ODI ALEXANDER ROCHA DA SILVA[1]
(coautor)
RESUMO: Historicamente a união indissolúvel, celebrada por um sacramento, substituiu antigos costumes de poligamia, provocando grande mudança nos hábitos dos mais diferentes povos ao redor do mundo. A entidade do casamento é tão antiga que já acontecia entre os sumérios, tida como a civilização mais antiga do mundo, localizada na Mesopotâmia, e obviamente logo se pensou em maneiras de regulamentar tal prática. O famoso e mais antigo código da humanidade, o Código de Hamurábi, continha um rol composto por sessenta e sete artigos alusivos ao direito de família e que versavam sobre noivado, casamento, filhos e divórcio. Os desdobramentos a respeito das instituições familiares atravessaram o tempo e ainda se impõem sobre a sociedade contemporânea, nesse contexto a discussão passa a ser, também, sobre as consequências atreladas a uma possível desunião. Nesse diapasão, o presente artigo pretende discutir, a partir do ordenamento jurídico brasileiro, a Lei 13.058/2014 - Lei de Guarda Compartilhada e a sua eficácia como medida de combate à alienação parental. Realizando uma revisão bibliográfica detalhada se discutirá aqui a evolução da referida Lei e sua aplicação em contextos em que há alienação parental, o apoio do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente para atender o melhor interesse da criança e o amparo em jurisprudências pátrias a fim de endossar o debate acerca da problemática apresentada.
Palavras-Chave: Guarda Compartilhada, Alienação Parental, Lei 13.058/2014, Criança e Adolescente.
ABSTRACT: Historically, indissoluble union, celebrated by a sacrament, replaced old polygamy customs, causing a great change in the habits of different peoples around the world. The marriage entity is so old that it already happened among the Sumerians, considered to be the oldest civilization in the world, located in Mesopotamia, and obviously ways to regulate this practice were immediately thought of. The famous and oldest code of humanity, the Code of Hammurabi, contained a list composed of sixty-seven articles alluding to family law and dealing with betrothal, marriage, children and divorce. The developments regarding family institutions have crossed time and still impose themselves on contemporary society. In this context, the discussion is also about the consequences linked to a possible disunity. In this vein, this article intends to discuss, from the Brazilian legal system, Law 13.058/2014 - Shared Guardianship Law and its effectiveness as a measure to combat parental alienation. Carrying out a detailed bibliographical review, the evolution of the aforementioned Law and its application in contexts where there is parental alienation, the support of the ECA - Child and Adolescent Statute to meet the best interests of the child and the support of national jurisprudence in order to endorse the debate about the problem presented.
Keywords: Shared Custody, Parental Alienation, Law 13.058/2014, Child and Adolescent.
INTRODUÇÃO
A Guarda Compartilhada é um instrumento jurídico contemporâneo que foi criado na década de 60, na Inglaterra, e logo expandiu-se para toda a Europa, avançou até os Estados Unidos e Canadá e, posteriormente, ganhou espaço na América Latina. Fundamentada na Lei 13.058 de 22 de dezembro de 2014, o conceito de guarda compartilhada se estabelece como sendo o tempo de convívio com os filhos que deve ser dividido de forma equilibrada e igualitária com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.
De acordo com Teixeira (2010), a guarda compõe a estrutura do poder familiar, de modo que serve para mostrar quem ficará com a companhia direta do menor[2], pois, mesmo que o casal não possua mais um vínculo conjugal, a autoridade parental permanecerá intacta. A guarda é um dos atributos do poder familiar. É o instituto jurídico através do qual se atribui ao guardião ou aos guardiões um complexo de direitos e deveres a serem exercidos com o objetivo de proteger e prover as necessidades de desenvolvimento do menor não emancipado. Com base nessa premissa de preservação dos direitos individuais e a proteção irrestrita à dignidade humana, se pensa a guarda compartilhada como um direito do menor em poder manter os laços familiares com as duas partes, mesmo em situação de conflito jurídico.
