a leis infraconstitucionais, pode ser citado como exemplo a Lei Maria da Penha- 11.340/2006, em seu art. 5º, III, que considera violência doméstica aquela praticada “em qualquer relação íntima de afeto” (BRASIL, 2006). O legislador, que não tem meios para prevê todas as situações que poderão vir a ocorrer, utilizou-se da afetividade entendida como um princípio para servir como cláusula geral para respaldar a utilização da referida lei em diversas situações.
Já no que se refere ao posicionamento jurisprudencial, interessante dispor que este tem o papel de aplicar a lei, que via de regra não acompanha o avanço social, nos casos concretos. Em face disso, muitas atualizações são dispostas na própria jurisprudência. Nesse sentido, para Calderón, o posicionamento atual é favorável ao reconhecimento da afetividade como um princípio (CALDERÓN, 2017). O próprio Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2003, no REsp 119.346/GO, utilizou-se da afetividade como forma de justificar uma adoção ocorrida de maneira irregular há mais de quarenta anos (BRASIL,2003). Após isso, a corte vem se posicionando no mesmo sentido, além dos demais Tribunais, o que viria a justificar o entendimento de que a afetividade é um princípio fundamental no ordenamento jurídico.
De maneira contrária, Farias e Rosa (2021) discordam veementemente do enquadramento da afetividade como um princípio fundamental. Para eles, essa conceituação colocaria a afetividade num patamar de superprincípio, com força normativa hierarquicamente acima dos princípios explícitos. Além disso, consideram que não há argumentos que levem ao enquadramento como um princípio fundamental (FARIAS; ROSA, 2021).
Em estreita síntese, consideram que a não citação expressa na Constituição Federal/88 da afetividade como um princípio seria um forte elemento para a descaracterização, independente do que constam em leis infraconstitucionais. Além disso, acreditam que conceituar a afetividade como um postulado do Direito das Famílias não diminuiria a sua importância no ordenamento jurídico, e traria benefícios, como a maior dinamicidade e a possibilidade de se adaptar caso a caso (FARIAS; ROSA, 2021).
Observa-se, portanto, que a doutrina majoritária enquadra a afetividade como um princípio fundamental do Direito das Famílias, estabelecendo como de suma importância para o ordenamento jurídico, ainda que implícito. Há, de maneira minoritária, quem discorde de tal enquadramento, preferindo a afetividade como um postulado geral, servindo como base para interpretação de todo o ordenamento jurídico referente ao Direito das Famílias.
2.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no Direito das Famílias
A Dignidade da Pessoa Humana é um dos fundamentos trazidos pela Constituição Federal de 1988. Também conhecido por superprincípio ou macroprincípio, tem como objetivo maior a proteção humana, levando a uma maior valorização da pessoa, em detrimento à perda de importância do patrimônio (TARTUCE, 2019).
Além disso, todos os direitos fundamentais decorrem diretamente do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Além dos direitos fundamentais expressos, há o reconhecimento da existência dos direitos fundamentais dispersos, possuindo a mesma hierarquia, e, da mesma forma, decorrem do fundamento da dignidade da pessoa humana (PEREIRA, 2018).
Quanto ao conceito, no que se refere ao princípio da dignidade da pessoa humana, não é tão simples. Para Padilha e Bertoncini (2016), não existe uma conceituação clara, sendo intrínseco de cada ser humano, devendo ser analisado de acordo com o contexto fático e histórico de cada pessoa.
Para Tartuce (2019) a conceituação também é complexa, vez que se trata a dignidade da pessoa humana de uma cláusula geral, ou seja, não há um significado claro, há conceito completamente indeterminado, ficando a cargo da interpretação de cada indivíduo, desde que levado em consideração que visa a proteção de todas as pessoas, independentemente de característica física, financeira ou psicológica.
O Direito das Famílias está intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana e dos próprios Direitos Humanos. Não há como desvincular o direito das famílias desses pressupostos, como já ocorreu na história, vez que abriria precedentes para grandes absurdos. De acordo com o pensamento de Rodrigo da Cunha Pereira, a dignidade da pessoa humana representa para o Direito das Famílias a isonomia entre todas as formas de constituir uma família, a igualdade entre todos os filhos, o respeito de maneira geral (PEREIRA, 2021).
