VERÔNICA FRAGA DE ABREU [1]
(coautora)
RESUMO: O princípio da intranscendência da pena é um princípio constitucional que estatui que nenhuma pena deve passar da pessoa do condenado. Isso posto, a proposta do presente artigo é analisar de que forma e se esse princípio é efetivado nos sistemas prisionais brasileiros femininos, visto as disposições legais que estabelecem sobre o tratamento das gestantes e que os filhos devem permanecer com a mãe. Para melhor tratar o tema, utilizou-se a metodologia de pesquisa bibliográfica e legal, além da análise de jurisprudência e doutrina. Conceituou-se, portanto, o princípio da Intranscendência da Pena e analisou-se de que forma o sistema penitenciário pode influenciar na gestação e na infância. No mesmo sentido, explorou-se os elementos da Lei de Execução Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, destacando os princípios da convivência familiar e do melhor interesse do menor. Por último, ao estabelecer uma relação entre os dispositivos legais, o princípio da intranscendência da pena e os demais princípios constitucionais, concluiu-se que, em muitos casos essas disposições colidem entre si. Dessa forma, o STF já tem encontrado mecanismos para solucionar alguns desses conflitos; no entanto, aqueles que não podem ser solucionados pela regra geral, devem ser analisados casuisticamente pelo aplicador da lei.
Palavras-chave: princípio da intranscendência da pena, maternidade, sistema prisional, convívio familiar.
ABSTRACT: The punishment intranscendence principle is a constitutional principle that states that the penalty shall not pass from the person of the condemned. That said, the purpose of the current article is to analyze how and if this principle is made effective in the female Brazilian prison system, because the legal norms establish about the pregnant treatment and that the kids must remains with theirs mothers. To better treat the subject, was used the bibliographic and legal research, beside the case-law and doctrinal analyze. Was conceptualized, therefore, the punishment intranscendence principle and analyzed how the prison system can impact during the pregnancy and in the childhood. In the same vein, it was explored the elements of Criminal Law Enforcement and Statute of the Child and Adolescent, highlighting the family coexistence and the best interest of the child principles. Lastly, by establishing a relation between the legal norms, the punishment intranscendence principle and the others constitutional principles, it concludes that, in many cases, those provisions collide with each other. That way, the STF has found mechanisms to solve some of those conflicts; however, those who cannot be solved by the general rule, must be analyzed each individual case by the law interpreter.
KEYWORDS: punishment intranscendence principle, motherhood, prison system, family coexistence.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípio da Intranscendência da Pena. 2.1. Implicações do sistema penitenciário na gestação e na infância. 3. Lei de Execução Penal e suas disposições. 4. O desenvolvimento infantil, conforme o ECA. 4.1. Do convívio familiar. 5. Adequação dos dispositivos legais ao princípio da intranscendência da pena. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.
1.INTRODUÇÃO
O Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940) estabelece, dentre suas penas, a de privação de liberdade. Nesse sentido, a partir da reclusão dos indivíduos, é necessário compreender os limites da atuação do Estado e da pena imposta. Dessa forma, a Constituição Federal de 1988, dispõe do princípio da intranscendência da pena, que preconiza que a pena não deverá passar da pessoa do condenado.
Ao se analisar a aplicabilidade desse princípio, há que se verificar como ele se efetiva para as mães que cumprem pena com seus filhos nos estabelecimentos prisionais. Assim sendo, é preciso analisar o referido princípio face às demais legislações que dispõem sobre o assunto, como a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990).
Nesse diapasão, o presente trabalho possui como objetivo perceber de que maneira é possível efetivar as disposições contidas na LEP e no ECA, de forma a garantir a aplicabilidade do princípio constitucional da intranscendência penal, não passando, portanto, o cumprimento da pena da mãe para o filho.
