RESUMO: No presente artigo, resgata-se o referencial teórico que sustenta algumas categorias modernas como o livre-arbítrio e a igualdade, utilizando revisão bibliográfica para situar o modelo de responsabilização criminal inaugurado com as noções de contrato social e consequente limitação do poder de punir do Estado. As atenções se voltam então para a dogmática penal, modelo científico pensado para racionalizar a verificação da ocorrência de um delito, momento em que é feito um histórico da culpabilidade para situar sua formulação atual como juízo de reprovação pela prática de um crime. Como resultado, será possível observar como tal ideia (de juízo de reprovação) remete às categorias inicialmente mencionadas (livre-arbítrio e igualdade), pressupondo-as.
Palavras-chave: vontade; culpa; modernidade.
ABSTRACT: In this article, the theoretical framework that supports some modern categories such as free will and equality is rescued, when then a bibliographic review is used to situate the model of criminal accountability inaugurated with the notions of social contract and consequent limitation of power. to punish the state. Attention then turns to criminal dogmatics, a scientific model designed to rationalize the verification of the occurrence of a crime, at which time a history of culpability is made to situate its current formulation as a judgment of disapproval for the practice of a crime. As a result, it will be possible to observe how this idea (of judgment reprobation) refers to the categories initially mentioned (free will and equality), presupposing them.
Keywords: will; guilt; modernity.
1.INTRODUÇÃO
O estudo da dogmática penal brasileira, com ênfase na categoria da culpabilidade, exige a compreensão de seus elementos teóricos fundantes, a partir dos quais se poderá delimitar as situações para as quais foi pensada e os limites daí decorrentes.
Nesse sentido, as ideias de contrato social, igualdade entre os indivíduos e monopólio do poder de punir, além das formulações sobre crime e pena, terão destaque na breve contextualização feita neste artigo. Como ponto de intersecção escolhido para analisar as influências da modernidade na dogmática penal, especialmente na categoria da culpabilidade, está a liberdade, entendida como capacidade racional de tomada de decisões característica de todo indivíduo.
2.INFLUÊNCIAS DA ESCOLA CLÁSSICA NA CULPABILIDADE PENAL
2.1 O livre arbítrio como medida da responsabilidade e a pena como prevenção
O primado das considerações sobre a vontade livre no direito penal pode ser historicamente relacionado a construções teóricas influenciadas pelo Iluminismo do Século XVIII, período no qual se desenvolveu o que ficou conhecido como Escola Clássica. Sobre esta última, leciona Alessandro Baratta:
Quando se fala da escola liberal clássica como um antecedente ou como a ‘época dos pioneiros’ da moderna criminologia, se faz referência a teorias sobre o crime, sobre o direito penal e sobre a pena, desenvolvidas em diversos países no Século XVIII e princípios do Século XX, no âmbito da filosofia política liberal clássica. Faz-se referência, particularmente, à obra de Jeremy Bentham na Inglaterra, de Anselm von Feuerbach na Alemanha, de Cesare Beccaria e da escola clássica do direito penal na Itália” (BARATTA, 2011, p. 32)
Não obstante a identificação dos autores citados com essa fase de pensamento, não constituíram suas contribuições um todo organizado, sistemático, tendo apenas convergido em alguns pontos centrais (SHECAIRA, 2014, 90). É comum, porém, o destaque para Beccaria como aquele que condensou o conjunto de ideias esparsas da época, fortemente influenciadas por necessidades burguesas de racionalização do poder de punir (SHECAIRA, 2014, p. 88).
Beccaria (1999, p.27) entendia que cada homem detém uma liberdade individual cuja parcela era sacrificada com vistas à formação de uma soberania. Nas palavras do autor: “Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade [...]O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir” (BECCARIA, 1999, p. 29).
Com isso se tem a correlação entre liberdade e monopólio do uso da força, pela visão contratualista que permeia sua obra Dos Delitos e das Penas. Segundo a noção de contrato social, haveria um estágio precedente em que a liberdade era plena, mas existia lugar para o arbítrio desmedido como consequência. A cessão de parte dessa potestade individual a um terceiro garantiria o estabelecimento de uma ordem, que se infligida acionaria o único detentor do poder de punir, o Estado.
As concepções sobre o contrato social variam conforme os autores, não sendo a pretensão do momento explicitar suas diferenças. Ainda assim, Menezes (2008, p. 57) esclarece que “na base da iniciativa que montou o Estado pela via do contrato a ideia central é colocar no lugar da guerra, do caos e da natureza, a paz, a ordem e a regra e, com essa mudança, salvar o homem que, já indivíduo, renuncia à lei da selva e adota a lei civil”.
Em relação à liberdade a partir do contrato social, ela é formatada pelas limitações que sofre com o advento do Estado, no sentido de pôr fim ao império do mais forte. Para o autor, este é substituído pelo exercício daquela em outros termos, agora com a prevalência da lei (MENEZES, 2008, p. 62).
A igualdade entre os indivíduos, por outro lado, também aparece ressignificada na passagem ao estado de sociedade. Segundo MENEZES (2008, p. 63), “os modernos fizeram da universalidade a característica da igualdade. Nisso são diferentes dos antigos. A igualdade entre estes é uma particularidade para poucos, reconhecida apenas entre os bem-nascidos [...]”. Conclui dizendo que “o pensamento moderno rompeu com a ideia de que o nascimento pudesse justificar aquela distribuição seletiva de privilégios, de modo que, para alguns, tudo, e para muitos, nada” (MENEZES, 2008, p. 63).
Como é possível perceber, a igualdade também acontece para os modernos em decorrência do império da lei, entendida como modificador artificial das diferenças estabelecidas pelas convenções sociais (prestígio, nascimento).