Na Constituição Federal de 1988 são claros os artigos que promovem essa aproximação entre o Direito das Famílias e o princípio da dignidade da pessoa humana, com o objetivo de garantir o mínimo existencial a diversas classes, sem tratamentos desiguais, ou indignos. Claro exemplo disso é o artigo 227 da CF/1988, que traz, em suma, como um dever conjunto da família, da sociedade e do Estado assegurar o mínimo existencial às crianças, jovens e adolescentes, tais como saúde, educação, lazer, dentre outros direitos (BRASIL, 1988).
Outro artigo que promove de forma clara a aproximação entre essas duas searas é o art. 229 da CF/88. Por esse artigo, fica determinado aos pais a obrigatoriedade de dar assistência ao seu filho nas mais diversas searas: criando, educando e dando assistência aos menores (BRASIL, 1988).
Segundo Rodrigo da Cunha, em razão da Constitucionalização do Direito Civil, hoje o Direito das Famílias encontra toda a sua base na própria Constituição, valorizando as pessoas/sujeitos em detrimento do próprio patrimônio/objeto. Se tornou inconcebível analisar o Direito das Famílias, atualmente, sem uma visão Constitucional (PEREIRA, 2021).
Observa-se, então, que a pessoa passou a representar o centro do ordenamento jurídico, devendo o Estado reunir meios para a maior valorização desta. Dessa forma, o patrimônio ficou em segundo plano, ocorrendo uma verdadeira despatrimonialização, isto é, um afastamento da ideia de que o patrimônio deveria ser o centro de todo o ordenamento, de todos os institutos jurídicos (DIAS, 2016).
Nesse mesmo sentido, Rolf Madaleno afirma que o próprio Estado Democrático de Direito só será assegurado se o Direito das Famílias for considerado e analisado por um viés constitucional. Além disso, as famílias também são uma forma de assegurar e garantir a dignidade da pessoa humana, especialmente de seus membros (MADALENO, 2020).
Observa-se que a partir da Constituição Federal, as famílias passaram a não ser mais analisadas pautadas unicamente na seara privada. O Estado passou a ter especial importância na modulação das famílias, especialmente quando institui direitos e deveres dentro desse instituto, com a finalidade maior de assegurar direitos e deveres de todos, principalmente dos mais vulneráveis.
Nesse ponto, é importante destacar que mesmo instituindo direitos e deveres, o Estado atuará minimamente nesta seara. Em razão dos princípios da autonomia privada e da menor intervenção estatal, este apenas atuará, como dito anteriormente, com medidas assistenciais, com a intenção unicamente de resguardar os direitos e garantias de cada membro, assegurando que estes não tenham seus direitos violados, especialmente o da dignidade da pessoa humana (PEREIRA, 2021).
De maneira mais prática, podemos observar uma grande incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no direito das famílias nos casos de abandono paterno-filial, em que o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou de maneira favorável à condenação em indenização por danos morais, como será melhor explicado no tópico posterior, tendo como base para fundamentação justamente o princípio da dignidade da pessoa humana.
Observa-se, portanto, que é impossível atualmente, em que vigora uma verdadeira constitucionalização do Código Civil de 2002, o estudo do direito das famílias sem fazer uma clara análise e aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, vez que por meio dessa ponderação torna-se possível fazer com que a aplicação das leis se torne mais justa e acompanhe a própria evolução da sociedade, já que a codificação acaba por se tornar dispersa da realidade com o passar dos anos.
2.3 Princípio da Paternidade Responsável e o Abandono Afetivo
Como demonstrado em tópicos acima, o abandono afetivo se caracteriza, em estreita síntese, quando há um afastamento dos deveres legais na relação paterno-filial. Por essa conceituação, percebe-se a existência de uma relação antagônica entre o princípio da paternidade responsável e o abandono afetivo. Ora, ao passo em que a paternidade responsável estabelece, como o próprio nome sugere, responsabilidades e obrigações que deverão necessariamente serem cumpridas pelos genitores, no abandono afetivo há o afastamento no cumprimento dessas obrigações, deixando que aquela criança e/ou adolescente cresça e se desenvolva à própria sorte.
A paternidade, em linhas gerais, pode ser compreendida como uma relação de direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, que tem como base geral o afeto e a responsabilidade (OLIVEIRA; RANGEL, 2017).
Essa paternidade tem importância significativa na formação psicossocial do indivíduo, visto que é uma das primeiras relações sociais que ocorrem entre os indivíduos e influencia diretamente na estrutura psíquica daquela criança. Se o menor cresce em um ambiente conturbado, não tendo a estrutura necessária para seu pleno desenvolvimento, certamente sofrerá com consequências por toda a vida (PEREIRA, 2021).
