Resumo: o presente trabalho analisa a compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras do crime de homicídio, dada a relevância do tema para a prática forense. Para tanto, serão examinados os aportes doutrinários nacionais e estrangeiros acerca dos critérios de aferição do dolo eventual, bem como as controvérsias jurisprudenciais que envolvem o tema. Por fim, será apresentada uma analogia que demonstra a característica intrinsecamente pragmática do instituto, tido como uma ferramenta voltada a facilitar o raciocínio jurídico operado na adequação típica de condutas delituosas.
Palavras-chaves: Dolo eventual. Homicídio. Crimes de trânsito. Qualificadoras. Culpa consciente. Execução provisória. Elementos subjetivos especiais. Teorias da Ação. STF. STJ.
Abstract: the present work analyzes the compatibility of eventual intent with the qualifiers of the crime of homicide, given the relevance of the theme for forensic practice. To this end, national and foreign doctrinal contributions will be examined on the criteria for measuring eventual intent, as well as the jurisprudential controversies involving the subject. Finally, an analogy will be presented that demonstrates the intrinsically pragmatic characteristic of the institute, seen as a tool aimed at facilitating legal reasoning operated in the typical suitability of criminal conduct.
Keywords: eventual deceit. Murder. Traffic crimes. qualifiers. Conscious guilt. Provisional execution. Special subjective elements. Theories of Action. STF STJ.
Sumário: 1-Introdução. 2- Diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente. 3- Entendimento dos tribunais superiores sobre o dolo eventual e as qualificadoras do homicídio. 4-Visão da doutrina nacional e estrangeira sobre o dolo eventual. 5-conclusão. 6-Referêncais
1-Introdução
O presente artigo examina a compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras do crime de homicídio. Para tanto, serão apresentadas as diferenças entre os diversos conceitos correlatos, como culpa consciente, teoria da ação significativa, vontade e indiferença.
A temática possui grande relevo prático, relacionado aos julgamentos pelo Tribunal do Júri de crimes dolosos de trânsito. Como será visto, a perquirição da mente do agente utilizando-se das circunstâncias fáticas que cercam a conduta denota um raciocínio dedutivo despido de critérios objetivos, que impacta na segurança jurídica e nos pradrões de aplicação da justiça.
2-Diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente.
A culpa consciente é a culpa com previsão, quando o agente pratica o fato prevendo a possibilidade de ocorrência de um resultado, mas confia em suas habilidades para que o resultado não ocorra. No dolo eventual, o agente não persegue diretamente o resultado, mas com sua conduta, assume o risco de produzi-lo. Nos países que adotam o common law, como o direito norte-americano, o dolo eventual e a culpa consciente se aproximam do conceito de “indiferença culpada”.
A “indiferença culpada” se relaciona com o estado de espírito da pessoa que comete um crime. Ela teria se envolvido em uma conduta que cria um risco extremo de morte para outra pessoa. Quando suas ações mostrarem um total desrespeito pelo valor da vida humana, estarão exibindo indiferença culpada. Isso significa que ela demonstra vontade de agir, não porque pretenda causar danos, mas porque não se importa se suas ações resultarão em danos.
Os casos mais emblemáticos da aplicação desse conceito no direito norte-americano são People vs. Register, de 1983 e People v. Feingold, de 2006. No primeiro, o acusado teria utilizado o álibi da embriaguez para sustentar a incompatibilidade com a indiferença culpada. O tribunal não concordou com seu raciocínio e manteve a decisão de condenação por assassinato em segundo grau (equivalente ao homicídio simples no direito brasileiro).
No segundo caso, firmou-se o entendimento pelo “estado mental culpável”, que são as maneiras pelas quais uma pessoa pode ser responsabilizada por seu estado mental enquanto no ato de cometer um crime. Uma pessoa pode ser considerada como tendo agido com indiferença culpada quando age intencionalmente, conscientemente, imprudentemente ou de maneira criminosamente negligente. Após esse último case, houve mudança na forma como os réus que estavam sob a influência de drogas ou álcool foram acusados ou condenados por crimes que anteriormente permitiriam a aplicação do instituto. Como exemplo, no caso People v. Coon, julgado posteriormente, entendeu-se que a intoxicação por drogas do réu o deixou incapaz do estado mental necessário para a configuração da indiferença culpada.
O art. 18, I, do CPB equiparou o querer à assunção do risco. Essa equiparação entre a efetiva vontade e a indiferença com o resultado é apenas de ordem jurídica, esteada em política criminal, e não de ordem psicológica. A vontade é estudada pela neurociência, decorrendo de impulsos nervosos disparados no sistema nervoso central (SNC), que condicionam o agir humano. Em termos psicológicos, a indiferença com o resultado possui um encadeamento neuronal ligeiramente distinto da vontade. No entanto, ambos foram moralmente equiparados, para efeito de punição de condutas lesivas a bens jurídicos iguais. Tanto o dolo direito quanto o dolo eventual, ou seja, tanto o querer quanto a indiferença, são punidos identicamente pelo legislador no preceito secundário, não havendo nenhuma repercussão na dosimetria das penas. Como será visto adiante, alguns autores, como Paulo Busato, criticam essa equiparação.
Conforme destacado, a indiferença culpada do direito norte-americano abarca elementos da culpa consciente e do dolo eventual, resultando em um enquadramento de assassinato em segundo grau, o equivalente ao homicídio simples do direito brasileiro. No direito pátrio, contudo, o fato de o homicídio ser praticado com dolo eventual não impede a incidência de qualificadoras. Há intenso debate no direito norte-americano se a indiferença culpada não abarcaria o simples comportamento de mau-caratismo, ou se seria efetivamente intencional.
Serão analisados adiante casos na jurisprudência dos tribunais superiores em que o dolo eventual resultou no enquadramento ora como homicídio simples ora como homicídio qualificado. No caso Boate Kiss, o STJ confirmou a pronúncia com dolo eventual, indeferindo o pleito de desclassificação para homicídio culposo. Contudo, a corte manteve a exclusão de todas as qualificadoras da pronúncia, subtraindo-as da quesitação aos jurados. Ao final, os réus foram condenados por homicídio simples, tal como pronunciados.
O dolo eventual é tradicionalmente enfrentado pelos tribunais nos casos de acidentes automobilísticos. A doutrina enfrenta essa questão há um longo tempo. Em geral, a constatação do dolo eventual está vinculada a aspectos relacionados às circunstâncias do fato, como a alta velocidade e a embriaguez.
No direito norte-americano a embriaguez tem sido utilizada como álibi para descaracterizar a “indiferença culpada”, por ser inconciliável com o “estado mental culpado”. No direito pátrio ocorre o oposto, incidindo a teoria da actio libera in causa, uma vez que o agente agiu conscientemente para se colocar nesse estado, nos moldes do art. 28, II, do CPB. Logo, a embriaguez afastará a culpa e atrairá o dolo eventual.
No entanto, nem sempre incidirá o dolo eventual nos casos de embriaguez ao volante. Como exemplifica Rogério Greco, um agente que se envolve em um acidente fatal de sua família após ingerir bebida alcóolica em comemoração a 25 anos de casamento não anuiu com o resultado morte. Neste caso, a conduta se enquadra como homicídio culposo, podendo ainda ser aplicado o perdão judicial.
A fim de evitar os inconvenientes da perquirição da mente do acusado por ocasião do fato delituoso, o legislador houve por bem alterar o Código de Trânsito brasileiro, recrudescendo as reprimendas das modalidades culposas dos crimes de trânsito. Nessa toada, o art. 302, §3º, do CTB passou a prever pena de reclusão de cinco a oito anos para o homicídio culposo na direção de veículo automotor em estado de embriaguez, conforme a redação dada pela Lei nº 13.546/17. A depender das circunstâncias, a pena privativa de liberdade neste caso pode resultar em um patamar superior ao do crime cometido com dolo eventual, com enquadramento em homicídio simples, que tem pena mínima de seis anos.
Nada obstante esse recrudescimento de pena, persistem consideráveis diferenças quanto ao rigor de uma pena por crime culposo e doloso, mesmo que a pena do crime culposo seja fixada em patamar superior. Essas diferenças residem tanto no Código Penal quanto na Lei de Execuções Penais. Como exemplo, o art. 44, I, do CPB permite a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nos crimes culposos, qualquer que seja o patamar de pena aplicada. A diferença também ecoa no livramento condicional, conforme previsto nos incisos do art. 83 do CPB e seu parágrafo único.
Demais disso, se o acidente de trânsito com embriaguez for enquadrado com dolo eventual, é possível o encaixe de qualificadoras, tornando-o hediondo. Não há qualificadoras para o homicídio culposo, apenas causas de aumento de pena, no patamar de um terço, nos casos do art. 302, §1º, do CTB e art. 121, §4º, do CPB. Como exemplos, temos o crime cometido em faixa de pedestre no primeiro caso, conforme a redação dada pela Lei nº 12.971/14, e a inobservância de regra técnica de profissão no segundo caso. Em ambos os dispositivos é prevista a causa de aumento de deixar o agente de prestar socorro à vítima, não concorrendo nessa hipótese os crimes do art. 135 do CPB e art. 304 do CTB, sob pena de incidir em bis in idem.
De igual modo, o crime de lesão corporal culposa no trânsito com embriaguez teve a pena aumentada para reclusão de dois a cinco anos, conforme o art. 303, §2º, do CTB, na redação dada pela Lei nº 13.546/17. O art. 129, §§ 1º e 2º, do CPB preveem penas de reclusão de um a cinco anos para lesões graves e de dois a oito anos para lesões gravíssimas. O dispositivo do CTB faz alusão indistinta a essas duas modalidade de lesão. A lesão gravíssima, assim, impacta na dosimetria da pena base, desvalorando a vetorial “consequências do crime”, impondo uma pena maior que no caso de lesão grave.
Por sua vez, o art. 306 do CTB, na redação dada pela Lei nº 12.760/12, previu pena de detenção de até três anos para quem conduzir veículo em estado de embriaguez. Trata-se de crime de perigo abstrato, que se consuma independentemente da demonstração de risco aos demais motoristas, transeuntes ou aos passageiros do veículo. Esse tipo penal tem nítida finalidade preventiva, ínsita ao moderno direito penal.
Já o art. 310 do CTB prevê pena de detenção de um mês a um ano ou multa para quem entregar a direção de veículo automotor a pessoa embriagada ou sem condições de conduzi-lo em segurança, o que inclui a pessoa sob efeito de drogas. Este tipo penal também é de perigo abstrato, prescindindo para sua consumação da demonstração de risco de dano.
Por fim, o art. 308 do CTB prevê o crime de racha na via pública, cominando pena de detenção de seis meses a três anos. Ao contrário dos tipos descritos acima, este tipo penal é de perigo concreto, devendo gerar situação de risco. Seu §1º prevê pena de reclusão de três a seis anos caso resulte lesão corporal grave. Diferentemente do art. 303, §2º, não houve inclusão da lesão corporal gravíssima no art. 308, §1º. Porém, entende-se que ela está incluída no dispositivo, por ser uma consequência mais grave. Já o §2º prevê pena de reclusão de cinco a dez anos caso resulte morte. Esses dois parágrafos ressalvam a constatação de dolo direito ou eventual na ação do condutor. Novamente, o legislador buscou evitar o inconveniente de adentrar na psique do agente que comente o crime.
