RESUMO: A evolução do futebol em todo o mundo e a necessidade de adequação das relações de trabalho existentes entre os jogadores e seus respectivos clubes aos dias atuais, implicou em alterações legislativas e disputas judiciais. O tema encontra-se em plena atualização, uma vez que estas relações transcendem o âmbito trabalhista e necessitam de estudo mais aprofundado. Esse estudo tem como propósito auxiliar os aplicadores do direito na compreensão da dimensão do direito à liberdade nas relações de emprego.
Palavras-chave: Trabalho; Liberdade; Bosman; Emprego;
SUMÁRIO: Introdução. 1 - O jogador de futebol como trabalhador. Um breve histórico. 2 – O Direito ao Trabalho e a Ausência de Liberdade do Jogador de Futebol. 3 - Jean-Marc Bosman. 3.1 – A motivação do processo. 3.2 - O processo judicial no Tribunal Europeu. 4 - Os reflexos da decisão judicial. Conclusão.
CONTENTS: Introduction. 1 - The soccer player as a worker. A brief history. 2 - The Right to Work and the Absence of Freedom of the Football Player. 3 - Jean-Marc Bosman. 3.1 – The motivation of the process. 3.2 - The judicial process at the European Court. 4 - The consequences of the court decision. Conclusion.
ABSTRACT: The evolution of football around the world and the need to adapt the existing working relationships between players and their respective clubs to the present day, resulted in legislative changes and legal disputes. The theme is currently being fully updated, as these relationships transcend the labor sphere and need further study. This study aims to help law enforcers understand the dimension of the right to freedom in employment relationships.
Keywords: Work. Freedom. Bosman. Employment.
Introdução
O presente estudo tem o objetivo de reafirmar o caráter profissional dos atletas profissionais de futebol e a relação tipicamente de emprego que estes trabalhadores mantêm com os clubes. E neste aspecto, o propósito foi demonstrar que como empregados, os atletas têm assegurado o direito à liberdade de trabalho, que inclui o direito à livre escolha de seus empregadores.
Inicialmente, o artigo descreve, em uma breve síntese, como o praticante de futebol passou a ser considerado um trabalhador em sentido estrito. O estudo também aponta que, a despeito do reconhecimento da relação empregatícia entre jogador e clube, durante praticamente todo o século XX, os regulamentos de transferência estabelecidos pelas entidades que organizam o esporte feriam o direito à liberdade de trabalho.
Diante destas premissas, o artigo analisou a reclamação trabalhista ajuizada pelo ex-jogador de futebol Jean-Marc contra o clube de futebol RFC Liège, cujo processo chegou ao Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e as repercussões da decisão desta Corte nas relações profissionais desportivas.
1. O Jogador de Futebol como profissional. Um breve histórico.
É história recorrente no âmbito esportivo, o fato de clubes terem sua origem no agrupamento espontâneo de operários de fábricas, os quais praticavam futebol no período de lazer e autonomamente organizavam suas competições.
Como o próprio nome já sinaliza, o Arsenal Football Club[1], por exemplo, é um clube fundado em 1886, a partir da união de trabalhadores da Woolwich Arsenal Armament Factory.
Tal qual o caso do Arsenal, há uma série de outros exemplos de clubes fundados pela iniciativa de trabalhadores mundo afora, tais como: o PSV Eindhoven[2] (Philips Sport Verening Eindhoren) na Holanda, surgido a partir da iniciativa de trabalhadores de Philips; o Bayer Leverkusen[3], na Alemanha, clube formado a pedido de empregados da empresa química alemã Bayer; o Emelec[4], clube equatoriano, cujo nome é o acrônimo de Empresa Eléctra del Ecuador entre outros.
No Brasil não foi diferente. Também temos aqui exemplos como o Corinthians[5], na capital paulista; a Ferroviária[6] de Araraquara; o Bangu[7] no Rio de Janeiro e outros tantos.