Para tanto, será imprescindível discorrer sobre o conceito e as posições doutrinárias do princípio da intranscendência da pena, bem como quais as implicações que a condenação criminal pode refletir na maternidade, na gestação e na infância. Outrossim, será essencial apontar os dispositivos da Lei de Execução Penal que se aplicam à situação descrita, e também como deve ocorrer o desenvolvimento infantil, nos termos do ECA. Por último, será necessário estabelecer uma relação entre os dispositivos legais analisados e o princípio da intranscendência da pena.
Para a realização desse trabalho, utilizar-se-á a metodologia de pesquisa bibliográfica e legal, através de pesquisas em artigos científicos, debates e demais bibliografias acerca do tema aqui problematizado.
2.PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA
O princípio da intranscendência da pena é, além de um princípio, um direito fundamental, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal de 1988, possuindo como redação: “XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.
Por esse princípio, entende-se que o Estado objetivou limitar as pessoas sobre as quais a pena pode ser aplicada. Segundo Nucci (2021, p. 70), a aplicação desse princípio se evidencia como uma “conquista do direito penal moderno, impedindo que terceiros inocentes e totalmente alheios ao crime possam pagar pelo que não fizeram, nem contribuíram para que fosse realizado. A família do condenado, por exemplo, não deve ser afetada pelo crime cometido”.
Ocorre que, apesar de possuir limitação da pena para a pessoa que comete o delito, os reflexos dessa punição podem ser percebidos em diversas esferas da vida do indivíduo, como a família, sociedade, amigos, dentre outros (SILVA, 2021). Nas palavras de Guilherme Nucci (2021):
(...) a fixação da pena pode produzir lesões a pessoas diversas do sentenciado, mas que com ele convivem ou dele dependem. Os familiares podem ser privados, por algum tempo, do sustento habitual, caso o condenado seja o provedor do lar; o patrão pode se ver despojado de seu empregado, ocasionando-lhe perdas de qualquer forma; os pais podem ser tolhidos do convívio com o filho, dando origem a sofrimentos morais ou mesmo patrimoniais; os alunos podem sofrer a perda do professor etc. No universo rico e complexo das relações humanas, a condenação criminal apresenta a possibilidade de desencadear prejuízos de toda ordem. (NUCCI, 2021, p. 71).
Resta notório, portanto, que, apesar dos esforços do legislador, ainda não é possível evitar que as pessoas, além do apenado, sofram com a condenação. A fim de direcionar a temática do trabalho, cumpre analisar de que maneira esse princípio é violado no que concerne o encarceramento feminino.
1.1. IMPLICAÇÕES DO SISTEMA PENITENCIÁRIO NA GESTAÇÃO E NA INFÂNCIA
A criminalidade feminina aumentou consideravelmente nos últimos anos: segundo dados do Infopen[2], em janeiro de 2000 havia 5600 mulheres presas, quando em junho de 2017, esse número era de 37.828 mulheres privadas de liberdade. Nesse sentido, resta imprescindível que os estabelecimentos prisionais se adequem de forma que consigam receber as detentas, considerando as diferenças e peculiaridades, em relação aos homens.
Com vistas a sanar essas diferenças, insta ressaltar a decisão do Habeas Corpus Coletivo nº 143641/SP que determinou a substituição da prisão cautelar pela domiciliar de todas as mulheres do sistema penitenciário nacional, que “ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças” (BRASIL, 2018).
Tal medida se faz necessária ao se analisar as consequências que a prisão acarreta, tanto na gestação, como na infância da criança.
No que tange à gestação,
são várias as condições que podem interferir na condição normal de uma gestação. O segundo e terceiro trimestres gestacionais integram uma das etapas da gestação em que as condições ambientais vão exercer influência direta no estado nutricional do feto. O ganho de peso adequado, a ingestão de nutrientes, o fator emocional e o estilo de vida serão determinantes para o crescimento e desenvolvimento normais do feto. (...). Importa salientar que o embrião durante a gestação absorve para si, todas as angústias, todas as situações físicas e psíquicas, crises nervosas, que a mãe passa durante o período de formação. Os problemas de origem psíquicas sofridos pela reclusa gestante no ambiente prisional, tais como brigas diárias entre as detentas e a mal acomodação, atingem diretamente à formação do feto. (VIAFORE, 2005).
