RESUMO: Ferramenta popular que democratizou a tecnologia de edição genética, Crispr-Cas9 reacendeu as inquietações éticas decorrentes das inúmeras possibilidades de manipulação genética de todas as formas de vida, e em particular a humana. De tal modo, o presente artigo é dividido em quatro partes. Inicia-se apresentando a técnica de edição genética do Crispr, como verdadeira revolução científica, procurando demonstrar sua ampla aplicação nos meios científicos. Na segunda parte, levanta-se discussões sobre o alcance desta tecnologia, enfatizando-se sua aplicação em linha germinal. Por fim, pretende-se investigar as implicações imediatas e mediatas da edição genética, remetendo aos limites éticos, jurídicos e sociais de sua aplicação.
Palavras-chave: Edição de genes. Sistemas Crispr-Cas9. Eugenia. Bioética.
ABSTRACT: A popular tool that democratized genetic edition technology, Crispr- Cas9 rekindled ethical concerns arising from the countless possibilities for manipulating all forms of life, and in particular human life. As such, this article is divided into four parts. It begins by presenting Crispr's genetic editing technique as a true scientific revolution, seeking to demonstrate its wide application in scientific circles. In the second part, discussions are raised about the reach of this technology, emphasizing its application in the germ line. Finally, it is intended to investigate the immediate and mediate implications of genetic editing, referring to the ethical, legal and social limits of its application.
KEYWORDS: Gene edition. Crisp-Cas9 systems. Eugenics. Bioethics.
Introdução
O homem sempre se interessou em estudar e modificar o patrimônio genético dos seres com os quais interage. Antes mesmo de entender o funcionamento do DNA as pessoas já melhoravam seus cultivos e suas criações selecionando os indivíduos desejáveis para o cruzamento.
O estudo da genética, no entanto, só começou em 1860, quando um monge agostiniano chamado Gregor Mendel realizou um conjunto de experimentos que apontaram a existência de elementos biológicos capazes de transmitir as propriedades e características de uma determinada espécie ao longo das gerações.
Seus experimentos possibilitaram uma verdadeira evolução no entendimento de como a informação genética é armazenada, usada e transmitida, levando à descoberta da estrutura de dupla-hélice do DNA, por Watson e Francis Crick em 1953, e o desenvolvimento de tecnologias de sequenciamento de DNA em 1970, por Fred Sanger e Walter Gilbert.
O trabalho de Sanger aperfeiçoando o sequenciamento do DNA, abriu portas para um amplo conhecimento do funcionamento dos sistemas biológicos e a criação de um conjunto de técnicas que permitem realizar modificações diretamente nos genes.
Materializa-se o desejo humano de prever o futuro, controlá-lo e quem sabe até modificá-lo. O ser humano passa a ter em suas mãos ferramentas que lhe permitem revolucionar completamente a vida dos seres vivos na terra, ditando seu destino e seu próprio progresso evolutivo[1].
Surge assim uma ferramenta de edição genética no ano de 2012 que promete revolucionar a ciência genética: o Crispr – acrônimo para repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas ou “clustered regularly interspaced short palindromic repeats.
Reconhecida no meio acadêmico como uma ferramenta popular, que democratizou efetivamente a tecnologia de edição genética, a descoberta do enorme potencial do Crispr reacendeu as inquietações éticas decorrentes das inúmeras possibilidades de manipulação de todas as formas de vida, e em particular a humana.
Se por um lado possuem enorme potencial de trazer benefícios à humanidade, por outro não podemos deixar de questionar sobre os impactos sociais, éticos e jurídicos que envolvem a manipulação do material genético do ser humano, a manutenção da biodiversidade e sua consequente conservação. A apreensão e a esperança caminham lado a lado, o que ressalta, como afirma Hans Jonas, o forte caráter ambivalente da evolução científica[2].