No que diz respeito ao poder familiar, de fato, ambos os pais são responsáveis pela criação dos filhos. Entretanto, quando se considera a questão da responsabilidade pela guarda em havendo situação de conflito, tal responsabilidade pode ser exercida por ambos os cônjuges ou por apenas um deles.
A bem da verdade, o instituto da guarda é um instrumento jurídico de singular complexidade. Múltiplos fatores precisam ser levados em consideração nesse contexto. Muitos desses fatores, é preciso que se diga, estão relacionados a um conceito, a guarda, o que precisa sintetizá-los em todas as suas dimensões. Nesta linha de raciocínio, Bittencourt (1985) afirma que "conceituar a guarda de filhos não é tarefa fácil”.
O compartilhamento da guarda dos filhos é um dos resultados de uma série de evoluções sociais no mundo ocidental; entre outras questões, ele se traduz na evolução de duas grandes alterações de paradigmas: o princípio da igualdade entre homens e mulheres e o reconhecimento da condição plena de sujeitos de direito a crianças e adolescentes.
Dessarte, ainda que, em tese, a guarda compartilhada seja o modelo ideal de guarda de menores filhos de pais separados – e por isso é o modelo preferencial no sistema legal brasileiro desde a edição da Lei n. 11.698/08 – na prática, ela depende de alguns requisitos para ser aplicada e de fato cumprir seu objetivo que é garantir que o melhor interesse da criança seja atendido.
2. PANORAMA HISTÓRICO E JURÍDICO DO PODER FAMILIAR
As organizações familiares sofreram alterações de formato ao longo do tempo. Transformações econômicas e sociais são alguns dos fatores geradores de mudança a depender do povo e de sua cultura. De acordo com Pimenta, Mello e Almeida (2021), o “poder familiar” representa o antigo pátrio poder, que, quando se retoma o direito romano, significa um direito absoluto e ilimitado conferido ao líder da organização familiar sobre a pessoa dos filhos. Segundo o professor Carlos Roberto Gonçalves (2011), o termo refere-se a um “conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores”.
Embora a configuração familiar tenha se remodelado no decorrer das gerações, uma característica que perdurou até a contemporaneidade foi o poder familiar atribuído ao patriarca. Na legislação brasileira, o poder patriarcal esteve presente até a Constituição Federal de 1989. A partir de sua promulgação os direitos civis de homens e mulheres começaram a ser pareados, inclusive dentro do casamento e na formação das famílias. Mas, foi somente com a publicação do Código Civil de 2002 é que foi estabelecida por lei a igualdade dos direitos entre homens e mulheres e o dever de ambos para o exercício do poder familiar.
Historicamente o ordenamento jurídico brasileiro constituiu muitas de suas normas baseadas no poder econômico e social do patriarca. Segundo Marise Corrêa (2009, p. 37), “a mulher no Direito ou o lugar dado pelo Direito à mulher sempre foi um não-lugar”, isso porque no processo de estabelecimento e estruturação das leis brasileiras, as mulheres foram historicamente colocadas em segundo plano.
Com a evolução dos institutos jurídicos, promovendo a igualdade de gênero e de poder familiar, houve a ruptura de uma resistência secular do conservadorismo e da influência religiosa, permitindo aos cônjuges decidir livremente a respeito do laço conjugal e da distribuição de responsabilidades e de poder nas relações familiares:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (BRASIL, 1988).
Para tanto, se observa que a própria CRFB/88 se encarregou de evidenciar no artigo 5º, inciso I, que a função para o exercício familiar deve ser obrigatoriamente partilhada entre os pais, em razão de não haver distinção entre homens e mulheres perante a lei.