Percebe-se, portanto, que os fatores externos à gestação podem vir a prejudicar a mãe e o feto, conforme às situações a que são expostos. Depreende-se, dessa maneira que, apesar de a gestante ser a pessoa sobre a qual recai a pena, o feto também é prejudicado pelas convivências ocorridas no sistema penitenciário.
Da mesma forma, após o parto ou o encarceramento da mãe, o convívio da criança com essa apresenta implicações na vida do menor. Isso porquê se o filho fica junto da mãe, acaba que esse também fica sendo aprisionado, pois não usufrui do “seu direito de receber condições favoráveis ao desenvolvimento”. (ARMELIN, 2015, p.15). Por outro lado, se as crianças crescem longe do vínculo materno,
passam por uma variedade de consequências negativas diante da situação, principalmente no que diz respeito à saúde emocional e bem-estar. Elas podem apresentar uma variedade de emoções, desde o medo, à ansiedade, raiva, tristeza, solidão e até culpa. Podem também começar a agir de modo impróprio, tornando-se descontroladas em sala de aula, consequentemente diminuindo seu desempenho escolar, ou apresentando comportamentos antissociais, tímidos, depressivos ou mesmo agressivos. Tais dificuldades emocionais e comportamentais têm sido ligadas a vários fatores, incluindo principalmente o stress da separação e o estigma social, onde a criança é comparada à mãe que cometeu o crime, e muitas vezes será excluída e evitada por outras crianças e mesmo adultos em razão do parentesco. (SEYMOUR, 1998, p. 4).
Resta evidente, portanto, que, ainda que indiretamente, os filhos também são lesados e sofrem das consequências das penas aplicadas às mães reclusas, de forma a configurar uma violação ao princípio da intranscendência da pena.
2.LEI DE EXECUÇÃO PENAL E SUAS DISPOSIÇÕES
A Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210/1984 – surgiu em outubro de 1984 com o objetivo de “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (BRASIL, 1984).
Nesse diapasão, o referido dispositivo legal apresenta de que maneira os detentos devem ser tratados, pautando esse tratamento pelos limites estabelecidos na sentença e pelas demais normas legislativas, como na Constituição Federal (art. 5º, XLIX: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”) e no Código Penal (art. 38: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”), refletindo assim, na própria LEP (Art. 3º: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.).
De forma mais específica, ao tratar sobre a prisão de mulheres mães, gestantes e puérperas, a LEP também traz institutos que asseguram como deve ser o tratamento e o cumprimento da pena dessas detentas, conforme passa-se a destacar.
O artigo 14, §3º, da lei em análise, garante que “será assegurado acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido”. De acordo com SOUZA (2021, p. 56), esse parágrafo, que foi inserido em 2009, tem o escopo de dar cumprimento ao disposto no art. 5.º, L, da Constituição Federal: “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação” (BRASIL, 1988).
Há que se mencionar, também, o artigo 83, §2º, que estabelece como deve ser o estabelecimento prisional, de maneira que precisa contar com berçário, local em que as detentas poderão cuidar dos filhos, “inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”. No mesmo sentido, prevê o art. 89 que o estabelecimento necessita de “seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa”. (BRASIL, 1984). Sobre o assunto, dispõe SOUZA (2021, p. 173):
A seção destinada às gestantes e às parturientes constitui o local apropriado para o acompanhamento médico pré-natal e para a assistência pós-parto, onde se realizam, também, as amamentações. Portanto, deve ser aparelhado tanto para a assistência médica quanto para a existência de berçário. A creche é o lugar destinado à mantença das crianças entre seis meses e seis anos. Prevê-se estrutura de atendimento similar à exigida para as escolas em geral, sem qualquer distinção ou discriminação.
