VANUZA PIRES[1]
(orientador)
RESUMO: A adoção é uma modalidade de constituição familiar caracterizada por “aceitar” um estranho na qualidade de filho. Para a sua configuração, tem-se como base a norma constitucional e o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA). Ou seja, o processo de adoção obedece uma série de regras, incluindo o período de estágio de convivência. Ocorre que em determinados casos, tem-se realizado a devolução de crianças e adolescentes à fila de espera, o que tem gerado inúmeros debates sociais e jurídicos. Diante desse cenário, o presente estudo tem como objetivo discorrer a respeito da presente situação, apresentando a possibilidade ou não de aplicação do instituto da responsabilidade civil nesses casos. Na metodologia, trata-se de uma revisão da literatura, baseada em artigos científicos, doutrina jurídica, jurisprudência e legislação vigente. Nos resultados, chegou-se à conclusão de que a “devolução fática” de filho já adotado caracteriza ilícito civil, capaz de suscitar amplo dever de indenizar.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Adoção. Convivência. Desistência.
ABSTRACT: Adoption is a form of family constitution characterized by “accepting” a stranger as a child. For its configuration, the constitutional norm and the Statute of the Child and Adolescent (ECA) is based. That is, the adoption process obeys a series of rules, including the period of internship. It turns out that in certain cases, children and adolescents have been returned to the waiting line, which has generated numerous social and legal debates. Given this scenario, the present study aims to discuss this situation, presenting the possibility or not of the application of the Institute of Civil Liability in these cases. In the methodology, it is a literature review, based on scientific articles, legal doctrine, jurisprudence and current legislation. In the results, it was concluded that the “factual return” of a child already adopted characterizes civil illicit, capable of arising a broad duty to indemnify.
Keywords: Civil responsability. Adoption. Coexistence. Withdrawal.
Sumário: 1. Introdução. 2. Metodologia. 3. Da adoção: aspectos gerais. 4. O instituto da Responsabilidade Civil no Direito brasileiro. 5. A possibilidade de responsabilização civil dos pretendentes à adoção pela desistência da medida durante o período de convivência. 5.1 Dos posicionamentos jurisprudenciais. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Um dos bens mais tutelados pelo indivíduo é a família. Ela constitui o alicerce para o crescimento e desenvolvimento humano. Devido a sua importância, o Direito brasileiro trata de maneira específica os assuntos relacionados à família dentre os mais variados, encontra-se, para fins desse estudo, o instituto da adoção.
Como explica Macedo (2012) a adoção é uma modalidade de constituição familiar caracterizada por “aceitar” um estranho na qualidade de filho, uma vez que não houve uma relação biológica, mas de manifestação de vontade e/ou de sentença judicial.
A norma jurídica brasileira traz em seu bojo as regras para a adoção. Por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e demais leis infraconstitucionais, encontra-se os requisitos, obrigações e direitos relacionados à adoção. Dentre eles, encontra-se o período de estágio de convivência entre os pretendentes e o adotando.
Conforme preconiza o ECA em seu art. 46, a adoção é precedida por um período de estágio de convivência com a criança ou adolescente, cujo prazo não é superior a 90 (noventa) dias, observados a faixa etária do adotando e as particularidades de cada caso.
Ocorre que na vida prática, os pretendentes em alguns casos desistem da adoção no período de convivência. Essa ruptura gera de imediato danos psicológicos e emocionais à criança ou adolescente, uma vez que se cria uma expectativa de se adentrar em uma família.
Esse ato vem sendo discutido no Direito no sentido de abrir a possibilidade de reparação. In casu, estar-se a falar da Responsabilidade Civil. Assim, esse estudo teve como objetivo analisar a aplicabilidade (ou não) do instituto da Responsabilidade Civil nos casos de desistência por parte dos pretendentes no período de convivência no processo de adoção.
A problemática dessa pesquisa se baseia na seguinte questão: podem os adontandos terem direito à reparação civil pelo abandono gerado pelos pretendentes no processo adotivo?
A discussão sobre esse tema é de suma importância, uma vez que pouco se discute sobre esse ato quando se discute sobre a adoção. Desta feita, a finalidade desse estudo foi trazer os principais aspectos envolvendo a adoção e a responsabilidade civil e apresentar os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a presente matéria.