Dessa forma, este artigo é dividido em quatro partes. Na primeira, apresenta-se a técnica de edição genética do Crispr, como verdadeira revolução científica, procurando demonstrar sua ampla aplicação nos meios científicos, para diante disso entender quais os questionamentos levantados pela bioética/biodireito. Na segunda parte, levanta-se discussões sobre o alcance desta tecnologia, enfatizando-se sua aplicação em linha germinal, ou seja, a possibilidade de mudanças genômicas transmissíveis à descendência. Por fim, pretende-se investigar as implicações imediatas e mediatas da edição genética, remetendo aos limites éticos, jurídicos e sociais de sua aplicação.
Justifica-se o desenvolvimento do presente trabalho pela relevância do tema, sua recorrência em artigos acadêmicos e de opinião, bem como suas implicações culturais, sociais e éticas.
Adotou-se como método o levantamento através de pesquisa bibliográfica em materiais publicados, entre doutrinas, artigos científicos, notícias, dentre outros. Utilizando-se como método de abordagem o método dedutivo, de modo a concluir, a partir da organização deste trabalho, pela necessidade de se fazer ciência com consciência, prudência e responsabilidade, respeitando-se os limites éticos e jurídicos de sua aplicação.
1.Crispr-Cas9: Conceito e Aplicação
Como tantas vezes na ciência a descoberta do Crispr-Cas9 foi inesperada. Por muitos anos já se conhecia a sequência de DNA repetitiva regularmente espaçada, bem como algumas de suas propriedades, no entanto, os pesquisadores não tinham descoberto seu enorme potencial como ferramenta de edição genética.
Em verdade a sequência de DNA foi descoberta por um cientista de Alicante, Juan Francisco Mojica, em várias bactérias. Até o ano de 2000, Mojica já tinha identificado o sistema Crispr em 20 (vinte) diferentes bactérias, e alguns anos mais tarde percebeu que o Crispr era responsável por codificar as instruções do sistema imunológico adaptativo que protege as bactérias contra infecções específicas[3].
Anos mais tarde Emmanuelle Charpentier estudando o RNA bacteriano em streptococcus pyogenes, bactéria capaz de causar muitos danos à saúde das pessoas, identificou mais uma peça do quebra cabeça da ferramenta de edição genética[4]. Charpentier publicou sua descoberta em 2011, mesmo ano em que começou a trabalhar com Jennifer Doudna, uma experiente microbióloga com vasto conhecimento em RNA.
Juntas as pesquisadoras conseguiram recriar as tesouras genéticas em tubo de ensaio em 2012. No ano seguinte, uma equipe do Instituto Broad, da Universidade de Havard, demonstrou a possibilidade do uso da ferramenta para edição do genoma de espécies vivas[5].
No ano de 2020 as pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna receberam o prêmio Nobel de Química pelo desenvolvimento das tesouras genéticas, ferramenta revolucionária capaz de reescrever o código da vida[6].
De uma forma didática, podemos dizer que o sistema Crispr é uma região de DNA, presente em algumas bactérias, que atua como verdadeiro mecanismo imunológico frente a alguns vírus. Concretamente essa sequência de DNA tem a capacidade de reconhecer os vírus que invadem as bactérias e descarregar sobre eles uma enzima, chamada Cas, que despedaça o vírus, e dessa forma, utiliza os fragmentos para imunizar a bactéria.
Em um experimento épico as pesquisadoras premiadas conseguiram reprogramar essa “tesoura genética”, provando que o sistema poderia ser controlado para cortar qualquer molécula de DNA, de qualquer espécie, em um local predeterminado, o equivalente a um GPS genético. No local em que o DNA é cortado, abre-se um espaço para a inserção de um novo trecho.
De tal forma, o Crispr-Cas9 é descrito como a “tesoura genética” que colocou ao alcance do ser humano a possibilidade de reescrever seu código genético, através de um simples exercício de cortar e colar. Sua precisão, facilidade de manejo e seu baixo custo, democratizou o uso da técnica e abriu o caminho para a construção de uma nova história evolutiva.
O Crispr-Cas9 atualmente tem muitas aplicações práticas, desde a modificação genética de animais ou vegetais, de forma a obter progressos no campo agropecuário e no controle de pragas, a cura de doenças, bem como a edição de células germinativas humanas.