Inicialmente com o objetivo lúdico, as competições se intensificaram e não raro eram os casos de jogadores de futebol que passaram a receber das empresas para praticar o esporte, deixando de lado as atribuições como operários.
Curiosamente, porém, esta era uma prática repudiada. O entendimento dominante à época era no sentido de que o esporte não poderia ser remunerado, seria antiético receber para jogar.
Sobre o assunto, escreve José Eduardo Coutinho Filho[8] que:
“Com o passar do tempo, os operários que demonstravam certa habilidade com a bola, passavam amiúde a compor os times dentro das fábricas, alcançando tratamento diferenciado por parte do empregador e passando, inclusive a atuar somente como atleta, deixando a linha de produção. E foi daí que o operário deixou o chão da fábrica para pisar nos gramados espalhados na cidade”.
O fato é que o futebol se agigantou, tornou-se fenômeno social e um instrumento de mobilização de massas. Aquela autonomia dos pioneiros do esporte e o caráter lúdico das competições foram dando espaço para a profissionalização pelos praticantes e o esporte passou a assumir verdadeira feição de atividade econômica.
Foi exatamente neste contexto que foi concebido no Brasil, o Decreto-Lei nº 3.199/41, que tratou de transferir ao Estado o controle da organização do esporte. Tratava-se da primeira legislação desportiva do país.
Nas décadas seguintes foram editadas diversas normas regrando a relação entre os atletas e os seus clubes. Avançou-se a tal ponto que em 1964, o Decreto-Lei nº 53.820, reconheceu o jogador de futebol como empregado e o clube como empregador. Atualmente vigora no Brasil a Lei nº 9.615/1998, denominada Lei Pelé, que regula as relações de trabalho entre atletas e clubes.
Sobre o tema e com a clareza que lhe é peculiar, João Leal Amado[9] assim leciona:
“A tese de que um desportista profissional pode ser um trabalhador por conta de outrem é hoje uma tese praticamente pacífica. Tão pacífica, disse-se-ia, como a própria existência do desporto profissional. Porém, assim como a afirmação do desporto profissional consistiu num processo longo e conturbado, recheado de contestação e reserva, também o status de trabalhador assalariado para praticante desportivo suscitou claras rejeições ou, pelo menos, algumas reticências. Na doutrina portuguesa, e para dar apenas um exemplo, Constantino Fernandes, na sua obra pioneira em matéria de direito desportivo, O Direito e os desportos, rejeitava a eventual existência de um contrato de trabalho vinculando um desportista e clube “porque nem o desporto é trabalho em sentido económico, nem a associação desportiva exerce uma atividade produtora de valores comerciais ou industriais.
Nos nossos dias, porém, não há razões para a persistência sérias quanto a este ponto. E, diga-se em abono da verdade, poucos parecem tê-las. Com efeito, hoje é líquido que, como ensina a doutrina, qualquer atividade, desde que lícita e apta para a satisfação de um interesse do credor digno de tutela jurídica, pode constituir um contrato de trabalho. Não existe, na verdade, um numerus clausus, de atividades laborais. E também não existe qualquer antagonismo insuperável entre o jogo e o trabalho, entre desporto e profissão”.
Parece-nos que realmente já não há mais espaço para discussão sobre a possibilidade de formação de vínculo empregatício entre jogador de futebol profissional e o clube para qual o atleta se ative.
2. O Direito ao Trabalho e a Ausência de Liberdade do Jogador de Futebol.
A despeito de já serem reconhecidos como trabalhadores, os jogadores de futebol, porém, sempre estariam ligados ao clube, independentemente do término da temporada ou da expiração do prazo do contrato de trabalho.
Isto significa que eles não poderiam ser transferidos para nenhum outro clube sem o consentimento do clube contratante e a aprovação das entidades de administração do esporte.
Um clube poderia, portanto, reter um jogador eternamente.