Note-se aqui a tentativa de se distanciar de qualquer forma de organização social pretérita, a exemplo da antiguidade clássica, a fim de inovar na proposição do conceito de soberania.
Entretanto, não é somente a universalidade que caracteriza a igualdade proporcionada pelo contrato social, pois à garantia dos mesmos direitos como súdito soma-se também a compensação das diferenças naturais entre os homens no estado de natureza:
[...] o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legitima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens que, podendo ser desiguais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por convenção e direito (ROUSSEAU, 1983, p. 39)
Por derradeiro, com o contrato social se coloca a razão como fundamento das decisões humanas. Há confluências de sentido com o termo liberdade para decidir, por certo, mas será a razão a mola propulsora em tal proceder. Para Menezes (2008, p. 69), ela existe tanto para diferenciá-lo do selvagem, pois este não obedece às regras do pacto, como também para nortear a conduta.
Estabelecidas as premissas principais da modernidade, deve-se ter em mente que elas foram levadas em consideração no pensamento dos clássicos. Influenciados por considerações metafísicas e dedutivas, o seu esforço“[...]caracteriza-se por ter projetado sobre o problema do crime os ideais filosóficos e o ethos político do humanismo racionalista. Pressuposta a racionalidade do homem, haveria de se indagar, apenas, quanto à racionalidade de lei” (SHECAIRA, 2014, p. 87).
Mas não foi apenas o contrato social a fonte de inspiração dos clássicos. O Século XVIII também foi marcado pela limitação do poder de punir do soberano. Batista (2011, pp. 25/26) destaca o surgimento das “[...] ideias de legalidade e de outras garantias, e os conceitos chave de delito e pena. São estabelecidos limites para o método moderno de organização da verdade: punir em vez de vingar e estabelecer uma gestão seletiva das ilegalidades populares”.
A gestão das ilegalidades populares não vai ser discutida neste artigo, pela abordagem crítica que marca a genealogia da prisão (FOUCAULT, 2014), mas é possível identificar desde logo uma demanda pela organização do aparato administrativo-judiciário, fato que acarretou na incidência do nascituro direito penal de forma mais incisiva nos delitos contra a propriedade. Nesse sentido, não se pode olvidar a preciosa contribuição de Michel Foucault, para quem:
O verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde suas formulações mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais equitativos; mas estabelecer uma nova “economia” do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais entre instâncias que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social.” (FOUCAULT, 2014, p. 80)
Com isso se quer dizer que, desde sua origem, a Escola Clássica também pretendeu formatar a punição segundo racionalizações tendentes a melhor administrá-la, uma vez que era interessante que a previsibilidade da proibição veiculada em lei trouxesse segurança jurídica para a classe burguesa ascendente. O resultado disso foi a mobilização de uma punição certa em desfavor das camadas populares.
De qualquer forma, o discurso penal liberal se dedica a repensar os termos do monopólio do uso da força, de modo que “À exigência política de querer limitar o arbítrio e a opressão de um poder centralizado e autoritário somam-se as exigências filosóficas do jusnaturalismo de Grócio e do contratualismo de Rousseau” (SHECAIRA, 2014, p.88)
Sobre as repercussões no crime para os clássicos, Cristina Rauter observa que a produção legislativa encontra legitimidade no consenso do contrato social, inclusive para reprimir condutas violadoras da ordem social inaugurada. É que o indivíduo as pratica no uso de sua liberdade, sobre a qual recai a culpa (RAUTER, 2003, p. 25). Logo, pela condição de “partes responsáveis neste contrato, é em virtude dessa mesma responsabilidade que podem ser punidos, se ‘decidirem’ pela violação dos mesmos” (RAUTER, 2003, p. 28).
O crime seria então um ente jurídico, definido pela proibição contida na lei e cujo compromisso é a defesa social contra quem não cumpre com sua parte no acordo.
A seu turno, a punição aparece como medida tendente a conter a lesão causada pela transgressão à norma, ao passo em que possui também um componente dissuasório (BECCARIA, 1991, p. 52). Seria na leitura de Foucault a regra dos efeitos colaterais, segundo a qual a pena é também sentida por quem teve conhecimento da sua imposição ao infrator (FOUCAULT, 2014, p. 93). Portanto, o que se pretende com a pena”[...]não é a retribuição [...], mas a eliminação do perigo social que sobreviria da impunidade do delito” (BARATTA, 2011, p. 37).
É possível dizer então que se acredita historicamente na penalidade como instrumento para evitar novos delitos (prevenção geral positiva), mediante a dissuasão dos demais integrantes da sociedade quando sancionado aquele que violou o contrato social.
As inspirações filosóficas vão proporcionar o terreno necessário para o desenvolvimento de um direito penal minimamente sistematizado e preocupado com a racionalização do poder de punir. Sobre esse aspecto, Francesco Carrara foi o principal expoente do que veio a ficar conhecida como dogmática penal moderna. Baratta elucida sua importância nos seguintes termos:
Toda a elaboração da filosofia do direito penal italiano do Iluminismo, nas diversas expressões que nela tomam corpo, dos princípios iluministas, racionalistas e jusnaturalistas, de Beccaria a Filangieri, a Romagnosi, a Pellegrino Rossi, a Mamiani, a Mancini, encontra uma síntese logicamente harmônica na clássica construção de Francesco Carrara, nos densos volumes do Programma del corso di diritto criminale, dos quais o primeiro (parte geral) teve a primeira edição em 1859 (BARATTA, 2011, p. 35)
Ferreira (1998, p. 55) igualmente reconhece a influência do pensador no direito penal moderno especialmente quando observa que “a ideia do delito como ente jurídico e a da liberdade do homem, ao mesmo tempo súdito e conservador dos princípios morais [...] são alguns princípios básicos da doutrina estabelecida por Carrara”. Nas palavras do próprio autor, o “delito é um ente jurídico, porque sua essencialidade deve consistir, impreterivelmente, violação de um direito” (BARATTA, 2011, p.16 apud CARRARA, 1889, p. 28).