3. ALIENAÇÃO PARENTAL: UM CONTRAPONTO AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA
Segundo Pereira (2022), os princípios norteadores do Direito de Família são o da Igualdade dos Cônjuges, Pluralismo das Entidades Familiares, Solidariedade Familiar, Paternidade Responsável, Igualdade de Filiação, Melhor Interesse da Criança e da Prioridade ao Atendimento da Criança. Contudo, para a presente discussão, o princípio mais pertinente é aquele que versa sobre o atendimento do melhor interesse da criança, voltado particularmente para os processos de guarda de filhos menores.
Nesse contexto, a separação familiar altera a vida das crianças e dos adolescentes, e é comum que o ex-casal misture sentimentos e ressentimentos e deixe de priorizar o que é melhor para os filhos, abrindo brechas para a alienação parental.
Richard Gardner é o nome do psiquiatra estadunidense que cunhou a teoria da Síndrome da Alienação Parental – SAP em 1985. A Síndrome foi definida pelo psiquiatra como um distúrbio infantil que acomete crianças e adolescentes envolvidos em situações de disputa de guarda entre os pais. Na visão de Gardner (2001), a síndrome se desenvolve a partir de programação ou lavagem cerebral realizada por um genitor – nomeado como alienador – para que a criança rejeite o outro responsável. Considerando a polêmica gerada a partir da proposição de tal tese, a proposta de Gardner difundiu-se rapidamente no Brasil e em outros países, levando alguns a pensar que a suposta síndrome havia se tornado uma epidemia em todo o mundo (Álvarez, S/D).
No Brasil, como evidenciado pela pesquisa realizada por Sousa (2010) sobre o tema, a escassez de debates e pesquisas sobre o conceito de SAP, bem como a falta de ideias sobre os transtornos da infância relacionados à disputa entre os genitores contribuiu para a naturalização do sujeito de forma acrítica. Essa situação também é consistente com a visão de que muitos casos de litígios de casamento levam ao surgimento da chamada síndrome.
Ainda nesse caminho, se verifica, principalmente após a aprovação da Lei 11.698/08 sobre guarda compartilhada, que houve um aumento do número de eventos e publicações bem como de informações veiculadas pelos diferentes meios de comunicação sobre a SAP.
A preocupação da opinião pública somada à comiseração gerada em torno do sofrimento de crianças que supostamente seriam vítimas da SAP culminou, naquele mesmo ano, na elaboração do Projeto de Lei nº. 4853/08, que teria como objetivo identificar e punir os genitores responsáveis pela alienação parental dos filhos. O projeto de lei foi sancionado em 2010, como Lei nº 12.318/10.
No Brasil, verifica-se que a SAP foi objeto de alguns estudos da psiquiatria[3], haja vista a presença de algumas pesquisas e publicações científicas dessa área sobre o assunto. Tal discussão a respeito da SAP difundiu-se, especialmente, entre os profissionais que atuam nos juízos de família.
No âmbito jurídico, a própria Constituição Federal de 1988 trata a alienação parental como uma norma principiológica e de natureza genérica. Aborda os efeitos nocivos da alienação parental em relação ao direito fundamental de convivência saudável e de afeto nas relações com o genitor no âmbito familiar:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Fazendo alusão à norma constitucional, a Lei 12.318 promulgada em 2010 menciona que a alienação pode ocorrer também por parte dos avós ou outros parentes, como informa a legislação pertinente, quando diz que os possíveis alienadores da pessoa que é guardiã do menor, ou sob sua vigilância, alcançando também os casos de famílias substitutas por guarda, tutela ou adoção. Assim diz a legislação cita,
[...] considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este (BRASIL, 2010,)
A alienação parental afeta direitos fundamentais da criança e do adolescente, os impossibilitando de possuir uma convivência familiar salutífera, prejudicando a construção de vínculo afetuoso com o outro genitor dentro da organização familiar. Além de tudo, constitui abuso moral contra o menor e infringe os deveres essenciais da autoridade parental, ou que decorrem da tutela ou da guarda (BRASIL, 2010).