Até recentemente seu uso estava muito concentrado nas modificações genéticas de interesse agrícola e na criação de animais, considerando seu enorme potencial em superar os principais desafios que acometem as lavouras, bem como a criação de animais geneticamente interessantes[7].
De forma simplificada, podemos afirmar que somente nos últimos anos, os pesquisadores já utilizaram o sistema de edição genética para projetar porcos pequenos, gado com maior porcentagem de massa muscular, alterar o trigo e o arroz, tornando-os mais resistentes a doenças. E ainda fizeram progressos na engenharia de cabras, bem como laranjas e tomates, enriquecendo-as com vitaminas[8].
Dentro das fazendas, apontam os pesquisadores, que muito embora o sistema Crisp-Cas9 permita a edição genética mais precisa e rápida, ao mesmo tempo torna mais difícil para os órgãos reguladores e para os fazendeiros identificarem os organismos modificados. Neste sentido[9]:
“Com a edição de genes, não há mais a capacidade de rastrear produtos de engenharia”, diz Jennifer Kuzma, que estuda política científica na Universidade Estadual da Carolina do Norte em Raleigh. "Será difícil detectar se algo sofreu uma mutação convencional ou geneticamente modificada."
Sempre brincamos com esses mecanismos evolutivos na agricultura e na criação de animais. Mas a seleção de caracteristicas interessantes aos seres humanos, mesmo através da seleção artificial, levava muito tempo para se estabilizar.
A potencialidade que a engenharia genética por meio do Crispr-Cas9 nos alçou é totalmente inédita. Podemos alterar uma população inteira de qualquer espécie vegetal, ou mesmo eliminar uma população de mosquitos, consideradas pragas agrícolas, em uma velocidade nunca antes presenciada na história da humanidade.
Essa é a potencialidade que inquieta os pesquisadores da área, ao ressaltarem a dificuldade em identificar se algo sofreu ou não mutação por manipulação genética. Alterar populações inteiras ou mesmo modificá-las, podem trazer consequências drásticas e desconhecidas para o ecossistema. A alteração de uma única população de mosquitos, por exemplo, pode significar o surgimento de outras pragas, ou mesmo afetar todos os predadores em níveis superiores na cadeia alimentar[10].
Quanto ao consumo humano de animais geneticamente modificados, por meio da edição genética, muitos países ainda não aprovaram ou mesmo anunciaram como tratará sua regulamentação.
Além da fazenda encontramos diferentes estudos envolvendo o sistema Crispr-Cas9 com a finalidade de buscar a cura para doenças genéticas humanas.
Como exemplo, podemos citar estudos recentes na área da cardiologia. Embora o contexto cardiovascular seja complexo, algumas patologias estão mais ou menos relacionadas a determinados produtos gênicos, cuja interação com outras moléculas já é conhecida, facilitando a viabilidade de utilização do sistema Crispr-Cas9[11].
Ainda, o sistema vem sendo aplicado em testes para o tratamento de várias outras doenças, como tumores e doenças do sangue, como a anemia falciforme[12] e até mesmo como tratamento para cegueira. Neste exemplo específico, os pesquisadores injetaram através da retina pequenas gotículas de um composto contendo um vírus inofensivo que possuía instruções específicas para levar o Crispr-Cas9 para o interior da célula do olho e, considerando que a cegueira é fruto de um gene específico, os pesquisadores acreditam que é possível eliminá-lo, corrigindo a visão dos pacientes[13].
E, em tempos de pandemia do novo coronavírus, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), desenvolveram um teste que faz uso da tecnologia Crispr-Cas, para a detecção do SarsCov2 (coronavírus responsável pela Covid-19), utilizando um bastão nasal e uma câmera acoplada em um celular comum.
A detecção do vírus é inovadora não sendo necessária a transcrição do RNA em DNA, tampouco o processo de amplificação, realizada através de PCR. Pelo método, quando a enzima se liga ao RNA do vírus, cliva toda a sequência genética ao redor, gerando uma fluorescência captada pela câmera, presa a um celular. Dessa forma em apenas 5 (cinco) minutos é possível saber se a pessoa está ou não contaminada com o vírus[14].