Em julgado de 2012, a 5ª Turma do STJ considerou que a conduta amoldada ao art. 310 pode transpor o referido tipo penal, incidindo o agente em dolo eventual, transmudando a conduta ao art. 121, §2º, II, III e IV, do CPB. No caso, o agente estava embriagado e entregou a direção do veículo a pessoa também embriagada, que veio a falecer em razão de um acidente por ela causado. Conforme constou no acórdão, relatado pela Min. Laurita Vaz:
“A conduta do paciente reúne os ingredientes descritos na lei de trânsito e carrega um plus diferenciador, consistente na volição consciente de que poderia, em razão da ebriedade da motorista, provocar perigo não só aos ocupantes do auto, como também a outros motoristas e pedestres. A reprovação social não aceita a rotulação de crime culposo e muito menos a modalidade prevista na referida lei em razão do perigo concreto social e exige um julgamento mais rigoroso, pela própria comunidade, por meio do Tribunal do Júri, que passa a ser o juízo natural da causa”.
Neste julgado, pesou o fato de a penalidade do art. 310 do CTB ser muito branda em comparação com possibilidades de causação do resultado, que, a depender das circunstâncias, podem ser muito graves.
De outro giro, no que toca ao art. 308 do CTB, a jurisprudência regularmente encaixa a conduta ao dolo eventual, principalmente no caso da prática de racha em alta velocidade, com resultado morte. Outra conduta frequentemente enquadrada no dolo eventual é a prática de “roleta russa” no trânsito, quando o condutor ultrapassa o semáforo com sinal vermelho em alta velocidade, vindo a colher outros condutores, pedestres ou ceifando a vida dos próprios passageiros do veículo.
No caso Tamarineira, ocorrido na cidade de Recife em 2017, um condutor ultrapassou um cruzamento em alta velocidade, após ingerir grande quantidade de bebida alcóolica durante a noite, vindo a colidir com outro veículo que trafegava na via perpendicular, ocasionando a morte de três ocupantes do carro. Não houve encaixe no art. 302, §2º, do CTB, mas sim no art. 121, §2º, III e IV, do CPB, adequando a conduta ao dolo eventual. O réu foi condenado em 2022 pelo Tribunal do Júri por triplo homicídio duplamente qualificado. Em seu depoimento no plenário do Júri, após o testemunho de uma sobrevivente do acidente, o réu declarou: “Eu não queria fazer isso. Pelo amor de Deus. Eu não queria machucar a sua família nem ninguém. Por favor, me perdoe.” A despeito da falta de querer do agente, entendeu-se que sua indiferença foi equivalente à vontade de matar, sendo ainda conciliável a indiferença com as qualificadoras objetivas do homicídio, relacionadas aos meios e modos de sua execução.
O CPB adotou a teoria do dolo eventual criada pelo alemão Reinhart Frank, conhecida como Teoria Positiva do Conhecimento. Para o referido autor, há dolo eventual quando o agente diz: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir. O agente revela a indiferença quanto ao resultado. Assim, ao perceber a situação de perigo que criou, antevendo um possível resultado lesivo (previsão), o agente não retrai a conduta, diminuindo a velocidade, por exemplo. Ao invés disso, prossegue na conduta perigosa, sendo indiferente ao resultado que possa advir (assunção do risco). Entre a previsão do resultado e a assunção do risco há um estalido na psique do agente em que pode escolher refrear a conduta perigosa ou aderir a ela.
A questão sobre a existência do dolo eventual em acidentes de trânsito e sua compatibilidade com as qualificadoras do crime de homicídio ganhou grande relevo com as alterações do art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/2019, prevendo a execução provisória das penas aplicadas no Tribunal do Júri, quando a condenação for igual ou superior a quinze anos de reclusão. No caso de condenação pelos jurados por homicídio simples, que tem pena mínima de seis anos, a dosimetria da pena pelo Juiz-Presidente, como regra, gira em patamar inferior a quinze anos. Somente em casos excepcionais a pena por homicídio simples supera esse patamar, como no caso da boate Kiss, que ocasionou diversas vítimas fatais.
No caso de crimes de trânsito, tem sido comum condenar o réu no Tribunal do Júri por homicídio simples com dolo eventual, em concurso com outros crimes conexos de trânsito, aplicando-se o concurso formal impróprio, com desígnios autônomos, com a finalidade de somar as reprimendas até alcançar o patamar de quinze anos, possibilitando sua execução imediata. Isso decorre do fato de o art. 492, I, “e” do CPP exigir apenas a condenação à pena de quinze anos de reclusão, não limitando essa pena ao crime doloso contra a vida.
Nessa toada, muitas liminares têm impedido a execução provisória das penas impostas pelo Tribunal do Júri, tendo como fundamento a decisão do STF nas ADCs 43, 44, e 54, que declararam a constitucionalidade do art. 283 do CPP, e vedando a execução provisória da pena. No entanto, essa decisão do STF foi anterior às alterações procedidas pela Lei nº 13.964/19 (Pacote anticrime). A doutrina constitucionalista alude que as decisões do Excelso Pretório em controle concentrado de constitucionalidade não vinculam o legislador em sua função típica de legislar, havendo apenas uma presunção relativa de inconstitucionalidade nas leis supervenientes à decisão, no caso de contrariedade manifesta.
A Associação de Advogados Criminalistas ingressou com ação no STF questionando a constitucionalidade da alteração promovida no art. 492, I, “e”, do CPP. O julgamento ainda pende de decisão definitiva, mas já há na corte posicionamentos favoráveis à alteração legal. Em geral, os julgamentos pelo Júri sempre aplicaram penas superiores a quinze anos nos crimes dolosos contra a vida consumados, praticados geralmente por criminosos contumazes. Com frequência, o Conselho de Sentença julga réus tecnicamente primários, a saber, que não se encaixam especificamente nos requisitos do art. 63 do CPB, mas que ostentam dezenas de passagens pelos órgãos policiais.
A grande questão gira em torno dos crimes de trânsito, que tem levado para o banco dos réus pessoas sem nenhum registro policial. O apoio da opinião pública para o perfeito entendimento de que se trata de um legítimo crime de homicídio é fundamental para o sentimento de justiça, o conforto dos familiares e diminuição da violência no trânsito.
Até há pouco, predominava a visão de que os crimes dolosos contra a vida, quando relacionados a acidentes de trânsito, não demonstravam a mesma periculosidade dos demais crimes de homicídio. Essa visão se alterou após julgamentos emblemáticos envolvendo acidentes de trânsito, com a postura firme dos tribunais em levar os réus a Júri popular e manter as condenações proferidas. Diversas campanhas na sociedade despertaram a consciência sobre a gravidade desta conduta. Como exemplo, a campanha “Não foi acidente” conta com milhares de adeptos, com o tema “Bebeu, dirigiu, matou...é doloso”, congregando familiares das vítimas. Referido movimento popular ainda acompanha o andamento dos processos e reporta o julgamento pelo Tribunal do Júri de vários casos envolvendo acidentes de trânsito.
Essa mudança de perspectiva na sociedade foi citada pelos ministros do STF que já se manifestaram favoráveis à execução provisória das penas no Júri, com fundamento na diminuição da sensação de impunidade quanto aos crimes de trânsito. No caso da boate Kiss, uma liminar do TJRS evitou a prisão imediata dos réus após a condenação a pena superior a quinze anos. No entanto, o presidente do STF ordenou o cumprimento do art. 492, I, “e”, do CPP, determinando a execução provisória das penas impostas. Mesmo após essa postura da Suprema Corte, ainda são comuns liminares que impedem a prisão dos réus após a condenação no Júri por crimes de trânsito. Como exemplo, o STJ concedeu liminar no Habeas Corpus nº 723.570, em fevereiro de 2022, para paciente condenado no Júri por homicídio doloso no trânsito, a pena superior a quinze anos, a fim de que aguardasse o julgamento dos recursos em liberdade, até o trânsito em julgado da condenação.
É premente a definição dos tribunais acerca da constitucionalidade da execução provisória das penas impostas no Júri, bem como da compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras do crime de homicídio. Afinal, no caso de condenação pelo art. 121, §2º, III e IV, do CPB, o preceito secundário passa a ser de reclusão de doze a trinta anos, podendo a outra qualificadora ser utilizada como circunstância judicial apta a majorar a pena base ou como agravante na segunda fase da dosimetria, o que fatalmente levará a pena ao patamar de quinze anos, importando em prisão imediata do réu após o julgamento.
Afora as situações envolvendo acidentes de trânsito com embriaguez ou “rachas”, os tribunais enfrentam casos episódicos envolvendo dolo eventual. Adiante será analisado um recente julgado do STJ, relacionado ao disparo de arma de fogo, onde se entendeu pela pertinência em conciliar o dolo eventual com as qualificadoras objetivas do homicídio.
A prática de roleta russa, com uma ou duas balas nos tambores do revólver, onde cabem seis, é um exemplo clássico de configuração do dolo eventual. Conforme decidido pelo Superior Tribunal Militar, na Ap. 48.217/DF, julgada em 1999:
“Comete o homicídio com dolo eventual, o agente que pratica a chamada ‘roleta russa’. Apontar, sabendo estar carregada a arma, disparando em direção a outrem, demonstra inequívoca vontade de produzir o resultado morte ou, como no caso, assume o risco de produzi-la. Quando o agente anui ao advento do resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, não há que se falar em culpa consciente, por mais sensível que seja sua distinção com o dolo eventual. Decisão unânime.”.
Em caso mais recente, julgado na Apelação nº 7000628-13.2019.7.0.0000, o Superior Tribunal Militar decidiu uma situação envolvendo dois soldados que brincaram perigosamente no quartel general do exército. Os dois teriam apontado as armas um para o outro, sem o carregador, acionando o ferrolho e efetuando o disparo. Sabe-se que mesmo sem carregador, uma pistola pode possuir uma bala apta ao disparo na câmara explosiva. Esta circunstância, apesar de não ser do conhecimento geral, era do conhecimento dos soldados. Na brincadeira, um dos soldados foi atingido de forma fatal.
O Conselho Permanente de Justiça para o Exército, por unanimidade, julgou parcialmente procedente a denúncia do Ministério Público Militar: embora o órgão acusador pedisse a condenação pelo crime de homicídio com dolo eventual (artigo 205 do CPM), o órgão julgador condenou o réu à pena de dois anos de detenção pelo crime de homicídio culposo (artigo 206, caput, do CPM). O Conselho entendeu não ser possível concluir que o réu havia agido com dolo eventual, uma vez que autor do disparo havia acionado imediatamente socorro via rádio, o que indicaria que ele não desejava ou era indiferente ao óbito do soldado.