2. METODOLOGIA
Para a realização da pesquisa foi feita uma revisão de literatura, constituído de estudo bibliográfico e documental. A pesquisa bibliográfica foi realizada por meio de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos vinculados à análise do tema por ora proposto, e de outras doutrinas disponíveis relacionadas ao tema.
A presente pesquisa foi realizada mediante o levantamento de documentos. Assim, a coleta de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google Acadêmico, dentre outros, entre abril e maio de 2022. Os descritores foram: Adoção brasileiro. Responsabilidade Civil. Convivência. Desistência. A abordagem qualitativa de investigação foi utilizada neste trabalho. O método da pesquisa se pautou no indutivo.
3. DA ADOÇÃO: ASPECTOS GERAIS
Antes de iniciar a discussão desse assunto, é necessário esclarecer alguns pontos. Nesse caso, apresentam-se nos parágrafos seguintes os aspectos gerais envolvendo o instituto da adoção.
No Brasil, a adoção é encontrada desde o tempo da colonização. No início era um pretexto para fazer caridade, onde “pessoas abastadas traziam para seus lares os chamados ‘filhos de criação’, os quais, não raro, ajudavam nos afazeres domésticos” (MACEDO, 2012, p. 27).
Sem se aprofundar no seu processo histórico, tem-se como base para se entender a adoção, a priori, a Constituição Federal de 1988. Pela norma constitucional, adotou-se o princípio da igualdade entre os filhos, independente da ligação biológica. Assim, nesse novo modelo, a adoção “tem por finalidade precípua inserir, de forma integral e definitiva, a criança ou adolescente em um novo ambiente familiar” (SANTOS, 2013, p. 45).
Na literalidade de seus artigos, a adoção é encontrada no texto constitucional no seguinte artigo:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
O § 6º deste mesmo artigo, “assevera que os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (SANTOS, 2013, p. 45).
Além da Constituição, há também de se mencionar, no que tange ao instituto da adoção, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que através da Lei nº. 8.069/90 busca garantir acima de tudo o bem estar da criança, por meio do garantismo jurídico da educação, da inclusão social ou mesmo na adoção.
Em seu texto, principalmente no art. 43 do ECA, a adoção será sempre concedida quando forem verificados os reais benefícios que o adotando terá. Além disso, o ECA trouxe a possibilidade de adoção por ambos os cônjuges ou concubinos. Entretanto, para que a adoção seja efetiva, é preciso que um desses pares tenham 21 anos de idade completos e comprovar a estabilidade financeira e social da família, conforme aduz o art. 42. Há ainda, no mesmo artigo, a observância na diferença de idade entre 16 anos do adotante e do adotado.
De maneira ampla, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) possui os seguintes requisitos gerais de adoção:
3 A idade mínima dos candidatos a adotantes é de 21 anos;
4 A pessoa que for ser adotada deve ter no máximo 18 anos, a não ser que a mesma já conviva com a adotante;
5 Diferença de idade mínima entre o adotante e o adotado é de 16 anos;
6 Ascendentes (avós, bisavós) e descendentes (filhos e netos) não podem adotar seus parentes;
7 Não importa o estado civil do adotante;
8 A adoção requer a concordância dos pais biológicos, salvo em caso de paternidade desconhecida ou quando estes tiverem perdido o pátrio poder;
9 A adoção de adolescente maior de 12 anos, também necessita da concordância dos pais biológicos, salvo em caso de paternidade desconhecida ou quando estes tiverem perdido o pátrio poder; e
10 Antes de concretizada a adoção é necessário fazer um estágio de convivência entre o adotado e adotante.
(GONÇALVES, 2014, p. 58).
Cabe mencionar a Lei nº. 12.010/09, conhecida como a Lei da Adoção. Em seu texto destaca-se que o atual ordenamento jurídico contempla duas formas de adoção, ambas plenas e submetidas a processo judicial: “a adoção de menor (regulamentada pelo ECA) e adoção de maior de idade – disciplinada pelo Código Civil, mas a ela se aplicando também, no que couber, as regras do ECA” (MACEDO, 2012, p. 31).
Verifica-se que a lei trouxe para a realidade a finalidade da adoção, buscando sempre o melhor para a criança e para o adolescente. Não é apenas no âmbito patrimonial e formal que a adoção reside, mas sim em questões emotivas, surgidas nas mais diferentes formas e situações.