Muito em razão disso, a Constituição Federal de 1988 garante implicitamente a Paternidade Responsável em seu art. 226, §7°, não sendo esta interpretada como um mero reflexo do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mas como um pressuposto que deve ser compreendido e seguido, com a finalidade de garantir direitos básicos da criança e/ou adolescente (BRASIL, 1988).
Não apenas a Constituição Federal de 1988, mas o próprio Código Civil de 2002, especialmente no art. 1634, estabelece o princípio da paternidade responsável (BRASIL, 2002). Em síntese, é dever dos pais educar, criar, zelar, assistir aos filhos menores, sempre visando o melhor desenvolvimento deste (BRASIL, 1988). Atitudes que fogem do estabelecido em lei poderão ensejar consequências que adentram inclusive na seara patrimonial.
Ainda pautado no art. 226, §7° da CF/88, extrai-se uma verdadeira duplicidade no princípio da paternidade responsável. Ora, o Estado não intervém de maneira alguma na decisão do casal em gerar ou não um ou vários filhos, sendo decisão que cabe unicamente ao casal, sendo inclusive vedada qualquer tipo de interferência, porém, no momento em que é gerada a criança, é responsabilidade desses pais cuidar, zelar, educar, manter e proporcionar um crescimento saudável ao filho (BRASIL, 1988).
Importante destacar que o termo “paternidade responsável” não deve ser interpretado como um gerador de obrigações apenas para a figura paterna. As obrigações que surgem a partir desse princípio devem ser respeitadas pelos genitores, pai e mãe, e não apenas a um deles. Restringir a interpretação colocaria em risco a própria igualdade entre o homem e a mulher que traz a Constituição Federal de 1988 (PEREIRA, 2018).
Cabe destacar, entretanto, que no Brasil, a quantidade de crianças em idade escolar sem o nome do pai no registro de nascimento, em 2009, chegava ao vultuoso número de 4.869.363 (quatro milhões, oitocentos e sessenta e nove mil, trezentos e sessenta e três), sendo que 3.853.972 (três milhões, oitocentos e cinquenta e três mil, novecentos e setenta e dois) eram menores de 18 anos (BRASIL, 2010).
Esses dados alarmantes incentivaram o Conselho Nacional de Justiça a instituir o projeto “Pai Presente”, no ano de 2010, por meio do Provimento n° 12, com a finalidade geral de que os pais passassem a registrar seus filhos, e para além disso, pudessem tornar-se presente na vida e no desenvolvimento destes (BRASIL, 2010).
Apesar da iniciativa extremamente louvável, deve-se entender que muitas vezes, ainda que conste no registro de nascimento o nome de um pai, este não acompanha a vida e o desenvolvimento do filho. Não há um número oficial que informe a quantidade de filhos que vivem nessa situação, mas, só em 2013, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, com base no Censo Escolar de 2011, 5 milhões de brasileiros não tinham o nome do pai no registro de nascimento (BRASIL, 2013).
Por esses dados, percebe-se a quantidade de crianças e/ou adolescente que sofrem com o abandono afetivo no Brasil. Esses pais além de não cumprirem com obrigações necessárias para a subsistência do filho, tal como o pagamento de pensão alimentícia, não suprem minimamente o amor necessário para o crescimento e pleno desenvolvimento da criança.
Importante destacar neste ponto que, mesmo o responsável cumprindo com obrigações legais como o pagamento de pensão alimentícia, ainda não estará isento da possibilidade de incidir em abandono afetivo, vez que as obrigações legais que o nascimento de um filho traz ao responsável, vão muito além de mero pagamento de pensão alimentícia, esta incide como apenas uma das imposições. Cumulada a ela, é de extrema importância que o pai e a mãe se façam presentes na vida da criança e/ou adolescente, dando suporte para um crescimento saudável, ajudando na formação moral e psicológica.
Ora, neste ponto vale destacar a célebre frase de relatoria da Ministra Nancy Andrighi no informativo 496 do Superior Tribunal de Justiça, decorrente do REsp 1.159.242-SP: “não se discute o amar - que é uma faculdade - mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico” (BRASIL, 2012, p. 8). Amar é apenas uma faculdade, o cuidado é uma obrigação daqueles que geram uma criança. Quando há essa ausência e a clara ruptura com princípios básicos do Direito de Família como o da paternidade responsável, o do melhor interesse da criança e o da própria convivência familiar, surge para aquele filho abandonado a possibilidade de recorrer ao judiciário em busca de indenização pelo abandono sofrido.