O STM reformou o julgamento, entendendo pela presença do dolo eventual, nos termos seguintes:
“Dessa forma, o dolo eventual se configura ao assumir ou incrementar o risco de violar o bem jurídico tutelado mediante arma de fogo, ainda mais, quando sabedor das potencialidades lesivas do armamento. Os critérios para se alçar a tipicidade penal, além da ação e do nexo causal, dependem de duas premissas básicas, quais sejam: a criação ou o aumento de risco não permitido; e a realização ou concretização desse risco no resultado”.
Ao contrário da culpa consciente, não é necessário que o tipo penal preveja a indiferença com o resultado para a punição do agente. O parágrafo único do art. 18 do CPB, ao se referir ao termo “dolosamente”, inclui tanto a vontade quanto a indiferença.
O dolo eventual aplicado aos tipos penais advindos do moderno direito penal possui outros dilemas na sua configuração. A partir dos anos 1970, houve um crescimento na criminalização de condutas lesivas a bens coletivos, supraindividuais ou difusos, em que os direitos e interesses não são atribuíveis a pessoas determinadas, tais como a saúde pública, o meio ambiente e a segurança pública. Além disso, houve uma profusão de tipos de perigo, tanto concreto quanto abstrato, com ofensas claras a princípios clássicos do direito penal, como da subsidiariedade, fragmentariedade, intervenção mínima, taxatividade, lesividade e favor rei.
Também é fruto dessa escolha legislativa a subsidiariedade entre os crimes de perigo e de dano, como no caso do art. 132 do CP, que prevê pena de detenção de três meses a um ano para quem expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente, se o fato não constituir crime mais grave.
Como tendência do moderno direito penal e da política criminal, a imputação objetiva igualmente buscou analisar o incremento do risco na conduta do autor, diferenciando o risco proibido e o risco permitido. Seu desenvolvimento contou com contributos de Roxin, Jakobs, Frisch e Puppe.
Nos últimos anos, o legislador criou tipos penais extensos, dificultando seu enquadramento típico, com a finalidade de proteger novos bens jurídicos que despontaram com avanços tecnológicos. Muitas proposições tramitam no legislativo visando a criação de novos tipos penais, a maioria relacionadas a pautas ideológicas ou tecnologias informacionais. O parlamento possui um substancioso Manual de Técnica Legislativa, com minutas de proposições legais, seguindo o Manual de Redação da Presidência da República. Além disso, realiza concursos públicos para a contratação de consultores legislativos com as melhores remunerações do serviço público brasileiro. Alguns projeto de lei são elaborados ou referendados previamente por comissões de notáveis, formada por juristas de escol.
Inobstante todo esse aparato, causa perplexidade a falta de técnica legislativa em diversos projetos de lei penal que tramitam no parlamento, alguns dos quais alcançam a promulgação sem nenhum reparo. Cite-se como exemplo o PL 2630/2020, que criminaliza a propagação de notícias falsas, contando com tipos penais extremamente vagos e prolixos, em completa afronta ao princípio da taxatividade. O próprio projeto do Novo Código Penal sofre severas críticas de doutrinadores, como Miguel Reale Junior, por sua baixa qualidade técnica.
No dizer de Mauricio Stegemann Dieter, em texto de 2016, “há pouca dúvida sobre a incapacidade técnica do Legislativo brasileiro. Mesmo assim, impressiona a deficiência teórica de senadores e deputados federais quando o assunto é direito penal orientado por uma política criminal racional. Nas últimas três décadas o Legislativo aprovou mais de 115 leis com conteúdo penal. Isso significa que, de 1985 em diante, tivemos uma média de quase quatro leis penais por ano. Como resultado, além da ampliação genérica da competência punitiva do Estado, cerca de 550 crimes foram forçados em um sistema saturado. Essas novas hipóteses de criminalização revelaram-se, com raríssimas exceções, absolutamente desnecessárias – quando não simplesmente estúpidas demais para merecerem uma avaliação utilitária. Entre um sem-fim de exemplos valeria mencionar o terrível “molestamento de cetáceo” (Art. 1.º, Lei 7.643/87) e o “dano a planta ornamental” (Art. 49, Lei 9.605/98), sem falar na imperdoável “violação do registro de topografia de circuito integrado” (art. 54, Lei 11.484/2007) ou no execrável ato de “aquecer água de piscina com gás de cozinha” (Art. 1, II, Lei 8.176/91). Todas ações que, no entendimento da classe política, precisam ser combatidas com o máximo rigor da pena privativa de liberdade” (O excesso punitivo e mais um erro legislativo). Nestes seis anos desde a elaboração do texto citado, foram criados dezenas de novos tipos penais.
De outro giro, há crimes que reclamam um elemento subjetivo específico, como os crimes contra a honra e de terrorismo. Por fim, existem os crimes de tendência e de intenção. A extorsão mediante sequestro é exemplo do primeiro, bastando o sequestro para a consumação do crime. Neste caso, o recebimento da vantagem será mero exaurimento do crime. Já o toque do ginecologista é exemplo do segundo, que será considerado crime a depender da atitude pessoal e intenção anímica do profissional. A aplicação do dolo eventual em todos esses casos demanda enorme esforço mental no raciocínio jurídico.
Contudo, em princípio, todas essas condutas criminosas podem ser cometidas por dolo direito ou indireto, havendo ainda algumas previsões para a modalidade culposa. Contudo, o escopo deste trabalho se limitará ao exame do dolo eventual no crime de homicídio.
3-Entendimento dos tribunais superiores sobre o dolo eventual e as qualificadoras do homicídio.
Quanto as qualificadoras subjetivas, prevalece nas duas turmas do STJ o entendimento de que são compatíveis com o dolo eventual. No Habeas Corpus nº 504.202/RJ, julgado pela 5ª Turma em 4/6/2019, restou decidido que:
“A jurisprudência desta Corte reconhece a compatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras de ordem subjetiva, como o motivo torpe”.
Igualmente, no Recurso Especial nº 1.601.276/RJ, julgado pela 6ª Turma em 13/6/2017, restou decidido que:
“Não há incompatibilidade na coexistência da qualificadora do motivo fútil com o dolo eventual em caso de homicídio causado após pequeno desentendimento entre agressor e agredido. Com efeito, o fato de o recorrido ter, ao agredir violentamente a vítima, assumido o risco de produzir o resultado morte, aspecto caracterizador do dolo eventual, não exclui a possibilidade de o crime ter sido praticado por motivo fútil, uma vez que o dolo do agente, direto ou indireto, não se confunde com o motivo que ensejou a conduta”.
Por seu turno, quanto às qualificadoras objetivas, sua compatibilidade com o dolo eventual é objeto de intensa divergência. No STF, a questão não é enfrentada com a mesma frequência que no STJ, em virtude das diferenças de composição e competência entre as duas cortes. No entanto, conquanto mais antigos, é possível vislumbrar um embate entre os julgados oriundos do Pretório Excelso. O Habeas Corpus nº 95.136, julgado pela 2ª Turma do STF em 01/03/2011, restou assim ementado:
“Habeas Corpus. Homicídio qualificado pelo modo de execução e dolo eventual. Incompatibilidade. Ordem concedida. O dolo eventual não se compatibiliza com a qualificadora do art. 121, §2º, inc. IV, do CP (“traição, emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”). Precedentes. Ordem concedida”.
Por sua vez, no Habeas Corpus nº 111.442, julgado pela 2ª Turma do STF em 28/08/2012, houve corroboração deste entendimento, conforme a ementa abaixo:
“Habeas corpus. 2. Homicídio de trânsito. Embriaguez. Alta velocidade. Sinal vermelho. 3. Pronúncia. Homicídio simples. 4. Dolo eventual não se compatibiliza com a qualificadora do art. 121, § 2º, IV (traição, emboscada, dissimulação). 4. Ordem concedida para determinar o restabelecimento da sentença de pronúncia, com exclusão da qualificadora”.
De outro giro, no Habeas Corpus nº 166.526 em 05/08/2020, a 2ª Turma do STF promoveu uma viragem jurisprudencial, em julgamento unânime. Anteriormente, o caso havia sido decidido pela 5ª Turma do STJ, por meio do Habeas Corpus nº 579.208/SP, prevalecendo o entendimento pela compatibilidade entre o dolo eventual e o reconhecimento do meio cruel na conduta. Em parecer no Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República assim se manifestou:
“No caso, o veredito do Júri reconheceu que o paciente perseguiu a vítima com seu carro até prensá-la contra um muro, e que o dolo da conduta não estava direcionado diretamente para matá-la, mas sim para 'dar um susto'. Não obstante, o Júri admitiu que o paciente assentiu que poderia matar a vítima com essa ação, isto é, aceitou que esse resultado poderia acontecer e que de fato ocorreu. Dito isso, revela-se plenamente compatível o dolo eventual com a qualificadora do meio cruel, visto que o paciente assentiu que, com suas ações, poderia ter causado uma morte com sofrimento à vítima, sem piedade. Dessa forma, a qualificadora objetiva do meio cruel é plenamente compatível com o dolo eventual, na medida em que o dolo do agente, direto ou eventual, não exclui a possibilidade de envolver meio mais censurável para execução do crime”.
Em conclusão de julgamento, a 2ª Turma do STF acolheu esse entendimento de forma unânime, conforme constou do acórdão do HC 166.526:
“Sem adentrar o mérito da causa, mas para afastar eventual possibilidade de concessão da ordem de ofício, é de se anotar que no acórdão impugnado, ao se assentar a compatibilidade entre a qualificadora do meio cruel e o dolo eventual reconhecido pelo Conselho de Sentença, não incorreu em ilegalidade manifesta ou teratologia. O paciente ter assumido o risco de produzir o resultado morte, aspecto caracterizador do dolo eventual, não exclui a possibilidade de o crime ter sido praticado por meio cruel, meio mais reprovável, pois o dolo do agente, direto ou indireto, não se confunde com o modo pelo qual praticou sua conduta, não se afigurando evidente a apontada incompatibilidade”.
Também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, há intensa discussão acerca da possibilidade de conciliar o dolo eventual com as qualificadoras objetivas no crime de homicídio. No RHC 87.508/DF, julgado por maioria pela 5ª Turma em 23/10/2018, restou decidido que:
“Inexiste incompatibilidade entre o dolo eventual e o reconhecimento do meio cruel para a consecução da ação, na medida em que o dolo do agente, direto ou indireto, não exclui a possibilidade de a prática delitiva envolver o emprego de meio mais reprovável, como veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel”.
No Recurso Especial nº 1.573.829/SC, julgado pela 5ª Turma em 9/4/2019, esse entendimento foi novamente agasalhado. De outro giro, no AREsp 1682533/SP, julgado pela mesma 5ª turma em 19/5/2020, houve uma viragem jurisprudencial, desta feita em julgamento unânime, seguido por todos os integrantes do colegiado, nos seguintes termos:
“Conquanto a incidência da súmula nº 182 do STJ, verifico a ocorrência de constrangimento ilegal a ensejar a concessão de habeas corpus de ofício, tendo em vista a incompatibilidade entre o dolo eventual e as circunstâncias qualificadoras do perigo comum e do recurso que dificultou a defesa da vítima, previstas na parte final dos incisos III e IV do § 2º do artigo 121 do Código Penal. O agente, quando atua imbuído em dolo eventual, não quer o resultado lesivo, não age com a intenção de ofender o bem jurídico tutelado pela norma penal. O resultado, em razão da sua previsibilidade, apenas lhe é indiferente, residindo aí o desvalor da conduta que fez com o que o legislador equiparasse tal indiferença à própria vontade de obtê-lo”.