4 O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO BRASILEIRO
Além de descrever sobre os aspectos relacionados à adoção, também é importante fazer uma revisão sobre outro instituto relacionado ao tema aqui analisado: a responsabilidade civil. Em seu conceito inicial, Nader (2018) relaciona a responsabilidade civil ao direito obrigatório de reparação de uma conduta que gerou prejuízo a terceiro.
Nos dizeres de Gonçalves (2020) esse instituto se baseia na obrigatoriedade de um indivíduo em ressarcir os prejuízos causados a outrem, em decorrência de um ato ilícito ou mesmo lícito. Nota-se, a priori, que o que impera na responsabilidade civil é um dano que tenha surgido por motivação de outra pessoa.
Cabe lembrar também que na responsabilidade civil, a omissão também se enquadra. Como explica Oliveira (2018) a responsabilização na seara civilista é entendida como toda ação ou omissão que traga efeitos negativos a outra pessoa. É uma ação (ou omissão) que gere uma violação de uma norma legal ou de natureza contratual.
Por fim, explica o renomado autor Sérgio Cavalieri Filho (2021) que a responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que se originou da violação de dever jurídico originário.
Com os conceitos acima descritos, fica claro de se ter uma ideia de que qualquer ação que venha violar uma norma jurídica e consequentemente trazer algum dano para um terceiro é configurado como a responsabilidade civil (OLIVEIRA, 2018). O seu texto normativo pode ser encontrado no seguinte artigo civilista:
Art. 186. Aquele, que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
(BRASIL, 2002)
A doutrina jurídica traz os pressupostos do presente instituto, que são: a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade. O primeiro corresponde a ação ou omissão voluntária praticada por um indivíduo. A voluntariedade, como explica Filho (2021) é ter a consciência da ação cometida. Ela deve existir tanto na responsabilidade subjetiva (culpa) quanto na objetiva (risco).
O dano é o pressuposto para a existência da reparação, ou seja, sem ele não de se falar em responsabilidade civil. Esclarece Gonçalves (2020) que o dano é a lesão a um interesse jurídico, patrimonial ou extrapatrimonial causado pela ação (ou omissão) de um agente. Todo dano deve ser reparado, ainda que se consiga voltar ao estado anterior das coisas (status quo ante).
Ainda dentro desse pressuposto, importante mencionar os seus tipos: dano moral e dano material. O dano moral (também denominado de dano extrapatrimonial) é aquele onde os efeitos do ato ilícito do agente fere o psicológico e emocional da vítima. Para isso, é imperioso observar os efeitos relacionados à tristeza, dor ou sofrimento, ou qualquer outro que traga a certeza de instabilidade emocional e psicológica gerada pelo dano. Para Nader (2018) o dano moral representa uma afronta à dignidade da pessoa humana, pois gera emoções negativas à vítima, tais como angústia, sofrimento, humilhação, dor, etc., o que não pode ser confundido como mero dissabor ou aborrecimento.
Já o dano material se configura no prejuízo direto ao patrimônio da vítima. É uma lesão causada ao patrimônio, consequentemente gerando perda ou deterioração total ou parcial dos bens materiais que lhe pertenciam (NADER, 2018).
Por fim, encontra-se o nexo de causalidade. Este é a ponte de ligação entre o dano e a conduta do agente. Teixeira et al. (2021) acentua que a doutrina jurídica brasileira adotou nesse caso, a Teoria da Causalidade Adequada, pelo qual se considera na percepção do nexo causal somente o antecedente abstratamente idôneo à produção do efeito danoso.
Em relação aos tipos, a responsabilidade civil pode ser objetiva e subjetiva. Na responsabilidade objetiva, esta é caracterizada pelo fato de que a pessoa causadora do dano não realizou a ação de forma intencional ou seja, não tinha o objetivo de causar dano, e nem culposo. Ou seja, essa responsabilidade independe da intenção do ato, bastando somente que ele aconteça para gerar o dever indenizatório (OLIVEIRA; MELO, 2019).
Na responsabilidade subjetiva, para a sua configuração é preciso que o agente tenha dolo ou culpa em relação ao dano causado. Nesse caso, há uma conduta consciente, negligente ou imprudente do indivíduo para que seja configurada a responsabilidade (OLIVEIRA; MELO, 2019).
Feito essas ponderações gerais a respeito desse instituto, parte-se para a discussão central desse estudo: aplicação da responsabilidade civil (ou não) aos casos de desistência de adoção.