Mesmo após o término dos contratos, os jogadores não tinham poderes de negociação. Assim era no Brasil, como também eram assim os regulamentos de inscrição e transferência de jogadores mundo afora.
Na Inglaterra, por exemplo, vigorou por muito tempo o regime denominado retain and transfer system[10], segundo o qual ao término de cada temporada ou contrato de trabalho, os jogadores eram inseridos pelos seus clubes em listas de retenção e de transferência. Este sistema permaneceu em vigor até 1963, quando a Corte Superior decidiu que a iniciativa se tratava de uma restrição ao livre comércio.
Coutinho Filho[11] leciona que:
“O clube empregador poderia optar por arcar com uma importância salarial mínima ao profissional e teria o direito de submeter-lhe à denominada “retain list”, que impedia na prática que o mesmo fosse contratado por qualquer outro clube. Em alternativa, havia a opção de inclusão do profissional na denominada “transfer list”, determinando um montante pecuniário (transfer fee) que deveria ser pago pelo clube interessado na contratação direta do atleta”.
O Ministro Alexandre Agra Belmonte[12], ao conceituar o passe, discorre que:
“era um valor que um clube cobrava de outro para possibilitar a transferência de jogadores. A justificativa era o ressarcimento do valor do investimento na formação do atleta, sendo obrigatório mesmo após encerrado o contrato, sendo que o fim do contrato não dava ao jogador a liberdade de se transferir para outra agremiação. Dependia da concordância do clube ao qual estava vinculado e o valor do passe podia atingir grandes quantias dependendo do talento do jogador, interesse do contratante e até a intransigência do clube em ceder o atleta a outra agremiação”.
Com efeito, a obrigatoriedade de permanência de vinculação do jogador com o clube, mesmo após o término do contrato de trabalho, não encontrava lastro legal, pois se tratava de uma modalidade de servidão.
O sistema praticado pelos clubes claramente contrariava os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos editada em 10 de dezembro de 1948, especialmente as disposições constantes do item 1, do artigo 23, que assim preceitua:
“Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.
Aliás, a condição de homem livre já era assegurada ao trabalhador muito antes. A Encíclica Rerum Novarum[13] escrita pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de 1891, já dispunha expressamente no item 10 que:
“Entre estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme à equidade; não deve lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só se conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas.
Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objeto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo”.
Os ideais de liberdade, incluindo a liberdade de trabalho também já haviam sido expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[14], assinada na França após as Revoluções Burguesas, que assim dispunha:
“I – Os homens nascem e ficam livres, iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser fundadas na utilidade comum.
(...)
XVIII - Todo homem pode empenhar seus serviços, seu tempo; mas não pode vender-se nem ser vendido. Sua pessoa não é propriedade alheia. A lei não reconhece domesticidade; só pode existir um penhor de cuidados e de reconhecimento entre o homem que trabalha e aquele que o emprega”.
No Brasil, a Constituição da República de 24 de fevereiro de 1891[15] já estipulava na seção II, destinada à Declaração de Direitos que:
“Art. 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade e à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§24 É garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”.
Todas as demais cartas constitucionais que se seguiram sempre preservaram a liberdade do trabalho. O artigo 5º, XIII, da Constituição de 1988[16], tem a seguinte redação:
"é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".
Ao tratar do tema, Maurício Godinho Delgado[17], leciona que:
"...a existência do trabalho livre (isto é, juridicamente livre, é pressuposto histórico material do surgimento do trabalho subordinado (e via de consequência, da relação empregatícia)...”
Isto significa, portanto, que ao estipular relações de emprego, os empregadores impuseram o dever de os empregados exercerem o trabalho subordinado, isso contudo, não implica na sujeição pessoal do trabalhador ao empregador.
Infelizmente, porém, até pouco tempo atrás, este era um direito fundamental totalmente desprezado nas relações de emprego entre jogadores de futebol e clubes.
