MARCIA CRISTINA DE SOUZA ALVIM[1]
(Orientadora)
RESUMO: O estudo parte da hipótese de uma influência direta das revoluções científicas na filosofia do direito, em um esforço de traças semelhanças entre a linearidade da física e o mecanicismo filosófico como ponto de partida para a construção de um direito positivo em detrimento do direito natural que até então prevalecia. Assim como a teoria da relatividade abala a linearidade da física clássica, a história leva o direito positivo ao abalo pelo reconhecimento de um direito humano, com fundamento originário do próprio direito natural. Esta falta de sincronia entre as teorias, em que parece uma excluir a outra, se apresenta como resultado de uma fragmentação e hiperespecialização do conhecimento, se de um lado a educação humanística por vezes deixa de atender à critérios objetivos da ciência, de outro a ciência deixa de ter propósito social. A intenção do presente artigo é investigar a ocorrência histórica desta fragmentação, apresentando como hipótese a necessidade de se recuperar a antiga conexão entre filosofia do direito e ciência natural, em que a ciência jurídica encontre propósito na harmonia social e não seja fim em si mesma, o que se daria pela interdisciplinaridade.
Palavras-Chave: Direito Natural. Direito Positivo. Educação. Revolução Científica.
ABSTRACT: The study starts from the hypothesis of a direct influence of scientific revolutions in the philosophy of law, in an effort to trace similarities between the linearity of physics and philosophical mechanistc as a starting point for the construction of a positive law in detriment of natural law that prevailed until now. As the theory of relativity rocked the linearity of classical physics, history takes the positive law to the recognition of a human right, with an original foundation of natural law itself. This lack of synchrony between theories, in which one seems to exclude the other, is presented as a result of a fragmentation and hyperspecialization of knowledge, if, in one side, humanistic education sometimes fails to meet the objective criteria of science, on the other, science ceases to have a social purpose. The intention of this article is to investigate the historical occurrence of this fragmentation, presenting as a hypothesis the need to recover the old connection between philosophy of law and natural science, in which legal science finds purpose in social harmony, and is not an end in itself, what would happen through interdisciplinarity.
Keywords: Education. Natural Law. Positive Law. Scientific Revolution.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Filosofia Natural e Direito Natural; 3. Filosofia do Direito e Revolução Científica; 4. Interdisciplinaridade e Raciocínio Crítico na Filosofia do Direito; 5. Considerações Finais.
1.Introdução
A hipótese trata de analisar o nascimento e a evolução do conhecimento, tendo como base suas origens em uma filosofia natural, que orientava uma harmonia entre as condições materiais do universo, as da Terra e as do ser humano, quando o conhecimento ainda era desenvolvido de maneira integral, até suas principais revoluções, como o desenvolvimento da filosofia mecanicista e da mecânica física clássica, que teriam influenciado diretamente a estrutura positivista no sistema jurídico, e as teorias da relatividade, que limitou a aplicação das leis mecânicas como a história limitou a aplicação do direito positivo.
Com a metodologia de pesquisa bibliográfica de objetivo exploratório, a intenção é demonstrar o impacto destas revoluções científicas na filosofia do direito, a utilidade desta filosofia na resolução de aspectos variáveis da ciência jurídica, assim como aplicação de princípios científicos no direito enquanto ciência. De forma que a filosofia do direito e seus aspectos científicos positivistas não venham a se dissociar novamente, sob pena do conhecimento fragmentado não atender às necessidades práticas ou sociais.
Ao final, será analisada a expectativa de uma educação que possa atender à reunião deste conhecimento fragmentado, tratando questões jurídicas complexas por aspectos interdisciplinares, compreendendo não apenas as causas e efeitos gerados em um circuito fechado e fragmentado, mas também sua influência em um circuito aberto, em que as causas e efeitos não apenas influenciam outras áreas, mas delas também sofrem influência continua.
2. Filosofia Natural e Direito Natural
A origem do conhecimento ocidental remete à poesia de Homero e Hesíodo, os poetas eram fundamentais à educação e formação espiritual do homem grego, que buscava inspiração nos poemas de Homero intitulados “Ilíada” e “Odisseia”, assim como nos poemas de Hesíodo, especialmente na obra “Teogonia”, que significa “o nascimento dos deuses”, o que se deu entre os séculos VII e VI a.C., onde se constata que muitos deuses coincidem com partes do universo e fenômenos do cosmo (REALE, 2003, pp. 6-7).
Desta forma, em uma tentativa de justificar tais fenômenos, a teogonia torna-se cosmogonia, uma explicação mítico-poética e fantástica, da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos, o que se dava a partir do Caos originário, primeiro a se gerar. “Teogonia” marca a abertura de um caminho que levaria o saber à posterior cosmologia filosófica, que buscaria pela razão o "princípio primeiro" do qual tudo se gerou (REALE, 2003, p. 7).
Para Homero e Hesíodo, tudo o que acontece pode ser explicado pela intervenção dos deuses, raios e relâmpagos são arremessados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são provocadas pelo tridente de Poseidon e o Sol é levado pelo áureo carro de Apolo. Estes deuses são forças naturais personificadas, em formas humanas idealizadas, ou forças e aspectos do homem, sublimados e fixados em esplêndidas figuras antropomórficas, como o amor personificado por Afrodite e a inteligência por Atena, gerada na cabeça, mente ou cérebro de Zeus (REALE, 2003, p. 8).
No final do século VII até o século VI a. C., o pensamento dos filósofos da “physis”, também conhecidos como filósofos naturalistas ou pré-socráticos, se voltou aos fenômenos naturais pela razão. Tales de Mileto desenvolveu o ponto de vista conceitual de um “princípio” que denominava “arché”, a origem imutável de todas as coisas (REALE, 2003, p. 17).
