ELOISA DA SILVA COSTA
(orientadora)
RESUMO: No ano de 2019, o mundo foi acometido pela pandemia do covid-19, onde, concorrentemente, houve também o aumento da violência contra a mulher nesse período, sendo imprescindível para a proteção de tais mulheres em caso de vulnerabilidade a sanção da Lei nº 14.022/20. O objetivo deste trabalho é demonstrar o aumento da violência doméstica no estado de São Paulo durante a pandemia do covid-19 e a efetividade da nova Lei nº 14.022/20 em consonância com a Lei nº 11.340/06.
Palavras-chave: Violência contra mulher, Covid-19, Lei 14.022/20.
ABSTRACT: In 2019, the world was affected by the covid-19 pandemic, where, concurrently, there was also an increase in violence against women in this period, being essential for the protection of such women in case of vulnerability to the sanction of Law No. 14.022/20. The objective of this work is to demonstrate the increase of domestic violence in the state of São Paulo during the covid-19 pandemic and the effectiveness of the new Law nº 14.022/20 in line with Law nº 11.340/06.
Keywords: Violence against women, Covid-19, Law 14.022/20.
Sumário: 1. Introdução. 2. A importância da lei para as mulheres. 2.1 Histórico de criação da lei Maria da Penha. 2.1.1.O conceito de violência doméstica e sua abrangência. 2.2 O âmbito doméstico e familiar. 2.3 As formas de violência doméstica previstas na lei Maria da Penha. 2.4. A violência doméstica e o isolamento. 3.Considerações finais. 4. Referências
1. Introdução
Devido ao novo coronavírus e ao aumento da violência doméstica no estado de São Paulo durante a pandemia e a sanção da Lei nº 14.022/20 é que se propõe a pesquisa aqui apresentada. A Lei Maria da Penha trouxe mudanças significativas no que se refere às medidas de enfrentamento a violência doméstica. De acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tem aumentado cada dia mais a taxa de violência contra mulheres no âmbito familiar, devido ao isolamento social que o estado de São Paulo vem enfrentando. Nesse sentido, foi promulgada a Lei nº 14.022/20, impondo medidas para assegurar a vida dessas vítimas de violência doméstica durante a pandemia. O trabalho pretende demonstrar o aumento da violência doméstica contra mulheres durante a pandemia no estado de São Paulo, e discutir sobre as medidas de enfrentamento a essa violência, e analisar se a Lei nº 14.022/20 está sendo realmente eficaz durante a pandemia do covid-19. O objetivo principal do trabalho é demonstrar o aumento da violência doméstica no estado de São Paulo durante a pandemia do covid-19 e a efetividade da nova Lei nº 14.022/20 em consonância com a Lei nº 11.340/06. A pesquisa aqui proposta pretende responder, o mais precisamente possível, as questões seguintes, constituintes do problema, quais sejam: Qual a taxa de aumento da violência doméstica durante a pandemia do covid-19? A nova lei sancionada - nº 14.022/20 - está sendo realmente efetiva no combate à violência doméstica durante a pandemia? E a Lei nº 14.022/20 está em consonância com a Lei Maria da Penha?
2. A importância da lei para as mulheres
A lei nº 11.340/06 conhecida como Lei Maria da Penha foi criada com o intuito de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do art. 226, § 8º da Constituição Federal, dispondo sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher, da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
No mesmo sentido, foi promulgada a Lei nº 13.104/15, a qual foi inserida no Código Penal, em seu artigo 121, VI, como qualificadora do crime de homicídio, discorrendo sobre o homicídio contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. No ano de 2020, devido a pandemia e ao crescente aumento de casos de violência doméstica, foi sancionada a Lei nº 14.022/20 que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres, bem como o enfrentamento das violências contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e com deficiência, durante a pandemia.
A referida lei estabelece que enquanto durar o estado de emergência de saúde decorrente do novo coronavírus, os prazos processuais, a apreciação de matérias, o atendimento às partes e a concessão de medidas protetivas devem ser mantidos. A lei também determina que o registro de ocorrência poderá ser realizado por meio eletrônico ou por telefone. Além disso, afirma que o poder público deverá adotar as medidas necessárias para garantir a manutenção do atendimento presencial.
Assim, pesquisas feitas recentemente (WAISELFISZ, 2015; CERQUEIRA et al., 2019; FBSP, 2020) revelam que o lar é um lugar significativo de ocorrência da violência contra as mulheres, sendo o direito à propriedade privada um dos direitos fundamentais assegurados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sendo assim, Arendt (2007, p. 81) ressalta que: “as quatro paredes da propriedade particular de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum – não só contra tudo o que nele ocorre, mas também contra a sua própria publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido”, sendo um lugar privado no qual é possível nos escondermos. Esse esconderijo tem, portanto, duas faces: protege a individualidade e a privacidade, porém permite que violências aconteçam, e continuem sendo pensadas como pertencentes ao âmbito particular, já que ocorrem dentro de casa. De acordo com o fórum Brasileiro de Segurança Púbica, no estado de São Paulo, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9%, pois, embora a quarentena seja a medida mais segura, necessária e eficaz para minimizar os efeitos diretos da Covid-19, o regime de isolamento tem imposto uma série de consequências não apenas para os sistemas de saúde, mas também para a vida de milhares de mulheres que já viviam em situação de violência doméstica. Sem lugar seguro, elas estão sendo obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar junto a seu agressor, muitas vezes em habitações precárias, com os filhos e vendo sua renda diminuída. Uma das consequências diretas dessa situação, além do aumento dos casos de violência, tem sido a diminuição das denúncias, uma vez que em função do isolamento muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para fazê-la ou têm medo de realizá-la pela aproximação do parceiro segundo Bianchini, Bazzo e Chakian (2021):
[...] O aumento das tensões do convívio forçado, os problemas financeiros, o maior isolamento dessas meninas e mulheres dentro de casa, sem acesso aos espaços de convivência tradicionais, como escolas, além do abuso de álcool e drogas, foram fatores que contribuíram para a maior exposição dessas vítimas a violência e abusos sexuais, lembrando que infelizmente, no nosso país, para milhares de meninas e mulheres, casa não é sinônimo de lar, mas sim de espaço de medo, insegurança e violência.