3. Jean-Marc Bosman.
Jean-Marc Bosman[18], nascido em 1964 na Bélgica, é um jogador de futebol profissional aposentado. Atuou profissionalmente entre os anos de 1983 a 1996[19] como meio-campista. Iniciou sua carreira no Standard de Liège, tendo passagens no RFC Liège, Olympique Saint-Quentin, Saint-Denis, Olympic Charleroi e Visè.
Teve razoável sucesso como jogador: foi capitão da seleção belga sub-21[20].
O atleta, contudo, ganhou notoriedade mundial por ter sido a peça central de uma briga judicial envolvendo o clube que atuava, o RFC Liège, a Federação Belga de Futebol e a União das Federações Europeias de Futebol, UEFA. Segundo o site de notícias esportivas ESPN, Bosman é “o homem que, sem saber à época, protagonizou a maior revolução da história do futebol”[21].
As notícias mais recentes[22] do ex-jogador não são nem de longe compatíveis com o seu feito no Tribunais Europeus. Em 2013 foi condenado por tentativa de agressão contra a namorada e sua filha. É alcoólatra e sobrevive[23] da renda advinda de benefício concedido pela Bélgica.
3.1 A motivação do processo.
De acordo com o regulamento de 1983 da Union royale belge des societés de football association, - URBSFA, a federação belga de futebol, antes do término dos contratos de trabalho, os clubes deveriam propor um novo contrato aos jogadores.
Havendo recusa por parte do jogador de permanecer no clube, o atleta era incluído numa lista de transferência, que poderia ser concluída mediante o pagamento de uma indenização por eventual clube interessado ao clube cedente. O valor da indenização era apurado por múltiplos de salários do jogador.
Na hipótese de não concretização da transferência, o regulamento determinava que o clube deveria oferecer uma novo contrato do jogador nas mesmas condições da temporada anterior e, se mesmo assim, o atleta recusasse a oferta, o clube teria o direito de suspendê-los por até 2 temporadas, o que implicaria na inatividade.
Pois bem. Em 1990, logo após o término do seu contrato com o RFC Liège, Bosman recebeu uma proposta de renovação com o clube, que previa a redução salarial da ordem de 75% (setenta e cinco por cento), que foi recusada pelo jogador e implicou na sua imediata inclusão na chamada lista de transferências, com uma cláusula de indenização de 11.743 milhões de francos belgas, equivalentes, à época, a 4,8 milhões de euros.
Bosman então procurou o USLD[24] – L’Union Sportive du Littoral de Dunkerque, um tradicional clube francês, que atualmente joga na Liga 2BKT e à época disputava a segunda divisão francesa, que firmou um contrato de trabalho com o atleta.
Foi também celebrado um contrato entre o RFC e o clube de Dunkerque que previa a cessão temporária do atleta ao clube francês, popularmente conhecido como “empréstimo do jogador”, pelo período de 1 (um) ano. O contrato de cessão temporária estabelecia o pagamento de uma indenização, que deveria ser paga após a desvinculação do atleta da federação belga de futebol.
Ocorre que o RFC duvidava da capacidade financeira do clube de Dunkerque e decidiu não requerer a emissão do certificado perante a federação da Bélgica, o que implicou na impossibilidade de Bosman atuar no futebol francês.
Vale salientar que segundo o regulamento de transferências da UEFA vigente à época, na hipótese de discordância entre os clubes cessionário e cedente, a entidade de administração do futebol europeu formularia uma proposta que, se recusada pelos clubes, implicava na manutenção do atleta em seu clube antigo[25].
O fato é que é o RFC Liège e o USLD Dunkerque não chegaram a um bom termo, a Federação Belga não emitiu o certificado e, portanto, a transação não ocorreu. Bosman, então, permaneceu vinculado ao clube, treinando com reservas[26] e recebendo salário 70% inferior àquele percebido na temporada anterior.
Insatisfeito, o jogador decidiu questionar judicialmente o sistema de transferências de jogadores no continente europeu.