Analisando ainda as disposições específicas da LEP, encontra-se a progressão de regime, que se trata de um benefício que “implica na transferência para regime menos gravoso quando o preso tiver atingido o lapso temporal de cumprimento da pena”, conforme os critérios estabelecidos em lei (SILVA, 2021). Para as mães, a Lei de Execução Penal trouxe mais critérios, que devem ser atendidos cumulativamente:
Art. 112: (...).
§3º No caso de mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regime são, cumulativamente:
I - não ter cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II - não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente;
III - ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior;
IV - ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento;
V - não ter integrado organização criminosa.
§ 4º O cometimento de novo crime doloso ou falta grave implicará a revogação do benefício previsto no § 3º deste artigo. (BRASIL, 1984).
Mediante os trechos legais abordados, percebeu-se que o legislador se preocupou com a efetivação constitucional de garantir que as crianças permaneçam com as mães, ainda que nos estabelecimentos prisionais e, para tanto, apresentou de que forma esses locais devem ser estruturados. Resta esclarecer, portanto, se e como essas disposições são aplicadas e quais as implicações delas para as demais disposições legislativas.
3.O DESENVOLVIMENTO INFANTIL, CONFORME O ECA
A Constituição Federal de 1988 garantiu proteção prioritária às crianças e adolescentes (artigo 227). Nesse sentido, fez-se necessária a criação de uma norma que dispusesse de que maneira essa proteção seria efetivada, fazendo surgir o Estatuto da Criança e do Adolescente, popularmente conhecido como ECA. De acordo com Rodrigues (2021):
Quando de sua edição, em 1990, a proposta do ECA era romper com a noção de irregularidade e garantir a todos os menores de dezoito anos possibilidades isonômicas de exercício da sua cidadania. A elaboração do Estatuto decorreu do imperativo de pormenorizar o sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, outorgando a estes o status de cidadãos especiais, de acordo com a Constituição de 1988, em razão de peculiaridades da personalidade infanto-juvenil.
O dispositivo legal disciplina, também, as relações parentais, as políticas sociais e socioeducativas e estipula o âmbito político-criminal (RODRIGUES, 2021).
O ECA se preocupou em definir de que maneira o desenvolvimento infantil precisa ocorrer, inclusive nos casos em que os pais se encontram encarcerados. Assim sendo, os artigos 4º e 5º estabelecem que
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Pela análise desses artigos, é possível perceber que as obrigações estipuladas pelo legislador são solidárias, ou seja, todos devem assegurar a eficácia. Outrossim, reforça os direitos fundamentais – elencados na Constituição Federal – de maneira que esses devem ser aplicados com prioridade para as crianças e adolescentes, além de estabelecer as proibições necessárias.
Para aprofundar-se no desenvolvimento infantil, é necessário que seja discutido o poder familiar. Nesse sentido, o art. 19, do ECA dispõe que é “direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. (BRASIL, 1990). Esse dispositivo legal atua em consonância com o Código Civil – art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores (BRASIL, 2002) – e com a Constituição Federal – art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. (BRASIL, 1988).
Depreende-se da leitura dos dispositivos supramencionados que o poder familiar é exercido, prioritariamente, na família natural da criança e do adolescente. Dito isso, torna-se crucial entender de que forma é constituído o poder familiar para as mães que se encontram presas. Nesse diapasão, o art. 23, §2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente determina que “o único caso em que a condenação criminal pode gerar a perda do poder familiar é na situação em que o crime foi cometido contra o próprio filho”. (CONVIVE et al., 2017).
Dessa feita, não sendo aplicável essa hipótese, o ECA apresenta normas e condições que possibilitam o contato, a interação, a dignidade no tratamento e o convívio entre a mãe, que se encontra reclusa, e o filho.
Durante a gestação, conforme o art. 8º, ECA, deve ser “assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal” (BRASIL, 1990). Tal dispositivo vai de encontro ao definido nas Regras de Bangkok – documento elaborado pela ONU (Organização das Nações Unidas), que estabelece diretrizes para o tratamento de mulheres presas e afins – e objetiva ao nascimento de uma criança saudável. De maneira mais específica, os §§4º e 5º dispõem que:
Art. 8º:
(...).