Por seu turno, no Recurso Especial nº 1.848.841/MG, julgado pela 6ª Turma do STJ em 2/2/2021, restou decidido que:
“A qualificadora de natureza objetiva prevista no inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal não se compatibiliza com a figura do dolo eventual, pois enquanto a qualificadora sugere a ideia de premeditação, em que se exige do agente um empenho pessoal, por meio da utilização de meio hábil, como forma de garantia do sucesso da execução, tem-se que o agente que age movido pelo dolo eventual não atua de forma direcionada à obtenção de ofensa ao bem jurídico tutelado, embora, com a sua conduta, assuma o risco de produzi-la”.
Por fim, em 15/06/2021, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp. nº 1.836.556, entendendo de forma igualmente unânime pela compatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras objetivas, desde que reste demonstrado que o autor delas se utilizou dolosamente como meio ou como modo específico mais reprovável para agir e alcançar outro resultado, mesmo sendo previsível e tendo admitido o resultado morte. Conforme constou na ementa do julgado:
“Aqueles que compreendem pela incompatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras objetivas do art. 121, § 2º, III e IV, do CP, escoram tal posição na percepção de que o autor escolhe o meio e o modo de proceder com outra finalidade, lícita ou não, embora seja previsível e admitida a morte. Tal posicionamento, retira, definitivamente do mundo jurídico, a possibilidade fática de existir um autor que opte por utilizar meio e modo específicos mais reprováveis para alcançar fim diverso, mesmo sendo previsível o resultado morte e admissível a sua concretização. Ainda, a justificativa de incompatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras objetivas, inexistência de dolo direto para o resultado morte, se contrapõe à admissão nesta Corte de compatibilidade entre o dolo eventual e o motivo específico e mais reprovável (art. 121, § 2º, I e II, do CP). Com essas considerações, elege-se o posicionamento pela compatibilidade, em tese, do dolo eventual também com as qualificadoras objetivas (art. 121, § 2º, III e IV, do CP)”.
Neste último julgado do STJ, a denúncia narrou que uma policial de folga teria efetuado um disparo de arma de fogo contra integrantes de uma festa, por conta do barulho que causavam, sem alvo individualizado, atingindo fatalmente uma das integrantes na cabeça. A decisão de pronúncia acatou o dolo eventual na conduta, porém, decotou as qualificadoras do art. 121, §2º, II, III e IV, do CP, pronunciando a acusada por homicídio simples, nos seguintes termos:
“Assim, uma vez que a descrição das qualificadoras contidas na denúncia, no presente caso, em verdade se presta à delimitação do próprio elemento subjetivo da conduta da acusada (e desta forma deverá constar do quesito a ser dirigido aos senhores jurados conforme constou do item anterior), por óbvio não se poderia admitir a formulação de indagações idênticas relativas às circunstâncias do art. 121, §2°, incisos II, III e IV, do CP, sob pena de bis in idem. Outrossim, não se pode admitir que outros elementos eventualmente presentes nos autos (e não descritos na denúncia) sejam utilizados a fim de justificar a imputação das circunstâncias qualificadoras, sob pena de violação ao princípio da correlação. Ante o exposto, entendo que as circunstâncias qualificadoras descritas pelos incisos II, III e IV, do §2°, do art. 121, do CP, devem ser decotadas da imputação, para que a acusada reste submetida a julgamento pela suposta infração ao art. 121, caput, do CP”.
Contra essa decisão foi interposto Recurso em Sentido Estrito ao TJPR, o qual rechaçou a qualificadora de impossibilidade de defesa da vítima, por ser incompatível com o dolo eventual, bem como excluiu a qualificadora de perigo comum, por falta de indícios. Conforme constou no acórdão do TJPR:
“Quanto à qualificadora do recurso que impossibilitou a defesa da vítima, esta, por entendimento jurisprudencial consolidado, inclusive nesta Câmara Julgadora, não se compatibiliza com o dolo eventual, por ausência de dolo de surpresa no ataque. Em relação a este pedido, observa-se que a jurisprudência do STF é uníssona no entendimento que não há que se falar na qualificadora da surpresa em casos de dolo eventual. Por fim, não se verifica indícios de que o disparo efetuado em direção aos integrantes da festa tenha resultado em perigo comum. Isso porque, a despeito de
parcela das testemunhas ter afirmado que foram desferidos mais de um disparo, fato é que só há indicação de que um foi direcionado aos participantes da festa, do que resulta lógico que somente uma pessoa poderia ser atingida pelo projétil”.
No recurso especial julgado pelo STJ, restou mantida a qualificadora de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, por ser compatível com o dolo eventual, assim como a qualificadora subjetiva do motivo fútil. Quanto à qualificadora de perigo comum, o STJ confirmou sua exclusão, nos termos abaixo:
“Assim, considerando ser possível condenação por homicídio cometido com dolo eventual nas formas qualificadas de ordem objetiva, bem como que entendimento contrário foi o único argumento do TJPR para rechaçar o uso de recurso que dificultou a defesa da vítima, o recurso especial deve ser provido neste ponto para incluir na pronúncia a qualificadora do art. 121, § 2º, III, do CP. O TJPR constatou indícios de que apenas um disparo apto a acertar única pessoa foi direcionado aos participantes
da festa, embora testemunhas tenham afirmado que ouviram mais de um disparo. A configuração do perigo comum por disparo de arma de fogo tem como pressuposto mais de um disparo direcionado aos presentes no local ou único disparo a eles direcionado com potencialidade lesiva apta para alcançar mais de um resultado, o que não foi constatado”.
Deveras, no tocante à qualificadora do perigo comum, no julgamento do Habeas Corpus nº 627.882/SP pela 6ª Turma do STJ em 2/3/2021, restou decidido que:
“Caso em que o Tribunal de origem manteve a qualificadora relativa ao perigo comum, tendo em vista o fato de que o pronunciado teria, ao adentrar em um bar, efetuado 12 disparos de arma de fogo”.
Logo, o disparo contra uma aglomeração de pessoas de apenas um projétil, com potencialidade lesiva para uma única vítima, como uma bala de revólver, não caracteriza a qualificadora do perigo comum. Diferentemente, o disparo de um projétil com capacidade de atingir mais de uma vítima, como os disparos de espingarda, configuram o perigo comum, sendo ainda essa qualificadora compatível com o dolo eventual.
No rito do Tribunal do Júri, somente se admite a exclusão de qualificadoras da pronúncia em grau de recurso quando forem manifestamente descabidas, sob pena de afrontar a soberania do Júri. Desta forma, o fato de a acusada ter efetuado apenas um disparo em direção aos integrantes da festa revela a improcedência manifesta da qualificadora do perigo comum, justificando sua exclusão em sede de recurso especial.
Conforme visto acima, sobressai a dificuldade da acusação em narrar separadamente as circunstâncias que delimitam a assunção do risco que caracterizam o dolo eventual e as qualificadoras do crime de homicídio, tal como determina o art. 41 do CPP. Isso porque, as circunstâncias fáticas que compõe o elemento subjetivo do dolo eventual muitas vezes se confundem com a justificativa das qualificadoras, impactando na quesitação aos jurados, que responderão perguntas idênticas para o elemento subjetivo da conduta e para as qualificadoras. Este procedimento pode configurar afronta ao princípio da vedação à dupla punição pelo mesmo fato. Como dito antes, o dolo eventual é deduzido das circunstâncias que cercam o fato, e não da análise psíquica do agente, cabendo à acusação expô-las separadamente. Não é incomum que essas mesmas circunstâncias sirvam para caracterizar as qualificadoras do homicídio.
A diferenciação é pertinentes, já que as sanções por homicídio simples ou qualificado possuem diferenças quantitativas e qualitativas. O preceito secundário do crime de homicídio simples prevê pena de até 20 anos de prisão. Como exemplo, no caso “Boate Kiss”, a sentença do Júri impôs aos condenados penas de 18 a 22 anos de prisão por homicídio simples, considerando o concurso formal, com exasperação da maior pena em um meio. No REsp. nº 1.790.039, o STJ entendeu que houve dolo eventual no caso da boate Kiss, nos seguintes termos:
“a afirmação segundo a qual os réus teriam agido com dolo eventual não implica dizer que eles tenham previsto a morte de 242 pessoas no incêndio e as lesões a outros 636 indivíduos, mas que estavam cientes de que, dadas as condições do local do acidente e do tipo de show – que contava com o uso de artifício pirotécnico pela banda presente na noite da tragédia –, produziram um incremento considerável do risco que os frequentadores da casa poderiam enfrentar”.
Conforme constou na sentença lavrada pelo Juiz-presidente:
“Notem que, num sistema de execução das penas como o brasileiro, não se está a estabelecer nenhuma demasia. Sendo a condenação por crimes que não ostentam a designação de qualificados, como assentei anteriormente, com 16 ou 25% das penas, consoante o entendimento a ser adotado pelo juízo das execuções acerca do elemento violência, na forma da redação atual do artigo 112 da Lei de Execução Penal, poderão os acusados, ora condenados, alcançaram progressão de regime, restabelecendo o convívio social, em algo que variará entre 2 anos, 10 meses e 21 dias, na mais branda das hipóteses – patamar de 16% para a menor pena aqui fixada – e 05 anos, 07 meses e 17 dias, na hipótese mais gravosa, isto é, considerada a mais elevada das reprimendas e o percentual mais elevado, de 25% para a progressão, sem contar, em qualquer caso, benefícios prisionais como a remição, com capacidade de diminuírem em praticamente um terço cada qual destes patamares”.
Aos quatro réus foi imputada na denúncia a prática de homicídios e tentativas de homicídio, praticados com dolo eventual, qualificados pelo uso de fogo, asfixia e torpeza. No entanto, as qualificadoras foram afastadas, e eles responderam por homicídio simples. Conforme informações do site do TJRS, “a existência ou não de dolo (quando o agente assume o risco de cometer o crime) ocupou o cerne dos debates ao longo de 8 anos. No dolo eventual, o indivíduo, mesmo tendo previsão do resultado, opta por praticar o ato. O autor prevê, admite e aceita o risco de produzi-lo (ele não quer, mas prevê o resultado e pratica). Para o Ministério Público, essa conduta se aplicaria aos 4 réus. Segundo o assistente de acusação ‘242 pessoas morreram por falta de iluminação para orientar a saída, de extintor de incêndio. Isso é o que traz o dolo. Não cumpriram uma obrigação legal de manter a proteção dos habitantes da boate à noite’”.
Como visto, a pena por homicídio simples, mesmo que em patamar elevado, possibilita uma série de benefícios ao réu. Já a punição por homicídio qualificado caracteriza sua hediondez, tornando o cumprimento da pena bem mais severo, ainda que a pena seja fixada no patamar mínimo de 12 anos. Atualmente, no caso de réu primário, condenado por crime hediondo com resultado morte, a progressão de regime somente ocorre após o cumprimento de 50% da pena, sendo vedado o livramento condicional, conforme o art. 112, VI, “a”, da Lei de Execuções Penais.