Já existiam no continente europeu alguns posicionamentos contrários a vinculação infinita dos atletas com os clubes de futebol, o que pode ter encorajado o jogador.
Além da decisão da Corte Superior Britânica de 1963, outros países europeus já tinham alterado as legislações internas estipulando o término do vínculo associativo após a rescisão do contrato de trabalho, ou seja, o fim do chamado “passe” e criando, em contrapartida, o direito de os clubes receberem indenizações pela rescisão antecipada dos contratos de trabalho.
Na Espanha, por exemplo, já dispunha o art. 3º do Real Decreto[27] de 6 de março de 1981 que:
"Articulo Tercero – Duracion Del Contrato. Los Contratos subscritos por los deportistas professionales y sus clubs o entidades deportiva seran siempre por tempo certo, pudiendo establecerse por pacto colectivo o individual el sistema de prorrogas que se estime conveniente”.
A mesma realidade era vista na Itália, eis que o artigo 4º, da Lei nº 91 de 23 de março de 1981[28], que regia as atividades desportivas profissional, já dispunha:
"...Il contratto non puo' contenere clausole di non concorrenza o, comunque, limitative della liberta' professionale dello sportivo per il periodo successivo alla risoluzione del contratto stesso ne’ puo’ essere integrato, durante lo svolgimento del rapport, con tali pattiuzioni...”
A tradução livre do dispositivo legal italiano não deixa dúvidas que uma nova era se avizinhava, afinal, a lei expressamente estipulava que: “O contrato não pode conter cláusulas de não concorrência ou, no entanto, limitando a liberdade profissional do desportiva para o período após a rescisão do próprio contrato estar integrado, no decorrente do relacionamento com tais acordos”.
3.2 O processo judicial no Tribunal Europeu
Depreende-se do acórdão[29] proferido pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, que, em 8 de agosto de 1990, Bosman ajuizou a demanda na Justiça de 1ª instância de Liège em face do RCL. Paralelamente propôs ação cautelar contra o clube e a federação belga de futebol reclamando o pagamento de indenização até uma recolocação profissional e ainda buscando uma tutela cautelar inibitória, qual seja: que as entidades deixassem de criar percalços à transferência de clube.
Cerca de 3 meses após o ajuizamento, a medida cautelar foi deferida em 1ª instância e o clube e a federação foram proibidos de impor entraves à nova contratação do atleta, que àquela época já havia sido contratado pelo Saint-Quentin, também da França.
Posteriormente passaram a integrar o processo principal a federação belga de futebol e a UEFA. O clube de Dunkerque também foi chamado no processo por requerimento formulado pelo RCL. Ainda integraram ao processo o sindicato nacional de atletas de futebol da França e a associação de direito holandês.
Em sentença proferida em 11 de junho de 1992, o poder judiciário em Liège julgou procedentes os pedidos formulados por Bosman. A decisão foi confirmada pela Corte de Apelação que decidiu submeter ao Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia questões relativas a regras de interpretação dos artigos 48º, 85º e 86º do Tratado de Roma[30], que expressamente garantem a livre movimentação de trabalhadores nos países que compõem o mercado comum europeu e vedam regras de livre concorrência.
Os dispositivos legais assim estabelecem[31]:
"Art. 48º
1. A liberdade de circulação dos trabalhadores deve ser assegurada na Comunidade.
2. A liberdade de circulação implica a abolição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade entre trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao empregado, à remuneração e a outras condições de trabalho e emprego.
3. Isso implica o direito, sob reserva das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública:
a. em aceitar ofertas de emprego efetivamente feitas;
b. circular livremente no território dos Estados-Membros para este objetivo;
c. permanecer num Estado-Membro para efeitos de emprego de acordo com as disposições que regem a contratação de nacionais desse Estado estabelecida por lei, regulamento ou ação administrativa;
d. permanecer no território de um Estado-Membro depois de nele ter exercido uma atividade laboral, serão objeto de regulamento de execução a ser estabelecido pela Comissão.