Para Carrara, portanto, a vontade tem papel de destaque, pois é a partir dessa consideração metafísica de liberdade humana que advém a concepção jurídica de delito (BARATTA, 2011, pp. 17/18). Nesse sentido, a utilização de deduções da realidade como método (BARATTA, 2011, p. 19) vai ser outro eixo na forma como será organizado o mandamento proibitivo contido na norma.
Finalmente, é oportuno mencionar as influências da crença nesse homem não apenas livre, mas detentor de uma razão que lhe move, no aspecto mais prático dos códigos criminais existentes hoje. Importa evidentemente concentrar a análise na realidade brasileira, para a qual a observação de Menezes sobre a herança dos clássicos é ilustrativa:
[...] o direito penal coloca à razão, de um lado, a serviço de sua sistematização, ora favorecendo uma estrutura que o divide numa parte geral e outra especial, ora classificando os crimes segundo os bens jurídicos que devem ser protegidos; de outro, cria institutos jurídicos cuja lógica contempla a razão como elemento indispensável na avaliação do injusto punível, por exemplo, o dolo [...] e a culpabilidade (a consciência do significado da ilicitude é um de seus elementos, de modo que corresponde à sua falta, quando inevitável, o erro de proibição como causa de exculpação (MENEZES, 2008, p. 73)
As permanências da Escola Clássica foram mais evidentes no Código Penal de 1940 e na modificação que este sofreu em sua parte geral no ano de 1984. Com relação ao primeiro, tem-se que “a teoria da vontade esposada por CARRARA foi seguida pelo legislador brasileiro [...], que acolheu a concepção de dolo e culpa como elementos da culpabilidade, pressupondo no agente condições psíquicas que lhe permitam avaliar o ato praticado” (FERREIRA, 1998, p.58)
Na reforma da parte geral do Código em 1984, por sua vez, Ferreira (1998, p.63) observa que o arcabouço geral foi preservado, de modo que o livre-arbítrio continuava a ser a medida da culpa. Finaliza a autora com o magistério de Ricardo Antunes Andreucci, para quem: “Ressurge, portanto, o carrariano esquema clássico, voltado para a tutela das liberdades individuais” (FERREIRA, 1998, p. 63 apud ANDREUCCI, 1985, p. 118).
De volta a uma perspectiva mais geral, Menezes (2008, p. 75) traz como assimilação pelo direito penal dos clássicos, no que se refere à vontade, os seguintes dizeres: “Toda imputação só se justifica se na base de sua ação o indivíduo for capaz de autodeterminação”.
A frase é sintomática do que se observa nos crimes cometidos em contexto de vulnerabilidade social do agente, em que o livre-arbítrio ocupa papel de destaque para fundamentar a censura, já que comumente na praxe judiciária se entende que há uma escolha possível.
Com essas considerações sobre o referencial teórico que inspirou as primeiras construções jurídico-positivas em matéria penal, passa-se à análise do estudo da culpabilidade e sua formulação atual no Brasil, a fim de que a influência dos clássicos possa ser observada a partir do acúmulo histórico sobre aquela categoria dogmática.
2.2- Da culpabilidade psicológica à culpabilidade normativa
Antes de adentrar no tema do desenvolvimento da culpabilidade, é importante a advertência de que o histórico dessa categoria se dá em um campo de disputa metodológico entre clássicos (método dedutivo) e positivistas (método indutivo), estes últimos influenciados por uma tentativa de dar um caráter científico, menos metafísico, ao Direito.
Segundo Davi Paiva, “O pêndulo do método da ciência criminal, como se viu, oscilou entre dois extremos metodológicos, o jusnaturalismo, em uma ponta, e o positivismo, na extrema oposta. Ali, a Escola Clássica; aqui, a Escola Positiva Italiana” (TANGERINO, 2009, p. 65).
O autor reconhece que esta última se distancia da concepção metafísica de ação, adotando um aporte naturalista em que ela aparece tripartida: como impulso de vontade, modificação da realidade, e a relação que se estabelece entre os dois (TANGERINO, 2009, pp. 67/68)
Apesar de não se ignorar as contribuições do positivismo, tanto no aspecto da ciência do direito penal causalista quanto na sua acepção criminológica do homem delinquente, com a superação paulatina desse lugar (na dogmática, pelo primado das considerações sobre a vontade no finalismo, a qual é valorada; na criminologia, pela desmistificação da criminalidade biologicista, ao menos no meio acadêmico[1]) os clássicos voltam a ganhar importância de análise nos idos da culpabilidade normativa[2].
Nesse sentido, é certo que o enfoque na Escola Clássica como referencial teórico cujas permanências jurídico-positivas são mais sentidas pelo traço do livre-arbítrio não exclui as incursões positivistas, por exemplo, no campo das medidas de segurança e imputabilidade penal (aspecto do positivismo criminológico), sem falar nas contribuições citadas no percurso da teoria analítica do crime (aspecto da Escola Positiva).
É que deve ser destacado o fato de que a pretensão dos positivistas, bastante inovadora, contribuiu para a racionalização científica[3] do poder de punir. Em outras palavras, isso significa dizer que “o estudo do direito positivo deveria atender às regras científicas, cedendo ao método naturalista; a compreensão do fenômeno criminal, no entanto, para além do manejo abstrato e racional das normas do Direito posto, demandava uma dimensão experimental” (TANGERINO, 2009, p. 66).