Em outro caso emblemático, no acidente de Brumadinho, que ocasionou a morte de 270 pessoas, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou o acidente indiciou 22 pessoas por homicídio com dolo eventual. Posteriormente, a Polícia Federal concluiu as investigações indiciando 19 funcionários por dolo eventual, mesmo entendendo que não houve previsão do acidente. Por fim, em 2020, o MPMG denunciou 16 pessoas por homicídio com dolo eventual.
Contudo, em 2021, o STJ decidiu enviar o caso para a Justiça Federal. Assim, a denúncia do MPMG terá que passar pelo crivo do MPF, que poderá referendá-la ou ofertar uma nova, tendo liberdade, como novo titular da ação penal, para aferir se houve ou não dolo eventual na conduta. Dado o princípio da correlação entre a denúncia e a sentença, a acusação, como regra, já aponta o dolo eventual na ação dos acusados, reservando o pleito de desclassificação para uma possível modalidade culposa do delito nas alegações finais, após a fase instrutória. Caso a denúncia já aponte conduta culposa e a instrução trouxer elementos do dolo eventual, deverá ser feito o aditamento da denúncia, procedendo-se à mutatio libelli do art. 384 do CPP, conforme decidido pelo STJ no REsp. nº 1.388.440.
A discussão sobre dolo eventual também se aplica no caso de cães ferozes, como pastor-alemão, rottweiler, dobermann e pitbull. Em caso ocorrido na cidade de Jundiaí, um cão pitbull matou uma criança de oito anos. O dono do animal foi denunciado por homicídio doloso. Segundo a denúncia, o acusado sabia da agressividade do animal, da animosidade que possuía contra crianças vizinhas e da capacidade de ataque mortal do cachorro, e ainda assim deixou o animal solto pela rua. Neste caso, os elementos fáticos comprovaram a previsão do resultado e assunção do risco de produzi-lo, sobressaindo o dolo eventual pela dedução das circunstâncias fáticas do crime.
Como visto, a definição da compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras do crime de homicídio, seja consumado ou tentado, tem especial relevância prática. A esse respeito, no Recurso Especial nº 1.791.278, julgado em 12/02/2019, o STJ entendeu que o dolo eventual é compatível com a modalidade tentada do crime de homicídio praticado na condução de veículo automotor.
Como exposto acima, no AREsp 1.682.533/SP, julgado em 19/05/2020, a 5ª Turma do STJ decidiu de forma unânime pela incompatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras do perigo comum e do recurso que dificultou a defesa da vítima. O caso concreto envolvia um acidente automobilístico, em que o acusado dirigia o veículo sob efeito de álcool.
Passados pouco mais de um ano desse julgamento, a mesma 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sem alterar sua composição, julgou o REsp. nº 1.836.556, em 15/06/2021, entendendo de forma igualmente unânime pela compatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras objetivas, desta feita em caso envolvendo um disparo de arma de fogo em direção aos integrantes de uma festa.
Sobre o tema, são pertinentes ainda os entendimentos exarados pelo STJ nos Habeas Corpus 656.689 e 678.195, e no Recurso Especial nº 1.922.058, todos de 2021, confluindo para posições divergentes. Em um dos casos, o agente conduzia o veículo em alta velocidade, em estado de embriaguez, fazendo zigue-zague na pista e dirigindo na contramão, com resultado morte, atraindo o dolo eventual na ação praticada. Nesta situação, a conduta ultrapassa a mera imprudência ao volante. No entanto, a compatibilidade com as qualificadoras objetivas, que descrevem os meios e modos da prática do crime, permanece indefinida.
É fácil perceber que as circunstâncias fáticas influenciam na adoção de uma ou outra tese jurídica pelas cortes superiores. No entanto, é necessário traçar critérios objetivos na imputação subjetiva. Como referido acima, o agente, quando atua imbuído em dolo eventual, não quer o resultado lesivo, não age com a intenção de ofender o bem jurídico tutelado pela norma penal. O resultado, em razão da sua previsibilidade, apenas lhe é indiferente, residindo aí o desvalor da conduta que fez com que o legislador equiparasse tal indiferença à própria vontade de obtê-lo.
4- Visão da doutrina nacional e estrangeira sobre o dolo eventual.
Sobre o tema, doutrina pátria busca contributos da doutrina estrangeira, em especial os aportes de estudiosos alemães. As contribuições para a definição do dolo contam com a contribuição de autores como Feuerbach, Reinhard Frank, Karl Engisch, Claus Roxin, Winfried Hassemer, Armin Kaufmann, Günther Jakobs, Rolf Dietrich Herzberg, Ingeborg Puppe, Luis Greco, Ramon Ragués I Vallès.
Este último, professor da Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona, discorre também sobre a ignorância deliberada, conhecida no Brasil como cegueira deliberada, oriunda do direito anglo-saxão. Segundo ele, a importação do conceito de ignorância deliberada ao direito continental, como o espanhol, traz problemas no encaixe dentro do modelo de imputação subjetiva, baseado na distinção entre imprudência e dolo. (La Ignorancia Deliberada en Derecho Penal, 2008, Atelier Libros S/A).
Ainda sobre a Cegueira deliberada, Artur Gueiros e Carlos Eduardo Japiassú prelecionam:
“Segundo Silva Sánchez, a concepção cognitivo-volitiva de dolo estaria sendo, paulatinamente, substituída, na doutrina mais avançada, por uma concepção puramente cognitiva. Por sua vez, o viés cognitivo do dolo permitiria, ainda, uma subdivisão, ou seja, de um lado, a manutenção de uma concepção ‘cognitivo-psicológica’ ou ‘descritiva’, por intermédio da qual o dolo seria um ‘dado psicológico’, um ‘estado mental’, a ser extraído das circunstâncias do caso concreto, e, de outro, uma concepção ‘cognitivo-normativa’, ou ‘adscritiva’, segundo a qual o dolo não possuiria existência real, sendo, tão somente, o ‘objeto de um juízo de imputação, cujo fundamento proviria de dados da experiência humana, estes, sim, constatáveis empiricamente’”. (Direito Penal, v. único, editora Atlas, 2018).
Andre Estefam Araujo Lima, Pedro Franco de Campos, Luis Marcelo Mileo Theodoro, Fabio Ramazzini Bechara, lecionam acerca dos elementos subjetivos da conduta, nos seguintes termos:
“Elementos subjetivos: dados de natureza anímica ou psíquica. Referem-se à intenção do agente. Não são perceptíveis concretamente, mas apenas examinando o que se passa na mente do agente. Como exemplo, para si ou para outrem (CP, art. 155). (Direito Penal Aplicado, Saraiva, 2013).
Um dos poucos a abordar diretamente a compatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras do crime de homicídio, Guilherme de Souza Nucci assevera que:
“Não há incompatibilidade. O elemento subjetivo do delito de homicídio é o dolo, em qualquer de suas espécies: direto ou eventual. Portanto, é viável que o agente assuma o risco de produzir o resultado morte (dolo eventual), motivado pela torpeza, futilidade ou ânsia de assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro delito.
Embora seja rara a hipótese, não é impossível. Ilustrando, o sujeito pratica o homicídio assumindo o risco de que a vítima seja a testemunha de outro crime por ele cometido”. (Curso de Direito Penal, editora Forense, v. 2, Parte Especial, 2017).
Jamil Chaim Alves entende que o dolo eventual é compatível com a Violenta emoção. Assim, é possível que o agente, sob o domínio da violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima, venha a atacá-la, assumindo o risco de lhe causar a morte. O autor cita o seguinte exemplo: João, conduzindo veículo, é abalroado pelo automóvel de Paulo que, depois da manobra imprudente, faz-lhe gesto obsceno e busca se evadir. Dominado pela violenta emoção, João efetua disparo de arma de fogo querendo atingir o veículo de Paulo, mas vislumbrando a possibilidade de causar a sua morte. O autor compartilha a mesma opinião de Guilherme Nucci, entendendo possível o encaixe das qualificadoras no crime de homicídio praticado com dolo eventual. (Manual de Direito Penal-Parte Geral e Parte Especial, editora Juspodivm, 2022, pág. 786).
Discorrendo sobre o elemento subjetivo do crime de homicídio, Carlos alberto Garcete de Almeida pontua:
“Elemento subjetivo: exige o dolo, que é a vontade livre e consciente de praticar a conduta prevista no referido tipo, qual seja, matar alguém. Hans Welzel, na teoria do finalismo, tentou construir a existência de um dolo geral (dolus generalis) que poderia solucionar a dúvida em casos concretos de ações sucessivas do agente para o que haveria apenas um acontecer unitário da ação. O motivo não se confunde com a intenção. Esta se relaciona com a vontade de praticar a conduta prevista no preceito primário, utilizando de um ou mais atos. Aquele é o estado psíquico de praticar a conduta criminosa por razões variadas, que podem diminuir ou aumentar a reprimenda penal.” (Homicídio, editora Revista dos Tribunais, 2020).
Afora o dolo eventual, a imputação do resultado nos crimes culposos tem merecido a reflexão de boa parte da doutrina, tendo alguns autores procurado substituir o sistema tradicional, por outro, fundado no princípio do incremento do risco. Para Roxin, pioneiro nessa avaliação, o intérprete deve adotar o seguinte procedimento: a) examinar qual a conduta de todos esperada de acordo com os princípios do risco permitido; b) compará-la com a do agente, com o escopo de verificar se ele aumentou o risco ao bem. Constatando-se o incremento do risco, haverá culpa, de modo que o sujeito responderá pelo resultado produzido, se prevista a forma culposa; caso contrário, não haverá crime. Este procedimento pode esbarrar no critério de identificação do dolo eventual de Frank, adotado pelo CPB, conforme indicado acima.
Conforme os comentários de Nelson Hungria e Heleno Fragoso sobre as “fórmulas de Frank”, para a caracterização do dolo eventual:
“A primeira delas assim decide: a previsão do resultado como possível somente constitui dolo, se a previsão do mesmo resultado como certo não teria tido o agente, isto é, não teria tido o efeito de um decisivo motivo de contraste. É esta a fórmula denominada da teoria hipotética do consentimento, a que o próprio Frank acrescentou esta outra (chamada da teoria positiva do consentimento): se o agente diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, é responsável a título de dolo”. (Comentários ao Código Penal, volume. 1, editora GZ, 2018, pág. 122).
Por seu turno, no magistério de Francisco Dirceu Barros:
“A rigor, a expressão assumir o risco é imprecisa para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento (STJ-Resp. 192.049). André Estefam e Victor Eduardo Rios: ‘não se pode confundir culpa consciente com dolo eventual. Em ambos, o autor prevê o resultado, mas não deseja que ele ocorra; porém, na culpa consciente, ele tenta evitá-lo; enquanto no dolo eventual, mostra-se indiferente quanto à sua ocorrência, não tentando impedi-lo’. Há comportamentos perigosos imprescindíveis, que não podem ser evitados e, portanto, por seu caráter emergencial, tidos como ilícitos (sic). Mesmo arriscada, a ação deve ser praticada, e aceitos eventuais erros, dado que não há outra solução. Exemplo: médico que realiza uma cirurgia em circunstâncias precárias, podendo causar a morte do paciente. (Tratado Doutrinário de Direito Penal, editora JH Mizuno, Volume 1, 2ª edição, 2021, pag. 207)”.