4. O disposto neste artigo não se aplica ao emprego na função pública.
Art. 85º
1. Todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que possam afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objeto ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum (...)[32]
Art. 86º
1.Qualquer abuso por uma ou mais empresas de uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste é proibido como incompatível com o mercado comum, na medida em que possa afetar o comércio entre os Estados-Membros. Restringir ou falsear a concorrência no mercado comum (...)[33]
Veja que uma análise ainda que perfunctória das disposições supra, já indica uma provável contradição entre o sistema de transferência de jogadores até então vigente e as regras de circulação de trabalhadores, ainda mais tratando-se de um mercado comum.
A breve leitura dos artigos também sinaliza que a retenção dos atletas implica em abuso à livre concorrência entre os clubes e, portanto, trata-se de postura contrária aos interesses da Comunidade Econômica Europeia (CEE).
E foi exatamente esta a decisão proferida pelo Tribunal Europeu, no dia 15 de dezembro de 1995, conforme trecho do acórdão abaixo transcrito:
“as regras de transferências constituem entraves à livre circulação dos trabalhadores, proibidas, em princípio, pelo artigo 48º do Tratado. Só assim não seria se essas regras prosseguissem com um objetivo legítimo compatível com o Tratado e se justificassem por razões imperiosas de interesse geral. Mas, mesmo em tal caso, seria necessário que a aplicação das referidas regras fosse adequada para garantir a realização dos seus objetivos e não ultrapasse o necessário para os atingir”.
No tocante às cláusulas de nacionalidade, a Corte registrou o seguinte:
“O artigo 48º, nº2, dispõe expressamente que a livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.
A esta disposição foi dada execução, entre outros, pelo artigo 4º, do Regulamento (CEE) nº 1612/68, do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77), nos termos do qual as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros que limitem o emprego de estrangeiros em número ou em percentagem, por emprego, por ramo de atividade, por região ou à escala nacional não são aplicáveis aos nacionais de outros Estados-membros.
O mesmo princípio opõe-se a que as cláusulas contidas nos regulamentos das associações desportivas limitem o direito de os nacionais de outros Estados-Membros participarem, como jogadores profissionais, em encontros de futebol (...)
O Tribunal deixou, porém, de enfrentar as questões relativas à interpretação dos artigos 85º e 86º, do ambos do Tratado de Roma, por entender desnecessário, já que a questão já havia sido resolvida.
4. Os Reflexos da decisão do Tribunal Europeu
O impacto imediato da decisão foi a necessidade de adequação das regras de transferência de jogadores entre Estados-Membros da União Europeia, especialmente no tocante ao tema liberdade de circulação de trabalhadores.
Como ensina Jayme Eduardo Machado[34], a decisão “na prática, viria a extinguir o passe pelo menos nos moldes tradicionalmente adotados pelos clubes da Europa”.
Além disso, o conceito de “nacional” previsto nos regulamentos não mais se adequava para a nova realidade e teve que ser “ressignificado”, uma vez que, para os efeitos dos contratos de trabalho, o “estrangeiro” deveria ser considerado somente aquele cidadão nascido fora dos limites da União Europeia.
E os reflexos foram além, pois como bem destaca Coutinho Filho[35], após a decisão do Tribunal Europeu, as federações de futebol dos países europeus diretamente impactadas, juntamente com a UEFA, passaram a exercer pressão junto a FIFA. Esta, por sua vez, passou também a pressionar as demais federações nacionais de futebol associadas, cujo número atual de 211 membros, aliás, supera[36] os 192 países filiados da Organização das Nações Unidas.
É importante registrar que antes mesmo da prolação da decisão da Corte Europeia, “a UEFA comprometeu-se nomeadamente a fazer inserir em todos os contratos de jogador profissional uma cláusula autorizando este, no termo do contrato, a celebrar novo contrato com um clube à sua escolha e a jogar imediatamente pelo novo clube”.[37]
Registre-se que, também antes da decisão, a FIFA já havia criado seu primeiro regulamento de transferências[38], que previa a possibilidade de um jogador firmar um contrato de trabalho com um novo clube ao término de um vínculo de emprego.