O mesmo conceito de “princípio”, onde nascia a ideia do átomo, foi desenvolvido posteriormente por Anaximandro, também de Mileto, provavelmente discípulo de Tales, que acreditava que tal princípio seria o que chamava de “ápeiron”, algo privado de determinações qualitativas e quantitativas, infinito e indefinido. Sucessivamente o mesmo conceito de “princípio” também foi trabalhado por Anaxímenes de Mileto, que acreditava ser o ar (REALE, 2003, p. 17), e por Heráclito de Éfeso, que o identificava como sendo o fogo (REALE, 2003, p. 22).
Além disso, estes filósofos pré-socráticos prestaram outras contribuições fundamentais para o início da ciência que hoje se conhece. Tales de Mileto introduziu na Grécia os fundamentos da geometria e da astronomia, trazidos do Egito. Anaximandro foi um dos primeiros a propor modelos baseados no movimento dos corpos celestes e não em manifestações dos deuses, descobriu ainda a obliquidade da eclíptica, ou seja, a inclinação do plano do equador da Terra em relação à trajetória aparente do Sol (OLIVEIRA FILHO e SARAIVA, 2014, p. 2).
Herdado pelos chamados “Pitagóricos”, o problema do “princípio” se desloca para um plano novo e mais elevado, se torna não mais um elemento físico, mas teórico, o “número”. A tese do número como sendo o “princípio” é desenvolvida com base na constatação de que todos os fenômenos mais significativos, como os astronômicos, climáticos e biológicos, assim como a harmonia musical, acontecem de acordo com uma regularidade mensurável e exprimível numericamente (REALE, 2003, p. 25).
Pitágoras acreditava na esfericidade da Terra, da Lua e de outros corpos celestes, acreditava que estes eram transportados por esferas separadas da que carregava as estrelas, enfatizando a importância da matemática na descrição dos modelos cosmológicos, para que pudessem ser comparados com os movimentos observados dos corpos celestes, sincronia que resulta em seu conceito de “harmonia cósmica". Os pitagóricos foram os primeiros a chamar o universo de “cosmos", palavra que implicava ordem racional, simetria e beleza (OLIVEIRA FILHO e SARAIVA, 2014, pp. 2-3).
A imagem do mundo observada pelos filósofos jônicos constitui uma revolução diante daquela apresentada por Homero ou Hesíodo, trata-se de uma transformação na representação do espaço, intimamente ligada ao fenômeno político do advento da polis grega, trazendo um pensamento que se situa no plano da consciência refletida, da reflexão elaborada e organizada em torno de certas noções fundamentais, em um sistema conceitual coerente e estruturado, realçando um plano da vida social que é objeto de pesquisa deliberada e reflexão consciente (VERNANT, 1990, pp. 249-250).
Na cidade que surge precisamente entre a época de Hesíodo e a de Anaximandro, tudo o que pertence ao domínio público deve ser objeto de debate livre e discussão pública entre os que compõem a coletividade política. A “pólis” pressupõe um processo de dessacralização e racionalização da vida social, em que os próprios homens que tomam a decisão e a responsabilidade de seu destino. O “logos”, razão como instrumento desses debates públicos, toma um sentido duplo, significa a palavra ou discurso que pronunciam os oradores na assembleia, bem como a própria razão como faculdade de argumentar, que define o homem como “animal político” e ser racional (VERNANT, 1990, p. 250).
A cosmologia grega se liberta da religião, o saber concernente à natureza perde seu caráter sacro e a vida social é racionalizada. O que caracteriza o universo de Anaximandro é seu aspecto circular, sua esfericidade, de forma que o círculo, aos olhos dos gregos, constitui a mais bela e mais perfeita forma, sendo que o domínio político se torna solidário a esta representação do espaço, acentuando o círculo e o centro com um significado bastante definido. Temos o advento da Cidade como uma transformação do espaço urbano, surge uma nova forma de cidade em que todas as construções urbanas são centradas ao redor de uma praça chamada “Ágora”, instaurando um sistema de vida social que pressupõe debate público para todos os negócios comuns, marca do advento das instituições políticas da cidade (VERNANT, 1990, p. 252).
Uma vez que o espaço urbano passa a ser simetricamente organizado ao redor de um centro, o espaço político ao invés de assumir uma forma triangular de pirâmide, como nas monarquias orientais, dominadas pelo rei de cia para baixo em vez de formar como nas monarquias orientais, assume um sistema geometrizado de relações reversíveis, com fundamento no equilíbrio e reciprocidade entre iguais. Depor o poder no centro consiste em retirar o privilégio da supremacia do indivíduo particular, fixando o poder no centro, este escapa à apropriação individual, passando ao domínio comum dos membros da coletividade, onde cada membro comanda e obedece a si e aos outros ao mesmo tempo (VERNANT, 1990, p. 260).
Platão realiza uma empreitada ainda mais rigorosa ao traçar o quadro territorial da cidade conforme as exigências de um espaço social homogêneo. Em sua obra intitulada “Leis”, admite a partilha do solo e das casas, cada cidadão seria beneficiado com um lote determinado, mas para que a cidade seja relativamente una, é preciso que cada lote seja menos uma propriedade pessoal que o bem de toda a cidade, devendo a ordem de repartição fixada permanecer imutável. Trata-se de um modelo ao mesmo tempo geométrico e político, que representa a organização da cidade sob a forma de um esquema espacial desenhado no solo (VERNANT, 1990, p. 308).
A medida em que as divisões do tempo e do espaço se correspondem, espaço e tempo se modelam sob a ordem divina do cosmo. O plano político reintegrado por Platão à estrutura de conjunto do universo, torna-se perfeitamente homogêneo e indiferenciado, o legislador pretende dar as porções do território dispostas em exata equivalência e simetria com relação ao centro comum, de forma que desapareça toda distinção entre urbanos e rurais. No momento em que se manifesta a oposição entre a cidade e o campo, a teoria define o plano de uma cidade onde não haveria tal distinção, oferecendo o modelo de um espaço político geometrizado que caracteriza a civilização grega (VERNANT, 1990, p. 310).