Malgrado constar o termo “ilícitos” no excerto acima, entendemos que o autor pretendeu se referir ao termo “lícitos”. De fato, Karl Binding, ao estudar o crime culposo, dizia que, quanto mais imprescindível for um tipo de comportamento humano, maior será o risco que em relação a ele se deverá enfrentar, sem que disso possa resultar qualquer espécie de reprovação jurídica. Delimita-se, dessa forma, a linha divisória entre o crime culposo e os fatos impuníveis resultantes do risco juridicamente tolerado.
De outro giro, discorrendo sobre a congruência dos elementos subjetivos, Francisco Dirceu Barros preleciona:
“Todos os tipos dolosos exigem que haja uma congruência entre seus aspectos objetivo e subjetivo. Esta congruência nem sempre é da mesma entidade: há tipos dolosos que requerem unicamente que seu aspecto subjetivo contenha o querer a realização do tipo objetivo (que é o dolo). Assim, o homicídio do art. 121 do CP requer apenas que o autor queira a morte de um homem. Mas o tipo do art. 121, §2º, V, do CP, exige, além da vontade de matar, que é o dolo, isto é, o querer a realização do tipo objetivo, que se o faça ‘para assegurar a execução, a impunidade ou vantagem de outro crime’. (Tratado Doutrinário de Direito Penal, editora JH Mizuno, Volume 1, 2ª edição, 2021, pag. 201)”.
Por fim, diferenciado o dolo eventual da culpa consciente, Francisco Dirceu Barros pondera:
“Inicialmente, é necessária a lição de Juarez cirino dos santos, afirmando que a definição de dolo eventual e sua distinção da imprudência consciente, como conceitos simultaneamente excludentes e complementares, é uma das mais controvertidas e difíceis questões de direito penal. A culpa consciente limita-se com o dolo eventual (art. 18, I, parte final, do CP). A diferença é que, na culpa consciente, o agente não quer o resultado nem assume deliberadamente o risco de produzi-lo. Apesar de sabe-lo possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução. No dolo eventual, o agente não só prevê o resultado danoso como também o aceita como uma das alternativas possíveis. (Tratado Doutrinário de Direito Penal, editora JH Mizuno, Volume 1, 2ª edição, 2021, pag. 204)”.
Associando o dolo eventual à escolas penais, Cristiano Rodrigues preleciona:
“Podemos afirmar que o dolo eventual nitidamente tem características causalistas, pois nele, como não há intenção de se produzir um resultado, o crime irá se caracterizar apenas quando o resultado previsto pelo agente vier a ser causado. Sendo assim, diferentemente do dolo direto, característico do finalismo (intenção), no dolo eventual o agente não quer, mas apenas aceita, o resultado, logo, não se pode tipificar a conduta com base na finalidade dele ao agir, devendo-se vincular a existência do crime à concreta produção do resultado previsto, e somente se este efetivamente for causando pela conduta praticada”. (Manual de Direito Penal, editora Foco, 2019, pág. 180)
Discorrendo sobre o princípio da referibilidade do fato ao autor, Giuseppe Bettiol e Rodolfo Bettiol asseveram:
“Mas o que é o dolo? Não há dúvida que ele seja um forma que assume o liame psicológico entre a mens auctoris e o fato do reato. Diz-se sob este perfil que o dolo é uma combinação de atividade intelectiva e de atividade volitiva: ele é a previsão e a voluntariedade da ação e do evento constitutivo de um reato. Quando um sujeito opera com uma clara visão das consequências do agir e deseja as consequências mesmas, age no dolo. (...) Na responsabilidade por culpa deve sempre subsistir um nexo psicológico entre a ação imprudente e o evento lesivo: este é dado pela previsão ou, quando não, pela previsibilidade do evento. Previsão, quando o evento foi previsto pelo sujeito agente, que também operou confiando que o evento não teria se verificado e, portanto, sem aceitar o risco do mesmo evento (a diferença do dolo eventual onde o agente fica indiferente acerca da verificação do evento ou aceita seu risco); previsibilidade quando o autor, mesmo sem ter efetivamente previsto, se encontra na impossibilidade de prever as consequências do operar nas condições histórico-ambientais nas quais realizou a ação de risco.” (Instituições de Direito e Processo Penal, editora Pillares, 2008, pág. 122).
Em substanciosa análise, perscrutando os elementos do dolo, Cezar Roberto Bitencourt discorre:
“A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo direto, como seus elementos constitutivos, também devem estar presentes no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado, como sustentaram os
defensores da teoria da probabilidade. É indispensável uma determinada relação de vontade entre o resultado e o agente, e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa. Com todas as expressões — aceita, anui, assume, admite o risco ou o resultado — pretende-se descrever um complexo processo psicológico em que se misturam elementos intelectivos e volitivos, conscientes e inconscientes, impossíveis de ser reduzidos a um conceito unitário de dolo. No entanto, como a distinção entre dolo eventual e culpa consciente paira sob uma penumbra, uma zona gris, é fundamental que se estabeleça com a maior clareza possível essa região fronteiriça, diante do tratamento jurídico diferenciado que se dá às duas categorias. O dolo eventual não se confunde com a mera esperança ou simples desejo de que determinado resultado ocorra, como no exemplo trazido por Welzel, do sujeito que manda seu desafeto a um bosque, durante uma tempestade, na esperança de que seja atingido por um raio. No entanto, se o agente não conhece com certeza os elementos requeridos pelo tipo objetivo, mas, mesmo na dúvida sobre a sua existência, age, aceitando essa possibilidade, estará configurado o dolo eventual.
Sinteticamente, procura-se distinguir o dolo direto do eventual, afirmando-se que “o primeiro é a vontade por causa do resultado; o segundo é a vontade apesar do resultado”. Frank, em sua conhecida teoria positiva do conhecimento, sintetiza a definição de dolo eventual, nos termos seguintes: “se o agente diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso, não deixo de agir, é responsável a título de dolo eventual”. No entanto, nosso Código equiparou-os quanto aos seus efeitos, nos precisos termos da Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, da lavra do Ministro Francisco Campos, in verbis: “O dolo eventual é, assim, plenamente equiparado ao dolo direto. É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu advento.
Especiais motivos de agir: o motivo impulsiona, a intenção atrai. Os motivos constituem a fonte motriz da vontade criminosa. Como afirmava Pedro Vergara, ‘os motivos determinantes da ação constituem toda a soma dos fatores que integram a personalidade humana e são suscitados por uma representação cuja ideomotricidade tem o poder de fazer convergir, para uma só direção dinâmica, todas as nossas forças psíquicas’. Essas elementares constitutivas do tipo, necessariamente, devem ser abrangidas pelo dolo, mesmo que não se realizem, sendo suficiente que orientem a conduta do agente”. (Tratado de Direito Penal, v. 1, Parte Geral, editora Saraiva, 17ª edição, 2012.)
De outro giro, discorrendo sobre o dolo eventual no crime de homicídio, César Roberto Bitencourt assevera:
“O fundamental é que o dolo eventual apresente estes dois componentes: representação da possibilidade do resultado e anuência à sua ocorrência, assumindo o risco de produzi-lo. Enfim, como sustenta Wessels, haverá dolo eventual quando o autor não se deixar dissuadir da realização do fato pela possibilidade próxima da ocorrência do resultado e sua conduta justificar a assertiva de que, em razão do fim pretendido, ele se tenha conformado com o risco da produção do resultado ou até concordado com a sua ocorrência, em vez de renunciar à prática da ação. Duas teorias, fundamentalmente, procuram distinguir dolo eventual e culpa consciente: teoria da probabilidade e teoria da vontade ou do consentimento. A primeira, diante da dificuldade de demonstrar o elemento volitivo, o querer o resultado, admite a existência do dolo eventual quando o
agente representa o resultado como de muito provável execução e, apesar disso, atua, admitindo ou não a sua produção. No entanto, se a produção do resultado for menos provável, isto é, pouco provável, haverá culpa consciente. Para a segunda, é insuficiente que o agente represente o resultado como de provável ocorrência, sendo necessário que
a probabilidade da produção do resultado seja incapaz de remover a vontade de agir. Haveria culpa consciente se, ao contrário, desistisse da ação se estivesse convencido da probabilidade do resultado. No entanto, não estando convencido, calcula mal e age, produzindo o resultado”. (Tratado de Direito Penal, v. 2, Parte Especial, editora Saraiva, 17ª edição, 2012).
Por sua vez, Artur Gueiros e Carlos Eduardo Japiassú fazem importante colocação sobre o desenvolvimento histórico do tema, nos termos seguintes:
“Sobre o descobrimento do tipo subjetivo: Por conta das tendências neokantistas ou teleológicas, a noção de tipo objetivado e avalorado de Beling – isto é, do tipo puramente descritivo, descrevendo uma conduta criminosa como se estivesse descrevendo o funcionamento de uma máquina ou a planta de um imóvel – foi seriamente questionada.
Max Ernst Mayer e Edmund Mezger, dentre outros, evidenciaram que, em muitos casos concretos, não apenas a culpabilidade, mas a própria tipicidade do fato dependia da aferição da vontade do autor. Ou, em outros termos, da análise de elementos subjetivos especiais. Em suma, saber-se de qual delito se trata tipicamente, exigia, não raro, análise de elementos intra-anímicos.
A parte cognitiva, isto é, a consciência, deve ser atual, efetiva, ao
contrário da consciência da ilicitude, que pode ser potencial. A consciência do dolo abrange a representação dos elementos integradores do tipo penal, ficando fora dela a consciência da ilicitude, que está deslocada para o interior da culpabilidade (é o conhecimento das circunstâncias necessárias à composição da figura típica). O momento volitivo pressupõe a previsão fática (aspecto cognitivo), abrangendo, pois, a conduta (ação ou omissão), o resultado e o nexo causal. Como lembra Ingeborg Poppe, a vontade se constitui somente no fato e com o fato. A previsão sem vontade é algo completamente inexpressivo, indiferente ao Direito Penal, e a vontade sem representação, sem previsão, é absolutamente impossível. O dolo como simples resolução é penalmente irrelevante, visto que o Direito Penal não pode atingir ao puro ânimo. Somente nos casos em que conduza a um fato real e o governe, passa a ser penalmente relevante.” (Direito Penal, v. único, editora Atlas, 2018).