O presente artigo se ocupou até aqui de apenas um dos lados dessa disputa (os clássicos) primeiramente porque suas influências são percebidas mesmo após a cientificidade que teria adquirido o direito penal, quando se observa a configuração da dogmática atualmente, mas também pelo fato de uma outra opção metodológica (que abrangesse maior detalhamento da história do positivismo enquanto corrente de pensamento) demandar fôlego que excederia o recorte dado a este trabalho.
Quanto ao primeiro ponto, mesmo ciente da evolução dos institutos que se conhece hoje na dogmática a partir da Escola Positiva, os elementos fundantes da concepção de responsabilidade por um ato de vontade (que só será verificado efetivamente com o processo de normatização da culpabilidade) ainda podem ser reportados à Escola Clássica. Logo, o positivismo não rompe, mas acrescenta no acúmulo existente desde o Século XVIII.
Estabelecidas tais premissas, a dogmática penal começa seu desenvolvimento com a formulação de Lizst/Beling, em que “pela primeira vez surgem as quatro categorias centrais (ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) que se perpetuam em todas as teorias subsequentes, ainda que organizadas em combinações diversas” (TANGERINO, 2009, pp. 66/67).
A primeira fase da culpabilidade vai ser marcada pela sua característica psicológica, na qual o dolo e a culpa são suas espécies e a imputabilidade é um requisito que lhe precede (BITENCOURT. 2014, p. 442)
Como dito acima, é estabelecida uma relação causal entre a vontade do sujeito e um resultado materializado na realidade. Contudo, o elemento volitivo não será aquele que leva em conta a intenção do agente, mas sim impulsos que advém da conduta humana como causa de um resultado. Nas palavras de Davi Paiva Tangerino (2009, p. 68):
Em termos simplificados, como qualquer outro fenômeno natural o delito tem causa, a saber, a ação humana. Entretanto, não é toda e qualquer ação humana: onde Binding exigia a expressão de uma vontade moral, o sistema Liszt/Beling demandava, para além da relação causal/física, a mera existência de uma relação psicológica, isto é, de vontade, entre o autor e o resultado (nomeada de culpabilidade).
É uma vontade pensada em outros termos, porque se reporta ao dolo, entendido como “conhecimento que acompanha a manifestação de vontade de todas as circunstâncias do fato que acompanham o fato previsto em lei” (TANGERNINO, 2009, p. 69). Dessa forma, o simples resultado naturalístico imputável ao homem estabelece uma ligação psicológica a partir do conhecimento de ser ele responsável por sua ocorrência.
Corroborando a ideia de que os clássicos de algum modo influenciaram na Escola Positiva, Davi Paiva esclarece que na culpabilidade psicológica foi “mantido [...] o pilar da culpabilidade iluminista, a saber, a crença na existência de valores conjuntamente compartilhados, aos quais incumbe ao Direito Penal proteger” (TANGERINO, 2009, p. 75).
Todavia, o causalismo acaba por não considerar a vontade como intenção do sujeito em praticar o ilícito. Assim, como destaca Tangerino (2009, p. 72), “essa relação psicológica será muito empobrecida à luz da negação do livre-arbítrio, de que partem as ideias de Von Liszt”.
Além disso, outras críticas serão dirigidas à culpabilidade psicológica, a exemplo da impossibilidade de sustentar o conceito de culpa inconsciente, dado seu caráter normativo de violação do dever de cuidado; da inaptidão para abranger os delitos omissivos, pela inexistência de relação causal; e finalmente, da inexistência de espaço para exculpantes penais e critérios para graduar a culpabilidade (BITENCOURT, 2014, pp. 443/444).
É então que surge a culpabilidade psicológico-normativa (BITENCOURT, 2014) ou teoria complexa da culpabilidade (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011), cuja nomenclatura envolve a introdução de elementos normativos com o fato de ter preservado os psicológicos de outrora.
Nessa modalidade, dolo e culpa passam a ser elementos (e não espécies) da culpabilidade, ao lado do poder de agir de outro modo. Como ensina BITENCOURT (2014, p. 447), com o distanciamento da ideia de ser “o agente ser o portador da culpabilidade, de carregar a culpabilidade em si, no seu psiquismo, ele passa a ser o objeto de um juízo de culpabilidade, que é emitido pela ordem jurídica”.
Tinha-se então a imputabilidade, agora como elemento (e não como pressuposto) da culpabilidade, o dolo e a culpa, e o chamado poder de agir de outro modo. O dolus malus, como ficou conhecido, era formado pela vontade, previsão e consciência da ilicitude, sendo que apenas esta última tinha caráter normativo (BITENCOURT, 2014, p. 447)
Por sua vez, Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 524) reconhecem ter sido REINHARDT FRANK aquele quem cunhou o conceito de culpabilidade como reprovabilidade, pelo qual a teoria complexa exerce seu juízo de valor, ou seja, se faz normativa.
A formulação psicológico-normativa, porém, não sobreviveu às críticas. O componente psicológico ainda trazia problemas que não podiam ser solucionados sem o abandono por completo dessa sua natureza. O finalismo de Welzel, mediante a incorporação da teoria normativa pura, vai ser o sistema do delito que cumprirá esse papel. Nesse sentido, Bitencourt (2014, p. 449):
Como se sabe, o finalismo desloca o dolo e a culpa para o tipo penal, retirando-os de sua tradicional localização, a culpabilidade, com o que a finalidade é levada ao centro do injusto. Como consequência, na culpabilidade concentram-se somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito, e o objeto da reprovação repousa no próprio injusto.
Chega-se à atual formulação da culpabilidade no direito brasileiro, concebida como reprovabilidade do comportamento (injusto pessoal), este último objeto de valoração para proceder ao seu juízo positivo.
Com a consolidação do normativismo, em que se depuram todos os seus elementos subjetivos, a culpabilidade passa a ser formada pela inimputabilidade, possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa (BITENCOURT, 2014, p. 456).