A lei 12.318 de 2010, estabelece critérios que vão desde o acompanhamento psicológico até a imposição de multa, ou até mesmo a perda da guarda da criança a pais que estiverem alienando os filhos. Esta lei, altera o artigo 236 da lei 8.069, do ano de 1990 e estabelece a seguinte definição para a alienação parental:
Art. 2º. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.”
Importa destacar que a lei nos informa, exemplificativamente, algumas condutas que foram criminalizadas no parágrafo único do art. 2:
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
I -realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;
II -dificultar o exercício da autoridade parental;
III -dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV -dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V -omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI -apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII -mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós (BRASIL, 2010).
Nesse sentido, o ordenamento brasileiro estabelece que os casos de suspeita de alienação parental sejam avaliados por uma equipe multidisciplinar, pois sua comprovação tem que ser legitimada por profissionais habilitados e capacitados, tal como determina a Lei nº 12.318/2010:
Art. 5º: Havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial.
§ 1º O laudo pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor.
§ 2º A perícia será realizada por profissional ou equipe multidisciplinar habilitado, exigido, em qualquer caso, aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental.
§ 3º O perito ou equipe multidisciplinar designada para verificar a ocorrência de alienação parental terá prazo de 90 (noventa) dias para apresentação do laudo, prorrogável exclusivamente por autorização judicial baseada em justificativa circunstanciada. (BRASIL, 2010)
A norma supracitada elenca as garantias dos direitos da criança e do adolescente, na condição de vítima ou testemunha de alienação parental, criando mecanismos para prevenir e coibir tais atos.
Assim, em vista dos relatos acima, constata-se que a alienação parental pode ser definida como a formação psicológico da criança ou adolescente, praticado agressivamente por seus pais, membros da família ou por pessoa que obtém a custódia ou supervisão, que são obstáculos significativos para a manutenção de laços emocionais em relação aos pais.
4. GUARDA COMPARTILHADA: INSTITUTO JURÍDICO DE COMBATE À ALIENAÇÃO PARENTAL
Todos os componentes da entidade familiar são afetados com a dissolução da sociedade conjugal, sendo constatado que a decisão de quem ficará com a guarda dos filhos se torna uma questão tormentosa e delicada para os pais, mas também com potencial traumático aos filhos.
Nessa conjuntura, Oliveira (2003) assinala que é muito comum confundir o interesse da criança com os dos pais nos conflitos que chegam às Varas da Família. Assim, o autor observa que os infantes são “colocados como epicentro da disputa paterna, como se fossem meros objetos numa relação de forçada convivência em que se lhes renega a posição de sujeitos de direito.”
As transformações no âmbito do Direito de Família ocorridas nas últimas décadas, fizeram com que o instituto da guarda compartilhada se consolidasse como um importante mecanismo jurídico, que possibilita a defesa do direito à convivência e do melhor interesse da criança.
Dito isto, fica claro que as instituições familiares são parte fundamental da vida familiar do indivíduo em desenvolvimento, quando essa conexão é quebrada, compete ao Estado intervir para garantir a preservação dos direitos dos infantes.
A Constituição Federal de 1988 trata sobre a convivência familiar no art. 227, que diz:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Seguindo esta linha de raciocínio, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA prevê que a família é responsável por estabelecer o primeiro contato da criança com o meio social, cabendo a esta oferecer condições dignas de desenvolvimento para os infantes. Antevê, inclusive, que a falta de condições financeiras não exime a família de suas responsabilidades com os filhos, pois existe uma gama de políticas públicas de assistência social[4] capazes de desonerar parcialmente a unidade familiar e oferecer condições para sua subsistência.
Buscando preservar uma série de direitos atribuídos às crianças é que se institui o fenômeno jurídico da guarda. De maneira simples, estar sob guarda significa estar sob a responsabilidade e cuidados de alguém. A guarda é caracterizada pela presença de um genitor, que detém a responsabilidade de proteger e cuidar do menor incapaz, bem como de cumprir suas obrigações.
