RESUMO: O exposto tema é caracterizado como todo procedimento, físico, verbal, psicológico, ou até mesmo sexual, explícitos ou ocultos, de caráter violento cometido contra a mulher, por profissionais em instituições de saúde, no momento do pré-natal, parto, pós-parto ou aborto. Adiante esse contexto, o objetivo desse artigo é investigar como a categoria da Violência obstétrica está sendo reconhecida e adotada pelo Direito, tanto no âmbito Legislativo quanto no jurisprudencial, a partir da construção teórica do conceito em outros Campos de conhecimento. Dessa maneira, a pesquisa examinou a pretensão em reconhecer a mulher grávida como um sujeito de Direitos, e, também a protagonista do seu parto e da sua história
Palavras-chave: Violência obstétrica. Proteção a mulher. Direitos
ABSTRACT: This theme is characterized as any procedure, physical, psychological, verbal or even sexual, explicit or hidden, of a violent nature committed against women, by professionals in health institutions, at the time of prenatal care, childbirth, post - childbirth or abortion. Given this context, the aim of this article is to investigate how the category of obstetric violence is being recognized and adopted by law, whether in the legislative and jurisprudential scope, from the theoretical construction of the concept in other fields of knowledge. Thus, the research examined the intention to recognize the pregnant woman as a subject of Rights, and also as the protagonist of her birth and her story
Keywords: Obstetric violence. Woman protection. Rights.
1.INTRODUÇÃO
A violência obstétrica ocasiona em séria lesão aos direitos da mulher, em momentos significativos, pela prática de condutas consideradas comuns pela maioria dos profissionais da saúde e até pelas próprias vítimas. As agressões são diretamente relacionadas à história do parto, sobretudo, após a inserção da prática obstétrica na medicina, que impulsionou a conversão do parto de um fato natural a um evento hospitalar denominado cesária ou parto induzido, dessa forma, após ter se tornado de domínio médico e institucionalizado dentro dos hospitais, passou-se a estranhar determinadas condutas. A título de exemplo, tem-se o alto número de morte materna, que, de acordo com estudos nacionais, poderiam, em partes, ser evitadas com uma boa assistência durante o período gestacional, parto e o pós-parto.
Por meio de espaços públicos na internet, algumas mulheres relatam o parto hospitalar como uma experiência emocional traumática, além disso, detalham a ocorrência de uma série de intervenções desnecessárias. A partir desse processo de estranhamento, iniciou-se um movimento das mulheres em torno da chamada violência obstétrica, que tem sua matriz fundamentada, também, no gênero. O Brasil é omisso em legislação, e a conduta sequer é tipificada pelo Código Penal brasileiro (CP). O enquadramento das práticas de tal violência pode garantir de forma indireta punição aos agressores. Esse estudo propõe um diálogo sobre a violência durante o parto, no contexto hospitalar, e como as práticas mais comuns se enquadram no direito penal brasileiro, e permite constar que os abusos, os maus- tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto configuram violação aos direitos humanos fundamentais das mulheres contrariando as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente e preconizados na Constituição Federal e não podem permanecer sem tipificação clara e capaz de barrar a violência obstétrica com eficiência.
2.VIOLÊNICIA OBSTÉTRICA
A violência obstétrica é uma forma de violência contra a mulher, praticada pelos profissionais da saúde, que se define pelo desrespeito, abusos e maus-tratos durante o período da gestação e/ou no momento do parto, seja de forma psicológica ou física. Causa a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente a respeito de seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. Passa a ser o tratamento desumanizado conferido às mulheres no momento do parto.
Tal violência colabora para a manutenção dos altos índices de mortalidade materna e neonatal no País. Toda e qualquer mulher tem o direito de ser protagonista na hora do parto e ter autonomia total acerca de seu próprio corpo, tendo suas vontades e necessidades respeitadas.
Não existe uma definição fechada para a expressão, mas sim definições complementares apresentadas por diversas governos e organizações. É de grande importância notar que o termo “violência obstétrica” não se refere apenas ao trabalho de profissionais de saúde, mas também a falhas estruturais de clínicas, hospitais, e do sistema de saúde por completo.