Cumpre destacar que a responsabilização civil, via de regra, tem o objetivo geral de retomar a coisa ao status quo ante, por intermédio do valor a ser recebido. Quando se refere à responsabilização em razão do abandono afetivo, isso claramente não será possível, vez que o dano já está consolidado e não será uma quantia em dinheiro que reverterá isso. Também não tem a finalidade de “comprar” o amor daquele filho. A finalidade, em linhas gerais, na realidade, é de caráter preventivo (SOUSA, 2016).
Há a intenção de evitar comportamentos similares por outros pais, e consequentemente evitar que outras crianças e/ou adolescentes passem por situações iguais. Dentro da relação paterno-filial em foco na ação judicial, o objetivo maior é que haja uma mínima convivência familiar entre o filho abandonado e o genitor que não exerce a paternidade responsável (BONINI; ROLIN, 2017)
Observa-se que o foco nunca é promover o amor dentro da relação, muito porque o Direito sequer tem incidência nessa seara tão importante, mas promover, ainda que minimamente, os princípios do Direito das Famílias, a exemplo da paternidade responsável, da dignidade da pessoa humana, da convivência familiar, dentro dessas relações tão complexas e conturbadas, em que o polo mais frágil sempre sofre mais, no caso, o filho abandonado.
3.DO DIREITO FUNDAMENTAL AO NOME
3.1 Direito da Personalidade e o Código Civil de 2002
Com a vigência do Código Civil de 2002, o entendimento de que o homem deveria ser tutelado em todos os seus aspectos intrínsecos, seguindo o que prevê da Constituição Federal de 1988, e não mais apenas o patrimonial, como prevalecia no Código Civil de 1916, os direitos da personalidade passaram a ter especial importância no ordenamento jurídico, tendo, inclusive, um capítulo próprio na legislação vigente.
Para Tartuce (2019), os direitos fundamentais elencados e regidos pela Constituição Federal de 1988 somente são de fato respeitados quando há efetivação dos direitos da personalidade, isto é, em sua visão, a concepção civil-constitucional é essencial para a harmônica tutela dos direitos intrínsecos ao homem.
Ocorre que Lobo (2019) considera que, apesar dos direitos da personalidade serem decorrentes dos direitos fundamentais, não deve-se compreender ambos como uma mesma coisa, isto é, os direitos fundamentais são bem mais amplos e envolvem aspectos que não são englobados pelos direitos da personalidade, a exemplo de não incidir apenas na esfera privada.
Os direitos da personalidade são compreendidos como direitos não patrimoniais e que concretizam o fundamento da Constituição Federal/88: a dignidade da pessoa humana (LOBO, 2019).
Araújo (2022) discorda do conceito acima apresentado, pois, para ele, os direitos da personalidade não podem ser limitados à dignidade da pessoa humana. Para ele, melhor associação acontece quando se relaciona os direitos da personalidade dos seres humanos à dignidade da pessoa humana, já que dessa forma não excluem as pessoas jurídicas, que também são titulares de direitos da personalidade.
Dessa forma, pode-se compreender os direitos da personalidade como sendo inerentes ao homem, tutelados pelo ordenamento jurídico como forma de resguardar cada pessoa de possíveis abusos, dispostos dentre os arts. 11 ao 21 do Código Civil de 2022, de maneira não exaustiva (BRASIL, 2002).
De uma melhor análise dos artigos acima mencionados, extrai-se que os direitos da personalidade são dotados de características específicas, tais como o fato de serem absolutos, isto é, oponíveis erga omnes; extrapatrimoniais; indisponíveis; imprescritíveis; impenhoráveis e vitalícios (BRASIL, 2002).
Nesse ponto, interessante dispor que a titularidade dos direitos da personalidade cabe ao ser humano, sendo garantido também aos nascituros que possuem direitos resguardados desde a concepção, onde se incluem os direitos da personalidade. Da mesma maneira, cabe às pessoas jurídicas vez que há necessidade de serem resguardados seus direitos da personalidade básicos, tais como a imagem e o nome (STOLZE, 2019).
Por fim, partindo da análise do Código Civil de 2002 e da doutrina, considera-se direitos da personalidade a vida, o nome, a imagem, a integridade física, a honra, dentre outros, que não são tuteladas, como exposto acima, de maneira exaustiva. Tartuce (2019), de maneira didática, buscou classificar esses direitos da personalidade em três núcleos gerais: vida e integridade física; integridade psíquica e criações intelectuais e integridade moral.