2.1 Histórico de criação da Lei Maria da Penha
Como dito anteriormente, não faz muito tempo que a violência contra a mulher é considerada, de fato, um crime. Quando da descoberta do Brasil, onde vigoravam, aqui, as Ordenações Filipinas, a única realidade que conhecia a mulher era a de estarem sujeitas ao poder disciplinar dos pais ou maridos. Constava da parte criminal das Ordenações, justamente, que aqueles que ferissem as mulheres com pau ou pedra, bem como aqueles que castigassem suas mulheres, desde que moderadamente, eram isentos de pena.
Além disso, o mesmo texto legal permitia que o homem matasse sua mulher em caso de adultério – o adultério sequer precisava ser confirmado, bastava uma desconfiança do fato (RODRIGUES, 2003). E após 350 anos de vigência das Ordenações Filipinas no Brasil, as coisas até evoluíram, mas estavam longe de serem justas. Passaram pela legislação criminal, no tema, os códigos penais de 1830, 1890 e 1940 e todos, de alguma forma, permaneceram alimentando as desigualdades de gênero e utilizando-se do Direito para legitimar os discursos da sociedade patriarcal e machista. Passaram-se as prisões de mulheres por casos de adultério, as brechas dos códigos para que sobreviessem teorias jurídicas que permitissem o assassinato de mulheres, tais como as figuras dos “crimes de paixão” e da “legítima defesa da honra”, dentre outras questões abusivas.
Sem sombra de dúvidas, a edição da Lei Maria da Penha foi um dos maiores e mais significativos marcos na história brasileira da luta pelos direitos das mulheres. Mas a luta para que a Lei passasse a vigorar foi árdua e durou muitos anos. O primeiro marco na luta foi a Organização Não Governamental (ONG) CEPIA que, em 2002, juntamente com representantes das organizações CFEMEA, AGENDE, CLADEM e THEMIS estudaram a elaboração de uma proposta de adequação legislativa que tratasse dos crimes de violência doméstica, conforme já previa a Constituição Federal, em seu art. 226, parágrafo 8º e a Convenção de Belém do Pará. Da mesma forma, a Convenção de Belém do Pará, da qual o Brasil é signatário desde 1995, tratava especificamente sobre a violência contra a mulher, e enquadrava essa violência como uma ofensa à dignidade humana e manifestação das relações de poder desiguais entre homens e mulheres, desigualdade essa, como se sabe, histórica. A ratificação de Convenção pelo país gera, ao Estado-Parte, a obrigação de cumprimento das diretrizes do documento. Nesse caso, o documento ratificado se trata, justamente, de modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes que permaneçam legítima a violência contra a mulher.
Ou seja, ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Brasil afirmou o compromisso de atuar conforme as diretrizes desse documento e, consequentemente, de enfrentar a violência doméstica. Contudo, até ser efetivamente forçado a modificar as leis desiguais, o Estado não tomou maiores providencias. E quem tomou a linha de frente nessa luta para tentar obrigar o Estado brasileiro foram as mulheres representantes das ONGS supramencionadas, mas, além delas, houve um episódio especial que deu a força que o movimento precisava: o caso de Maria da Penha Fernandes.
Conforme explica Dias (2015, p. 15), em 1983, Maria da Penha Fernandes sofreu tentativa de homicídio de seu esposo. Enquanto dormia, o marido atirou em suas costas. O tiro não a matou, porém, a deixou tetraplégica. Na ocasião, o marido alegou que a situação era consequência de tentativa de roubo à residência do casal, e eximiu-se de culpa. Quando se recuperou, ao voltar para casa, Maria da Penha foi mantida em cárcere privado pelo marido, sofrendo diversas agressões, até que sobreveio segunda tentativa de homicídio apenas duas semanas após a primeira: o marido tentou eletrocutá-la (DIAS, 2015). Diante disso, Maria da Penha tomou coragem para denunciar as agressões que vinha sofrendo. Conforme relata Dias (2015,p.15) :
[...]. Durante o casamento, Maria da Penha sofreu repetidas agressões e intimidações. Nunca reagiu por temer represália ainda maior contra ela e as filhas. Somente depois de ter sido quase assassinada, por duas vezes, tomou coragem e decidiu fazer uma denúncia pública. Nesse período, com muitas outras mulheres, Maria da Penha denunciou as agressões que sofreu. [...] (DIAS, 2015,p.15).
Não restavam dúvidas da autoria do crime e da motivação. Segundo testemunhas, semanas antes da tentativa de homicídio, o esposo de Maria da Penha a pediu que fizesse um seguro de vida em seu favor, além de ter feito com que Maria da Penha assinasse documento de venda de seu carro sem que constasse o nome do comprador. Ainda, após as agressões, Maria da Penha descobriu que o esposo era bígamo e possuía um filho com a outra companheira (SOUZA; BARACHO, 10 2015). Contudo, mesmo com toda essa situação, quinze anos após as agressões ainda não havia sentença condenatória nos Tribunais brasileiros e o agressor se encontrava em liberdade. De acordo com as palavras da própria Maria da Penha Fernandes, citada na obra de Dias (2015, p. 17, grifo da autora):
[...] Como nenhuma providência foi tomada, chegou a ficar com vergonha e a pensar: se não aconteceu nada até agora, é porque ele, o agressor, tinha razão de ter feito aquilo. Ainda assim não se calou. Em face da inércia da Justiça, escreveu um livro, uniu-se ao movimento de mulheres e, como ela mesma diz, não perdeu nenhuma oportunidade de manifestar sua indignação (DIAS, 2015, p. 17).