O regulamento da FIFA, vale salientar, foi seguidamente modificado nos anos seguintes, para abranger questões que até então não haviam sido enfrentadas anteriormente, como temas relativos à crianças e adolescentes, sistemas de compensação e indenização de clubes formadores de atletas, agentes de negociação entre outros. A última versão[39] foi publicada em Fevereiro de 2021.
No Brasil, um dos reflexos mais evidentes foi a promulgação da Lei nº 9.615/98[40], conhecida como Lei Pelé, que extinguiu a regra do “passe”, ou seja, estabeleceu o caráter acessório do vínculo esportivo, cuja extinção ocorre com a rescisão do contrato de trabalho.
A redação original do §2º, do artigo 28, do referido dispositivo legal assim dispunha:
“O vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo de empregatício, dissolvendo-se, para todos os fins, com o término do contrato de trabalho.
Esta legislação foi alterada e aperfeiçoada, merecendo destaque as modificações advindas da Lei nº 12.395/11[41], que realçaram a liberdade profissional no contrato de trabalho desportivo.
Outros reflexos são vistos até hoje, como a intensa migração de jogadores brasileiros para o continente europeu, o que poderá ser objeto de um estudo futuro.
Conclusão
Por mais de um século, os jogadores profissionais têm demonstrado que não são apenas praticantes de esporte, mas sim trabalhadores no esporte. E, neste sentido, nenhum regulamento ou qualquer espécie de norma privada poderá se opor ao direito fundamental de livre escolha de trabalho.
O caso Bosman, portanto, reafirmou o ideal de liberdade que norteou a edição do Tratado de Roma e a criação de uma comunidade entre 6 (seis) países, após o período sangrento e de destruição resultante de 2 (duas) guerras.
A exitosa iniciativa dos países fundadores atraiu novos Estados-Membros que hoje constituem a Comunidade Europeia, os quais comungam dos mesmos ideais de liberdade.
É impossível não relacionar a decisão tomada pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia com os avanços legislativos ocorridos no Brasil em matéria de liberdade de prática desportiva profissional.
A liberdade é um bem que deve ser defendido todos os dias.
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[8] COUTINHO FILHO, José Eduardo. A proteção dos direitos do atleta profissional de futebol: liberdade, vinculação e jornada de trabalho. Rio de Janeiro: Multifoco, 2018. P. 20.
[9] AMADO, João Leal. Desporto, Direito e Trabalho: uma Reflexão sobre a Especificidade do Contrato de Trabalho Desportivo in Direito do trabalho desportivo: os aspectos jurídicos da Lei Pelé frente às alterações da Lei n. 12.395/2011 / organização e coordenação Alexandre Agra Belmonte, Luiz Philippe Vieira de Mello , Guilherme Caputo Bastos. São Paulo: LTr, 2013.
[10] Disponível em https://www.oxfordreference.com/view/10.1093/oi/authority.20110803100416487. Acesso em 18/06/2021.
[11] COUTINHO FILHO, José Eduardo. A proteção dos direitos do atleta profissional de futebol: liberdade, vinculação e jornada de trabalho. Rio de Janeiro: Multifoco, 2018. P. 107.
[12] BELMONTE, Alexandre Agra. Organização do Desporto, da Justiça Desportiva e Principais Aspectos Jurídico-Trabalhistas da Relação de Trabalho do Atleta Profissional nos Planos Individual e Coletivo in Direito do trabalho desportivo: os aspectos jurídicos da Lei Pelé frente às alterações da Lei n. 12.395/2011 / organização e coordenação Alexandre Agra Belmonte, Luiz Philippe Vieira de Mello , Guilherme Caputo Bastos. São Paulo: LTr, 2013
[13] Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/edh_enciclica_rerum_novarum.pdf. Acesso em 19/06/2021.