A própria etimologia do termo “Universal” remete à “Unum versus alia”, o “Uno feito de todo o Diverso”. No mesmo sentido, os escolásticos afirmaram muito depois, confirmando a etimologia, que o Universo é a diversidade das coisas, tão harmoniosamente ordenadas, que passam a constituir uma Unidade, de forma que o Cosmos seria uma única associação de seres, cercados por uma imensa realidade constituída por um encadeamento de associações e um suceder de sociedades entrelaçadas (TELLES JUNIOR, 2014, p. 187).
A ordem é a disposição conveniente para a consecução de um fim comum, a qual relaciona, conjuga e liga, seres múltiplos e diversos, tornando-os partes de uma unidade. A matéria, ou causa material da ordem, é constituída por elementos múltiplos, dispostos segundo um certo critério em razão de sua essência, a ordem implica multiplicidade de elementos, semelhantes ou não, mas necessariamente distintos uns dos outros, não pode haver ordem sem distinção entre a matéria a ser ordenada (TELLES JUNIOR, 2014, p. 195).
Este princípio de universo como uno, mas composto do diverso, pode ser observado quando Platão dispõe sobre o exercício das profissões, que se apresenta o aspecto dúplice, sendo que a divisão de tarefas é oriunda da contradição entre a multiplicidade de necessidades que se impõe ao indivíduo e a limitação de suas capacidades, o mérito desta divisão de tarefas é permitir o exercício de diversos talentos individuais próprios, aprimorando estes talentos tanto quanto possível (VERNANT, 1990, p. 341). Neste sentido, cada cidadão atuaria dentro de suas características próprias, cada um respeitando seus talentos naturais, em uma diversidade que compõe a cidade como um todo.
Durante os séculos V e IV a.C., os chamados Sofistas, termo que significa “sábios” ou “especialistas do saber”, operaram verdadeira revolução ao deslocarem o eixo da reflexão filosófica da “physis” e do cosmo, para o homem e sua vida em sociedade, centrando seus interesses sobre a ética, política, retórica, arte, língua, religião e educação, ou seja, sobre tudo aquilo que hoje chamamos de cultura, onde se inicia o período humanista da filosofia antiga (REALE, 2003, pp. 73-74).
Hípias de Élida, entre suas matérias de ensino, destacava a matemática e as ciências da natureza como sendo indispensáveis para ordenar a boa conduta na vida, seguindo justamente as leis da natureza como pressupostos das leis humanas. Assim surge a distinção entre a lei de natureza e a leis dos homens, direito natural e direito positivo, sendo o primeiro eternamente válido, e o segundo contingente, de forma que sobre a base da lei de natureza, não há sentido nas discriminações das leis positivas que dividem os cidadãos de uma cidade ou de outra, nascendo para os gregos um ideal cosmopolita e igualitário (REALE, 2003, p.81).
Antifonte radicaliza a antítese entre "natureza" e "lei", afirmando a paridade de todos os homens, sem distinção de suas origens, dissolvendo velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da “pólis”, além do preconceito comum a todos os gregos, a respeito da própria superioridade sobre outros povos. O filósofo não disserta a respeito de tal igualdade, se limitando a dizer que todos somos iguais, porque todos temos as mesmas necessidades naturais (REALE, 2003, p.81).
Sócrates, no final do século V a.C., levou o pensamento filosófico a um plano ainda mais elevado em relação aos sofistas, sua sabedoria consiste na busca de justificação filosófica da vida moral, fundamentada na própria natureza ou essência do homem. Para Sócrates, o homem é sua alma, entendendo por alma a consciência, a personalidade intelectual e moral. Assim, sendo a alma atividade cognoscitiva, a virtude será essencialmente a potencialização dessa atividade, será ciência, conhecimento (REALE, 2003, p. 91).
A filosofia de Sócrates opera uma revolução de valores, que passam a estar ligados não mais a fatores exteriores, como a riqueza, o poder, a fama, e tampouco ao corpo, como a vida, o vigor, a saúde física e a beleza, os verdadeiros valores estariam ligados à alma, que se resumem ao "conhecimento". Partindo destes princípios, os valores tradicionais apenas têm realmente valor quando utilizados como o "conhecimento" exige, ou seja, em função da alma, porque em si mesmos, nem uns nem outros têm valor (REALE, 2003, p. 95).
3. Filosofia do Direito e Revolução Científica
Isaac Newton, no fim do livro terceiro dos Principia, em “Scholium generale”, liga os resultados de suas investigações cientificas a considerações de ordem filosófico-teológica, concluindo que o sistema do mundo é uma grande máquina, cujas leis de funcionamento de suas várias partes podem ser detectadas indutivamente através da observação e do experimento (REALE, 2004, p. 238).
A física newtoniana admite razão limitada, a ciência não teria a função de descobrir substâncias, essências ou causas essenciais, apenas funções, não se busca a essência da gravidade, contenta-se em confirmar sua existência e explicar os movimentos dos corpos. Entretanto, para Newton a causa primeira não seria mecânica, e tanto a razão limitada e verificada pela experiência, quanto o deísmo, seriam duas heranças centrais que o Iluminismo receberia, ao passo que os materialistas do século XVIII encontrariam sua base teórica sobretudo no mecanicismo cartesiano (REALE, 2004, pp. 241-242). Apenas então, a visão técnica passaria de uma teoria pré-mecanicista para uma teoria efetivamente mecanicista.
O desenvolvimento jurídico ocidental e a configuração da sociedade moderna europeia estão diretamente ligados às transformações estruturais das esferas econômica, social, política, científica e religiosa, especialmente no período que abrange do século XV ao XVIII, um mundo novo, secularizado, racionalista e antropocêntrico. Esta visão de mundo é resultado das revoluções burguesas, do paradigma societário contratualista e da visão de mundo do iluminismo racionalista (WOLKMER, 2019, p. 114).