Dentre essa classificação, têm-se o nome civil como um direito da personalidade, fundamental para o desenvolvimento do estudo e que será debatido e analisado minuciosamente no tópico abaixo.
3.2 Nome Civil: Conceito e Natureza Jurídica
De acordo com Coelho (2020), o nome é uma das principais formas de identificação da pessoa física, e tem repercussão fática não apenas no âmbito jurídico, mas também psicológico, vez que é fundamental para a construção da personalidade do ser humano.
No mesmo sentido, Gagliano e Filho (2020) consideram o nome um dos principais meios para a exteriorização da individualidade, sendo também a principal forma de identificação das pessoas, seja no âmbito familiar ou social.
Dias (2021) destaca ainda o fato de que o nome não é um simples elemento que tem reflexos apenas enquanto o indivíduo é vivo, mas também perdura e tem proteção no ordenamento jurídico pós-morte. Cabe destacar ainda que o direito ao nome é adquirido antes mesmo do nascimento.
Ainda em seu entendimento, percebe-se que o nome vai muito além de uma simples identidade social, é principalmente uma forma do indivíduo se reconhecer quanto sujeito e pertencente a uma determinada família, tendo, portanto, grandes reflexos jurídico, social e psicológico (DIAS, 2021).
Interessante destacar que há uma singela diferença entre a “individualização” da pessoa por meio de seu nome e a “identificação”. Conforme explicita Almeida (2017), a individualização apenas é alcançada quando é possível ocorrer uma clara distinção entre os semelhantes, ficando perceptível as singularidades de cada um, ainda que estejam rodeadas por diversas pessoas. Já a identificação se restringe a um mero reconhecimento, sem a menor identificação das características singulares, não exercendo, em consequência, uma forma segura de individualização.
Segundo Gonçalves (2020), a análise do direito ao nome pode se basear em dois víeis essenciais: tanto pelo aspecto público, quanto no privado. O aspecto público, em razão do Estado possuir o interesse direto que todas as pessoas tenham um nome, vez que, de acordo com Venosa (2017), é a forma encontrada para a identificação de todos, muito por isso há lei específica regulando essa questão, conhecida como Lei dos Registros Públicos.
O caráter privado, ainda no entendimento de Gonçalves (2020), por conferir ao indivíduo uma série de direitos, inclusive a possibilidade de reprimir, por meio judicial, se necessário, a utilização de forma indevida e/ou sem autorização deste nome. Nesse viés, segundo Silva (2017), o nome se caracteriza não apenas por um direito, mas também como um dever.
No mesmo sentido, Lôbo (2019) também traz que, muito além de um simples direito, o nome trata-se de uma imposição legal, não tendo sequer a possibilidade de qualquer indivíduo não o ter. No seu entendimento, o nome vai muito além de um simples direito privado, vez que há claros reflexos no direito público.
No que se refere a natureza jurídica do nome, várias teorias se sobressaíram, tais como a da propriedade, que segundo Gagliano e Filho (2020), considerava-se o titular do nome a família ou o próprio indivíduo; a negativista que, conforme Gonçalves (2020), o nome não representaria um direito, em razão disso, não merecia ser resguardado; e a da personalidade, que, segundo o entendimento de Venosa (2017), em razão do nome representar um atributo não patrimonial e ter a finalidade de proteger o homem, se encaixaria perfeitamente como um direito da personalidade.
Importante destacar que, atualmente, na vigência do Código Civil de 2002, como visto anteriormente, o nome é considerado um direito da personalidade, sendo um dos principias atributos da personalidade, tendo total proteção no ordenamento jurídico, vez que há reflexos importantes tanto na seara privada como na pública.
3.3 Elementos Integrantes do Nome
O Código Civil de 2002 é claro ao trazer, em seu artigo 16, os elementos constitutivos do nome: necessariamente o prenome e o sobrenome. Nesse ponto, cabe destacar que não há, dentro da própria legislação, total concordância quanto a denominação dos elementos que constituem o nome. Ora, ao passo em que o Código Civil, como citado acima, utiliza-se do prenome e sobrenome, a lei dos Registros Públicos utiliza-se dos termos prenome e nome (ARAÚJO, 2022).
Mesmo em face disso, e tendo como base o fato de que a maioria das normas se aproxima do Código Civil de 2002, opta-se a autora por utilizar-se o prenome e sobrenome como elementos que formam o nome civil.