Nesse contexto, Rosa (2015), cita que:
“o termo “guarda”, entre outras aplicações, se destina a identificar o ato de vigiar e cuidar, tendo consigo alguém ou alguma coisa, a exemplo das obrigações que assume o depositário em um contrato de depósito, fato que lhe acarreta também a obrigação de cuidar e manter a coisa para ser posteriormente devolvida ao depositante. Essa situação de guarda da coisa fica bem evidente quando tratamos no direito obrigacional. Entretanto, quando se trata de definir a “guarda” de filhos no âmbito do direito de família, surgem dificuldades significativas, já que aqui, por óbvio, a proteção legal é direcionada a uma pessoa e não a uma coisa, envolvendo, por isso mesmo, circunstância que invocam sentimentos, emoções e paixões de todos os atores desse processo, e não o simples ato de vigiar e cuidar” (ROSA, 2015, p. 47).
A guarda, portanto, aparece não apenas como um direito, mas como um dever natural atribuído aos pais (ou tutores legais), focado no convívio com os filhos, e consiste em um pressuposto que permite a execução de todas as funções parentais que estão descritas no Código Civil que tratam sobre o poder familiar.
No tocante à legislação propriamente dita, o Código Civil de 2002 trouxe uma modalidade de guarda que era atribuída apenas a um dos genitores, de maneira que, se estes não firmaram um acordo com relação à guarda dos filhos na ocasião da dissolução da união, essa seria devida àquele que tivesse melhores condições para manter o infante.
Com a entrada em vigor da Lei nº 11.698/08, houve alteração na redação dos arts. 1.583 e 1.584 do CC/02, expondo, agora, a chance da guarda ser exercida de forma compartilhada pelos pais, porém, necessitando do consenso entre as partes. Baseado nisso, o ordenamento jurídico adotou duas modalidades de guarda, perdendo, assim, o status sexista, buscando majoritariamente garantir o melhor interesse da criança.
Em vista disso, a Lei nº 11.698/2008 favoreceu em sua redação inevitabilidade de elencar elementos que promovessem o melhor convívio possível entre os filhos e genitores, entretanto subordinou esses elementos à presença do relacionamento extraconjugal pacífico entre esses pais. Com o advento da Lei nº 13.058/2014[5], tal vedação foi removida, baseada na necessidade de garantir a eficácia dos meios de combate à prática da alienação parental e o superior interesse da prole.
O que se percebe é que a legislação passou por um processo evolutivo quanto ao conceito de família, assim, abandonou conceitos ultrapassados e passou a considerar o interesse do menor e a necessidade de manutenção dos laços afetivos, almejando diminuir os efeitos negativos que o fim da relação entre os pais acarreta a vida dos filhos.
A Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014 revogou os incisos I, II e III do § 2º do
art. 1.538 do Código Civil e, embora tenha mencionado, em seu art. 1º que “esta Lei estabelece o significado da expressão guarda compartilhada”, apenas modificou a redação do § 2º do art. 1.583 do Código Civil para: “Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”.
Em sua segunda parte, o artigo 1.583, § 1º do Código Civil (2002) guarda compartilhada é conceituada como “[...] responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. Assim, é notório o entendimento de que a Lei nº 13.058/2014 apenas legitimou o entendimento jurídico brasileiro a respeito da guarda não esvaziar o poder familiar de nenhum dos pais, inclusive aquele em relação ao qual a guarda não é exercida.
É importante ressaltar que, grande parte dos doutrinadores simpatiza com o entendimento de que, para repudiar os atos de alienação parental, o mais adequado seria a aplicação da modalidade compartilhada de guarda, como é possível extrair do texto de Maria Berenice Dias:
A guarda conjunta garante, de forma efetiva, a permanência da vinculação mais estrita de ambos os pais na formação e educação do filho, a simples visitação não dá espaço. O compartilhamento da guarda dos filhos é o reflexo mais fiel do que se entende por poder familiar. A participação no processo de desenvolvimento integral dos filhos leva à pluralização das responsabilidades estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos (DIAS, 2008, p. 26).