Todavia, ainda que as aplicações do sistema Crispr-Cas9, para a busca da promoção da saúde, do bem estar e de uma maior longevidade suscitem todo um entusiasmo, ao mesmo tempo, levantam muitos dilemas bioéticos, sociais, e/ou jurídicos, que precisam ser enfrentados e resolvidos pela sociedade.
E dentre todas as suas aplicações, a mais controversa, é a edição genética da linha germinal humana. Convém explicar que as pesquisas com embriões humanos não são a novidade que geram à controvérsia. Em alguns países essa pesquisa é regulamentada desde a década de 80. O que vêm sendo discutido é a edição do genoma humano, edições que serão passadas entre gerações.
Pela primeira vez na história está ao alcance do ser humano a possibilidade de reescrever seu próprio código genético. Não apenas é possível editar o genoma de células doentes, em busca da saúde, como é possível a edição genética de células germinativas, ou seja, a edição de nossa descendência, seja para a busca de uma cura para determinadas doenças, como para a criação de “filhos projetados”[15], ou mesmo para a existência de um “mercado de bebês”[16].
2.Ética na busca da “perfeição humana”
Podemos afirmar que já temos dois tipos de pessoas em nossa sociedade: as geneticamente modificadas e as pessoas não geneticamente modificadas, ou naturais.
O primeiro experimento que revolucionou a história da ciência envolvendo a manipulação genética do genoma humano em células germinativas, foi anunciado em 2015, por um grupo de pesquisadores chineses. O polêmico experimento realizado na Universidade Sun Yat-sen (Guangzhou, China) envolveu a edição genética de embriões humanos não viáveis com a finalidade de eliminar o gene da beta-talassemia (doença congênita muito grave que afeta o sangue).
Neste experimento o grupo de pesquisadores relatam que só conseguiram atingir seu objetivo em 4 (quatro) dos 81 (oitenta e um) embriões editados, concluindo que a técnica não estava totalmente madura para ser empregada em embriões humanos, mas que iam continuar os trabalhos em modelos animais e células humanas adultas[17].
Antes mesmo da publicação deste experimento, considerando a agitação do meio científico sobre a possibilidade de edição genética de embriões humanos, tanto a Nature, quanto a Science publicaram manifestos assinados por vários pesquisadores que advogavam por uma moratória sobre a pesquisa neste campo.
Edward Lanphier, um dos cientistas que assinaram o manifesto afirmou à época[18]:
“In our view, genome editing in human embryos using current technologies could have unpredictable effects on future generations. This makes it dangerous and ethically unacceptable. Such research could be exploited for non-therapeutic modifications. We are concerned that a public outcry about such an ethical breach could hinder a promising area of therapeutic development, namely making genetic changes that cannot be inherited.”
As razões apontadas pelos pesquisadores à época para interromper qualquer estudo sobre a edição genética realizada em embriões humanos podem ser resumidas em quatro pontos principais: a tecnologia não estava madura o suficiente para ser aplicada com segurança em embriões humanos, sendo impossível prever as consequências futuras, como o aparecimento de mutações graves nos organismos geneticamente editados; a existência de alternativas para evitar o nascimento de bebês com defeitos congênitos, como o diagnóstico pré-natal ou mesmo o pré-implantacional; os fins não terapêuticos das pesquisas, transformando o ser humano em uma commodity, com todas as suas consequências nos campos da ética, jurídica e social; e o risco de perder a confiança da população nos experimentos científicos[19].
A moratória advogada pelos cientistas serviria como uma forma de assegurar a não realização de experimentos controversos e ainda possibilitar um diálogo aberto sobre as melhores formas de proceder.
Muito embora a moratória voluntária dos Estados Unidos, no ano de 2018 os cientistas foram novamente surpreendidos por um vídeo publicado no Youtube, em que um cientista chinês, He Jiankui, alegava ter criado os primeiros bebês geneticamente editados, implantados em uma mulher que deu à luz duas meninas gêmeas chamadas Lulu e Nana, nascidas, segundo o pesquisador, em novembro do mesmo ano[20].