Por esta razão, em 1998, Maria da Penha e duas Organizações Não Governamentais, quais sejam, CEJIL e CLADEM, entraram com uma petição que denunciava o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Na denúncia, alegavam a tolerância do Estado com a violência doméstica, a qual o mesmo Estado tinha se comprometido a combater quando virou signatário da Convenção de Belém do Pará, como visto anteriormente. O Estado brasileiro não respondeu a denúncia.
Assim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu, conforme consta em seu relatório 54/01, que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e a proteção judicial em prejuízo de Maria da Penha, e que tal violação ocorreu como parte de um padrão discriminatório contra as mulheres no país (DIAS, 2015, p. 16). Diante disso, o Estado brasileiro foi condenado a pagar indenização à Maria da Penha, bem como foram feitas recomendações ao Estado para regularizar a situação, de forma a compelir o Brasil a criar uma legislação específica que promovesse a prevenção e a proteção efetiva das mulheres em situação de violência. Esse sistema de proteção internacional foi decisivo para a edição da Lei específica que trata da temática, bem como também foi decisivo na criação de delegacias especializadas, Casas Abrigos, entre outras medidas de apoio e combate.
Após o episódio de Maria da Penha, o grupo de representantes do Consórcio de ONGs elaborou uma minuta de anteprojeto que, de acordo com as propositoras, nada mais era que um início de discussão. Segundo elas, o debate do tema deveria ser ampliado aos movimentos de mulheres e aos parlamentares e membros da magistratura, entre outros membros sociais.
O anteprojeto elaborado pelas representantes do Consórcio de ONGs trouxe as seguintes propostas: a) Conceituação da violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de Belém do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral; b) A criação de uma Política Nacional de combate à violência contra a mulher; medidas de proteção e prevenção às vítimas; c) Medidas cautelares referentes aos agressores; d) Criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar; e) Assistência jurídica gratuita para mulheres; f) Criação de um Juízo Único, com competência cível e criminal através de Varas Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres e outros relacionados; g) Não aplicação da Lei 9.099/1995 – Juizados Especiais Criminais – nos casos de violência doméstica contra as mulheres.
A proposta do anteprojeto foi apresentada à Bancada Feminina em 11 de novembro de 2003, no Seminário promovido para debater a violência doméstica contra as mulheres na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2017). Já no início de 2004 o anteprojeto chega nas mãos da Ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), a qual institui um Grupo de Trabalho pelo Decreto 5.030/2004, para a elaboração de proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra as mulheres (PIMENTEL, 2009). Só assim, através da iniciativa do Consórcio de ONGs, que resultou no referido anteprojeto, foi que o Estado brasileiro cumpriu o compromisso firmado internacionalmente de combater a violência doméstica contra a mulher. O Grupo de Trabalho deu sequência aos debates da temática para promover a criação de uma lei específica. O Grupo foi composto por diversos Ministérios e Secretarias que possuíam vínculo com o Poder Executivo, mas também contou com abertura para a participação de organizações da sociedade civil e outras entidades interessadas (PIMENTEL, 2009).
O grupo interministerial, no entanto, não contemplou todas as exigências contidas no anteprojeto, tendo mantido a apreciação da matéria pelo Juizados Especiais, bem como não acatou a sugestão de unificar as varas cível e criminal que tratassem da violência contra a mulher. Contudo, tais exigências eram importantes e tinham seus fundamentos. Quando o anteprojeto, finalmente, chegou ao Legislativo, o Projeto de Lei recebeu o n. 4.559/04 na Câmara dos Deputados e foi distribuído para as Comissões de Seguridade Social e Família, Comissão de Finanças e Tributação, bem como à Comissão de Justiça e Cidadania.
A primeira Comissão, qual seja, a de Seguridade Social e Família, optou por ampliar o debate para a sociedade por meio de audiências públicas que foram realizadas em diversos estados. Nessas audiências, a realidade da violência contra a mulher mostrou seu rosto, e a complexidade do tema veio à tona, tanto pelos estudos apresentados, quanto pelos depoimentos de mulheres que viviam situações de violência (PIMENTEL, 2009).
Tais audiências resultaram numa ampliação das exigências que deveriam conter na Lei a ser editada, gerando um substitutivo que continha diversas inovações, tais como: a) Afastamento definitivo da Lei n. 9.099/1995 dos casos de violência doméstica; b) Criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência unificada; c)Vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária de cesta básica; d) Inclusão do dano moral e patrimonial no conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher; e) Reforço nas Delegacias de Atendimento à Mulher; f) Possibilidade de Inclusão das vítimas em programas assistenciais do governo, entre outros; g) Substituição do termo “medidas cautelares” por “medidas protetivas”; h) Criação de centros de atendimento psicossocial e jurídico, casas abrigo, delegacias especializadas, núcleos de defensoria pública, entre outros serviços de atendimento; i) obrigatoriedade do comparecimento do acusado a programas de recuperação e reeducação, entre outros. O Projeto foi encaminhado ao Senado Federal após os tramites necessários como PLC n. 37 de 2006, e a única exigência social, à essa altura, era que este tivesse uma tramitação rápida. Moções com milhares de assinaturas foram encaminhadas e anexadas ao processo no Senado (BRASIL 2017). Até mesmo vigílias em prol da aprovação do projeto foram organizadas pelos movimentos feministas em diversos estados, até que o projeto fosse aprovado, tornando-se a conhecida Lei n. 11.340/2006, objeto dessa pesquisa, denominada Lei Maria da Penha para homenagear Maria da Penha Fernandes que, conforme já visto, lutou com toda a força para combater a violência doméstica.