Isto posto, é perceptível que a ampla aplicação da Lei nº 13.058/2014, representa um dispositivo que pode dificultar a incidência da prática da alienação parental, em virtude do contato e a convivência familiar serem mantidos da forma mais semelhante possível àquela relação existente antes do término do relacionamento conjugal.
5. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL RELATIVO À GUARDA COMPARTILHADA E ALIENAÇÃO PARENTAL
No ordenamento jurídico brasileiro existe a previsão de tipos diferentes de guarda, nesse estudo, dá-se enfoque a guarda compartilhada prevista na Lei n° 13.058/2014, conceitua a alienação parental e trata do que dispõem os principais artigos da Lei n° 12.318/2010. Em outras palavras, a Lei n° 12.318/2010 adiciona à legislação brasileira mecanismos para coibir práticas de alienação parental, em função da cautela para apurar os fatos buscando, assim, a proteção das crianças e adolescentes, bem como a continuidade dos laços familiares, tal como determina o princípio do melhor interesse da criança.
O intuito da referida lei é direcionar o debate em torno do ordenamento e entendimento jurídico sobre a guarda compartilhada, representando, assim, uma norma capaz de atenuar ou inibir os atos alienatórios praticados pelos genitores ou responsáveis pelo infante. Dessa maneira, é importante evidenciar como o entendimento jurisprudencial, acerca da lei em comento, é capaz de conferir legitimidade a discussão imposta neste artigo.
Vale ressaltar que os processos envolvendo Direito de Família, geralmente, correm em segredo de justiça, o que, por vezes, acaba comprometendo uma análise processual mais profunda. Entretanto, foi possível ter acesso a algumas decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça de determinados estados brasileiros.
Na perspectiva apresentada relativa às interações entre alienação parental e guarda compartilhada, pretende-se inquirir como o sistema judiciário tem apreciado e pacificado a matéria sob o aspecto prático, por meio de seus acórdãos, analisando se essas questões estão sendo manifestadas pelas partes e aplicadas no cotidiano com a garantia da preservação do interesse da criança e do adolescente. Destarte, vale realçar o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
AÇÃO DE DIVÓRCIO. GUARDA COMPARTILHADA. LITÍGIO ENTRE OS PAIS. DESCABIMENTO. MANUTENÇÃO DA GUARDA DE FATO. GUARDA MATERNA. CABIMENTO. 1. Não é a conveniência dos pais que deve orientar a definição da guarda, mas o interesse do filho. 2. A chamada guarda compartilhada não consiste em transformar o filho em objeto, que fica à disposição de cada genitor por um determinado período, mas uma forma harmônica ajustada pelos genitores, que permita à criança desfrutar tanto da companhia paterna como da materna, num regime de visitação bastante amplo e flexível, mas sem que ele perca seus referenciais de moradia. 3. Para que a guarda compartilhada seja proveitosa para o infante, é imprescindível que exista entre os pais uma relação marcada pela harmonia e pelo respeito, onde não existam disputas nem conflitos, o que inocorre in casu, onde há intenso grau de beligerância existente entre as partes, inclusive com a existência de medida protetiva imposta, na qual o demandado está proibido de se aproximar da ora recorrente. 4. Oportunamente deverá ser realizado estudo social na casa dos litigantes, bem como avaliação psicológica nas partes envolvidas, a fim de encontrar a solução que melhor atenda os interesses da criança, que poderá ser, inclusive, a guarda compartilhada. Recurso provido (TJ-RS, 2018, online)[6].