André Estefam aponta as diferenças entre culpa consciente e dolo eventual nos seguintes temos:
“Não se pode confundir culpa consciente com dolo eventual. Em ambos, o agente prevê o resultado, mas não deseja que ele ocorra; porém, na culpa consciente, ele tenta evitá-lo, enquanto no dolo eventual mostra-se indiferente quanto à sua ocorrência, não tentando impedi-lo. Assim, por exemplo, se o praticante de tiro ao alvo efetua o disparo, mesmo percebendo que há uma pessoa próxima do local, mas erra a mira e mata o indivíduo (pois confiou levianamente em sua pontaria), teremos culpa consciente. Se, nas mesmas circunstâncias, o sujeito atira sem se importar em atingir e matar a pessoa, pensando “se morrer, morreu”, haverá dolo eventual”. (Direito Penal. Parte Especial, editora Saraivajur, 5ª edição, 2018).
Segundo o escólio de Juarez Cirino dos Santos:
“O dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado – às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita; imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado, etc. na realização concreta da ação”. (Direito Penal, editora Tirant Brasil, 2020, pág. 143).
Conforme tradicional entendimento jurisprudencial, exarado pelo STJ no Recurso Especial, 1043279/PR em 2008:
“Considerando que o dolo eventual não é extraído da mente do acusado, mas das circunstâncias do fato, na hipótese em que a denúncia limita-se a narrar o elemento cognitivo do dolo, o seu aspecto de conhecimento pressuposto ao querer (vontade), não há como concluir pela existência do dolo eventual. Para tanto, há que evidenciar como e em que momento o sujeito assumiu o risco de produzir o resultado, isto é, admitiu e aceitou o risco de produzi-lo. Deve-se demonstrar a antevisão do resultado, isto é, a percepção de que é possível causá-lo antes da realização do comportamento”.
Como visto, a jurisprudência tradicionalmente se posiciona no sentido de existir dolo eventual na conduta do agente responsável por graves crimes praticados na direção de veículo automotor. Esta escolha tem por base as diversas campanhas educativas realizadas, demonstrando os inúmeros riscos da direção ousada e perigosa, como ocorre no racha e no excesso de velocidade praticados em via pública. Tais advertências são suficientes para esclarecer motoristas da vedação legal de tais comportamentos, bem como dos resultados nefastos que são ordinariamente causados. E, ainda assim, se o agente continua a agir de forma imprudente, revela a sua indiferença com os bens coletivos, seu desprendimento com a vida e a integridade corporal alheia, sendo-lhe imputável o crime a título de dolo.
Quanto ao homicídio praticado na direção de veículo automotor, em decorrência do estado de embriaguez, a análise da situação concreta é o norte para a correta tipificação da conduta. Assim, o indivíduo que nem sequer tem condições para andar, por óbvio não pode se aventurar na direção. Se o fizer, não é justo que lhe seja atribuída a mera violação de um dever objetivo de cuidado. Ao revés, é justo que se entenda pela assunção do risco de produção do resultado danoso.
Analisando os elementos anímicos da conduta, Francisco Muñoz Conde esclarece:
“Com a categoria do dolo direto não se podem abarcar todos os casos nos quais o resultado produzido, por razões de política criminal, deva ser imputado a título de dolo, ainda que o querer do sujeito não esteja referido diretamente a esse resultado. Fala-se aqui de dolo eventual. No dolo eventual o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas “conta com ele”, “admite a sua produção”, “assume o risco” etc. Com todas essas expressões pretende-se descrever um complexo processo psicológico no qual se mesclam elementos intelectivos e volitivos, conscientes ou inconscientes, de difícil redução a um conceito unitário de dolo ou culpa. O dolo eventual constitui, portanto, a fronteira entre o dolo e a negligência ou a culpa e dado o diverso tratamento jurídico de uma ou outra categoria é necessário distingui-las com a maior clareza”. (Teoria Geral do Delito, editora Safe, 2004, pág. 60).
O dolo eventual é admitido em todo e qualquer crime que seja com ele compatível, devendo ser detalhadamente descrito na peça acusatória. Porém, existem hipóteses em que o próprio tipo penal exige o dolo direto, sendo insuficiente a mera assunção do risco de produzir o resultado. De igual modo, parcela da doutrina entende que o dolo eventual deve ser valorado de forma mais branda que o dolo direto. Nesse sentido, o magistério de Paulo César Busato:
“É evidente que, em uma estrutura de desvalor criminal, a atitude de quem age com dolo eventual, embora leviana, não é agressiva e, a despeito de que não haja diferença técnica entre as distintas classes de dolo no que tange à imputação, a mensuração da pena, em função da incidência do princípio da culpabilidade, obrigatoriamente diferenciará entre as classes de dolo”. (Direito penal, v. 1, Parte Geral, editora Atlas, 5ª edição, 2020).
O exame dos critérios para configuração do dolo eventual recebe contributos da teoria da ação. Neste tema, sobressai os estudos atuais sobre a ação significativa. A esse respeito, Pedro H. C. Fonseca preleciona:
“A ação significativa não é baseada na ideia de ação decorrente da intenção do agente. Não é fruto da interpretação normativa, nem decorre da existência ontológica. A ação significativa é produto da interpretações decorrentes de regras sociais impostas por participantes que fazem parte de um contexto socialmente lastreado. Existe ato de fé dos participantes da interpretação das regras e da ação. (Direito penal e ação significativa, editora Foco, eª edição, 2021, pág. 103)”.
Sobre o tema, Tomás Salvador Vives Antón, citado por Pedro Fonseca, assim preleciona:
“A liberdade de ação constitui, como implicitamente demonstrado até agora, o ponto de união entre a doutrina da ação e da norma: pois somente se os movimentos corporais não estiverem inteiramente regulados por leis causais, somente se houver margem de indeterminação que permita falar de ações distintas dos fatos naturais, podem pretender, por sua vez, que estas sejam regidas por normas. A análise das normas como algo distinto da investigação das leis da natureza somente tem sentido com a pressuposição da liberdade de ação, que converte, assim, no pressuposto sobre o que, necessariamente, gera a sistemática. (Direito penal e ação significativa, editora Foco, eª edição, 2021, pág. 102)”.
Logo, a ação, a norma e a liberdade de ação são estruturantes da teoria do delito, quando se pretende inserir conteúdo democrático na dogmática penal, conforme assevera Pedro Fonseca:
“A teoria da ação significativa coloca a análise da linguagem aos elementos da teoria do delito. Não existe dúvida que a ação tem absoluta importância na composição da teoria do delito. Do causalismo em diante, verificou-se a importância da ação na estrutura dogmática, uma vez que foi identificada como ponto fundamental da teoria do delito. A teoria finalista teve expressividade quanto a consideração da ação finalista no âmbito da teoria do delito. (...) Verifica-se que o nexo causal é estabelecido na mente do intérprete, que busca dar sentido ao acontecimento, levando em conta o plano linguístico do seu significado. Não se leva em conta o nexo causal sob o plano empírico, naturalístico. O significado do aspecto causal é destacado pela interpretação da conduta do agente. (Direito penal e ação significativa, editora Foco, 2ª edição, 2021, pág. 99)”.
Como visto, o dolo eventual deve se encaixar nos elementos componentes da teoria do delito, como a ação, os elementos subjetivos específicos e as qualificadoras. Nesse sentido, seria possível falar em dolo específico eventual.
Segundo apontamos em outro trabalho:
“A teoria causal da ação deve sua elaboração a Liszt, Beling e Radbruch. No entanto, sua base repousa nos escritos do filósofo austríaco Franz Bretano, que já em fins do século XIX procurava diferenciar os fenômenos psíquicos dos físicos, atribuindo aos primeiros a característica da intencionalidade, concepção ajustada à psicologia associativa da época. Para Bretano, diversamente do que ocorre com os fenômenos físicos, todo ato psíquico aponta para um objeto: pensar é pensar algo, querer é querer algo. Desta forma, reelaborando a noção de intencionalidade, tomada de empréstimo aos escolásticos, a erige em atributo necessário de todo e qualquer verdadeiro ato psíquico. E com isso veio a exercer importante influência sobre os filósofos Husserl e Heidegger.
A ideia de ‘intencionalidade’ de Bretano foi utilizada na teoria da ação, na forma de uma causalidade dirigida. Posteriormente, foi transmudada para ‘finalidade’ na teoria finalista da ação, de Hans Welzel em 1931 (Princípios Básicos de Direito Penal, Francisco de Assis Toledo, 5ª edição, 1994, p.94).
De outro giro, as teorias atuais sobre o dolo recebem influxos de estudos neurocientíficos. A figura do dolo é debatida há milênios, desde a Grécia clássica e o antigo império romano, com o dolus malus. A vertente tradicional entende o dolo como a consciência e vontade no agir delituoso. No entanto, as atuais teorias acerca do dolo o despem de seu elemento volitivo, persistindo somente o seu elemento cognitivo. Wolfgang Frisch é um dos principais teóricos do dolo puramente cognitivo, entendendo desnecessário analisar a vontade do agente na conduta criminosa.
No fresco ‘A criação de Adão’, na capela sistina, Adão possui livre arbítrio para estender o dedo e tocar a mão de Deus. Essa noção de livre arbítrio está na raiz do moderno direito penal, e tem sido posta em cheque por experimentos de ressonância magnética de até 7 teslas (Neurociência e Direito penal, 2014, Paulo Cesar Busato). Atualmente, esses experimentos são conduzidos por ímãs de 10,5 teslas, com peso equivalente a três aviões Boeing 737. (NLL, LIA e CP, Comentários à Nova Lei de Licitações, Lei de Improbidade Administrativa e Parte Geral do Código Penal. Leonardo Rodrigues Arruda Coelho, editora DIN.CE, 2022, pág. 167)”.
Comentando o crime de terrorismo, Paulo Cézar Busato adverte:
“A finalidade específica contida no tipo é definida pela doutrina como elemento subjetivo específico, dolo específico, pretensão conceitual de relevância (Paulo César Busato) ou elementos subjetivos do tipo distintos do dolo (Zaffaroni e Pierangeli). Uma rápida análise na Parte Geral do Código Penal revela o constante uso dessas finalidades específicas nas definições legislativas criminais. Embora seja apurado que apenas o recém editado delito do art. 180-A contenha o termo ‘com a finalidade de’ (incluído pela Lei nº 13.330/2016), modalidade qualificada de receptação com tutela de animais semoventes, outras conjunções subordinativas finais podem aparecer. Deste modo, verifica-se existirem vinte e cinco tipos penais que utilizam a expressão ‘com o fim de’, cinco tipos com a terminologia ‘com o intuito de’ e quatro tipos penais com os vocábulos ‘com intuito de’. Assim, embora possa se afirmar que com o acolhimento da teoria finalista pela Reforma de 1984, essa diferenciação terminológica perderia sentido diante da constatação de que toda e qualquer ação é uma ação final, nota-se a constante atribuição legislativa à finalidade específica de condutas criminais. Na prática, como bem alertam Martinelli e Bem, isso resulta em afirmar que cumprirá ao representante do Ministério Público provar esse especial momento anímico. (Lei Antiterror Anotada, editora Foco, 2016, págs. 31/32)”.