[14]Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm. Acesso em 19/06/2021.
[15]Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 19/06/2021.
[16] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 19/06/2021.
[17] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 84
[18] Disponível em: https://peoplepill.com/people/jean-marc-bosman. Acesso em 20/06/2021.
[19] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Marc_Bosman. Acesso em 20/06/2021.
[20] Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/martin-fernandez-belga-que-teve-mais-impacto-no-futebol-do-que-messi-cristiano-ronaldo-juntos-24793484. Acesso em 20/06/2021.
[21] Disponível em: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/7908355/os-jogadores-ganham-milhoes-gracas-a-mim-mas-eu-vivo-na-miseria-ha-25-anos-jean-marc-bosman-transformou-o-futebol. Acesso em 20/06/2021.
[22] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Marc_Bosman. Acesso em 20/06/2021
[23] Disponível em: http://www.espn.com.br/noticia/182064_ex-jogador-que-propiciou-a-lei-bosman-e-alcoolatra-e-vive-na-miseria-revela-jornal. Acesso em 20/06/2021.
[24] Disponível em: https://www.usldunkerque.com/accueil/le-club/histoire/. Acesso em 20/06/2021.
[25] SCHMIDT, Daniel. The Effects of the the Bosman-Case on the Professional Football Leagues with Special Regard to the Top-Five Leagues. Bachelor Thesis. University of Twente, Netherlands. 2007. P. 15)
[26] Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/martin-fernandez-belga-que-teve-mais-impacto-no-futebol-do-que-messi-cristiano-ronaldo-juntos-24793484. Acesso em 20/06/2021.
[27] Disponível em: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1981-5343
[28] Disponível em: https://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:legge:1981-03-23;91!vig=. Acesso em 20/06/2021.
[29] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61993CJ0415&from=EN. Acesso em 21/06/2021.
[30] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/IT/TXT/PDF/?uri=CELEX:11957E/TXT&from=PT. Acesso em 20/06/2021.
[31] Tradução livre feita pelo autor.
[32] Idem ao anterior.
[33] Idem ao anterior.
[34] MACHADO, Jayme Eduardo. O novo contrato desportivo profissional. Sapucaia do Sul: Notadez Informação, 2000. P. 23
[35] COUTINHO FILHO, José Eduardo. A proteção dos direitos do atleta profissional de futebol: liberdade, vinculação e jornada de trabalho. Rio de Janeiro: Multifoco: 2018. p. 116.
[36] Disponível em: https://blogdorafaelreis.blogosfera.uol.com.br/2019/09/10/por-que-a-fifa-tem-mais-paises-filiados-que-a-onu/. Acesso em 22/06/2021.
[37] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61993CJ0415&from=EN. Acesso em 22/06/2021.
[38] Disponível em: https://resources.fifa.com/image/upload/fifa-rstp-2001.pdf?cloudid=maqzja40s2b90xdxik0k. Acesso em 22/06/2021
[39] Disponível em: https://resources.fifa.com/image/upload/status-and-transfer-february-2021-february-2021.pdf?cloudid=qdjmoxn91xciw41tojii Acesso em 22/06/2021.
[40] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm Acesso em 22/06/2021.
[41] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12395.htm#art2 Acesso em 22/06/2021.
Advogado. Sócio de Iokoi Advogados. Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Especialista em Direito Sindical pela FGV/SP. Especialista em Direito material e processual do Trabalho pela Fundação FIEO. Graduado em Direito pela FIEO. Presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SP Subsecção Pinheiros.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDEIROS, Gustavo Jonasson de Conti. O caso Bosman e o Direito Fundamental ao Exercício do Trabalho Livre. Estudo de Caso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2022, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58863/o-caso-bosman-e-o-direito-fundamental-ao-exerccio-do-trabalho-livre-estudo-de-caso. Acesso em: 23 dez 2024.
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