Segundo o pesquisador seu objetivo não era curar doenças hereditárias, mas criar a habilidade de resistir a possíveis infecções pelo vírus do HIV. Durante seu anúncio por vídeo ele afirma que as meninas são saudáveis e que o sequenciamento genético realizado nas meninas demonstra que a edição ocorreu como esperado, alterando apenas o gene alvo.
Cientistas de todo o mundo criticam fortemente a divulgação de Jiankui. O pesquisador não produziu nenhuma evidência sobre o experimento, não realizou nenhuma publicação oficial revisada por pares, padrão ouro de confiabilidade científica, sendo um experimento questionável sob os pontos de vista ético, legal e de saúde. Mais de 120 cientistas chineses também se manifestaram opondo-se ao experimento de Jiankui, classificando sua atitude como irresponsável, antiética e perigosa[21].
Como efeito, um novo pedido de moratória foi realizado em março de 2019 por um grupo de especialistas de 7 (sete) países. Dessa vez os pesquisadores clamaram por uma moratória mundial[22]:
“By ‘global moratorium’, we do not mean a permanent ban. Rather, we call for the establishment of an international framework in which nations, while retaining the right to make their own decisions, voluntarily commit to not approve any use of clinical germline editing unless certain conditions are met.”
O documento de 2019 requer que durante um tempo, nenhum país realize mais estudos clínicos sobre edição da linha germinativa humana, permitindo a reflexão das questões éticas, científicas, médicas, sociais e jurídicas sobre o tema. E ainda, passado o tempo reflexivo, mesmo que as nações sigam por caminhos diferentes, todos os estudos sejam abertos, de modo que se garanta o respeito aos direitos da humanidade.
Mais de dois anos após o nascimento das meninas chinesas com genomas editados, um painel organizado pela Organização Mundial da Saúde (WHO), resultado de uma primeira consulta ampla e global voltada à edição somática do genoma humano, apresentou novas recomendações que sustentam a ideia da irresponsabilidade da aplicação imediata das técnicas de edição genética em linhas germinativas humanas, bem como a necessidade de um registro global de todos os estudos que envolvam a edição do genoma humano[23]:
“A edição do genoma humano tem o potencial de avançar nossa capacidade de tratar e curar doenças, mas o impacto total só será percebido se o implementarmos para o benefício de todas as pessoas, em vez de alimentar mais desigualdades de saúde entre e dentro dos países”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.
Analisando de forma mais detida grandes potencias biotecnológicas adotaram medidas totalmente diferentes frente ao uso de ferramentas de edição genética. Os Estados Unidos asseguraram que seguiriam financiando pesquisas sobre edição genética direcionada às células adultas dos indivíduos, afirmando que alterar as células germinais era uma fronteira que não deveria ser ultrapassada.
Na obra “Editando o genoma humano: ciência, ética e governança”, importante documento da academia nacional de ciências e medicina dos Estados Unidos, são levantadas questões e recomendações sobre os estudos realizados na área. Assinalando a importância de se equilibrar os benefícios como os riscos não previstos na edição, a necessidade de se incorporar valores da sociedade nas aplicações clínicas, bem como respeitar as diferenças culturais entre as nações que estão realizando os estudos. Como princípios trazem o respeito à transparência dos estudos, da ciência responsável, da cooperação internacional, o respeito às pessoas que participam dos estudos, à ética e à sociedade[24].
Por sua vez o Reino Unido aposta em liderar os desenvolvimentos biotecnológicos, mesmo os mais controvertidos. Muito embora seja proibido desde 1990 a edição genética de embriões humanos para fins terapêuticos, por lei, é possível a realização de pesquisas sempre que se conte com a autorização da Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA). E no ano de 2016 a agência reguladora autorizou os estudos de um grupo de pesquisadores com edição genética em embriões humanos através do sistema Crirpr-Cas9, bem como experimentos com transferência mitocondrial (outro tema polêmico no meio acadêmico).