2.1.1 O conceito de violência doméstica e sua abrangência
Até o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica, no Brasil, era conceituada como uma forma de violência física, que poderia ser sofrida por qualquer pessoa, desde que no âmbito doméstico. Tal conceituação advinha da existência do texto legal do parágrafo 9º, do art. 129 do Código Penal, que dispunha a violência doméstica como uma agravante de pena do crime de lesão corporal:
Lesão corporal
“Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um a um ano.” (Decreto-Lei nº 2.840, de 07 de dez.1940)
Violência Doméstica
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo -se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. § 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).[1]
Essa previsão no Código Penal não existiu desde a instituição desse diploma. Em verdade, a violência doméstica foi incluída pela Lei n. 10.886/2004, que surgiu como uma tentativa falha do Estado brasileiro em remediar a inexistência de previsão legal da violência doméstica, atendendo aos movimentos sociais (BRASIL, 2017). Contudo, por óbvio, a referida Lei não foi capaz de satisfazer a reivindicação dos movimentos feministas e da comunidade internacional, pois previa a violência doméstica de forma extremamente rasa, considerando, somente, a lesão física, e afastando do cerne da questão a figura da mulher, pois abrangia qualquer indivíduo que sofresse violência no âmbito doméstico. A Lei Maria da Penha veio, justamente, para corrigir tal erro (BRASIL, 2017). De acordo com o art. 5º da Lei Maria da Penha, tem-se que:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I- No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II- No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III- em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
De acordo com o “caput” do supracitado artigo, entende-se que o conceito de violência doméstica é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico ou dano moral ou patrimonial à mulher (BRASIL, 2006). Tem-se, portanto, que a violência doméstica e familiar é considerada como uma violência de gênero. Como bem ensina a doutrinadora Hermann (2012, p. 99):
“a perfeita compreensão conceitual exige a retomada da categoria gênero [...]. A expressão define diferenças e distinções sociais e culturais decorrentes das diferenças entre os sexos, que variam em cada [...] cultura”.( Hermann,2012,p.99)
Desta forma, torna-se indispensável, para o correto entendimento da lei, compreender sua abrangência. Aqui, incluem-se não apenas atos e omissões que sejam decorrentes da conjugalidade, mas todos os atos ou omissões que sejam derivados de diferenças discriminatórias ligadas à condição de mulher da vítima. Portanto, abrange-se, na proteção da Lei, a mulher adulta, a mulher criança, a mulher adolescente, a mulher-idosa, etc (HERMANN, 2012).
Da mesma forma, sendo a vítima uma mulher, que sofre violência por sua condição de gênero, qualquer pessoa pode cometer tal violência. Conforme ensina Hermann (2012, p. 99), os atos abusivos devem ser decorrentes da condição feminina, “[...] não importando se o agressor é homem ou outra mulher”. A limitação para o enquadramento no delito é, somente, a violência com base no gênero feminino e, além disso, a ocorrência da violência no âmbito doméstico e familiar.
Percebe-se que a Lei Maria da Penha inseriu em seu âmbito de proteção, não somente a figura da mulher, mas também, a própria entidade familiar (DIAS, 2015). O problema da violência doméstica saiu do âmbito privado e passou a ser um problema do próprio Estado, pois compreendeu-se que, em tal modalidade de violência, não ocorre somente com a vítima do delito, mas sim, que a violência sofrida passa de geração em geração, tornando-se um problema de todos (LIMA, 2013). Em resumo, a violência doméstica conceituada pela Lei Maria da Penha tem como pontos de limitações à violência cometida com base no gênero, bem como a necessidade de ocorrer no âmbito doméstico e familiar, ou por relações domésticas e familiares, conforme dispõem os incisos do art. 5º da referida Lei supramencionada. Sobre a delimitação desses conceitos, trata-se a seguir.
2.2 O âmbito doméstico e familiar
Os incisos I, II e III do art. 5º, já mencionados no tópico anterior, é que dão as diretrizes para se compreender o que se considera, pela Lei, violência doméstica e familiar. O primeiro inciso traz que a violência será considerada doméstica quando ocorrer no âmbito da unidade doméstica, que é compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas que tenham, ou não, vínculo familiar, incluindo-se aí as pessoas esporadicamente agregadas ao âmbito familiar.
De acordo com Lima (2013, p. 65), compreende-se que esse inciso dispõe sobre pessoas que convivam “[...] em típico ambiente familiar, como se fosse uma família, mas não necessariamente sendo uma”. Dias (2015, p. 46) completa dizendo que “a expressão unidade doméstica deve ser entendida no sentido de que a conduta foi praticada em razão dessa unidade da qual a vítima faz parte”. Trata-se do espaço comum de convívio de pessoas agregadas, seja efetivamente uma família, seja uma república estudantil, seja um pensionato, convento, entre outros lugares.
A Lei delimita, aqui, da violência cometida no espaço de convívio dessas pessoas. O doutor autor Nucci (2010), ao discorrer sobre o tema, alerta para a importância de entender a vítima da violência como parte da relação familiar. Isto porque não faria sentido que qualquer mulher que, bastando estar na residência de alguém, se visse protegida por esse dispositivo legal. O segundo inciso trata do “âmbito familiar”, compreendido como a comunidade formada por indivíduos que são ou, ao menos, se consideram aparentados, unidos por laços naturais, afinidade ou mesmo, vontade. Aqui, a lei trata de colocar todos os tipos possíveis de família.