5. A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PRETENDENTES À ADOÇÃO PELA DESISTÊNCIA DA MEDIDA DURANTE O PERÍODO DE CONVIVÊNCIA
Conforme já mencionado anteriormente, a adoção no Brasil, para a sua efetivação, precisa respeitar determinados requisitos. Para fins desse estudo, foca-se no período de estágio de convivência entre os pretendentes e os adotandos. Esse período, como bem ilustra Carvalho (2017) serve como parâmetro para vislumbrar se a relação entre as partes poderá resultar em sucesso, ou seja, se há uma criação de vínculo afetivo.
Ocorre que nos últimos anos, tem-se percebido uma corrente bastante “ruim” nos processos de adoção: a devolução do adontando ao processo inicial de adoção. Ou seja, no período de convivência as partes não chegaram a um bom convívio ou não se criou laços de afinidade (essencial para que a adoção seja configurada), o que traz como efeito a devolução da criança ou adolescente na fila de espera para uma próxima adoção.
A título de informação, em recente pesquisa feita em 11 (onze) estados brasileiros, mostraram que em 5 (cinco) anos, forma registrados 172 casos de “devolução” de crianças e adolescentes candidatos à adoção (GAGLIANO; BARRETTO, 2021). Em alguns casos, muitos candidatos experimentaram mais de uma situação de desistência.
Esse ato tem gerado inúmeros debates tanto na parte jurídica quanto social. O que se tem debatido principalmente é a aplicação da responsabilidade civil nesses casos. Para melhor entender sobre essa questão, Gagliano e Barretto (2021) acentuam que deve-se primeiramente sedimentar a avaliação em três etapas: desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito; desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção e desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção.
A primeira é encontrada no corpo do texto do art. 46 do ECA. Nesse caso, como essa fase tem por característica ser uma espécie de teste acerca da viabilidade da adoção, entende-se que, regra geral, a desistência em prosseguir com o processo de adoção nessa etapa é legítima e não autoriza a reparação civil. Insta salientar, que trata-se do estágio de convivência no sentido estrito, descolado da guarda provisória dos adotandos (GAGLIANO; BARRETTO, 2021).
A segunda etapa - desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção - a convivência entre adotantes e adotados não ocorrerá mais no abrigo, e sim no lar dos adotantes. Por isso, a desistência da adoção, nesse contexto, se afigura muito mais complexa e dura do que o insucesso do estágio de convivência em sentido estrito, uma vez que rompe uma convivência sociofetiva consolidada, atraindo a incidência das regras de responsabilidade civil, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro nacional (GAGLIANO; BARRETTO, 2021).
A terceira etapa - desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção - se remete ao posto no art. 39, § 1º do ECA que aduz que uma vez transitada em julgado a sentença, a adoção se torna irrevogável. De acordo com Pereira (2020, p. 450) “não há nenhuma previsão legal de ‘desadoção’. Uma vez filho, adotado ou não, será para sempre, pois filhos e pais mesmo depois da morte permanecem vivos dentro da gente”.
Dessa forma, entende-se que nesse caso, inexiste, no ordenamento brasileiro, base jurídica para “devolução” de um filho após concretizada sua adoção (GAGLIANO; BARRETTO, 2021). Em outras palavras, uma vez adotado, não existe um ex-adotado.
Muito se questiona as razões e motivações que levam a devolução de uma criança ou adolescente após o período de convivência. Ao discorrer sobre essa questão, Falcão (2017) que muitos pretendentes alegam que os adotandos, motivado pela vulnerabilidade que lhe é imanente, são difíceis de lidar. São “indomáveis”, “custosos”, “rebeldes” e outros adjetivos negativos.
Esses argumentos, naturalmente, não correspondem ao que se encontra na lei brasileira, uma vez que a Constituição Federal não permite a diferenciação entre filhos em função da sua origem. Além disso, Moreira e Marinho (2019) acrescentam afirmando que os filhos biológicos podem apresentar os mesmíssimos problemas ou questões, sem que se cogite de sua potencial devolução.
De todo modo, fica claro constatar que a devolução de uma criança à fila de adoção fere o próprio processo de adoção, porque ao contrário da biológica, ela é planejada, programa e responde a todo um mecanismo burocrático, cheios de regras e condicionantes (MOREIRA; MARINHO, 2019).