Por fim, a China, que aparentemente tem vários grupos trabalhando com edição genética sem qualquer autorização ou regulamentação sobre o tema.[25]
Concluímos assim que existe uma preocupação compartilhada por toda a comunidade internacional científica sobre o tema. No entanto, em contrapartida, na prática poucos países possuem regulamentação em vigor para o uso responsável das técnicas de edição genética, bem como, continua a existir uma corrida pela liderança do desenvolvimento biotecnológico assegurando a continuidade de pesquisas em todo o mundo.
Inegáveis são as possibilidades trazidas pela revolução científica que é a edição genética através da tecnologia Crispr-Cas9. A potencialidade de tratamentos médicos que intervenham na natureza para restaurar e preservar as funções humanas naturais, promovendo a saúde do ser humano, são animadoras. No entanto, junto à excitação da descoberta científica, surge uma forte inquietação bioética, pois na mesma medida que podemos curar doenças, abre-se caminho para uma corrida pela criação de “humanos perfeitos”, formas sofisticadas de eugenia, isso sem considerarmos o surgimento de novas doenças e mutações ainda não conhecidas e que podem comprometer a vida humana como a conhecemos.
3. Os efeitos da edição genética na sociedade: a bioética e a aplicação do Crispr-Cas9 com fins de eugenia
As descobertas científicas surgem para a humanidade de forma imediata como soluções para problemas antes insanáveis. A edição genética do genoma humano, revolução científica do momento, traz como promessa imediata a cura de doenças devastadoras, sejam elas congênitas ou não, bem como a prevenção de doenças gravadas em nossos genes, que poderão ser extirpadas antes mesmo de nosso nascimento.
Contudo, para além dos benefícios imediatos, se faz necessário pensar nas implicações mediatas que os avanços científicos carregam. A exploração de todo o potencial das técnicas de edição genética denota pretensões científicas de domínio sobre a vida humana[26].
Dentre os riscos mais frequentes, quando estudamos sobre edição genética, nos deparamos com a insegurança prática, vez que efeitos não desejados podem derivar da manipulação genética, ainda não são totalmente conhecidos. Em verdade, recente estudo publicado na revista Nature ressalta que a pesquisa científica precisa avançar muito para poder um dia ser usada com segurança em células embrionárias humanas. O artigo denuncia o problema: “Unespected mutations after Crispr-Cas9 editing in vivo”, ou seja, o surgimento de mutações indesejadas após o uso da ferramenta (off target)[27].
A eugenia é outro risco que temos que enfrentar quando tratamos de edições genéticas, ou seja, a possibilidade de utilizar a ferramenta de engenharia genética para escolher características nos seres humanos. Esse é o maior problema quanto à utilização da técnica.
Nesse tocante nos alerta o filósofo Julian Savulescu, diretor do Centro Uehiro para Ética Prática da Universidade de Oxford, no Reino Unido, em entrevista sobre os avanços biotecnológicos atuais[28]:
“Será impossível evitar a existência de um mercado clandestino de edição genética. As pessoas vão querer uma criança perfeita e estarão dispostas a pagar muito para ter uma. Podemos estar apenas diante do começo de um mercado clandestino da perfeição”
Na história, o ser humano sempre buscou a melhoria de sua própria espécie. Não raro vemos pais fazendo de tudo para garantir as melhores oportunidades para seus filhos, seja através de ótimas escolas, ou mesmo tratamentos que visam aumentar sua capacidade de concentração e desempenho nos estudos ou nos esportes.
Entretanto, um dilema moral surge quando passamos a utilizar os avanços científicos para melhorar nossas próprias capacidades físicas ou cognitivas. Quando justificamos o uso da engenharia genética, em busca de melhorias para a espécie caminhamos para a eugenia pura e simples.
Quanto à eugenia importante esclarecermos o uso de seu termo no contexto contemporâneo.
O movimento eugenista cunhado em 1883, por Francis Galton, tinha como grande ambição o aprimoramento genético da raça humana. O pesquisador, primo de Charles Darwin, acreditava ser possível produzir uma raça altamente talentosa de seres humanos através do casamento criterioso.