No finalismo, portanto, ao contrário do causalismo, “ o juízo de culpabilidade não pode ser um conceito ontológico, que descreveria uma qualidade do sujeito, mas um conceito normativo, que atribui uma qualidade ao sujeito” (CIRINO DOS SANTOS, 2017, p. 280)
Essa atribuição está baseada na inexistência de motivos suficientes para se furtar à proibição, indicada pela “possibilidade concreta que tem o autor de determinar-se conforme o sentido em favor da norma” (BITENCOURT, 2014, p.459).
Nesse ponto é que entra o problema de que se ocupa este artigo, tendo em vista o critério utilizado para se aferir a atuação conforme o direito nas circunstâncias, a saber, a vontade livre.
Juarez Cirino (2017, p. 580) destaca que o ”fundamento material da culpabilidade [...] é definido pela capacidade de livre decisão do sujeito- e aqui está o problema: a tese da liberdade de vontade do conceito de culpabilidade é indemonstrável”.
O autor explica (2017, pp. 281/284), ainda sobre o conceito material de culpabilidade, que o finalismo de Welzel é partidário da teoria do poder agir diferente, a qual defende a ideia de que o “autor é reprovado porque se decidiu pelo injusto, tendo o poder de se decidir pelo direito. A base interna desse poder do autor reside na atribuída capacidade de livre decisão[...]”
BITENCOURT (2014, p. 460), partilhando desse diagnóstico, afirma categoricamente que o “livre arbítrio como fundamento da culpabilidade tem sido o grande vilão da construção moderna do conceito de culpabilidade e, por isso, mesmo, é o grande responsável por sua atual crise”.
Os clássicos voltam ao centro do debate justamente por conta dessa crença na vontade livre, no caso representada pela possibilidade de agir de outro modo. É o que se depreende da reflexão de Davi Paiva (2009, p. 91), para quem:
[...]a visão de sujeito de Welzel mantém-se inalterada em relação a seus antecessores: tal qual nos clássicos, acredita ele na capacidade inata do ser humano de submeter seus instintos a uma ordem valorativa externa que se confunde com o próprio ordenamento jurídico. [...]Essa posição sintetiza a crença no homem iluminista e na existência de valores compartilhados universalmente, protegidos pelo Direito (penal).
É essa noção de sociedade do consenso iluminista, na qual o indivíduo ajusta sua vontade à previsão contida na norma, que será duramente criticada pela sociologia do crime. Isso porque por ter trazido “a existência de subculturas, a ciência social pôs em relevo a existência de uma sociedade plural, com diversos sistemas de valores ‘divergentes’ em torno dos quais se organizam os grupos” (TANGERINO, 2009, p. 154).
Dito isto, um comportamento exigido pelo Direito, parâmetro em relação ao qual contrasta o agir de outro modo, não representaria um conjunto de valores voltados a proteger os interesses mais caros aos cidadãos, mas sim resultado de certos valores, em relação aos quais serão lidas as situações colocadas à apreciação.
A partir dessa problematização inicial sobre o livre-arbítrio é que se finaliza o histórico da culpabilidade, importando agora pensar os termos em que se dá a mobilização da Inexigibilidade de Conduta Diversa - ICD para evitar a censura, bem como os limites que ela enfrenta.
Como se verá a seguir, a exculpante ainda luta para se afirmar no campo teórico como causa supralegal apta a infirmar o juízo de culpabilidade, e mesmo quando aceita, não encontra o resultado esperado em situações limítrofes da praxe forense, o que reafirma a hipótese de que os valores pelos quais a censura se estabelece estão comprometidos em efetivar o indicativo de criminalização.
O que se pode adiantar é que, ao se adotar um referencial teórico mais crítico, a tentativa de se desvencilhar da censura esbarra no problema da vontade que é valorada. Quando não se leva em conta o dado da seletividade do direito penal, como o faz a Escola Clássica pela sua crença na vontade livre, persiste o obstáculo epistemológico de que as opções da sua clientela, quando do cometimento do ilícito, têm o mesmo peso daqueles que não se encontram em posição vulnerável perante o sistema.
Como será visto, elas não têm. E é por isso que a própria noção de reprovabilidade vai ser posta em xeque, quando lida a partir da crítica criminológica que desnuda as funções ocultas do direito penal.
Antes disso, será importante um olhar mais detido da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exculpação, a fim de diagnosticar seus limites para traduzir as condicionantes socioeconômicas na formação da vontade como aptas a infirmar o juízo positivo de culpabilidade.
2.3- A inexigibilidade de conduta diversa e seu lugar problemático no direito penal
O objetivo com o estudo da exculpante em apreço é fazer um levantamento de quando ela surge na dogmática penal, tendo como enfoque sua acepção como causa supralegal de exclusão no terceiro estágio da teoria analítica do crime, incluindo aí as dificuldades que encontra para se firmar como tal no campo teórico ante o dilema da vontade livre.
De início, é preciso ter em mente que a inexigibilidade de conduta diversa comporta hipóteses expressamente previstas nos códigos criminais. No caso brasileiro, o Código de 1984 trouxe a coação irresistível e a obediência hierárquica[4] (SILVA, 2006, p. 125), além da específica previsão no crime de favorecimento pessoal[5] (MENEZES, 2008, p. 154). Assim, a adoção de uma exculpante fora desses termos, ou seja, sem que a lei tenha estabelecido a factispecie de sua ocorrência, é tema que sempre gerou polêmicas na doutrina.