A indagação pela definição do significado de Violência Obstétrica é importante para que seja encontrado um equilíbrio entre as expectativas da mãe, o serviço disponibilizado e a necessidade médica que possa aparecer. A utilização deste termo é de importância para garantir que as mulheres possam colocar em prática seus direitos no momento em que buscam por serviços de maternidade, e a sua definição clara é importante para que não tenha nenhum impacto negativo na prática da medicina.
2.1 NO BRASIL
No Brasil não há na atualidade uma legislação federal específica contra a violência obstétrica, mas há iniciativas estaduais e municipais. Exemplos recentes disso são o caso de Alagoas, Rio Branco e Curitiba.
Em Alagoas, foi divulgado no dia 6 de agosto de 2019 o relatório final de uma audiência pública no âmbito da OAB que tratou sobre violência obstétrica. A prefeita de Rio Branco, Socorro Neri, sancionou, no dia sete de agosto, uma lei que estabelece medidas para a erradicação da violência obstétrica.
No Paraná foi realizada uma audiência pública no dia 7 de agosto de 2019 para tratar sobre a “violência obstétrica e os direitos da gestante”. O estado já tinha aprovado, em 29 de outubro de 2018, um projeto de lei sobre violência obstétrica e os direitos da gestante e da parturiente.
Esta lei define como violência obstétrica:
Qualquer ação ou omissão que possa causar à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual e psicológico; a negligência na assistência em todo o período de gravidez e pós-parto; a realização de tratamentos excessivos ou inapropriados sem comprovação científica de sua eficácia; e a coação com a finalidade de inibir denúncias por descumprimento do que dispõe a lei.
No dia 17 de setembro de 2019 foi lançada no Diário Oficial da União a RESOLUÇÃO Nº 2.232, de autoria do Conselho Federal de Medicina (CFM). Essa resolução trata da “recusa terapêutica”, ou seja, o direito de um paciente recusar práticas sugeridas por seu médico.
A resolução estabelece que tal recusa terapêutica é “um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão” e desde que esse paciente seja “maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente”. Também prevê os momentos em que o médico pode negar a recusa, exercendo a prática mesmo contra a vontade do paciente. São esses:
· Casos de risco relevante à saúde: “Em situações de risco relevante à saúde, o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros” (Art. 3º)
· Casos de abuso de direitos: trazidos pelo artigo 5º da resolução, esses seriam casos considerados como abusos do direito de “recusa terapêutica”. Assim, ela não deveria ser aceita quanto:
I– A recusa terapêutica que coloque em risco a saúde de terceiros.
II– A recusa terapêutica ao tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação. (Art. 5º)
· Caso mãe/feto: Em se § 2º, o artigo 5º também prevê que “a recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”, ou seja, se percebido pelo médio que o ato de recusa da mãe pode prejudicar o feto, a recusa pode ser ignorada.
Outro fator é o da objeção de consciência, previsto pelos artigos 7º e 8º, que faculta ao médico dispensar do tratamento nos casos em que a recusa terapêutica seja contrária “aos ditames de sua consciência”.
O assunto é bastante polêmico e divide de opiniões. Em fala ao jornal The Intercept Brasil, Melania Amorim, pós-doutora em Saúde Reprodutiva pela OMS e representante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, enxergou a resolução um “precedente perigoso” para práticas de violência obstétrica, ou, mais em específico, “para que a medicina tutele os corpos das mulheres ‘em nome de uma suposta preocupação’ com o feto”.
O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, em nota, por sua vez, enxergou a resolução como uma conquista no direito à dignidade da pessoa humana. Na visão de Mauro Ribeiro, 1º vice-presidente do CFM:
sta Resolução regulamenta relevante conquista da sociedade brasileira, materializada na Constituição Federal, nas leis em geral e no Código de Ética Médica. O Conselho Federal de Medicina, ao aprová-la, cumpre, mais uma vez, o seu compromisso com o respeito à dignidade da pessoa humana, atendendo a uma antiga demanda de médicos e de pacientes.