No contexto de formação da estrutura cultural societária, surge um segmento social que se distancia do clero e da nobreza, o qual adquire a propriedade dos meios produtivos e impondo influência política, esta burguesia suplanta a nobreza e adquire o poder graças à força de seu prestígio e sua riqueza acumulada. A partir do século XVII, em razão das condições materiais, das novas relações sociais e do clima de tolerância, surge a doutrina do liberalismo-individualista como manifestação de uma ética individualista, em que a noção de liberdade está presente em todos os aspectos. No entanto, esta evolução centralizadora e burocrática contribui para extinguir a fragmentação, favorecendo a criação dos Estados Modernos, unitários e secularizados (WOLKMER, 2019, p. 116).
O Estado Moderno materializa uma associação humana institucionalizada, sendo único com poder para exercer coação física legítima, fundado na economia capitalista mercantil, na burocracia de agentes profissionais e na construção de uma legalidade formal e racionalizada. Assim, a organização centralizadora de poder que se institui sob a forma secularizada monárquica de um Estado absolutista, transforma-se no Estado nacional, liberal e representativo do século XVIII, gerenciador das leis do livre mercado do liberalismo econômico e tutor das relações de competição privada (WOLKMER, 2019, pp. 117)
Todo este contexto histórico se reflete na subdivisão de duas teorias jusfilosóficas, o jusracionalismo, fundado com base no jusnaturalismo de tradição abstrata, idealista e utópica, mas sem conteúdo religioso, e o juspositivismo, de tradição voluntarista, empírica e formalista. A partir de então, a teoria jurídica seria desdobrada e redefinida até o final do século XIX, início século XX, passando por diversas orientações contrárias ao essencialismo racionalista e ao legalismo formalista (WOLKMER, 2019, p. 114).
À medida em que os problemas mudam, mudam também os padrões que distinguem a solução cientifica da especulação metafisica, o impacto da obra de Newton sobre a tradição de prática cientifica do século XVII proporciona um exemplo notável desses efeitos sutis provocados pela alteração de paradigma (KUHN, 1998, p. 138).
Ainda antes de Newton, a “ciência nova” conseguira rejeitar as explicações aristotélicas e escolásticas expressas em termos das essências dos corpos materiais. Afirmar que uma pedra cai porque sua “natureza” a impulsiona em direção ao centro do universo convertera-se em um simples jogo de palavras tautológico, algo que não fora anteriormente, a partir daí todo o fluxo de percepções sensoriais seria explicado em termos de tamanho, forma e movimento dos corpúsculos elementares da matéria fundamental (KUHN, 1998, p. 138).
Os mesmos aspectos que se observam na ciência em geral, como na física, se repetem por vezes tardiamente em outras ciências, é o caso da ciência jurídica e a reflexão entre o direito natural e do direito positivo, havia uma tradição do direito natural que respeitava o direito positivo, mas buscava acima de tudo os padrões de ordem cósmica, um princípio metafísico que permitia a harmonia entre a diversidade. No entanto, a abstração do bem e da justiça perdeu lugar para a forma legal, assim como os aspectos metafísicos do universo cederam à eficácia do cálculo, à linearidade e ao mecanicismo, fomentando teorias como o positivismo.
Auguste Comte apresenta uma forma de positivismo que consiste em uma tendência às proposições fundamentadas exclusivamente na observação, conforme o método empírico, não admitindo qualquer espécie de metafísica. Em sua visão, a sociedade seria como um organismo vivo, que embora seja um elemento estático, está condicionado por uma evolução dinâmica ao longo da história, esta estática social trata das forças que mantêm a sociedade unida, tendo como principal causa a ordem, enquanto a dinâmica social reflete as mudanças sociais e suas causas com fundamento no progresso (CASTILHO, 2021, pp. 107-108).
O símbolo da filosofia positivista de Comte era uma escada, a qual indicava que o homem está em contínuo progresso e evolução, havendo uma hierarquia na ordem de importância das ciências, sua devoção à ordem resultava em espécie de desprezo pela democracia, o filosofo afirmava que a disciplina e a hierarquia seriam os elementos garantidores da adequada organização da sociedade, criticava a liberdade de consciência. No entanto, esperava que o espírito positivo resultasse em uma associação harmoniosa, almejava uma sociedade que progredisse em paz, de modo ordeiro, sem guerras, revoluções ou mudanças bruscas. (CASTILHO, 2021, p. 108).
John Stuart Mill, seguidor da linha empirista e defensor do método indutivo, acreditava que o conhecimento se dava pela experiência presente, ou percepção do momento, desenvolvendo trabalhos sobre as relações entre a linguagem e a lógica, em que estabelece relações de verdade e falsidade a partir da denotação. Acreditava que a classe letrada teria a responsabilidade pela consolidação das mudanças sociais e que o papel do cidadão seria superar os obstáculos impostos pelo Estado, sendo que a verdadeira definição de liberdade estaria na ausência de coerção (CASTILHO, 2021, p. 108).
Ao escrever a obra “Utilitarismo”, em 1861, pondera que a concepção de bem e de mal depende do momento vivenciado pelo homem, de forma que o principal critério para julgamento do comportamento do homem é a utilidade de seus atos. Isso porque há motivações para os atos das pessoas que estão acima de sua capacidade de resistência, não havendo como responsabilizar os indivíduos, como é o caso da fome ou o medo, havendo ainda muitas outras motivações que o homem tem obrigação de dominar, ou seja, ainda assim o ser humano tem papel ativo em relação à sua autodeterminação (CASTILHO, 2021, p. 109).
Em 1905, Albert Einstein havia proposto a teria da relatividade especial, onde: a velocidade da luz no vácuo é constante e independente da velocidade da fonte; a massa depende da velocidade; há dilatação do tempo durante movimento em alta velocidade; a massa e energia são equivalentes; e nenhuma informação ou matéria pode se mover mais rápido do que a luz. Embora a teoria de relatividade geral, proposta por Einstein em 1916, só difira da teoria da gravitação de Isaac Newton em poucas partes em um milhão na Terra, em grandes dimensões massas, como o Universo, ela resulta em bastante diferença (OLIVEIRA FILHO, 2010, p. 701).