Sobre o surgimento da exculpante, Cirino dos Santos (2017, p. 278) leciona que “FREUDENTHAL concebe o conceito de inexigibilidade como fundamento supralegal de exculpação [...]”. Por sua vez, Zaffaroni e Pierangeli acrescentam que:
“[...] Freudenthal e seus seguidores inauguraram um posicionamento que tornava possível a concepção de inculpabilidade não limitada pelas causas de exculpação, contidas nos textos legais, mas também é abarcando qualquer outra situação fática, em que não fosse possível exigir-se do sujeito a realização de outra conduta. Deste modo, a inexigibilidade de outra conduta passou a ser, praticamente, uma causa supralegal e independente da ausência de culpabilidade” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, P.569)
Apesar da tradicional referência ao pensador, Menezes (2008, p. 152) pondera que tal conclusão não é retirada expressamente da obra de FREUDENTHAL, tendo a doutrina contribuído para se chegar à formulação supralegal da exculpante mencionada.
De todo modo, a aplicabilidade de tais ideias fora do plano teórico é questão diversa sobre a qual recai a importância de sua investigação.
Para fazer essa ponte com a práxis jurídica, aqueles autores que apostam na aplicabilidade da ICD para dinamizar a operacionalização da dogmática no caso concreto o fazem sob diferentes perspectivas, sendo que serão citadas aqui duas posições. No entanto, todas as tentativas ainda se situam no contexto da culpabilidade normativa, em que a censura é efetivada mediante a valoração do comportamento.
Como exemplo disso tem-se Juarez Cirino dos Santos, para quem “o princípio da alteridade- e não a presunção de liberdade- deve ser o fundamento material da responsabilidade social e, portanto, de qualquer juízo de reprovação pessoal pelo comportamento social” (CIRINO DOS SANTOS, 2017, p. 285). A alteridade para o autor “permitiria fundamentar a responsabilidade pelo comportamento social na normalidade de formação da vontade do autor de um tipo de injusto” (CIRINO DOS SANTOS, 2017, pp. 285/286).
Isso significa que uma análise do que é considerado normal no caso concreto, reconhecendo-se o outro que se coloca frente ao julgador, e verificando-se em que termos se deu a atuação volitiva, seria o caminho para se chegar a uma possível inexigibilidade do comportamento.
Algumas dificuldades para a efetivação desse exercício de alteridade podem ser resumidas na seguinte lição de Alessandro Baratta:
“[...] o insuficiente conhecimento e capacidade de penetração no mundo do acusado, por parte do juiz, é desfavorável aos indivíduos provenientes dos estratos inferiores da população. Isto não só pela ação exercida por uma série das chamadas “teorias de todos os dias”, que o juiz tende a aplicar na reconstrução da verdade judicial” (BARATTA, 2011, p. 177)
O problema então seria a definição do que seria uma situação anormal. Como se depreende da lição de Baratta, há uma tendência de que um cenário dotado de características peculiares no quesito socioeconômico seja insuficiente para infirmar a prevalência da liberdade de agir, analisada no contexto da valoração da vontade reprovável aos olhos do julgador.
Em outras palavras, nem toda condicionante, especialmente se informar vulnerabilidade, é aceita na operação mental de Inexigibilidade de Conduta Diversa - ICD, mas apenas as que influem na liberdade, entendida como opção que se pressupõe toda pessoa ter ao agir[6]. A questão da anormalidade, portanto, já é mobilizada amplamente como matéria de defesa na alegação de causa supralegal de exclusão da culpabilidade, mas o panorama jurisprudencial aponta para um insucesso na maioria dos casos.
Com isso é reforçado que uma questão de entendimento do magistrado perpassa também por outros planos que não o jurídico, mas sobretudo as justificações, comprometimentos e implicações necessárias ao proferir uma sentença penal, ao que se soma uma postura frente ao problema que, como será visto, é político em sua essência, já que versa sobre o poder de criminalizar.
Dando continuidade aos caminhos para a aplicabilidade da ICD como causa supralegal de culpabilidade, e em tese especificamente dedicada ao tema, Menezes (2008, p. 181) defende, ao seguir uma linha inédita e de inspiração filosófica, a adoção da inexigibilidade de conduta como topoi. Nas palavras do autor:
A inexigibilidade de conduta diversa é isso: um topoi, ou seja, a fórmula de solução de problemas no setor das exculpantes penais, aplicável ali onde, a partir do sistema do delito, já não há mais saída para quem, dotado de razão e subjetividade, e sendo ainda consciente de si, livre e igual a todos, apenas reivindica ser reconhecido como indivíduo” (MENEZES, 2008, p. 181).
Aqui são retomados alguns pressupostos modernos (liberdade, razão, igualdade) para o enfrentamento do problema da culpabilidade, ainda que a tome como ponto de partida e o jurista se socorra de um princípio argumentativo. É o que se depreende quando o autor afirma que “apenas fica reconhecido seu caráter limitado e é a partir desse ponto que se instaura o caminho pelo qual a inexigibilidade ao se encontrar com a tópica se assegura de sua legitimidade (MENEZES, 2008, p. 187).
O marco de referência teórico adotado pela vertente crítica da criminologia, entretanto, é firmado na insuficiência do plano jurídico para entender as razões pelas quais uma ferramenta como a ICD (acepção supralegal) não dá conta de afastar a reprovação (ao menos no aspecto que se pretende discutir neste artigo).
Isso porque o componente principal dos crimes em que se alega a exculpante, no recorte feito para se tentar um possível enquadramento, é socioeconômico, e não de vontade. Ele se reporta a condicionamentos que repercutem em desnudar as desigualdades estruturais na aplicação do Direito, especialmente do direito penal.
Não se trata, é importante esclarecer, de negar as contribuições jurídicas que bem traduzem a racionalização do poder de punir, desde o surgimento do direito penal como seu limite até o caráter científico mencionado no tópico referente à evolução histórica da culpabilidade.