§4º: Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal.
§5º: A assistência referida no §4 o deste artigo deverá ser prestada também a gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção, bem como a gestantes e mães que se encontrem em situação de privação de liberdade.
(...). (BRASIL, 1990).
Percebe-se, dessa maneira, a preocupação do Estado em garantir uma gestação, parto e pós-parto saudáveis as mulheres presas, garantindo um tratamento isonômico, nos termos do, já mencionado, art. 5º, da lei em apreço.
Após o nascimento, o art. 9º, da referida lei, determina que o poder público e as instituições devem proporcionar “condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade” (BRASIL, 1990).
A fim de garantir o convívio familiar, o art. 19, §4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, preconiza que, independente de autorização judicial, “será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável” (BRASIL, 1990).
Apesar das disposições legais, é imprescindível analisá-las a partir do princípio do melhor interesse do menor. Nesse sentido, já existem jurisprudências, tanto favoráveis à visitação, como contrária:
EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO. PEDIDO DE VISITA POR MENOR DE IDADE. ENTEADO DO APENADO. IMPOSSIBILIDADE. IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA. Entre o direito de visita dentro do estabelecimento prisional assegurado na lei ao apenado e o direito de proteção ao menor, previsto no art. 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e no art. 227 da CF, impõe-se a prevalência deste último. Assim, deve ser mantida a decisão que indeferiu a visita, visando ao bem-estar da criança. AGRAVO DESPROVIDO. (Agravo, Nº 70073269060, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lizete Andreis Sebben, Julgado em: 10-05-2017). [3]
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AUTORIZAÇÃO JUDICIAL - DIREITO DE VISITA - FILHOS MENORES - ART. 19, §4º, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - IMPORTÂNCIA DA CONVIVÊNCIA COM O GENITOR - DIREITO DO DETENTO - ARTIGOS 3º E 41 DA LEP - MELHOR INTERESSE DO MENOR. Não se desconhece que o ambiente prisional não é lugar apropriado para a visitação de menores, em razão das condições degradantes, sob todos os aspectos, em que se encontram nossos estabelecimentos penitenciários. É certo que o convívio do filho com a figura paterna é necessário para o desenvolvimento psicológico e social da criança, ainda que este esteja recolhido em estabelecimento prisional. Assim, um contato físico maior entre ambos torna a convivência mais estreita, possibilitando ao genitor dar carinho e afeto a seu filho, acompanhá-lo em seu crescimento e em sua educação, tendo sempre em vista o melhor interesse do menor. (TJMG - Apelação Cível 1.0024.17.062737-6/001, Relator(a): Des.(a) Dárcio Lopardi Mendes, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/06/2018, publicação da súmula em 03/07/2018). [4]
Resta evidente, dessa forma, que o desenvolvimento infantil, em consonância aos direitos das mães presas, precisa ser garantido em suas mais diversas formas e possuem mecanismos legais para tanto. Porém, verifica-se que as disposições legais podem ir de encontro ao princípio do melhor interesse do menor, necessitando, assim, de uma análise jurídica aprofundada.
3.1 DO CONVÍVIO FAMILIAR
Depreendeu-se dos tópicos anteriores que a legislação, em consonância à jurisprudência, se preocupa em garantir a saúde da detenta gestante e o convívio da reclusa com os filhos. Tais preocupações decorrem do princípio da convivência familiar, que estabelece que as relações afetivas devem ser protegidas. Nesse diapasão, a referência constitucional desse princípio está normatizada no aludido art. 227, além de estar consubstanciado no art. 19, ECA.
Não obstante, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (promulgado pelo Decreto-Lei nº 99.710, de 1990), estabelece que é “direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança”. (BRASIL, 1990). Percebe-se, portanto, que o princípio da convivência familiar deve ser analisado frente ao princípio do melhor interesse do menor.