2.2 NO BRASIL
Em maio de 2019, o Ministério da Saúde divulgou em um despacho um posicionamento oficial de que o termo “Violência Obstétrica” seria inadequado e que estratégias estariam sendo colocadas em prática para que o termo fosse extinto. Menciona-se neste documento que tal expressão tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado na continuidade gestação-parto-puerpério.
Em nota ao jornal O Globo, divulgada em seu meio de notícias digital G1, o Ministério da Saúde justifica o posicionamento de então como indo de acordo com orientações do Conselho Federal de Medicina (CFM). O CFM divulgou um parecer em que critica o uso do termo violência obstétrica, ressaltando que o mesmo ataca diretamente médicos obstetras e ginecologistas. O documento coloca que o termo possui caráter político ideológico e que não deveria ser utilizado.
O posicionamento do Ministério da Saúde enfrentou críticas de especialistas, um dos motivos sendo o fato deste ir contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) e o Ministério Público Federal (MPF) se manifestaram contra o posicionamento do Ministério da Saúde. A OAB caracterizou o posicionamento como censura e que o despacho prejudica os direitos fundamentais das mulheres, além de prejudicar as políticas públicas que lidam com a violência contra a mulher. A Anadef julgou que a extinção do uso do termo seria preciosismo político e um retrocesso para os direitos das mulheres.
Em junho do mesmo ano, após a recomendação do Ministério Público Federal, o Ministério da Saúde mostrou maior flexibilidade quando divulgou um ofício pelo qual reconhece a legitimidade do uso do termo que melhor represente as experiências de cada mulher quando do parto e nascimento.
O documento divulgado pela Ministério Público fala dos diversos casos de violência obstétrica registrados em um inquérito civil de 1952 páginas. Critica, ainda, a maneira como o Ministério da Saúde se utiliza da palavra violência, dizendo que há uma distorção do seu sentido como apresentado pela Organização Mundial da Saúde.
Embora demonstre reconhecimento pela liberdade das mulheres de utilizar o termo que julguem melhor expressar suas experiências em situação de maus tratos, o documento não se utiliza nenhuma vez da expressão violência obstétrica. Em seu texto são frisados os programas colocados em prática para garantir uma experiência benéfica para as futuras mães que buscam os serviços de saúde. O ofício complementa, ainda, “que a expressão utilizada nos documentos e ações oficiais é a definida pela OMS em 2014, “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”.
3.VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E MARCOS LEGAIS
Apesar de o termo “violência obstétrica” ser considerado novo, o sofrimento das mulheres durante a assistência ao parto já era relatado em meados do século do passado.
A Sagrada Escritura menciona que as dores durante o parto são punições que a mulher deve sentir por ter cometido o pecado original, interferindo em seus sentimentos e percepções próximo deste momento, substituindo o sentimento de prazer durante a concepção pelo castigo. A objeção desse pensamento no arcabouço histórico e cultural da sociedade leiga e de profissionais de saúde expõe a mulher à violência de gênero e, consequente, a obstétrica, ao naturalizar a dor como inerente à experiência da maternidade.
Nos Estados Unidos, em 1950, uma revista de donas de casa denominada Ladies Home Journal, já rompia o silencio ao narrar relatos de violência durante o parto ao publicar a matéria “Crueldade nas Maternidades”. Nesse texto, descrevia-se a violência obstétrica como uma maneira de tortura dispensada durante o tratamento das parturientes ao serem submetidas ao sono vespertino por meio da combinação de escopolamina e morfina, que produzia sedação profunda, não raramente acompanhada de eventuais alucinações e agitação psicomotora. Ate este momento, relatava que, os profissionais colocavam amarras e algemas na mão e nos pés das pacientes para que elas não caíssem do leito, e com frequência as mulheres no puerpério tinham hematomas pelo corpo e lesões nos pulsos, bem como lesões por consequência do esforço.