Analisando a decisão, é notável que o magistrado ressalta a todo momento a importância da guarda compartilhada para as crianças, mesmo assim, elucida que a realização de um estudo social é fundamental para que a medida seja concedida em benefício do infante, adotando a medida que melhor se adequar a cada configuração familiar e às necessidades individuais de cada criança, como se pode analisar na jurisprudência a seguir:
GUARDA COMPARTILHADA. ALIENAÇÃO PARENTAL. NOVO REGIME DE GUARDA. 1. A guarda, na modalidade compartilhada (CCB 1.583, § 1º), é um direito da criança de manter a convivência cotidiana com os pais, somente podendo ser restringido ou suspenso quando houver comprovado risco à integridade física ou moral do menor (CCB 1.586), ainda que haja conflito entre os pais. 2. A alienação parental atestada pelo estudo psicossocial justifica a advertência prevista no art. 6º, I, da Lei 12.318/2010. 3. Incabível, na fase recursal, pedido de novo regime de guarda quando não foi postulado no juízo de origem. 4. O regime de visitas estabelecido na sentença atende ao melhor interesse do menor (TJ-DF, 2018, grifo nosso”)[7].
Na ementa em análise, o que se desvela é o entendimento majoritário a respeito dos principais pontos de discussão dentro do procedimento de definição de guarda, neste caso, especificamente da guarda compartilhada. Assim, de acordo com o que foi elencado pelo magistrado, o procedimento inteiro gira em torno da proteção da criança envolvida em tal processo, a fim de que ela tenha resguardado todos os seus direitos e conviva em um ambiente compartilhado com ambos os genitores ou guardiões legais.
Como evidência da aplicação do regime de guarda compartilhada para cessar a prática de alienação parental, está a ementa da seguinte Apelação:
APELAÇÃO. AÇÃO DE GUARDA. ALIENAÇÃO PARENTAL FEITA PELA AVÓ MATERNA. TRANSFERÊNCIA DA GUARDA PARA GENITOR. INTERESSE DA MENOR. SENTENÇA MANTIDA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. - O Estatuto da Criança do Adolescente determina quais atos são considerados alienação parental, deixando claro que estes podem ser feitos pelos genitores e por avós, afetando o desenvolvimento psicológico e social da criança. VISTOS, relatados e discutidos estes autos, em que figuram como partes as acima nominadas. ACORDA a Quarta Câmara Especializada Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator, integrando a decisão a súmula de julgamento de fl. 199 (TJ-PB, 2016)[8].
No caso da ementa destacada acima, verifica-se que a alienação parental pode ser praticada por outros membros da unidade familiar, neste caso pelos avós da criança, quando estes repudiam o genitor que não detém a guarda do menor, a fim de dificultar o contato e convivência familiar, conforme acostado nos autos do processo em tela, em depoimento proferido pela conselheira tutelar (fl.128), a avó (apelante) apresentou denúncia contra o genitor, alegando que “o mesmo visitava a criança embriagado, além da menor está mal alimentada e com piolhos”[9].
No relatório elaborado pela equipe multidisciplinar que acompanhou esse caso, se constatou que a denúncia contra o genitor era falsa, além disso comprovou-se a dificuldade que o genitor enfrentava para ver a filha, provocadas pela avó materna. Logo, a substituição da guarda da criança, foi a medida imposta pelo magistrado a fim de frear a prática evidente de alienação parental com o amplo consentimento da mãe.
Isto posto, após breve análise jurisprudencial sobre a interação entre alienação parental e guarda compartilhada, é notável como o § 2º do art. 1.584 do Código Civil de 2002, com as respectivas alterações introduzidas pela Lei n. 13.058/2014, preconiza a aplicação do regime de guarda compartilhada no âmbito familiar em que ocorrer a ruptura conjugal dos pais, pois ambos os genitores são aptos a exercer o poder familiar, além de minimizar a incidência de alienação parental nessas situações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A percepção jurídica sobre a guarda compartilhada se torna cada vez mais legítima por ser um dispositivo legal que cumpre função importante dentro do Direito de Família e, de forma subsidiária, atende, também, às demandas geradas pela prática de alienação parental dentro dos processos de divisão de guarda.