Tendo em vista esses princípios, ressalta-se, ainda, que a convivência familiar extrapola os limites das relações parentais e/ou sanguíneas. De acordo com Lôbo (2021, p. 35), “o Poder Judiciário, em caso de conflito, deve levar em conta a abrangência da família considerada em cada comunidade, de acordo com seus valores e costumes”.
No que tange à convivência dos filhos com as detentas, “na perspectiva da psicologia, diz-se que a criança não tem que escolher entre o pai e a mãe; é direito dela ter o contato e a possibilidade de usufruir as duas linhagens de origem, cultura, posição social, religião. A criança deve ter o direito de manter contato com ambos os pais (...).” (LÔBO, 2021, p. 87).
Assim sendo, ao fazer uma análise dos dispositivos legais que garantem a convivência dos filhos com as mães reclusas, deve-se ponderar os princípios e garantias ali estipulados, de forma que o direito à convivência familiar seja respeitado frente ao melhor interesse da criança.
4.ADEQUAÇÃO DOS DISPOSITIVOS LEGAIS AO PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA
Apesar dos inúmeros instrumentos legislativos e jurisprudências garantirem a dignidade no tratamento da gestante e o convívio familiar das reclusas com os filhos, é preciso analisar se esses dispositivos não conflitam com o princípio da intranscendência da pena.
Conforme já mencionado, o referido princípio estabelece que a pena não deverá passar da pessoa do condenado. No entanto, verificou-se que os estabelecimentos prisionais acarretam consequências negativas para o feto e para as crianças que visitam ou que vivem com as mães, configurando uma violação ao princípio. Por outro lado, constatou-se, também, que a ausência de vínculos maternos é prejudicial às crianças, violando o princípio do convívio familiar.
De acordo com Silva (2021),
a privação do vínculo materno para as crianças pequenas é tão prejudicial para o seu crescimento, quanto a sua permanência nos estabelecimentos penais, ao passo de que as mães são as principais responsáveis pela socialização dos filhos e a sua ausência pode comprometer a formação da saúde mental e o desenvolvimento psíquico do menor, causando, a longo prazo, distúrbios de ordem afetiva.
Ambos os princípios supramencionados estão normatizados na Constituição Federal de 1988, evidenciando uma antinomia entre eles. Segundo Barroso (2019, p. 315), “não existe hierarquia em abstrato entre tais princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto”. Entende-se, assim, que um princípio não se sobrepõe ao outro, devendo cada um ser aplicado conforme a situação.
A fim de promover a adequação desses princípios aos institutos legais, recentemente, houve a decisão do STF no sentido de substituir a prisão cautelar pela domiciliar das mães de crianças de até 12 anos e gestantes. Na decisão, o Ministro Ricardo Lewandowski justificou a aplicação da medida por se evidenciar um “descumprimento sistemático de regras constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus filhos”, além de verificar que “(...) o Estado brasileiro vem falhando enormemente no tocante às determinações constitucionais que dizem respeito à prioridade absoluta dos direitos das crianças, prejudicando, assim, seu desenvolvimento pleno, sob todos os aspectos, sejam eles físicos ou psicológicos” (BRASIL, 2018).
Isso posto, a decisão de Lewandowski foi no sentido de conceder o Habeas Corpus nº 143641/SP, determinando:
Em face de todo o exposto, concedo a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício.
Estendo a ordem, de ofício, às demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas no parágrafo acima.
Quando a detida for tecnicamente reincidente, o juiz deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, observando, ademais, a diretriz de excepcionalidade da prisão.
Se o juiz entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inadequada em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas arroladas no já mencionado art. 319 do CPP. (BRASIL, 2018).