Sobre a incriminação dos atos preparatórios do terrorismo, em comparação com a tipificação dos atos preparatórios do crime de falsificação de moeda, Paulo César. Busato adverte:
“A situação do tipo penal do art. 5ª da Lei nº 13.260/2016 é diferente. Não se define absolutamente qual é a conduta incriminada. Ao contrário, recorre-se a um conceito técnico-jurídico impreciso para estabelecer o âmbito da incriminação de modo que simplesmente não se sabe o que é incriminado. Sim, pois o aparente núcleo do tipo é realizar, que não é capaz de traduzir absolutamente nada desvinculado de seu objeto. Ao ser um verbo transitivo direto, é preciso avaliar que quem realiza deve realizar algo. Este algo seriam atos preparatórios. No entanto, atos preparatórios é uma expressão que em nada pode esclarecer o conteúdo do núcleo do tipo, por ser ela própria uma expressão que pode traduzir uma multiplicidade de coisas. (Lei Antiterror Anotada, editora Foco, 2016, pág. 90).
Questão de relevo reside na análise acerca da possibilidade de crime passional com dolo eventual. No homicídio passional não existe vinculação lógica entre distúrbios de personalidade e capacidade de entender e querer. No crime passional, em que se desenvolve a violenta emoção, não existe prejuízo nas dimensões neuropsicológica e epistemológica da consciência. Os aspectos afetivos e cognitivos da consciência mantêm-se inalterados no cometimento do crime. O prejuízo nessa modalidade de homicídio situa-se quanto ao aspecto ético da consciência.
Assim, o autor de crime passional, logo imputável, deve ser punível, apesar da atenuante ou da redução de pena prevista. Em que pese a ciência das regras e normas e a necessidade de se comportar de acordo com elas, falta ao agente o domínio ético sobre suas próprias decisões. Isso sugere a necessidade de uma avaliação criteriosa de cada caso, ao se definir a imputabilidade penal. No entanto, nada impede a configuração do dolo eventual com a violenta emoção, podendo configurar o homicídio privilegiado com dolo eventual.
Em importante contribuição doutrinária, Juarez Cirino dos Santos faz alusão à dimensão temporal do dolo. (Direito penal. Parte Geral, 9ª edição, 2020, editora Tirant Brasil, pág. 166). De fato, para se falar em comportamento doloso, é indispensável que a valoração da atitude mental do indivíduo seja limitada pelo momento de realização da conduta típica. Por essa razão, o conhecimento ou vontade anterior (dolus antecedens) ou os atos posteriores (dolus subsequens) à realização da conduta não devem ser levados em consideração para determinar o nível de imputação subjetiva.
Por sua vez, Juarez Tavares discorre sobre os modelos performáticos. Esses modelos possuem origem na filosofia analítica (Weber; Wittgenstein; Habermas). A performatividade decorre dos “atos de fala” (Austin). Exigem de seus autores um posicionamento dinâmico em face do espaço e tempo em que se realizam. O sentido da conduta será definido a partir da dinâmica contextual (conjunto social). Assim, a ação performática é uma ação dinâmica, que não pode estar separada do contexto e de outros participantes.” (Fundamentos de Teoria do Delito, editora Tirant Brasil, 3ª edição, 2020, Pag. 147).
De outro giro, João Paulo Orsini Martinelli e Leonardo Schmitti de Bem discorrem sobre a crise do conceito volitivo do dolo e adoção do dolo puramente cognitivo. (Direito Penal. Lições Fundamentais: Parte Geral, editora D’Plácido, 6ª edição, 2021, págs. 588/590).
Ingeborg Puppe enfrenta a polêmica sobre as teorias que querem realizar a distinção entre o dolo e a culpa com base em sutilezas de índole interna, propondo que o critério de distinção seja a qualidade do perigo. (A Distinção Entre Dolo e Culpa, editora Manole, 2004).
Enéas Xavier Gomes explora a prescindibilidade da vontade psicológica para a configuração do dolo e a proeminência da vontade normativa, estabelecendo critérios para a aferição normativa dos elementos subjetivos especiais. O elemento volitivo do dolo tradicionalmente se baseia no espectro psicológico. Para a concepção psicológica, a vontade é aferida partindo-se da averiguação de fenômenos psíquicos que existem na mente do sujeito ativo no momento da conduta, projetados sobre uma realidade que ocorreu no passado. O referido autor refuta essa associação, compreendendo a vontade como um sentido atributivo-normativo. (Dolo Sem Vontade Psicológica: Perspectivas de aplicação no Brasil, 2017, editora D'Plácido, pág. 168).
Estudos recentes debatem as teses volitivas e cognitivas do dolo. Estas últimas se dividem em cognitivas subjetivas e objetivas. Nesse sentido, o dolo possui como elementos o saber e o querer. O saber é um processo mental. Debate-se, igualmente, sobre a utilização de verbos psicológicos e os processos interno e externo que delimitam uma ação voluntária, a fim de definir se realmente é possível se falar na existência de uma intenção natural. (Dolo e Direito Penal. Modernas Tendências, editora Tirant Brasil, 2019, pág. 129).
Para Wagner Marteleto Filho, o dolo eventual é a forma mais básica do dolo. O autor explora as nuances do dolo no famoso caso da correia de couro, de 1955, julgado pelo Tribunal Supremo Federal da Alemanha. Neste caso, dois indivíduos, visando roubar um comerciante, apertaram seu pescoço com uma correia até que desfalecesse, sem intenção de matá-lo. Após a subtração, tentaram reanimá-lo, mas já estava morto. O autor discorre ainda sobre a co-consciência, a dolosidade e os critérios fenomenológicos de classificação do risco, com associação entre o perigo desprotegido e o perigo doloso, propondo um catálogo de indicadores para aferição da conduta dolosa. (Dolo e Risco no Direito Penal. Fundamentos e Limites para a Normativização, 2020, editora Marcial Pons, 2020, pág. 447). Outros casos célebres de análise do dolo são o “caso do cão hidrófobo” e o “caso Thomas”, de 1875.
A professora da Universidade de Bonn, na Alemanha, Ingeborg Puppe, é famosa por sua abordagem de casos práticos. Ela fez duas apresentações em São Paulo, debatendo casos vinculados à imputação do resultado e à comprovação do dolo, como conceito tipológico e normativo. Nesse sentido, Puppe explora em seus escritos a aceitação do resultado como juízo atributivo sobre o comportamento do agente, tal como no caso da barraca de tiros de Lacman, citado por Welzel. Neste caso, um homem aposta que acerta um tiro em um copo de cristal na mão de uma garota, ciente suas habilidades de atirador profissional. Contudo, acaba acertando a garota. Entende-se que o agente aceitou o risco de produzir o resultado morte. (Estudos sobre Imputação Objetiva e Subjetiva no Direito Penal, editora Marcial Pons, 2019, pág. 76).
Por fim, Denis Sampaio e Orlando Faccini Neto examinam a fundo a indiferença e o indiferente no Direito Penal, que caracterizam a conduta com dolo eventual. (Temas Criminais. A Ciência Do Direito Penal Em Discussão, editora Livraria do Advogado, 2014).
5-Conclusão
O presente trabalho explorou a compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras do crime de homicídio, em especial da qualificadoras objetivas. Foram expostos os dilemas enfrentados pela jurisprudência e pela doutrina nacional e estrangeira na delimitação do conceito de dolo eventual, e dos critérios que balizam sua aplicação. Não se adentrou sobre questões relacionadas ao livre arbítrio e determinismo, pois vinculadas ao dolo direito. O escopo do trabalho foi discorrer sobre as diversas nuances do dolo eventual.
A esse respeito, considerando a intensa divergência sobre seu conceito, não é demasiado indagar: O instituto do dolo eventual existe como entidade ontológica, tendo contornos próprios, ou é apenas um truque para controle das ações humanas? Um analogia com a matemática pode esclarecer a indagação.
Por séculos, os números complexos foram tidos apenas como uma mera ferramenta matemática para simplificar cálculos extensos. Descartes não acreditava na sua existência real. No entanto, segundo o matemático Leopold Kronecker, que viveu no século XIX, “Deus fez os números inteiros, o resto é trabalho do homem”. Nesse sentido, os números reais são tão imaginários como os números imaginários, pois são apenas conjuntos numéricos que servem de ferramenta para facilitar as operações matemáticas, sem possuir um significado intrínseco.
Por sua vez, no âmbito da aplicação física, assumia-se que os números complexos eram apenas um truque matemático para facilitar a descrição dos fenômenos físicos, como as rotações. Logo, apenas os resultados expressos em números reais tinham algum significado físico real. Atualmente, comprovou-se que os números complexos são fundamentais para distinguir estados físicos, representado situações reais da natureza. Assim, apesar de não servirem intuitivamente para contar objetos, os números imaginários modelam entidades físicas reais que não podem ser representadas adequadamente por outros conjuntos numéricos.
De igual modo, a alegoria pode ser aplicada ao dolo eventual, que não passa de uma ferramenta utilizada pela linguagem para estabelecer os contornos da conduta humana e mensurar sua reprovação. Nesse sentido, o dolo direto não é mais real que o dolo eventual, sendo ambos signos criados pelo intelecto humano para conformar a vida em comunidade. No entanto, assim como os números inteiros são intuitivos, o dolo direto é de fácil visualização prática em comparação com o dolo eventual, já que o querer é um sentimento facilmente perceptível à intuição humana, ao contrário da indiferença, que deve ser deduzida das circunstâncias. Parafraseando Kronecker, “Deus criou a vontade, o resto é produto do homem”.
Assim, é preciso estabelecer parâmetros objetivos para o correto manejo do dolo eventual enquanto categoria jurídica utilizada como ferramenta de controle democrático das ações humanas. Como visto, a sua incidência ou não no caso concreto, bem como sua compatibilidade com circunstâncias qualificadoras, fazem enorme diferença na imputação e reprovação da conduta, além de ter repercussões em aspectos processuais e de execução da pena.
A falta de critérios objetivos para o dolo eventual gera enormes distorções na prática forense, principalmente em capitulações realizadas em sede de investigação criminal. No bojo de inquéritos policiais, onde não há contraditório, atribui-se dolo eventual à conduta do investigado de forma aleatória, pesando sobre ele a pecha da voluntariedade da ação por um longo período, até que sobrevenha a denúncia e a resposta à acusação, quando então seu encaixe passa por uma análise mais acurada. Nesse sentido, é essencial estabelecer critérios objetivos no tipo subjetivo, como discorre Luís Greco (As Razões do Direito Penal. Quadro Estudos, editora Marcial Pons, 2019, 1ª edição, pág. 88).
Impasse semelhante era observado com o enquadramento no concurso de crimes, em que se adotava aleatoriamente o cúmulo material, chegando a penas elevadíssimas, sem nenhum critério. Após o contraditório, as condutas se encaixavam no sistema de exasperação, revertendo as penas a patamares razoáveis.
Urge que os tribunais superiores exerçam seu papel de pacificar o entendimento acerca deste tema, que impacta diuturnamente na prática forense, possibilitando uma atuação democrática dos órgãos incumbidos da persecução penal, com a garantia de segurança jurídica aos cidadãos.
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Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. Homicídio qualificado com dolo eventual. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 maio 2022, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58453/homicdio-qualificado-com-dolo-eventual. Acesso em: 23 dez 2024.
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