A violência disposta no referido inciso trata daquela violência praticada no seio da família, seja essa família unida pelo casamento entre um homem e uma mulher, ou pelo casamento homoafetivo, ou uma família anaparental ou mesmo uma família paralela (DIAS, 2015). Basta que indivíduos que se considerem família estejam envolvidos no delito para que este se configure. Por fim, o inciso três traz uma abrangência ainda maior da Lei, ao considerar como violência doméstica aquela cometida em qualquer relação intima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de qualquer coabitação. Ensina Lima (2013, p. 66) a respeito da abrangência do termo:
[...] A relação íntima de afeto é o relacionamento estreito entre duas pessoas, fundado em amizade, amor, simpatia, dentre outros sentimentos de aproximação. Esse dispositivo traz uma gama enorme de interpretação. Pelo seu sentido literal, qualquer relação entre namorados ou ex-namorados que agredissem suas namoradas estaria inserida nessa lei [...].(Lima, 2013,p.66)
E, de fato, a gama de interpretação é extensa, e tal fato gerou bastante resistência. Porém, após diversos debates, pacificou-se o entendimento de que o dispositivo deve ser aplicado, inclusive, às relações de namoro. Isto porque, conforme ensina Dias (2015, p. 49) “até mesmo os vínculos afetivos que refogem ao conceito de família e de entidade familiar não deixam de ser marcados pela violência.
Mesmo que não vivam sob o mesmo teto, havendo violência, merece a mulher o abrigo da Lei Maria da Penha”. Além de todo o exposto, conforme trata Dias (2015, p. 44), para se chegar ao correto conceito de violência doméstica, é necessário conjugar o texto legal disposto no art. 5º da Lei, aqui já abordado, com o texto legal do art. 7º da mesma Lei, que dispõe, de forma pormenorizada, sobre as formas de violência. Sobre esse artigo, discorre-se a seguir.
2.3 As formas de violência doméstica previstas na Lei Maria da Penha
As formas de violência doméstica também são trazidas pela lei. Na conceituação empregada pelo art. 5º, já tratado anteriormente, vislumbrou-se que seria considerado, para fins de configuração do delito, a violência física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial. O art. 7º da mesma Lei, por sua vez, trata de forma específica cada um dos tipos de violência trazidos pelo art. 5º, de forma a sanar possíveis dúvidas de conceituação:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - A violência física, [...]
II - A violência psicológica [...]
III - a violência sexual, [...]
IV-A violência patrimonial, [...]
V- A violência moral, [...]
A utilização do termo “entre outras” no caput do artigo supracitado, segundo Dias (2015, p. 65), significa que o rol de ações de que trata o artigo não é exaustivo. Isto, contudo, não compromete de forma alguma a higidez do dispositivo. O legislador se preocupou em não esgotar as formas de violência por reconhecer a complexidade da matéria, e buscou fugir de cometer injustiça ao engessar o Direito. Segundo ensina Hermann (2012, p. 105), as definições de violência trazidas pela Lei não possuem um escopo criminalizador, pois não definem tipos penais. “Sua função, no contexto misto da lei, é delinear situações que implicam em violência doméstica e familiar contra a mulher, para todos os fins da Lei Maria da Penha, inclusive para a agilização de ações preventivas e protetivas”, nas palavras da autora.
O primeiro inciso traz a previsão de violência física, que trata de qualquer conduta que venha a ofender a integridade corporal da mulher. Ainda que não deixe marcas aparentes, conforme ensina Dias (2015, p. 66), o uso da força física que ofenda o corpo ou a saúde da mulher constitui violência física. Não só a integridade física, mas a saúde corporal da mulher é protegida. Assim, não apenas arranhões, queimaduras, hematomas são considerados violência física, mas também, o estresse crônico que gera dores de cabeça, fadiga, dores, entre outros sintomas físicos (DIAS, 2015). Condutas omissivas que ofendam, de qualquer forma, a saúde corporal da mulher também é considerada violência doméstica.
A exemplo, privação de alimentos, negligência de tratamento médico, entre outras questões, também são amparadas pela Lei (HERMANN, 2012). O inciso dois, por sua vez, traz a questão da violência psicológica, como sendo qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL,2006).
A violência psicológica prevista no dispositivo consiste na agressão emocional que, segundo Dias (2015, p. 67), “[...] é tão ou mais grave que a violência física”, e sua justificativa se encontra na negativa, ou no impedimento à mulher de exercer sua liberdade individual, alicerçada na condição de alteridade desta em relação ao agressor. A conduta típica consiste em ameaças, insultos, ironias, chantagens, vigilância continua, perseguição, depreciação, isolamento social forçado, entre outros. Diz Hermann (2012, p. 106), é tudo que “[...] implica em lenta e continua destruição da identidade e da capacidade de resistência da vítima, sendo comum que progrida para prejuízo importante à sua saúde mental e física”. Com o advento da Lei n. 13.772/2018, ainda, passou-se a compreender a violência psicológica contra a mulher praticada como uma violência doméstica quando caracterizada a violação da intimidade da mulher (BRASIL, 2018).
A violência psicológica tem seus alicerces nas relações desiguais de poder entre os sexos. É a mais frequente e a menos denunciada das violências, bem como a mais difícil de ser percebida, mesmo pela própria vítima (DIAS, 2015). Um outro tipo de violência vem previsto no inciso terceiro e diz respeito à violência sexual. Esse tipo de violência consiste em constranger a mulher presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. Nesse tipo de violência encaixa-se o conhecido “débito conjugal”, horrível expressão que diz respeito à ideia de que a mulher tem a obrigação de manter relações sexuais com o marido.
Além disso, também entra aqui o induzimento, mediante vício de vontade, ao sexo ou práticas que contrariem a livre expressão dos desejos sexuais da mulher (HERMANN, 2012). Enfim, todo tipo de violência relacionada a sexualidade da mulher. O inciso quarto traz a violência patrimonial, que é compreendida como conduta que configure a retenção, subtração, destruição de seus objetos, instrumentos de trabalhos, documentos, etc. Conforme ensina Hermann (2012, p. 110), a violência patrimonial é uma forma de manipular a vítima para subtrair sua liberdade. Pode se dar por diversos motivos, tal como, por exemplo, uma negação do agressor em entregar à vítima seus bens e documentos, como forma de obrigá-la a permanecer no relacionamento quando esta decide se retirar.