Pelo contrário, é necessário que a elas se somem outras abordagens que permitam compreender a crença na ideologia da defesa social (BARATTA, 2011), crença esta que resulta em decisões como aquelas que defendem a liberdade de agir mesmo em situações de vulnerabilidade e privação socioeconômica. É o que defende Busato (2011, p. 56), para quem “as raízes da chamada crise da culpabilidade, quando vistas mais de perto, revelam-se como transcendentes ao problema jurídico”.
A insuficiência da inexigibilidade de conduta diversa é revelada pela necessidade de se estabelecer uma valoração do comportamento, para que então se decida pela sua reprovabilidade. Tal juízo permite que se aceitem algumas condicionantes e se excluam outras, segundo certos interesses.
Sobre tais interferências na vontade, Paulo Cesar Busato, ao mencionar a existência de correntes semiabolicionistas, é elucidativo:
Este mundo, sem dúvida, condiciona os sujeitos, formando uma massa de excluídos. Essa exclusão não é somente da participação na sociedade de consumo, mas do próprio espaço, levando a uma importante limitação da liberdade de escolha, o que aflige, diretamente, o conceito de culpabilidade (BUSATO, 2011, p. 80)
A doutrina penal, ao estruturar a possibilidade de aceitar a ICD como causa supralegal passível de ser aproveitada no caso concreto, esbarra no problema da vontade que permeia a culpabilidade normativa, a qual tem por base a censura. Paulo Cesar Busato diagnostica que “o fundamento material da reprovação era constituído pelo ‘poder atuar de outro modo’, que nada mais é do que uma expressão que contém a ideia de livre arbítrio” (BUSATO, 2011, p. 53).
Contudo, o autor prossegue com a ressalva de que “o próprio sistema punitivo é um produtor da criminalidade e um forte elemento condicionante da possibilidade sociológica de obediência ou não das regras de convivência jurídico-penalmente impostas” (BUSATO, 2011, p. 53/54).
Outro ponto importante sobre a censura ao comportamento inaugurada pela culpabilidade normativa é a representatividade dos valores envolvidos nessa operação. O parâmetro do agir a que se chega, sob a alcunha de que o Direito o exige, seria localizado no espaço social quando se lê a questão sob uma perspectiva sociológica.
Para compreender isso, é essencial retomar a ideologia da defesa social e sua concepção acerca do princípio da culpabilidade, sustentáculo do crime como objeto de reprovação por se afigurar dissonante dos valores compartilhados socialmente (BARATTA, 2011, p. 42).
A teoria das subculturas criminais, na contramão desse raciocínio, terá o papel de por em xeque a culpabilidade, a partir da noção de que “existe não apenas um único sistema oficial de valores, senão também uma série de subsistemas que se transmitem aos indivíduos por meio de mecanismos de socialização e aprendizagem específicos [...]” (BARATTA, 1981, p. 09).
Dentre os efeitos da assunção de que existe toda uma diversidade de valores pelos quais as condutas são lidas na sociedade, tem-se que o juízo feito pelo magistrado na ICD não está fundado em interesses da sociedade em geral, os quais o Direito informaria mediante imposição de norma incriminadora, mas sim em reflexos de certos interesses formalizados pela via legislativa.
E mais, a posição do magistrado da causa no espectro de valores mencionado não deixa de ser um fator determinante para a leitura dos comportamentos que a ele se apresentam. Logo, tanto legislador como juiz se encontram imersos no contexto acima descrito. Como ensina Baratta (1981, p. 17), a “maioria das regras derivadas de fatores como o comportamento e a socialização do juiz penal, que encontram expressão nos seus preconceitos e estereótipos, escapam à competência da ciência jurídico-penal”.
É igualmente válida a esse respeito a advertência de SILVA, para quem:
Não se poderá olvidar portanto, na presente abordagem, e mesmo em todo o conteúdo desta postura temática, o entendimento que, um valor representará sempre um valor para alguém, sendo mesmo impossível à primeira vista, desvincular-mos o juízo e o valor dos elementos anímicos de quem valora, e dessarte, a aproximação no direito penal do exigível, do real, será sempre relativo às realidades de quem valora, seja este o legislador, o operador do direito, ou mesmo o autor de um fato típico” (SILVA, 2006, p. 135).
Diante desse panorama de crise que vive a culpabilidade normativa, no qual se insere a ICD, há necessidade de se socorrer de contribuições proporcionadas pela criminologia da reação social, especialmente de sua vertente crítica, a fim de entender as limitações da dogmática para evitar a criminalização em um contexto de vulnerabilidade social do agente. Com isso, será possível entender que o direito penal da modernidade, registro que compreende toda a construção dogmática que teve origem no Século XVIII, é estruturalmente organizado para selecionar as populações mais vulneráveis como regra, em desfavor das quais também se direciona a efetivação do mandamento incriminador pelas instâncias oficiais. Em razão de extrapolar o objeto do presente artigo, finaliza-se com o panorama da construção moderna da culpabilidade deixando claro seus elementos teóricos fundantes, remetidos aos princípios basilares da Escola Clássica.
3.CONCLUSÃO
O direito penal construído a partir do Século XVIII se revelou baseado em uma noção de sociedade do consenso, em que os valores seriam partilhados por todos e a violação da norma implicaria inaptidão para obedecer o contrato social, autorizando a responsabilização através da pena na medida em que a liberdade foi utilizada em desfavor do grupo.
A dogmática então reproduz a ideia de livre-arbítrio na consolidação da culpabilidade normativa, inaugurada pelo o finalismo de Welzel como setor que valora o comportamento para lhe atribuir censura, uma vez que contrário à proteção dos bens jurídicos mais caros à sociedade. Esse seria o interesse extraído do parâmetro de conduta exigido pelo direito, cuja opção livre do agente em dele se distanciar acarreta considerar que poderia ter ajustado sua conduta.