Partindo para a conceituação, por prenome, entende-se como sendo o primeiro nome, utilizado como uma das principais formas de distinguir os membros de uma mesma família (GONÇALVES, 2020). A lei de Registros Públicos, no art. 55, parágrafo único, deixa claro que é completamente vedado o registro de um prenome que exponha a situações vexatórias o seu portador, tendo o oficial de cartório a possibilidade de vedar, e, em caso de insistência por parte dos pais, a decisão caberá ao Juiz, manifestando se aceita ou não que um prenome potencialmente capaz de expor ao ridículo, seja dado ao portador (BRASIL, 1973).
Um outro comando da lei de Registros Públicos no que se refere ao prenome, é a questão de irmãos gêmeos. Nessa situação, deverão ser registrados com o nome completo diverso ou, em caso de prenomes iguais, necessariamente deverá ser inscrito com duplo prenome, para que consiga chegar à finalidade geral, como citado acima: a individualização do indivíduo (BRASIL, 1973).
Observa-se, portanto, que ainda que o prenome seja uma escolha que cabe aos pais e/ou responsáveis, estes não têm direitos ilimitados quanto a escolha. O próprio Estado estabelece limites nesse campo privado, com a finalidade geral de evitar constrangimentos àquele que não teve a opção de escolha.
O outro elemento constitutivo do nome é o sobrenome, também chamado de patronímico. Este é uma herança familiar, sendo, então, herdado da mãe e do pai, conjuntamente, funcionando como o indicativo da procedência familiar ou origem ancestral. Interessante citar que, diferente do que normalmente acontece, não há uma obrigatoriedade quanto a ordem dos sobrenomes. Poderá, portanto, inserir primeiro o nome do pai, ou da mãe, escolher qualquer um deles, desde que contenha o patronímico de ambos (FARIAS; ROSENVALD, 2017).
Há, portanto, uma obrigatoriedade em relação a existência do patronímico, não quanto a ordem. Esta obrigação é indicada principalmente na lei de Registros Público, que estabelece, em caso de não indicação do nome completo por parte do declarante, a necessidade do Oficial, de ofício, lançar o prenome do pai, ou na ausência, o da mãe, caso sejam conhecidos (BRASIL, 1973).
4.DA IMUTABILIDADE DO NOME PREVISTA NA LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS
Como já demonstrado, o nome é formado por elementos que se denominam de prenome e sobrenome. Sobre esses elementos, vigora o princípio da imutabilidade, em regra, pelo disposto na Lei de Registros Públicos, especialmente em seu art. 58, com o intuito geral de proteção às pessoas (BRASIL, 1973).
Segundo Farias e Rosenvald (2017), essa situação justifica-se uma vez que, naturalmente, o nome civil gera o registro público no cartório, tendo força, notoriedade e veracidade, não sendo interessante ao Poder Público modificações ao bel prazer do titular daquele registro, vez que afastaria um dos principais fins do nome civil: a individualização
Assim, nos termos da Lei de Registros Público, vigora o princípio da imutabilidade do nome, como forma de proteção conferida em duas vertentes: pública e privada. Essa imutabilidade, entretanto, nos termos das jurisprudências e pelo posicionamento doutrinário, vem sofrendo certa relativização, afim de acompanhar as mudanças naturalmente ocorridas em sociedade, e com o objetivo geral de garantir o princípio da dignidade da pessoa humana.
4.2 Hipóteses Legais de Alteração do Nome
Importante citar que, como o nome civil tem repercussão tanto no viés público quanto no privado, citado no tópico anterior, não seria interessante a prevalência apenas do interesse público, não existindo, portanto, situações passíveis de alteração do nome. Em face disso, a própria lei traz situações que permitem alteração do prenome, mas também permite que seja levado à análise de um juiz, para que altere o nome, desde que de forma motivada (BRASIL, 1973).
Conforme afirma Almeida (2020), as mudanças legislativas e principalmente o posicionamento jurisprudencial vem relativizando o princípio da imutabilidade do nome, ainda que de forma superficial, com o objetivo de garantir o direito das pessoas. Resta demonstrado que, em relação ao nome, vigora a imutabilidade relativa, essa definida em lei ou por decisão motivada do juiz.