Por fim, o inciso quinto traz a figura da violência moral, que é a conduta que configura calúnia, difamação ou injúria à vítima. Nada mais é que a desmoralização da vítima. Hermann (2012, p. 110) ainda traz que a calúnia é entendida como a imputação falsa de crime à vítima; por difamação, entende-se a falsa atribuição, perante terceiros, de atos e condutas que atinjam a honra da vítima; e por injúria, entende-se a ofensa ou insulto proferido pessoalmente à vítima. Todas essas condutas, entre outras possíveis formas de violência, se praticadas no âmbito doméstico e familiar como previsto no tópico anterior, e contra a mulher por sua condição de gênero, como também já tratado anteriormente, serão reconhecidas no âmbito da Lei Maria da Penha, e não em sede de Direito Penal puro (DIAS, 2015). Nestes casos, poderão gerar o aumento de pena previsto no art. 61, inciso II, alínea “f” do Código Penal, bem como a adoção de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha.
Além disso, ainda que o crime se trate de delito de menor potencial ofensivo, não estará sujeito à apreciação do Juizado Especial Criminal, mas sim, tramitará perante o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – ou das Varas Criminais, onde não se encontrem instalados os Juizados especializados (DIAS, 2015).
2.4. A violência doméstica e o isolamento
A questão do combate à violência doméstica precisa ser intensificada, pois esse problema insiste em permanecer na sociedade, trazendo transtornos para as famílias. É importante destacar que, para Vieira e Garcia (2020) a relação entre o isolamento social causado pela pandemia e a violência doméstica, coletando dados que expõe o quanto os números de violência aumentaram de acordo com a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. As autoras mostram que mesmo as mulheres sendo chefes de família, sustentando-a em todos os âmbitos financeiro, econômico e possuindo outras responsabilidades elas ainda assim, não estão livres da violência e dos abusos de companheiros e ex-companheiros.
O maior relato que comprova isso é a demonstração de que mais de oito em cada dez vítimas, sofrem exatamente por causa do esposo, namorado ou antigos parceiros (VIEIRA E GARCIA, 2020). Ainda, salientam as mesmas autoras que as estratégias devem ser elaboradas e uma deve complementar a outra. Para isso, é fundamental que seja criado e desenvolvido um treinamento para que exista uma linha de frente responsável por esses casos no período da pandemia.
O Brasil poderia também acompanhar o modelo de outros países como a França, visto que as mulheres podem denunciar na farmácia através de códigos de comunicação. Ademais, o uso dos meios virtuais para realizar denúncias devem ser encorajados. (VIERA; GARCIA, 2020) No caso do Brasil, bem como no Distrito Federal, o problema não se limita apenas ao fato da vítima denunciar ou não, pelo contrário, vai além, mostrando que vários fatores internos e externos nos órgãos públicos e na efetivação prática da lei brasileira, as forças políticas acabam e o medo da impunidade caso os crimes sejam denunciados acaba influenciando negativamente na realização ou não de denúncias. Consoante com as informações obtidas a partir da pesquisa de Barbosa (2020), em muitos casos tanto a população em geral, como algumas pessoas que atuam dentro do sistema jurídico, mais precisamente pelo sistema penal, acabam agindo de acordo com o não reconhecimento desses crimes em determinados casos. Isso acontece, de acordo com autor, exatamente porque dentro do contexto familiar existem várias nuances e adversidades que acabam influenciando.
Nesses casos, muitos pensamentos, particularidades e acontecimentos pode influenciar na decisão da mulher em denunciar ou não, ou depois que denunciar se arrepender de ter feito. Muitas consideram várias questões, a exemplo de que algumas possuem medo de não dar certo a sua denúncia, ou pelo simples fato de viver dependente financeiramente ou está inserida desde sempre em uma cultura de submissão ao seu marido. Outras, pensam na realidade de seus filhos que dependem vez ou outra de uma relação amistosa entre o casal, algumas pensam em fugir e desaparecer com os filhos e entre vários outros casos (BARBOSA, 2020). Isso pode ser muito bem definido, porque outras pessoas da família preferem não interferir mais na relação pode ter já envolvido no problema e a mulher mesmo assim continua naquela relação, também por causa que a própria sociedade desestimula a ação com achismos do senso comum e tradicionais, como é o famoso caso da falácia de que “ninguém mete a colher em briga de marido e mulher”.
Cacique e Furegato (2006) expõem vários tipos de violência contra a mulher, em especial quando os autores dão determinada ênfase na violência doméstica e intrafamiliar as autoras destacam que elas podem vir de várias formas como é o caso da violação, maltrato físico, psicológico, econômico e ao citarem Garcia e Heise (2002), fica evidenciado a mesma constatação de que na maioria das vezes ou a mulher é emocionalmente envolvida ou depende economicamente do agressor. Essas duas questões, são dois fatores bastante fortes na contribuição da permanência da mulher da determinada relação. O que por consequência vai poder gerar problemas nas vítimas como o caso das lesões físicas, distúrbios ou problemas sexuais, problemas psicológicos e comportamentais por parte da vítima. Além da vítima direta, os filhos que visualizam as determinadas cenas de violência serão afetados posteriormente, causando depressão, ansiedade e problemas no desenvolvimento cognitivo (CASIQUE. FUREGATO, 2006) O que mostra que os efeitos dessas agressões e da violência doméstica e contra a mulher em geral tem efeitos drásticos para o poder público. Visto que acaba criando uma extrema necessidade da existência de aparatos tanto sociais como jurídicos. Fazendo com que as vítimas tenham todo um suporte social através do CRAS, CREAS com o suporte da assistência social e da psicologia social, bem como, a existência da necessidade extrema de um suporte com o Ministério Público, a assistência jurídica e a equipe de atendimento multidisciplinar.