A teoria da relatividade geral trata-se, na verdade, da teoria da gravidade, descrevendo a gravitação como a ação das massas nas propriedades do espaço e do tempo, que afetam, por sua vez, o movimento dos corpos e outras propriedades físicas. Enquanto, na teoria de Newton, o espaço é rígido, descrito pela geometria Euclidiana, na relatividade geral o espaço-tempo é distorcido pela presença da matéria (OLIVEIRA FILHO, 2010, p. 701).
Um ano depois de propor a relatividade geral, em 1917, Einstein publicou seu artigo histórico sobre cosmologia, “Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade”, construindo um modelo esférico do Universo. A solução de Einstein é homogênea, tem a mesma forma de qualquer ponto do espaço, e isotrópica, o modelo é o mesmo em qualquer direção, hipótese chamada de “Princípio Cosmológico” (OLIVEIRA FILHO, 2010, p. 701). Uma das principais teorias da cosmologia nos dias de hoje é a teoria do Big Bang, em que o universo teria seu início há cerca de 15 bilhões de anos a partir de uma minúscula bolinha de energia, que se expandiu até atingir o tamanho atual (FEYERABAND, 2016, p. 41).
Revoluções científicas podem ser definidas como episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais normalmente um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo. No entanto, uma nova teoria não precisa entrar necessariamente em conflito com suas predecessoras, pode tratar exclusivamente de fenômenos antes desconhecidos, como no caso da teoria ou mecânica quântica, que examina fenômenos subatômicos desconhecidos até o século XX (KUHN, 1998, pp. 125-129).
Se a ciência de Einstein parece tornar falsa a de Newton, isso se deve somente ao fato de alguns newtonianos terem sido incautos a ponto de alegar que a teoria de Newton produzia resultados absolutamente precisos e válidos para velocidades relativas muito elevadas, vez que não dispunham de prova para tais alegações, as quais por falta de fundamento traíam os padrões do procedimento cientifico (KUHN, 1998, p. 133).
A teoria newtoniana continua a ser uma teoria verdadeiramente cientifica, Einstein somente pode ter demonstrado o erro daquelas alegações extravagantes nunca foram propriamente parte da ciência. Eliminando-se essas extravagancias meramente humanas, a teoria newtoniana nunca foi desafiada e nem pode ser. Precisamente por não envolver a introdução de objetos ou conceitos adicionais, a transição da mecânica newtoniana para a einsteiniana ilustra com particular clareza a revolução científica como um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas veem o mundo. (KUHN, 1998, pp. 133-137).
No século XX, Einstein fez com que a ciência voltasse a um conjunto de cânones e problemas mais parecidos com os dos predecessores de Newton do que com os de seus sucessores. O espaço, na física contemporânea, não é o substrato inerte e homogêneo empregado na teoria de Newton, e algumas de suas novas propriedades não são muito diferentes das outrora atribuídas ao éter por Aristóteles (KUHN, 1998, p. 143).
Assim como a ciência física sofreu abalo pela teoria da relatividade, a linearidade que se instaurava na ciência jurídica pelo positivismo foi abalada pelo julgamento dos envolvidos em crimes contra a humanidade na segunda guerra mundial. Alinhado ao positivismo de Hans Kelsen, Carl Schmitt abstraía o conteúdo da norma, considerando apenas sua validade, utilizando a teoria positivista para legitimar o poder de Adolf Hitler, o que fez implantando a ideia de guarda da constitucionalidade, cabendo a este, qualquer decisão sobre qualquer caso de inconstitucionalidade, pois a ordem e a segurança pública deveriam ser garantidas (DE CICCO, 2017, p. 294).
Carl Schmitt alegava que o Führer protege o direito de pior abuso, quando em um instante de perigo cria o direito sem mediações, por força da sua liderança, negando que a função de guarda da Constituição pudesse ser exercida por uma corte superior de justiça, pois a decisão teria que ser monocrática, cabendo ao presidente do Reich. Sua doutrina não admite qualquer norma de federalismo ou pluralismo de ordenamentos jurídicos, pois seriam inimigos da unidade estatal, considerando partidos como ameaça para a unidade política, o que seria pressuposto para a existência de um povo, além disso, afirma que o regime é democrático, vez que o povo é representado pelo Führer e não um partido. Para opor tais argumentos e responsabilizar o nazismo, foi necessário se pautar no crime contra a humanidade, conceito que tem origem e fundamento no direito natural (DE CICCO, 2017, pp. 294-295).
O que se observa nesta transição entre os paradigmas científicos, que incluem a ciência jurídica, é uma influência continua nas relações cientificas de ciência para ciência, assim como uma simetria em suas aplicações, de forma que a partir do momento em que a filosofia natural abandona seu aspecto metafísico para se tornar a ciência como é agora conhecida, assumindo caráter iminentemente empírico e positivista, passa a exercer influência também nas ciências jurídicas.
Da mesma forma que a física newtoniana se mostra ineficaz em escala subatômica e cosmológica, o direito positivo se mostra ineficaz diante do micro, como no furto de alimento em razão da fome, ou do macro, em um contexto mundial contrário ao dispositivo legal. Por mais bem fundamentada e burocraticamente promulgada, nenhuma lei pode dispor em autorização a algo similar ao que se praticou na Segunda Guerra Mundial. A formalidade positiva sem dúvida é necessária para legitimar os atos, mas não pode ser fim em si, apenas meio de consecução de um processo organizacional, o qual deve refletir uma maior harmonia social.
4. Interdisciplinaridade e Raciocínio Crítico na Filosofia do Direito
A tarefa do professor de carreira em matéria de Direito, consiste na interdisciplinaridade mínima entre os conhecimentos técnicos específicos da docência e da área jurídica de atuação, esta interação disciplinar abrange desde a simples comunicação de ideias até a integração mútua dos conceitos diretores da epistemologia, como o conhecimento científico, da terminologia em seu vocábulo específico, da metodologia como caminho a ser traçado para se auferir determinada conclusão, bem como dos procedimentos, dos dados e da organização referentes ao ensino e à pesquisa (FAZENDA, 2011, p. 54).