Percebe-se, portanto, que a decisão do STF teve intuito de possibilitar que as legislações se efetivassem, solucionando o conflito entre normas. Para as demais situações, o juiz precisará analisar o caso concreto, considerando a situação que a criança ficará no sistema prisional, as implicações para a saúde dessa e de sua mãe, além da aplicação dos princípios e direitos aludidos.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
o ordenamento jurídico brasileiro apresenta algumas normas com o objetivo de regular de que maneira deve ser efetuada a pena de privação de liberdade. No entanto, essas normas encontram limites no princípio da intranscendência da pena, que estabelece que a pena não deve passar da pessoa do condenado.
De maneira mais específica, verificou-se que, quando se trata da prisão de gestantes e mães de crianças de até 12 anos, a execução da pena deve se moldar ao disposto, na Lei de Execução Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, além do Código de Processo Penal.
Dessa forma, o corrente artigo objetivou analisar de que forma as disposições contidas na LEP e no ECA podem ser aplicadas em consonância ao princípio constitucional da intranscendência da pena.
Logo, num primeiro momento, foi necessário conceituar e explicar as consequências do princípio da intranscendência penal, discorrendo e analisando as doutrinas do tema. Nesse sentido, analisou-se que os estabelecimentos prisionais acarretam em consequências para as crianças e para os fetos, de maneira que a sociabilidade, desenvolvimento cognitivo, físico e psicológico se mostram afetados.
Além disso, apontou-se quais dispositivos da Lei de Execução Penal se aplicam ao caso em análise, identificando o tratamento que as gestantes, mães e crianças devem receber nas institucionais penitenciárias. Analisou-se, também, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de maneira a identificar como que o legislador dispôs de que forma deve ocorrer o desenvolvimento infantil, inclusive nos estabelecimentos penais. Destacou-se nessa análise legislativa, o princípio da convivência familiar e da prevalência do melhor interesse do menor, princípios esses constitucionais que, em muitos casos, vão de encontro ao princípio da intranscendência da pena.
Frente a essas análises legislativas realizadas, estabeleceu-se uma relação entre os dispositivos legais e os princípios. Através dessa relação, foi possível concluir que existe uma antinomia entre o princípio da intranscendência da pena e da convivência familiar. Para solucionar esse conflito entre dispositivos constitucionais, o STF tem usado a decisão do Habeas Corpus nº 143641/SP. Para as situações em que não é cabível a referida decisão, constatou-se que o aplicador da lei precisará analisar o caso concreto e ponderar qual princípio é o mais adequado, vez que esses não possuem hierarquia entre si.
REFERÊNCIAS
ARMELIN, Bruna Dal Fiume. Filhos do cárcere: estudo sobre as mães que vivem com seus filhos em regime fechado. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/graduacao/article/viewFile/7901/5586> Acesso em: 13 abr. 2022.
BARROSO, Luís R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Disponível em: Minha Biblioteca, (9th edição). Editora Saraiva, 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília, DF: Congresso Nacional, 1988.
BRASIL. Código Penal. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1940.
BRASIL. Código de Processo Penal. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1941.
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[1] Acadêmica de Direito, do Centro Universitário UNA de Betim. E-mail para contato: [email protected].
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[3] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande de Sul. Agravo nº 70073269060 . Disponível em: <https://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a%20do%20RS&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=&num_processo=70073269060&codEmenta=7706337&temIntTeor=true:> Acesso em: 02 mai. 22.
[4] BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0024.17.062737-6/001. Disponível em: <https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=2&totalLinhas=40&paginaNumero=2&linhasPorPagina=1&palavras=visita%20estabelecimento%20prisional%20melhor%20interesse%20menor&pesquisarPor=ementa&orderByData=2&referenciaLegislativa=Clique%20na%20lupa%20para%20pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=Pesquisar&> Acesso em: 02 mai. 22.
Acadêmica de Direito, do Centro Universitário UNA de Betim.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Paula Cristine de. Princípio da intranscendência da pena e a relação das detentas com os filhos, no sistema prisional brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2022, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58639/princpio-da-intranscendncia-da-pena-e-a-relao-das-detentas-com-os-filhos-no-sistema-prisional-brasileiro. Acesso em: 22 dez 2024.
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