Com relação aos mecanismos de proteção da lei 11.340/06, mais especificamente no art. 22, após ser constatado a prática da violência doméstica o sujeito, caso possua arma, deve ter a suspensão da posse, se afastar do lar que vive a vítima, além de não poder ter contato com a vítima, testemunhas, como também poderá perder o direito de ver os filhos e deverá ter acompanhamento psicossocial ou passar por programas de reeducação. Mas isso é o que diz a Lei no papel, todavia na prática a situação fica mais dificultada, ocorrem diariamente vários fatos e crimes mesmo quando existem medidas protetivas. A exemplo informativo, uma matéria da Rede globo que revela a situação de uma mulher que mesmo com duas medidas protetivas o seu ex-parceiro continua enviando ameaças de morte, dizendo que vai invadir a casa dela e atirar matando todos.
São vários os relatos de casos de mulheres casadas com agressores que já foram assassinadas nessas situações (ROQUE, 2020). As medidas protetivas podem ter prazo ou não, e um juiz pode requisitar a força policial. Quando um sujeito desrespeita essas medidas, ele está cometendo um crime previsto no art. 24 da lei 11.340/06. Todavia, nesse meio tempo na prática é visivelmente possível que mesmo com todas essas leis e artigos previstos na Lei Maria da Penha, a prática não é tão eficaz. O que mostra a necessidade das vítimas, em alguns casos, terem um acompanhamento policial constante, seria mais útil que em caso de violência e existindo uma medida protetiva a necessidade de haver um patrulhamento e acompanhamento policial na residência da vítima algumas vezes por semana para exatamente evitar que aconteça algo pior.
Isso porque mesmo o agressor desrespeitando a Lei continuando com ameaças e outras atitudes, ele pode ficar preso até dois anos. Mas se ele cometer um crime mais grave que tire a vida da mulher a situação pode piorar, porém, a vítima já estará assassinada. Moraes (2012) compreende que, é crucial que exista um acompanhamento eficaz, mas a realidade é que no Brasil, diferente de alguns países, ficam limitados e não podendo ter um patrulhamento para todas as vítimas em casos especiais, seja por corrupção, déficits nas contas públicas, falhas na implementação de recursos e entre outros fatores que acabam fazendo com que o Estado seja ineficiente.
Para analisar os resultados da Lei nº 11.340/06, Garcia (2013) fez uma coleta de dados que confirmam, a afirmação anterior e a realidade repetida em vários casos como a demonstrada na reportagem, de que a lei não está sendo eficaz na prática. Isso porque, de acordo com Garcia (2013) a mortalidade de mulheres por agressões antes da Lei Maria da Penha a cada cem mil habitantes girava em torno de 5.3, um ano após a criação da lei esse número caiu para 4.7, mas depois que os próprios criminosos viram que o Estado age de forma ineficiente, mesmo existindo a lei, os números voltaram a crescer atingindo a mesma quantidade existente anos antes da criação da lei. Mesmo existindo a possibilidade de acontecer essas problemáticas pela ineficiência, existem as medidas protetivas de urgência que foram incluídas apenas em 2018. Com isso, pode existir a detenção entre três meses até dois anos, em caso de flagra apenas um juiz poderá conceder fiança e entre outras sanções podem ser aplicadas. A vista disso, é importante que as vítimas tenham cada vez menos medo e receio de denunciar seus agressores. É através das denúncias que as instituições poderão ser fortalecidas, identificando os casos e os criminosos poderão ser punidos, da mesma forma as mulheres precisam lutar e se manifestar pela defesa contínua de seus direitos.
De acordo com Conceição e Assunção (2020 p. 157) a lei por si só não resolve o problema. Exatamente por isso que as mulheres precisam se manifestar e adquirir influência política na defesa por uma polícia mais ativa, em todas as formas que os casos de agressão podem ser expressos. Sousa (2020) traz todo um histórico desde os anos 80 sobre o construto social estabelecido na relação entre o homem e a mulher e como essa relação foi se modificando, perante as transformações da sociedade. A autora mostra que pelo Brasil ser ainda um país que está entre as lideranças nas pesquisas sobre o assunto de maneira mundial, o próprio poder público fez pouco para minimizar esses problemas de violência e feminicídio dentro do contexto do isolamento, o que mostra que as ações estabelecidas até agora dentro do período de março até julho de 2020 são quase que insignificantes, o que acaba não protegendo as mulheres que não podem sair desses lares.
Deputados apresentaram a PL 1267/2020 com o intuito de propagar mais o disque 180 alterando a Lei Maria da Penha, mas apenas esse fato não está demonstrando eficiência, sendo necessário criar ações e não apenas modificações na lei. A mulher vítima acaba enfrentando um dualismo, se ficar em casa pode morrer com o agressor e se sair poderá morrer em um leito se for contaminada.
Essa mesma afirmação da autora, mostra que o problema vai além da elaboração ou modificações de Leis. Sendo primordial que exista uma modificação ativa na prática, principalmente no que diz a respeito à forma que os recursos públicos são administrados. Sendo também necessário que a justiça tenha prontidão e agilidade nas investigações e puna de maneira severa crimes de desvio de recursos públicos. Um fator pode interferir no outro.
Com propriedade, Lima (2017) aborda acerca da Lei n° 13.104/2015 sobre o feminicídio e sua pesquisa constata que a qualificadora do feminicídio no sistema penal brasileiro, por si só, não traz benefícios suficientes e pode colocar a mulher em posição de vítima perante a sociedade. Além de que, pelo fato de o sistema carcerário estar falido, para a autora, a proteção acaba sendo algo simplesmente simbólico e não efetiva como deveria ser de fato. Para a OAB, diferentemente, a Lei n.13.104/2015 não coloca a mulher em postura de vítima, pelo contrário, discursa essa questão se p afirmando que ela busca causar uma igualdade de gênero pontuando os agravantes quando a mulher está gravida, ou a vítima é menor de idade, possui mais de 60 anos ou tem problemas físicos e mentais. Com relação ao papel do Estado, mais precisamente no tocante a preservação da vida da mulher somado ao combate à violência doméstica, o Estado pode implementar algumas medidas de prevenção em época de pandemia.