Na época de 1958, no Reino Unido, foi criado a Sociedade para Prevenção da Crueldade contra as Grávidas que na sua carta de fundação, posteriormente publicada no jornal Guardian, eram denunciadas violações de direitos das parturientes dentro de hospitais. A partir da década de 60, o movimento feminista, colaborou muito para que os direitos das mulheres fossem respeitados e as violações desses viessem à tona ao público.
No ano de 1998, o Centro Latino Americano dos Direitos das Mulheres publicou um relatório Silencio y Complicidad: “Violencia contra la mujer em los servicios públicos de salud no Peru”, com ampla documentação sobre violações dos direitos humanos da mulher, resultando as violações durante o parto algo de conhecimento público. Deste modo como em outros países da América Latina, no Brasil o tema era frequentemente abordado em trabalhos feministas, fora e dentro da academia.
No Brasil, desde 1980, com a publicação em Espelho de Vênus diversos estudos têm relatado vivências negativas de mulheres durante a concepção.
Nessa publicação, o Grupo Ceres fez uma etnografia da experiência feminina, descrevendo de forma explicita o parto institucionalizado como uma vivência violenta.
Tal violência já era tema também das políticas de saúde ao final da década de 1980: o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), a título de exemplo, reconhecia o tratamento impessoal e muitas vezes agressivo da atenção à saúde das mulheres. Todavia, o tema por muito tempo foi negligenciado por três grandes motivos: (a) pela resistência dos profissionais, (b) por ter pauta feminista e (c) pela falta de acesso das mulheres pobres a serviços essenciais. As denúncias eram tantas que o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e o Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), a partir de 1993, promoveram cursos de capacitação para o atendimento a mulheres vítimas de violência.
Foi, em 1993, com a carta de fundação da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que o termo violência obstétrico ganhou uma maior definição e repercussão no Brasil, uma vez que reconheceu circunstâncias da violência e do constrangimento durante a assistência à mulher parturiente. Todavia, tal organização, temendo uma reação hostil dos profissionais da saúde, foi decidido deliberadamente não falar abertamente sobre violência.
4.VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA EM SUA DIFERENTES FORMAS
A violência obstétrica é caracterizada como a apropriação do corpo e dos processos naturais relacionados a gestação, pré-parto, perda gestacional, parto e puerpério pelos(as) profissionais de saúde, por meio do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que provoque a perda da capacidade e autonomia das mulheres de decidir livremente sobre seus próprios corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida.
Por óbvio, nem toda intervenção médica constitui violação ao atendimento humanizado; refere-se apenas daquelas práticas das quais o benefício não é efetivamente comprovado, sendo realizadas de forma desnecessária, sem a devida comunicação com à mulher, e que implicam em prejuízo ao processo natural de parto e em elevação do sofrimento psicológico e físico.
Mesmo que essas intervenções sejam necessárias ou desejadas pela parturiente, devem ser levados em consideração a autonomia da mulher e a sua dignidade em todo o procedimento clínico, de maneira que as decisões não se resultem em pressão psicológica ou outra forma de constrangimento por parte do profissional.
Assim sendo, a violência obstétrica pode se apresentar sob as seguintes formas: violência física; verbal e emocional; práticas sem consentimento; cerceamento à autodeterminação e à autonomia; discriminação a atributos específicos.
4.1 ABUSO FÍSICO
O abuso físico acontece quando não é respeitada a integridade corporal das mulheres ou até mesmo quando não são oferecidas melhores alternativas à saúde, de modo que os danos ocasionados à mulher acabam sendo mais significativos que os benefícios desejados. Uma maneira de violência comum é o uso rotineiro de ocitocina em internações precoces, com o intuito de acelerar os partos, o que pode levar à intensificação da dor e estar associada a riscos graves para as parturientes e seus bebês.
Outra forma de abuso físico é a prática da episiotomia, corte cirúrgico realizado na vagina para ampliar o canal no momento “expulsivo” do parto. Refere-se a um procedimento que pode causar diversas complicações, como problemas de cicatrização, infecções, e aumento de dor no pós-parto, principalmente quando se fala em relação sexual. De acordo com pesquisas realizadas no Brasil, mais da metade das mulheres que não aderem ao parto por cesárea são submetidas a esse procedimento, o qual ocorre muitas vezes sem a autorização prévia da gestante.