Com efeito, a ideia se disseminou pelos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX, constituindo adeptos que passaram a cobrar do Estado a criação de leis que regulamentassem a esterilização compulsória de pessoas com genes indesejáveis, levando assim a esterilização de mais de 60 (sessenta) mil pessoas no ano de 1907, no Estado de Indiana[29].
Na Alemanha a ideia eugênica se manifestou a partir da supremacia nacionalista e racial. Hitler um adepto ferrenho dos planos eugenistas de identificação, segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa, é o destaque cruel dessa teoria.
Após o cenário de assassinatos em massa e genocídio, da segunda grande guerra, os movimentos eugenistas perderam grande parte de seus adeptos, muito embora nos Estados Unidos, em alguns estados, tenha perdurado até meados dos anos 1970[30].
Nesta época, portanto, podemos falar de um movimento eugênico universal. Uma antiga eugenia que tinha como objetivo a evolução da espécie humana por meio de combinações genéticas por casamento, pela reprodução forçada entre humanos geneticamente superiores, esterilização forçada e mesmo o genocídio. Logo, nessa forma de eugenia, ressaltamos a ideia de colaboração, idealizada e realizada por meio de coerção estatal.
Ao estabelecermos que a edição genética embrionária de humanos pode ter como objetivo a eugenia, certamente não estamos tratando da mesma forma de eugenia do passado. Não há coerção do Estado, não falamos em esterilização forçada e em massa. Mas mesmo com todas as diferenças trata-se de uma forma de eugenia, já que sua finalidade é a mesma: aprimorar geneticamente a raça humana, podemos falar assim de uma eugenia contemporânea[31].
O discurso eugênico está revivendo, defendida por uma classe de pensadores como uma “eugenia liberal”. Neste sentido, Nicholas Agar nos apresenta:
“Enquanto os eugenistas autoritários da velha guarda buscavam produzir cidadãos a partir de um único molde de projeto centralizado, a marca que distingue a nova eugenia liberal é a neutralidade do Estado”
Explicando: para esses teóricos, defensores da eugenia liberal, o melhoramento genético não pode ser coercitivo, ou seja, o Estado não pode dizer aos pais quais as características devem ou não ser escolhidas, sendo que os pais deverão apenas seguir o princípio da escolha de características que melhorem as capacidades de seus filhos.
São defensores dessa nova eugenia, filósofos renomados como Ronald Dworkin, que sustenta que não existe nada de errado na ambição de tornar a vida futura dos seres humanos repleta de talentos, plena e longa[32], John Rawls, Allen Buchanan, Daniel Wikler, dentre outros.
Seus os argumentos parecem válidos, e até moralmente aceitáveis, como forma de preservar a humanidade, suas habilidades e prevenir uma difusão de defeitos e doenças graves, verdadeira forma de frear pressões evolutivas indesejáveis.
Por outro lado, não é preciso muito esforço intelectual para visualizar os problemas decorrentes de um movimento eugênico em nossa sociedade. Em uma análise simplista sobre o tema, podemos afirmar que apenas pais privilegiados teriam acesso aos “filhos perfeitos”, podendo escolher as melhores características que os manteriam em seus privilégios, perpetuando-se em suas castas de humanos engenheirados.
Às crianças, frutos de projetos idealizados por seus pais, em um segundo momento de abstração, perderiam o direito a seu futuro, pois suas habilidades seriam escolhidas antes mesmo de seu nascimento.
Por fim, sem pretensões quaisquer de esgotar o assunto, podemos trazer o fomento das desigualdades sociais, agora entre os engenheirados e melhorados geneticamente, armados de características que os fazem melhor adaptados à sociedade competitiva e, pessoas não engenheiradas, com suas limitações naturais.
Considerações Finais
A edição genética apresenta-se para a humanidade como uma técnica científica revolucionária com eficácia imediata para a prevenção e cura de doenças devastadoras, sejam elas congênitas ou não, bem como para a promoção do bem estar e longevidade, propiciando o acesso às melhores cultivos e criações para a alimentação do ser humano.