É fundamental que sejam criados comitês para o enfrentamento da violência contra a mulher dentro do Distrito Federal, nos estados e municípios pelas secretarias de segurança pública, a patrulha e a força policial dever ser intensificada nas ruas, devem ser criados canais online de denúncia e também deve ser desenvolvido campanhas sobre a importância de denunciar. Okabayashi (2020) expõe que o Ministério dos Direitos Humanos e da Família aumentaram bastante depois do início da pandemia e demonstra que a maioria vive em subnotificação, mostrando que há uma falsa realidade de casos existentes, visto que a quantidade pode ser muito maior. Considerando todo o panorama que relata a constatação e o fato de que existe uma grave problemática que é a falta de proteção da mulher e contra a violência em um momento de extrema vulnerabilidade que acaba prejudicando um sistema que já está frágil.
É visto que o problema com a vulnerabilidade das mulheres durante o período de pandemia agrava as falhas da proteção contra a violência doméstica. Assim, a violência doméstica e o feminicídio podem ter aumentos por conta da existência de dificuldades financeiras por parte dos respectivos órgãos responsáveis, por existir a possibilidade ocorrência corrupção e desvios de recursos, a existência de fragilidade, somado a impunidade e outros fatores que fazem com que os dados tenham aumentos.
3. Considerações finais
Ante o que fora exposto, chegamos a este tópico com as seguintes conclusões, tendo por base as questões levantadas no início deste trabalho; a primeira conclusão é a de que mesmo com o advento da Lei Maria da Penha e suas alterações nos anos subsequentes foi observado que, num primeiro momento houve uma leve diminuição nos casos de violência doméstica, entretanto essa diminuição combinada com a falta de ações afirmativas com vistas à reprimir os casos de violência contra a mulher; foram suficientes para que estes casos voltassem a crescer.
Em segundo lugar, ficou evidenciado que, com a criação da Lei n. 14.022/2020 a busca pela repressão aos casos de violência no âmbito doméstico ganharam um novo reforço, possibilitando às vítimas que denunciassem as violências que sofreram. Esta nova lei, apesar de positiva em seu aspecto teórico também não se mostrou capaz de mitigar a violência sofrida pelas mulheres, pois estas, por serem, na maior parte dos casos dependentes de seus companheiros e por temer a falta do recurso que o mesmo provê para a casa e também a dependência emocional, desempenham uma forte influência na tomada de decisão desta mulher em se retirar do ambiente de violência e do relacionamento abusivo.
Muito embora a Lei n.14.022/2020 esteja em consonância com a Lei 11.340/2006(Maria da Penha), é necessário termos em mente que a mulher vítima de violência doméstica se encontra fragilizada, assustada e temerosa por sua vida e pela vida de seus filhos.
Por essa razão, a Lei Maria da Penha e suas alterações têm demonstrado resultados insatisfatórios, pois no cenário de violência física, moral, sexual e psicológica há que se considerar que, em meio a todo esse abuso, existem diversas nuances como: da dependência emocional e financeira, manipulações e outras. E estas questões influenciam diretamente no comportamento da mulher em permanecer no relacionamento e optar por não prosseguir na denúncia ou no processo contra o agressor.
Nesse sentido, é de fundamental importância que seja feito todo um trabalho de acolhimento e acompanhamento da vítima de violência doméstica para que ela possa se sentir segura em prosseguir com o processo, o investimento na profissionalização destas mulheres também é importante, para que possam ter segurança em se retirarem destes relacionamentos.
Por fim, o trabalho com a vítima da violência doméstica precisa multidisciplinar para que ela possa compreender que as medidas previstas em lei existem para a beneficiar e lhe trazer uma nova forma de vida: livre de abusos.
4. Referências
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BRASIL, Lei Federal nº 11.340, de 07 de ago. de 2006.Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contras as mulheres e da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm#art44> Acesso em 06 de abr. de 2022.
BRASIL, Lei Federal nº 13.104, de 09 de mar. de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm> Acesso em 06 de abr. de 2022.
BRASIL, Lei Federal nº 14.022, de 07 de jul. de 2020. Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14022.htm> Acesso em 06 de abr. de 2022.
LEITE, Isabela; ARCOVERDE, Léo. No 1º ano de pandemia, estado de SP tem 15% das queixas de violência contra mulheres registradas on-line. Globo Notícias, 2021. Disponível em <https://g1.globo.com/sp/saopaulo/noticia/2021/04/19/no-1o-ano-de-pandemia-estado-de-sp-tem15percent-das-queixas-de-violencia-contra-mulheres-registradasonline.ghtml> Acesso em 12 mai. 2021.
LIRA, K.F.S.; CASTRO, R.V. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Violência Contra as Mulheres no Brasil: Do Caso à Lei Maria Da Penha. Revista Humanidades e Inovação v.7, n.19 – 2020. Disponível em <https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/3800> Acesso em 12 de mai. de 2021.
Violência Doméstica Durante a Pandemia de Covid-19. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.Disponível em <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf> Acesso em: 12 mai. 2021.
[1] Alteração dada pela lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, que criou mecanismos objetivando coibir a violência no âmbito doméstico e familiar contra a mulher.
Estudante de Direito, Universidade Brasil- Campus Fernandópolis- SP. Email: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, RAFHAELA NOGUEIRA DE. A efetividade da Lei nº 14.022/20 em consonância com a Lei Maria da Penha ao combate à violência contra a mulher em tempos de pandemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 maio 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58401/a-efetividade-da-lei-n-14-022-20-em-consonncia-com-a-lei-maria-da-penha-ao-combate-violncia-contra-a-mulher-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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