Interdisciplinaridade é o ponto em que se tocam o movimento de renovação da atitude diante dos problemas de ensino, pesquisa e aceleração do conhecimento científico, surge como meio de romper o encasulamento da universidade, incorporando o conhecimento à vida de forma inovadora e permitindo reflexão aprofundada, crítica e salutar sobre o funcionamento do saber, eliminando a lacuna entre a atividade profissional e a formação universitária (FAZENDA, 2011, pp. 73 - 74).
Ao apontar a necessidade de oferecer uma educação especial aos denominados “guardiões” em “A República” de Platão, o ensino fundamental daqueles que seriam os futuros magistrados e políticos de sua República era definido como um estudo puramente esquemático e provisório, e para que chegassem ao entendimento completo seria necessário um “desvio mais amplo”, o que se referia ao caminho da cultura filosófica e política compondo a educação matemático-dialética, a qual deve ser percorrida pela ciência da dialética, elaborada a partir da arte socrática do diálogo (JAEGER, 1995, pp. 866 - 867).
Essa preparação profissional conceituada como uma formação do homem total, denominada Paideia, passou a ser dividida como produto da ocidentalização, com o consequente aumento do saber e a necessidade de criar um sistema de educação seccionado por atribuições específicas. Foi designado à escola o papel de transmissora de cultura pela educação sistematizada, o que foi deturpado para se restringir à simples transmissão de conhecimentos, onde o valor do indivíduo passou a ser medido pelo maior número de conhecimentos adquiridos, reduzindo o homem a objeto receptor de informações e não mais um sujeito efetivo como agente de transformações (FAZENDA, 2011, pp. 81 - 82).
A lenta deriva da civilização ocidental em direção a uma atitude cada vez mais técnico-científica, estruturada especialmente em torno da física a partir do século XVI, como visto, é resultado da influência dos físicos mecanicistas, que desenvolveram uma representação do mundo em que os objetos e astros não possuíam mais nada de subjetivo, obedeceriam à leis frias em um determinismo que se tornaria a linguagem de “universal” (FOUREZ, 1995, p. 165).
Com a mecânica analítica o tempo se reduz a uma nova dimensão espacial, a matemática fornece à física uma linguagem em que cada ponto do espaço será percebido como equivalente a um outro. Assim como o comerciante toma os objetos por mercadoria, reduzindo sua equivalência à moeda, os cientistas tornam tudo mensurável e transformam o mundo em cifras, retirando sua particularidade e o tornando mera expressão de leis absolutamente gerais (FOUREZ, 1995, pp. 165-166).
O paradigma cartesiano imposto pelo desdobramento da história europeia a partir do século XVII, separa o sujeito e o objeto, cada qual na esfera própria, a filosofia e a pesquisa reflexiva de um lado, a ciência e a pesquisa objetiva, de outro. Este paradigma determina dupla visão do mundo, um desdobramento do mesmo mundo: de um lado, o mundo de objetos submetidos a observações, experimentações, manipulações; de outro lado, o mundo de sujeitos que se questionam sobre problemas de existência. Assim, um paradigma pode ao mesmo tempo elucidar e cegar, revelar e ocultar (MORIN, 2000, pp. 26-27).
A ciência moderna está atrelada à ideologia burguesa, à sua vontade de dominar o mundo e controlar o meio ambiente, no que foi perfeitamente eficaz como instrumento intelectual, permitindo à burguesia suplantar a aristocracia e dominar o planeta. Durante séculos, a eficácia desse método e os seus sucessos serviram de base às ideologias do progresso. No entanto, as recentes evoluções da sociedade, os perigos da poluição, a corrida por armas atômicas, os problemas da energia, entre outros, levaram a um questionamento cada vez maior a respeito dessa atitude de domínio (FOUREZ, 1995, pp. 163-164).
Na ciência, apenas no século XX seria novamente introduzida a noção de história no contexto de um sistema físico, para que se considerasse novamente a capacidade da natureza de produzir coisas originais e acontecimentos ainda não inteiramente descritos pelas leis universais em que tudo se encerraria. Durante a evolução da ciência, suas origens foram apagadas, questões do cotidiano que fizeram surgir a física, a medicina e a informática foram esquecidas, permanecendo apenas uma ciência universal (FOUREZ, 1995, p. 166).
A maneira pela qual se escrevem os artigos científicos é significativa, pois apenas se descreve o “raciocínio científico”, não o processo concreto seguido, apresenta-se um percurso relido por intermédio dos resultados, deste modo, a história da ciência frequentemente suprime a sua dimensão histórica, pois raramente busca reencontrar a singularidade do passado, demonstrando o desenrolar do progresso científico como inexorável e tão linear quanto o universo mecanicista, se avança sempre com uma lógica implacável, racionalizando os caminhos percorridos para se chegar aonde está (FOUREZ, 1995, p. 167).
A filosofia jurídica não deve ter caráter destrutivo ou niilista, as tendências paradigmáticas que compõe o pensamento crítico ou a crítica jurídica, rompem as dimensões do dogmatismo juspositivista com a concepção jusfilosófica intertextualizada pela análise sistêmica, dialética, semiológica e psicanalítica, que questionam as bases epistemológicas que comandam a produção tradicional da ciência jurídica, dessacralizando as crenças teóricas dos juristas em torno da problemática da verdade e da objetividade (WOLKMER, 2003, pp. 112 - 113).
A interdisciplinaridade visa a recuperação da unidade humana adotando a intersubjetividade, recuperando a ideia primeira de cultura como ferramenta para a formação do homem total e reforçando o papel das instituições de ensino como formadoras de um homem inserido em sua realidade, assim como o papel do homem como agente das mudanças do mundo (FAZENDA, 2011, p. 82).
Os paradigmas de um “ethos” marcado pelo idealismo individual, pelo racionalismo liberal e pelo formalismo positivista, têm sua racionalidade questionada e substituída por novos modelos de referência. A moderna cultura liberal burguesa e a expansão material do capitalismo produziram uma forma específica de racionalização do mundo enquanto princípio organizativo, define‐se como racionalidade instrumental positiva que não liberta, mas reprime, aliena e coisifica o homem (WOLKMER, 2015, p. 26).