Sua técnica, como pontuamos no presente trabalho, vem sendo utilizada dentro e fora da fazenda, e tem grande apelo para a sociedade. Em termos de habilidades analisamos seu uso para correção de mutações indesejadas, criação de raças de animais com aumento de massa muscular, alimentos vitaminados, cura de doenças, tratamento e diagnósticos mais precisos.
Mesmo a edição de células germinativas tem um grande apelo devido sua capacidade de correção de mutações genéticas trazendo em si uma promessa de erradicar condições ou doenças hereditárias devastadoras.
Contudo, mudanças na linha germinal são hereditárias e podem resultar em efeitos imprevisíveis em gerações futuras, e quando falamos em edição genética na linha germinal do ser humano, abrimos caminho para práticas eugenias, criando uma super-raça.
Essa última promessa é marcada por complexas questões morais, bioéticas e jurídicas, é revela a dupla face da descoberta que revolucionou a forma como o ser humano passará a se enxergar neste momento.
De todo o trabalhado, temos como fato, que a técnica revolucionária do Cripr-Cas9 não pode e nem deve ser condenada, pois como analisamos pode trazer enormes benefícios à humanidade, no entanto, é preciso entender que essa descoberta não é isenta de riscos, não só quanto ao domínio, mas a forma como será utilizada.
Concluímos assim que a preocupação compartilhada por toda a comunidade internacional científica, acerca do domínio da técnica, sua aplicabilidade, principalmente no tocante à linha germinal humana, se justifica, sendo importante uma abordagem prudente e sobretudo responsável sobre o tema. No entanto, faz-se mais necessária ainda o diálogo de seu uso com as questões sociais, ambientais, éticas e morais, e com a sociedade, já que a ciência é feita por ela e para ela.
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[10] Idem.
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[18] Em nossa opinião, a edição do genoma em embriões humanos usando as tecnologias atuais pode ter efeitos imprevisíveis nas gerações futuras. Isso o torna perigoso e eticamente inaceitável. Essa pesquisa poderia ser explorada para modificações não terapêuticas. Estamos preocupados que um clamor público sobre tal violação ética possa prejudicar uma área promissora do desenvolvimento terapêutico, ou seja, fazer alterações genéticas que não podem ser herdadas.” - LANPHIER, E., et al. Don’t edit the human germ line. Nature. [internet] 2015. [acesso em 2021, out 10]. 519, 410–411. Disponível em:https://doi.org/10.1038/519410a
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[22] Por "moratória global", não queremos dizer uma proibição permanente. Em vez disso, pedimos o estabelecimento de uma estrutura internacional em quais nações, mantendo o direito de tomar suas próprias decisões, voluntariamente comprometer-se a não aprovar qualquer uso de linha germinativa clínica edição, a menos que certas condições sejam atendidas. LANDER, Eric S. et al. Adopt a moratorium on heritable genome editing. Nature. [internet]. 2019. [acesso em 2021, nov 19]. Disponível em: https://doi.org/10.1038/d41586-019-00726-5.
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[29] SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na engenharia genética. 4ª ed. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2021, p. 79.
[30] Idem, p. 81.
[31] Idem, p. 87.
[32] DWORKIN, Ronald. Playing God: Genes, Clones and Luck, in DWORKIN, Ronald, Sorvereign Virtue. Cambridge: Havard University Press, 200, p. 452.
Mestranda em Direito do Trabalho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Damásio, formada com honra e mérito acadêmico, 1º lugar da XX Turma. Especialista em Gestão Educacional, Direito Processual Civil e Constitucional, pelo Grupo Damásio Educacional. Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo, com iniciação científica em Neurociências e Comportamento, financiada pela FAPESP. Licenciada pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Palestrante e professora há aproximadamente 10 anos. Atualmente trabalha como professora tutora da pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho no Grupo Damásio Educacional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARAUJO, APARECIDA CAROLINE LEÃO DE. Crispr-Cas9: revolução científica e inquietação bioética Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58691/crispr-cas9-revoluo-cientfica-e-inquietao-biotica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
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Por: isabella maria rabelo gontijo
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