Foi visto ao longo do artigo que esse juízo facultado pela operação mental de exigibilidade de conduta é bastante relativo, uma vez que é preciso estabelecer de antemão que tipo de interferência na vontade é aceitável nas regras do jogo, ou seja, o que condiciona a ação, o que define se é impossível agir de outro modo; como se esteve a falar de uma cláusula argumentativa aberta, a princípio não haveria nenhuma restrição para as alegações defensivas.
Não obstante já se saber que a culpabilidade normativa é valorativa, geralmente não se declara que o parâmetro de conduta exigido pelo direito penal também possui esse caráter, pois diz respeito a um sistema de valores dominante porque ganhou formalização pela via legislativa e se tornou, portanto, padrão a ser observado coercitivamente.
Essa conclusão, extraída inicialmente a partir da teoria das subculturas criminais, aflige duramente o conceito de culpabilidade, pois se a sociedade não compartilha valores universais é possível buscar-se a justificação do ato praticado dentro do sistema de valores de que o grupo se utilizou. Para se reprovar a conduta, portanto, é necessário se declarar a adoção do sistema de valores dominante.
A fratura inicial na culpabilidade vai ser amplificada com o desenvolvimento da criminologia da reação social, uma vez que a virada epistemológica para observar as agências de punitividade inaugura uma discussão sobre o crime como papel social negativo, cuja atribuição implica investigar o que determina o poder de criminalizar. Em sua vertente crítica, chega-se ao domínio das relações de produção como sua principal fonte, sendo que em outros autores aparece a ideia de posições estratégicas que garantem a fruição do mencionado poder.
No referencial teórico da Escola Clássica, mantido ao longo da cientificidade que adquiriu as categorias dogmáticas penais, a liberdade e a igualdade implicam considerar que todos os indivíduos estão numa mesma posição perante o sistema.
Na contramão desse entendimento, a criminologia crítica considera que a vontade de alguns indivíduos tem mais importância para o direito penal quando observado o dado da seletividade, o que reforça a existência de funções ocultas de utilização desse saber para manter as desigualdades sociais e a população marginalizada sob controle.
Desse modo, ao lado da função limitadora do poder de punir trazida com o direito penal burguês foram estabelecidas relações de hierarquia e sujeição entre os indivíduos, informadas pelos papeis sociais que ocupam. Estes últimos determinariam a maior ou menor incidência do aparelho de justiça como mecanismo de controle. Os agrupamentos sociais mais frágeis seriam então agenciados caso violassem a ordem garantida pela norma jurídica.
Considerando os indicativos sociais de vulnerabilidade a partir de um recorte de classe, manifestados na baixa escolaridade, ausência de ocupação no mercado de trabalho formal e dependência da renda do núcleo familiar, além de outros que possam informar algum tipo de estereótipo, tem-se a base sobre a qual recai preferencialmente a criminalização.
Portanto, ao deslocar o olhar para as agências, é possível dizer que elas mesmas condicionam a possibilidade de agir conforme a norma, na medida em que elegem como proibidas condutas típicas das populações vulneráveis e aplicam o Direito para confirmar a seleção anteriormente realizada, administrando a punição para gerir a massa de excluídos em um nível tolerável ao status quo.
Em razão da disfuncionalidade inerente ao funcionamento do direito criminal moderno pelo saber criminológico mais crítico, se faz importante o exercício teórico de voltar às origens das construção do saber criminal para entender algumas contradições verificadas na aplicação de algumas categorias da dogmática, o que foi o objetivo deste artigo.
Conclui-se então que a modernidade iluminista, da qual se origina a Escola Clássica da criminologia, encerra uma série de postulados essenciais ao desenvolvimento científico do direito penal, tais como a liberdade, igualdade e a razão, assim como foi um período em que se originaram formulações valiosas em torno das garantias individuais frente ao Estado. Concomitantemente, ao buscar sustentação teórica em torno do contrato social, foi possível dar um caráter de universalidade às intervenções penais dirigidas à preservação do valor propriedade, gerindo as ilegalidades populares de uma maneira mais intensa enquanto outros comportamentos socialmente problemáticos deixaram de sê-lo.
Especificamente na categoria da culpabilidade, foi demonstrado que sua formulação como juízo de reprovação não deixa de levar em conta pressupostos modernos como livre-arbítrio e igualdade, na medida em que são necessários para o funcionamento regular de um sistema de responsabilização. Tais princípios, entretanto, não são absolutos, devendo ser confrontados com o saber teórico que aponta certas relações de poder e disputa de valores sociais como a base do processo de criminalização, o que serve à ideia de que a dogmática penal como concebida encerra uma possibilidade historicamente localizada, e não um dado da realidade.
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[1] No senso comum, ainda são verificadas permanências do positivismo criminal.
[2] Como se viu no tópico pretérito, a influência no código criminal brasileiro é manifesta.
[3] A racionalização para os clássicos significava a limitação do poder de punir com o estabelecimento de garantias e definição filosófica e racional do delito e da pena. Para a Escola Positiva, que traz um caráter científico ao direito penal, se inova com a criação dos institutos, sua sistematização segundo regras próprias de validação do conhecimento (TANGERNINO, 2009, p. 72).
[4] Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem
3[5] § 2º - Se quem presta o auxílio é ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena.
[6] Por esse conceito, as pessoas são colocadas em um mesmo plano.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Judicial de Sergipe. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) em Sergipe. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAZ, GABRIEL PARAIZO DANTAS. O papel da escola clássica na construção da culpabilidade penal moderna: entre o livre arbítrio e a crença na igualdade perante a lei. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58829/o-papel-da-escola-clssica-na-construo-da-culpabilidade-penal-moderna-entre-o-livre-arbtrio-e-a-crena-na-igualdade-perante-a-lei. Acesso em: 23 dez 2024.
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