Uma das grandes tragédias do homem moderno é ser comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez mais à sua capacidade de decidir, sendo expulso da órbita das decisões, as tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e as entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida, sendo assim afogado no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado, reduzido a puro objeto (FREIRE, 1967, p. 43).
Os efeitos dos discursos ideológicos podem, por vezes, ocultar a semelhança de práticas com pontos equivalentes, ao se apresentar a descrição de uma prática em que as pessoas deixam alguém dispor de uma parte íntima delas mesmas, de sua criatividade profunda, por dinheiro, muitos são levados a pensar na prostituição, prática que corresponde muito bem à descrição proposta. Mas poucos se dão conta de que o contrato de trabalho também corresponde ao mesmo esquema, em que pelo dinheiro as pessoas aceitam vender sua criatividade e deixar à outra pessoa a decisão do que fazer com ela (FOUREZ, 1995, p. 180).
Das mais enfáticas preocupações de uma educação para o desenvolvimento e democracia, haveria de ser a que oferecesse ao educando instrumentos com que resistisse aos poderes do “desenraizamento” de que a civilização industrial a que nos filiamos está amplamente armada, mesmo que igualmente esteja ela de meios com os quais vem crescentemente ampliando as condições de existência do homem (FREIRE, 1967, p. 89).
Trata-se de uma educação que o possibilitasse a discussão corajosa de sua problemática, de sua inserção nesta problemática, para que o indivíduo tenha a força e a coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio “eu”, submetido às prescrições alheias, uma educação deve predispor o educando a constantes revisões, à análise crítica e até mesmo uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão (FREIRE, 1967, p. 90).
A transposição e edificação de outro paradigma representa também a substituição e a construção de um novo conceito de racionalidade, enquanto o modelo tradicional de racionalidade técnico formal é suplantado pelo modelo crítico interdisciplinar da racionalidade emancipatória, redefine‐se a noção superior de racionalidade, que, como pressuposto do pensamento e da ação, apresenta um projeto transcendente que não mais oprime, mas busca libertar o sujeito subalterno e a sociedade (WOLKMER, 2015, p. 27).
Uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista para considerar o mundo não é racional, mas racionalizadora, enquanto a verdadeira racionalidade dialoga com o real que lhe resiste, operando entre a instância lógica e a instância empírica, se reconhece a verdadeira racionalidade pela capacidade de identificar suas próprias insuficiências. Daí a necessidade de reconhecer na educação do futuro um princípio de incerteza racional, a verdadeira racionalidade não é apenas teórica, apenas crítica, mas também autocrítica (MORIN, 2000, pp. 23-24).
A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais, estimulando o uso total da inteligência geral pelo livre exercício da curiosidade, que com frequência a instrução extingue, utilizando ao mesmo tempo os conhecimentos existentes para superar as antinomias decorrentes do progresso nos conhecimentos especializados, bem como identificar a falsa racionalidade (MORIN, 2000, pp. 39-40).
A falsa racionalidade, racionalização abstrata e unidimensional, pseudorracionalidade que presumia ser a única racionalidade, atrofiando a compreensão, a reflexão e a visão em longo prazo, teve como resultado a insuficiência para lidar com os problemas, constituindo um dos mais graves problemas para a humanidade. O século XX produziu avanços gigantescos em todas as áreas do conhecimento científico e da técnica, mas ao mesmo tempo, produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e complexos, e esta cegueira gerou inúmeros erros e ilusões (MORIN, 2000, pp. 44-45).
A formação escolar e universitária nos ensina a separar o objeto de seu contexto, bem como cada uma das disciplinas para não ter que relacioná-las, no entanto, esta separação e fragmentação é incapaz de captar o que está tecido em conjunto, ou seja, o complexo, conforme o sentido original do termo. A tradição reduz o complexo ao simples, separa o que está ligado e unifica o que é múltiplo, seguindo uma lógica que projeta sobre a sociedade e as relações humanas as restrições e os mecanismos inumanos da máquina artificial, trazendo uma visão mecanicista, quantitativa e formalista, que ignora, oculta e dissolve tudo o que é subjetivo, afetivo, livre e criador (MORIN, 2007, p. 18).
A reforma da Universidade requer autoeducação dos próprios educadores, consiste em um retorno às fontes do pensamento europeu moderno representado pela problematização. Isso porque não é mais suficiente problematizar apenas o homem, a natureza, o mundo e Deus, é preciso problematizar o que traria soluções aos problemas da ciência, da técnica e do progresso, problematizando ainda a própria organização do pensamento e da instituição universitária (MORIN, 2007, pp. 22-23).
As ciências, não obstante à constante tentativa de reduzir o complexo ao simples, são naturalmente multidimensionais: a Geografia cobre um campo muito vasto, partindo da geologia para os fenômenos econômicos e sociais; a História abarca o devir das realidades humanas, enquanto a Pré-História questiona os aspectos complexos da humanização. Esta reorganização do saber se inicia pelo reagrupamento de disciplinas até então dispersas, a Ecologia Científica, as Ciências da Terra e a Cosmologia são ciências multidisciplinares, tendo como objeto um sistema complexo (MORIN, 2007, pp. 23-24).
Há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo, havendo um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo, entre o objeto de conhecimento e seu contexto. A complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade, em consequência, a educação deve promover a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo e ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global (MORIN, 2000, pp. 38-39).
A educação do futuro deverá ser centrada na condição humana, conhecer o humano é situá-lo no universo, todo conhecimento deve contextualizar seu objeto para ser pertinente. É necessário promover grande remembramento dos conhecimentos das ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas, para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas (MORIN, 2000, pp. 47-48).
As partículas de nossos organismos teriam aparecido desde os primeiros segundos de existência de nosso cosmo, nossos átomos de carbono formaram-se em um ou vários sóis anteriores ao nosso, nossas moléculas agruparam-se nos primeiros tempos convulsivos da Terra, estas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, se metamorfoseou em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química, uma auto-organização viva (MORIN, 2000, p. 49).