Sendo assim, é imprescindível reconhecer a importância deste dispositivo como uma ferramenta prática de combate à alienação parental, acautelando o direito da criança e do adolescente e garantindo que possam conviver com ambos os genitores de forma saudável para o seu melhor desenvolvimento.
Sem embargo, a guarda compartilhada representa uma alternativa jurídica restrita à aplicabilidade da lei perante um juiz, logo, tal decisão que constata a prática de alienação parental se baseia em circunstâncias concretas, avaliadas pelo julgador e pela equipe multidisciplinar, além dos vários requisitos constitucionais e violações dos princípios de proteção ao menor.
Desta forma, torna-se bastante evidente a partir de todos os fatos narrados e defendidos, que a guarda compartilhada é medida eficaz no combate à alienação parental. Portanto, cabe, nesse caso, ao judiciário e às instituições de defesa da criança e do adolescente fomentar a aplicação de medidas que protejam o melhor interesse da criança, para assim garantir que a infância seja preservada e que o infante tenha vínculos parentais saudáveis e harmônicos em sua unidade familiar.
REFERÊNCIAS
ÁLVAREZ, S. P. (n.d). ¿Qué es el síndrome de alejamiento parental? Disponível em: http://www.sindromedealienacionparental.apadeshi.org/sindromesusana.htm
BITTENCOURT, E. de M. Guarda de filhos, 3~ ed., São Paulo: Universitária de Direito, 1985.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1988.
BRASIL. LEI Nº 12.318, DE 26 DE AGOSTO DE 2010. Dispõe sobre a alienação parental.
Brasília, DF, ago. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
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BRASIL. LEI Nº 13.058, DE 22 DE DEZ. 2014. Dispõe sobre o significado da expressão
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[1] Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente na Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).
[2] Para efeitos legais, considera-se menor de idade o indivíduo que, segundo o ECA, possui até 12 anos incompletos. Já entre 12 e 18 anos são adolescentes. A lei define que esta faixa etária tem direito à vida e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; e do direito à guarda, à tutela e à adoção.
[3] Um dos estudos que se destacou nesse período foi o artigo da pesquisadora Tamara Brockhausen, intitulado Alienação parental: caminhos necessários, publicado em 2012.
[4]. O Brasil possui vários programas sociais voltados para atender famílias em estado de vulnerabilidade. Com o objetivo de garantir o direito à proteção social para todos os indivíduos, bem como a qualidade das ações executadas através da política de Assistência Social, é que os serviços, programas, projetos e benefícios foram criados e hoje são ofertados em todo o território nacional.
[5] A Lei 13058/2014 dispõe que a guarda dos filhos será sempre compartilhada entre os pais, salvo se um deles abrir mão de exercê-la ou não demonstrar condições para tanto.
[6] TJ-TO. APELAÇÃO CÍVEL: AP 0005433-36.2015.827.0000. Relatora: Etelvina Maria Sampaio Felipe. 2015.
[7] (TJ-DF 20160110657620 - Segredo de Justiça 0009477-XX.XX.XX.XX.XX, Relator: FERNANDO HABIBE, Data de Julgamento: 01/08/2018, 4ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE: 10/08/2018 . Pág.: 398/409)
[8] (APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO N.º 0002226-44.2013.815.2001. 7° Vara da Família da Comarca da Capital, Tribunal de Justiça da PB, Relator: Des João Alves da Silva, Julgado em 02/09/2016).
[9] APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO N.º 0002226-44.2013.815.2001. 7° Vara da Família da Comarca da Capital, Tribunal de Justiça da PB, Relator: Des. João Alves da Silva, Julgado em 02/09/2016)
Bacharelanda em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Maryna Brito Dias. Guarda compartilhada - a eficácia da medida no combate à alienação parental Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2022, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58523/guarda-compartilhada-a-eficcia-da-medida-no-combate-alienao-parental. Acesso em: 23 dez 2024.
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