Interessante citar que, conforme aduz Ulhoa (2020), há um prazo decadencial de 1 (um) ano, após a maioridade, para mudança do prenome, de maneira imotivada, disposta no art. 56 da Lei de Registros Públicos. Esse artigo, entretanto, é claro ao afirmar que permite a mudança apenas do prenome, sendo vedada a modificação do nome de família, também conhecido como sobrenome. O autor afirma, entretanto, existir a possibilidade de agregar ao sobrenome existente, componentes de patronímicos de outros ascendentes, tais como avó, bisavó e outros (ULHOA, 2020).
Para Farias e Rosenvald (2017), essa possibilidade se justifica em razão do nome caracterizar-se como um direito da personalidade, como já explicado em tópicos anteriores, e, com a finalidade de garantir o exercício pleno desse direito, aliado ao direito de identificação social, nada mais relevante que garantir a possibilidade de modificação imotivada, com prazo específico para tal, garantindo também a segurança jurídica.
4.3 A Possibilidade de Modificação do Nome sob a ótica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, fora instituído um fundamento extremamente importante e base de todas as relações existentes em sociedade: a Dignidade da Pessoa Humana. A partir disso, passou-se a entender que não basta que determinada situação esteja de acordo com a lei, deve, no mesmo grau, respeitar a dignidade da pessoa humana.
Nota-se que a Dignidade da Pessoa Humana alcançou uma posição extremamente importante em sociedade, sendo função do próprio Estado garantir meios para que ela possa ser de fato respeitada e alcance a todos os cidadãos.
No que se refere à possibilidade de modificação do nome, especialmente ligado ao sobrenome, em que a lei dos Registros Públicos estabelece restrições, a dignidade da pessoa humana vem sendo um dos principais argumentos para assegurar e respeitar as particularidades de cada um. Deve-se entender que de nada adianta um nome, com todos os seus elementos, se este não assegura a dignidade da pessoa.
Muito em razão disso, a jurisprudência, a doutrina e novas leis que vão surgindo colocam o princípio da dignidade da pessoa humana como um motivo para possíveis modificações de nomes, vez que este princípio se encontra resguardado na Lei Maior.
4.4 A Relativização do Princípio da Imutabilidade do Patronímico em Razão do Abandono Afetivo
Como visto anteriormente, o princípio da imutabilidade do sobrenome vem sendo considerado relativo, entendendo a jurisprudência e a doutrina que quando há justo motivo para alteração ou supressão desse sobrenome, esta modificação será possível.
No que se refere à supressão em razão do abandono afetivo, Tartuce (2021) considera este um justo motivo para a retirada do patronímico, uma vez que o nome na situação de ser um elemento identificador, não se torna plausível que o portador permaneça com um sobrenome que lhe remeta ao abandono sofrido pelos genitores.
Os Tribunais também se posicionam, de maneira geral, favoráveis à supressão do patronímico em razão do abandono afetivo. É o caso do julgamento da Apelação Cível n° 0006207- 54.2014.8.16.0179 pelo Tribunal de Justiça do Paraná, em que a apelante alega ter sido abandonada pelo seu genitor antes de completar 1 ano de vida e a utilização do sobrenome registral paterno apenas remete a ela o sentimento de humilhação e tristeza (BRASIL, 2018).
O Desembargador Relator Ruy Muggiati, em seu voto, demonstra que a continuidade do sobrenome paterno ao nome da apelante, apenas gera uma espécie de sanção à própria apelante, e não ao genitor que nunca prestou nenhum tipo de auxílio, seja afetivo ou financeiro. Nesse sentido, em seu entendimento, o abandono afetivo, quando comprovado nos autos, caracteriza-se como um justo motivo para a retirada do sobrenome (BRASIL, 2018).
Mesmo nos casos em que há desprovimento do recurso, o abandono afetivo como sendo um justo motivo para supressão do sobrenome não é sequer questionado. É o caso da Apelação Cível n° 70073762262, julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Nesse caso, o Desembargador Relator apenas opinou pelo desprovimento do recurso por não haver nos autos documentos que comprovassem o abandono afetivo alegado pela parte apelante, que juntara apenas a certidão de guarda provisória concedida ao pai da mesma (BRASIL, 2017).
Fica demonstrado, portanto, que tanto a jurisprudência quanto a doutrina consideram o abandono afetivo um justo motivo para a supressão do sobrenome daquele que abandonou, vez que, como demonstrado no desenvolvimento do estudo, a dignidade da pessoa humana deve prevalecer em relação ao texto da lei, vez que este sequer consegue acompanhar os avanços da sociedade.