No entanto, o que mais chama a atenção são os efeitos que esse ato causa nos adotandos. Muitos deles ficam anos na fila a espera de serem adotados. Quando a expectativa é sanada por meio do processo, quando ele não é finalizado, traz à criança e ao adolescente uma série de desrespeitos a sua personalidade e ao seu estado emocional.
Na área da Psicologia, por exemplo, profissionais vem expondo que crianças que sofreram a situação de serem “devolvidas” pela família adotante, acabaram por criar resistência a novas interações sociais ou a ter vínculos afetivos com outros, uma vez que acabaram perdendo a confiança que depositava nos relacionamentos familiares (MOREIRA; MARINHO, 2019).
Dias (2017) ressalta que frequentemente, quando uma criança ou adolescente é devolvido, desenvolve um sentimento de culpa pela situação que enfrenta. É como se seu futuro lar não fosse mais ser seu por culpa exclusiva sua. Ela caracteriza o que está passando como forma de castigo por sua conduta.
De todo modo, a rejeição traz a essas crianças e adolescentes uma série de consequências adversas. Bertoncini e Campidelli (2018) destacam que a exclusão e a rejeição são humilhantes e pretendem sê-lo, pois visam a que a vítima da rejeição comece a se ver como inferior e imperfeita socialmente. Além disso, a descontinuidade de laços afetivos emocionalmente relevantes para o menor leva a dificuldades na estruturação do self e dirigem à insegurança pessoal, medo e falta de confiança no outro.
Em que pese esses danos causados aos menores, a jurisprudência brasileira já vem decidindo sobre a inclusão ou não da responsabilidade civil nesses casos, o que será analisado no tópico seguinte.
5.1 DOS POSICIONAMENTOS JURISPRUDENCIAIS
Como mostrado no decorrer desse estudo, há um flagrante caso de que a responsabilidade civil deva ser aplicada no caso em análise. Isso decorre pelo fato de que a aplicação da sanção de natureza civil, na forma pecuniária, poderá acarretar, dessa maneira, a prevenção nas devoluções de crianças e adolescentes às instituições de acolhimento, amparando, assim, os direitos constitucionais garantidos às pessoas em desenvolvimento, notadamente por se tratarem de sujeitos que passam por transformações de diversas ordens, precavendo, ainda, a geração de mais danos de ordem moral nos institucionalizados (MACIEL, 2018).
No entanto, alguns tribunais têm entendimento diverso ao acima exposto. Entendem que esse instituto não se aplica ao caso em questão. Para esclarecer esse posicionamento, cita-se a seguinte jurisprudência:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PEDIDO DE ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. ABUSO DE DIREITO. INOCORRÊNCIA. ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. DESISTÊNCIA DA ADOÇÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. Considerando que a função do estágio de convivência é, justamente, buscar a adaptabilidade do (s) menor (es) ao (s) adotante (s) e deste (s) à (s) criança (s), quando esta adaptação não ocorre e há desistência da adoção durante este período, não há configuração de qualquer ato ilícito ensejador de dano moral ou material. Assim, deve ser mantida a sentença de improcedência. APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70079126850, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 04/04/2019). (grifo meu)
Denota-se da decisão em tela que, antes da prolação da sentença determinando a adoção da criança ou do adolescente ao adotante, isto é, durante o período do estágio de convivência, não há vedação legal à devolução do adotando. Esse ponto já fora mencionado anteriormente por Gagliano e Barretto (2021). Por esse entendimento, o período de estágio é apenas para conhecimento das partes, para verificar se há afinidade, empatias e principalmente, se existe afeto. Caso não exista, não há porque “obrigar” os pretendentes a adotar uma criança ou adolescente que almejam ou queiram.
No entanto, esse ponto de vista é amplamente combatido na doutrina e em outras decisões judiciais. Na visão de Bordallo (2018, p. 282):
A devolução do adotando no curso do estágio de convivência, por si só, já é uma violência para com este. Ficando demonstrado que os adotantes agiram com abuso de direito, está caracterizada a prática de ato ilícito, podendo e devendo haver a responsabilização civil destes.