A descrição científica oferecida por Edgar Morin para embasar uma unidade também em termos filosóficos, remete à “Hipótese Nebular”, sugerida em 1755 pelo por Immanuel Kant e desenvolvida pelo matemático francês Pierre-Simon de Laplace em 1796. Essa hipótese sugere que uma grande nuvem rotante de gás interestelar, a nebulosa solar, colapsou para dar origem ao Sol e aos planetas, a força gravitacional da nuvem atuando em si mesma acelerou o colapso, e com o passar do tempo a massa de gás rotante assumiria uma forma discoidal, com uma concentração central que deu origem ao Sol, e os planetas teriam se formado a partir do material no disco (OLIVEIRA FILHO e SARAIVA, 2014, p. 132).
Tais argumentos evidenciam a necessidade de um conhecimento interdisciplinar para que sejam compreendidos em sua integralidade, no caso a fusão nuclear, isso porque há referência às partículas elementares que teriam formado o primeiro e mais primordial dos átomos, o átomo de hidrogênio, com apenas um núcleo atômico. Estes átomos de hidrogênio se agrupam em função da gravidade formando uma grande nuvem de gás, que ao colapsar em uma alta gravidade resulta na fusão nuclear destes átomos em átomos de hélio, expelindo energia e agrupando em seu centro estes átomos de hélio mais pesados, que por sua vez dão origem ao carbono, sem o qual não haveria vida.
Em artigo publicado em 1920, Arthur Eddington explicou que as estrelas tendem a colapsar por sua própria gravidade, a pressão da gravidade aumenta o atrito entre os átomos do gás até atingir temperaturas extremas, sugerindo que a energia solar seria produzida pela fusão do hidrogênio em hélio, mas sem a identificação do mecanismo nuclear gerador dessa energia. Apenas em 1948, George Gamow e Alpher propuseram o modelo em que o hidrogênio e o hélio seriam sintetizados ainda antes das estrelas nascerem, enquanto Hans Bethe e Edwin Salpeter identificavam os processos pelo qual o hélio é produzido a partir do hidrogênio e pelas quais o carbono é produzido a partir do hélio em um estágio posterior da evolução estelar (STASIŃSKA, 2010, pp. 679-680).
Desta forma, a afirmação de que a vida é solar e seu estudo de forma científica geram a consciência de uma unicidade entre os seres e destes para com o planeta. Todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos em um planeta por este expelido, a vida é a transformação de uma torrente fotônica resultante de resplandecentes turbilhões solares. Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena (MORIN, 2000, p. 49).
No mesmo sentido, entre as várias razões e motivações para o resgate do ensino científico em ciências naturais e ecologia, se destaca sua capacidade de promover o pensamento integralizado, mostrando a interação das forças animadas e inanimadas para resgatar o vínculo com nossas origens remotas, conscientizar e compreender a Terra como um só organismo vivo, escapando da compartimentalização e do reducionismo. Para tanto, há necessidade de criar uma cultura científica e filosófica que estabeleça relações e conexões, passando pela alfabetização científica, elemento necessário para que se tenha um melhor entendimento sobre os fenômenos da natureza e da vida humana em toda sua complexidade (FALEIRO e ASSIS, 2017, pp. 114-115).
Desta forma, a posição anterior de auto desvalia e inferioridade, característica da alienação, deve ser substituída por uma de autoconfiança, substituindo os esquemas e as “receitas” por projetos e planos, resultantes de estudos sérios e profundos da realidade. A sociedade aos poucos renuncia à velha postura de objeto e vai assumindo a de sujeito, de forma que a desesperança, o pessimismo, bem como aquele otimismo ingênuo, se substitui por um otimismo crítico, nascido e desenvolvido ao lado de um forte senso de responsabilidade. Uma vez que este senso de responsabilidade esteja presente nos representantes das elites dirigentes, ajudará a sociedade a evitar possíveis distorções a que está sujeita na marcha de seu desenvolvimento (FREIRE, 1967, p. 53).
Não se discute a possibilidade de fragmentação do conhecimento para que seja mais facilmente assimilado, no entanto, a fragmentação de uma determinada ciência não pode excluir completamente as implicações interdisciplinares de suas conclusões, como se o resultado de seus avanços e seus impactos na sociedade simplesmente não lhe dissessem respeito. A ciência jurídica do futuro deve ser responsável, deve estar atenta às possíveis conexões físicas e metafísicas entre o direito, como seu objeto, os recursos naturais do planeta e as relações da sociedade, atual e futura, abandonando a objetificação da natureza e do próprio ser humano, tratados respectivamente como matéria-prima e instrumento de produção.
O direito é a ciência que a tudo regula, motivos pelos quais o conhecimento interdisciplinar se torna essencial em sua filosofia, a ciência jurídica deve ser capaz de prever as implicações de suas liberações e proibições, na natureza e na sociedade, caso contrário constituirá formulário inútil à preservação da sociedade.
A educação que se pretende para o futuro da ciência jurídica deve ser crítica, pautada em critérios não apenas objetivos, mas também subjetivos, por isso se tem na interdisciplinaridade jurídica o reencontro entre as ciências e a filosofia, que deve ser aplicada ao direito como pilar histórico de todo o conhecimento, sem os quais a natureza e a sociedade, diretamente dependentes uma da outra, se desestabilizam reciprocamente.
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[1] Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenadora do Curso de graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora dos Programas de Pós-Graduação e Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Programa de Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especializado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especializado em Direito Imobiliário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado graduado em Direito pela Universidade Paulista. Professor Assistente no Curso de Especialização em Direito Imobiliário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Caio Romero Gama de. Relações entre filosofia do direito e filosofia natural: sobre a interdiscplinaridade no ensino do direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 maio 2022, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58441/relaes-entre-filosofia-do-direito-e-filosofia-natural-sobre-a-interdiscplinaridade-no-ensino-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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