4.4.1 Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgados, também vem se posicionando de maneira favorável à relativização do princípio da imutabilidade em razão do abandono afetivo. Extrai-se da análise do Recurso Especial 13.04718/SP, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que o recorrente foi abandonado pelo pai aos 7 meses de idade, não tendo sido amparado nem moral, muito menos economicamente. O relator, na fundamentação de sua decisão, deixa claro que o nome é uma das formas de caracterizar a família, e, como demonstrado em todo o processo, não houve a formação da relação paterno-filial, não assistindo razões para que o recorrente continuasse com o sobrenome paterno, principalmente por gerar sentimentos ruins (BRASIL, 2014).
O relator aduz ainda que o julgador não pode se restringir apenas ao que expõe a lei, uma vez que esta não acompanha a mudança da sociedade. Por isso, em seu voto, considera que os danos psicológicos causados ao recorrente, o abandono em tenra idade e a não formação do vínculo paterno-filial apresenta-se como um justo motivo para a retirada do patronímico paterno do registro civil do recorrente, demonstrando que o princípio da imutabilidade do patronímico é relativo, como exposto acima. Cita ainda a forte tendência do Superior Tribunal de Justiça em superar a rigidez do registro de nascimento, sempre visando a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 2014).
Nesse mesmo sentido, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no julgamento do Recurso Especial n° 66643/SP, considerou, com base na hermenêutica jurídica, e na própria evolução da doutrina e da jurisprudência, o abandono afetivo como um justo motivo para autorização da retirada do patronímico, principalmente em razão do nome civil ter como finalidade maior a individualização no âmbito familiar e social, o que não considera que ocorra nos casos de abandono afetivo (BRASIL, 1997).
Nota-se, portanto, que o Superior Tribunal de Justiça se posiciona favorável à relativização do princípio da imutabilidade do patronímico, uma vez que a lei não deverá se sobrepor ao caso concreto, sendo possível que o sobrenome submeta o portador a uma situação vexatória, em razão do abandono afetivo, gerando um justo motivo para a exclusão do patronímico.
Como demonstrado no desenvolvimento desse estudo, os laços afetivos alcançaram uma elevada importância no ordenamento jurídico, sendo a afetividade a base para o reconhecimento das diversas formas de famílias, afastando-se da centralização apenas nos laços sanguíneos.
Partindo disso, entende-se que o Estado não poderá intervir nas escolhas pessoais de cada indivíduo, mas a partir destas escolhas espontâneas, tem a necessidade de impor obrigações básicas. Assim, quando um casal decide ter um filho, deverá também cuidar e zelar por este filho, seja naturalmente ou decorrente de imposições legais.
Quando ainda assim, um dos genitores se afasta de seus deveres legais de cuidado, caracteriza-se um abandono afetivo que poderá acarretar diversas consequências físicas e psicológicas àquela criança e/ou adolescente abandonado. Dentre essas consequências, poderá surgir o anseio pela retirada do sobrenome daquele que o abandonou, o que é, de início, barrado pela Lei dos Registros Públicos e a consequente imutabilidade do sobrenome.
Nessa pesquisa observou-se que muito além de uma interpretação legal, é de extrema necessidade a observância de princípios básicos trazidos pela Constituição Federal de 1988, dentre eles, o fundamento da Dignidade da Pessoa Humana. Nesse sentido, o princípio da imutabilidade do sobrenome precisa ser relativizado, com o fulcro de atingir este importante fundamento, vez que de nada adianta um nome que, apesar de individualizar em sociedade, causa angústia e abalo psíquico ao portador.
Demonstrou-se ainda que o abandono afetivo, tanto para a doutrina quanto para a jurisprudência, é considerado um justo motivo para a retirada do sobrenome, tendo por base principalmente o fundamento da Dignidade da Pessoa Humana. Por todo o exposto, percebe-se que a lei não consegue acompanhar os avanços sociais, e, por isso, é de extrema importância a utilização de princípios para adaptar a lei ao caso concreto. Por isso, entende-se como possível a relativização do princípio da imutabilidade do patronímico em razão do abandono afetivo no Brasil.
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NOTA:
(1) Professora Mestra do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA. E-mail: [email protected]
Acadêmica em Direito no Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA. Estagiária do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DéBORA BARBOSA MENDONçA, . O abandono afetivo como causa de relativização do patronímico no Brasil: dignidade do filho abandonado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58345/o-abandono-afetivo-como-causa-de-relativizao-do-patronmico-no-brasil-dignidade-do-filho-abandonado. Acesso em: 23 dez 2024.
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