Em julgado com entendimento semelhante, ressaltou que:
A condenação por danos morais daqueles que desistiram do processo de adoção, que estava em fase de guarda, de forma abrupta e causando sérios prejuízos à criança, encontra guarida em nosso direito pátrio, precisamente nos art. 186 c/c arts. 187 e 927 do Código Civil. A previsão de revogação da guarda a qualquer tempo, art. 35 do ECA, é medida que visa precipuamente proteger e resguardar os interesses da criança, para livrá-la de eventuais maus tratos ou falta de adaptação com a família, por exemplo, mas não para proteger aqueles maiores e capazes que se propuserem à guarda e depois se arrependeram (TJMG - Apelação Cível 1.0024.11.049157-8/002, Relator(a): Des.(a) Vanessa Verdolim Hudson Andrade , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/04/2014, publicação da súmula em 23/04/2014). (grifo meu)
Inicialmente, a palavra ônus significa encargo. Ônus da prova, portanto, é o encargo de trazer elementos capazes de certificar uma situação. Ou seja, de comprová-la. No entanto, não pode ser confundido com dever, porquanto o dever implica em um direito de outrem (BASTOS, 2019).
Importante mencionar que a única sanção prevista, atualmente, na legislação brasileira concernente à devolução de crianças ou adolescentes à instituição de acolhimento é a prevista no §5º, do artigo 197-E, do ECA, que expõe que a desistência do pretendente à adoção, após o trânsito em julgado da sentença, “importará na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação da renovação da habilitação”, não sendo nada explanado acerca de eventual possibilidade de pagamento indenização ao envolvido (BRASIL, 1990).
Todavia, Maciel (2018) defende que independentemente de ser a criança ou o adolescente devolvido durante o estágio de convivência ou após o deferimento da adoção, tal atitude viola, de forma indireta, o princípio constitucional da isonomia filial, uma vez que, na constituição de uma família natural, os pais não têm como desistir da parentalidade com a simples entrega dos filhos, sendo nesses casos, necessário todo o envolvimento da rede de proteção para a manutenção do filho no bojo familiar.
A irrevogabilidade da adoção serve para dar uma segurança jurídica para o adotado e para garantir sua isonomia filial, de modo que a desistência da adoção se equipararia a um retrocesso, tendo em vista que “os filhos decorrentes da adoção se sujeitariam à extinção do vínculo da parentalidade-filiação por força de possível revogação da adoção, como era prevista no Código Civil de 1916” (MACIEL, 2018, p. 169).
De todo modo, finaliza-se esse estudo entendendo que a responsabilidade civil deve ser aplicada a essa situação aqui debatida, como forma de evitar que novos casos de devolução surjam, que traga maior seriedade ao processo adotivo e que principalmente, não traga prejuízos morais aos adotandos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo tinha como finalidade discutir sobre a aplicação do instituto da responsabilidade civil nos casos de devolução de crianças e adolescentes no decorrer do processo adotivo. Cabe lembrar que a adoção tem a finalidade de consagrar o interesse da criança e do adolescente e o que realmente lhe traga vantagens, tentando-se, com isso, amenizar, de alguma forma, a dor e o sofrimento que já se teve em sua família biológica, de modo que a sua colocação em uma família substituta deve ser avaliada “no âmbito do afeto, que deve ser tratado como um valor jurídico.
O ato de devolver esses indivíduos por si só já transparece a imagem de serem considerados como mero objetivos, sem valor algum. Isso vai em desacordo com uma série de principais constitucionais, dentre os quais, o da dignidade da pessoa humana, uma vez que esse ato traz uma série de consequências nocivas aos adotandos.
Além de gerar sofrimento e infinita tristeza ao adotando, sua devolução à casa de acolhimento pode impedir ou obstaculizar uma nova tentativa de colocação em família substituta, seja pela resistência nos demais casais habilitados, seja por uma provável dificuldade de adaptação da criança a uma nova adoção, caso venha a apresentar problema psicológico temporário ou permanente.
Ainda que haja julgados contra a aplicação da responsabilidade civil nesses casos, nesse estudo, entende-se que a “devolução fática” de filho já adotado caracteriza ilícito civil, capaz de suscitar amplo dever de indenizar, e, potencialmente, também, um ilícito penal (abandono de incapaz, previsto no art. 133 do CP), sem prejuízo de se poder defender, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro, a mantença da obrigação alimentar, uma vez que os adotantes não podem simplesmente renunciar ao poder familiar e às obrigações civis daí decorrentes.
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Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Juliana da Silva. A responsabilidade civil aos pretendentes a adoção nos casos de desistência da medida durante o estágio de convivência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58581/a-responsabilidade-civil-aos-pretendentes-a-adoo-nos-casos-de-desistncia-da-medida-durante-o-estgio-de-convivncia. Acesso em: 23 dez 2024.
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