Os exames de toque vaginal, configuram abuso físico e de caráter sexual, se executados de maneira não cuidadosa ou mesmo agressiva, ou se realizados diversas vezes por diferentes profissionais porque não há uma devida comunicação dentro da equipe técnica. Outras maneiras de manifestação dessa violência se dão pela omissão dos profissionais que privam a paciente de água, alimentos e analgésicos quando indicados, ou pelo impedimento à livre movimentação da mulher durante o parto, prática recomendada para os casos em que não exista nenhuma restrição clínica.
A chamada “manobra de Kristeller”, que corresponde na pressão física realizada sobre o útero da mulher para tentar auxiliar a expulsão do bebê – e que pode causar sérios danos à mulher, como rupturas de costelas e hemorragias, e também ao filho -, é a única prática oficialmente contraindicada pelo Ministério da Saúde, desde 2017. Contudo, sua prática não cessou por completo.
Por fim, a realização de cesáreas sem indicação configura outra forma de violência obstétrica. Apesar dessa intervenção não ser recomendada pela OMS, especialmente quando se trata de procedimento para aceleração do trabalho de parto, é uma prática que vem crescendo no Brasil. As principais razões desse aumento são: (a) a falta de informação sobre seus riscos a curto e longo prazo, os quais devem ser de conhecimento da gestante e (b) o incentivo feito pelos próprios médicos para que a gestante opte pela cesariana.
4.2 VIOLÊNCIA VERBAL E EMOCIONAL
Na esfera jurídica, a violência verbal e emocional representa uma afronta ao princípio constitucional da dignidade humana, bem também como o desrespeito a diversas leis que resguardam o direito ao parto humanizado.
No plano concreto, tal tratamento pode gerar ameaça à integridade física e psicológica da parturiente. Isso ocorre porque condutas coercitivas e de constrangimento, visto que se sobrepõem à liberdade de escolha da mulher, evidenciam uma espécie de ferramenta de persuasão, capaz de legitimar algum tipo de abuso físico ou mesmo de propiciá-lo.
Presente em diversos relatos, um caso que retrata essa realidade é o exemplo do profissional que exerce pressão emocional sobre a puérpera, responsabilizando-a pela eventual complicação no nascimento do próprio filho, como forma de convencê-la sobre a necessidade de se realizar uma episiotomia.
4.3 DISCRIMINAÇÃO
A discriminação que, ocorre durante o atendimento médico está associada aos aspectos físicos, de idade, classe, cor da pele e étnico-raciais. Essa forma de violência pode se revelar de diferentes maneiras, dentre elas: pela agressão verbal, a partir de xingamentos e palavras humilhantes; pelo descaso da equipe médica, ao ignorar as decisões, os desejos e eventual sofrimento da parturiente; ou também quando o profissional tenta enganar uma paciente pressupondo sua ignorância.
4.4 PRÁTICAS SEM CONSENTIMENTO A AUTODETERMINAÇÃO E A AUTOESTIMA
A falta de informação – ou até mesmo a desinformação, em muitos casos – sobre as práticas ligadas ao parto e ao pós-parto é o principal fator que leva muitas mulheres a abdicarem de sua autonomia nos momentos de escolha. A mulher deve ter absoluta condição de se autodeterminar, ou seja, ter conhecimento suficiente sobre os riscos e benefícios atrelados a cada procedimento e conduta médica que está sujeita, para que então possa tomar uma decisão, cujos efeitos incidirão sobre seu próprio corpo e de seu filho.
Acontece que esse cerceamento à autonomia é resultado, não apenas da ausência de informações, mas igualmente da comunicação que se dá de forma inadequada por parte do profissional da saúde, o que indica, muitas vezes, a discriminação e o descaso durante o atendimento médico.
Perante isso, o dever de prestar informação qualificada foi inserido nas diretrizes do parto humanizado e hoje é assegurada, por exemplo, pela Lei nº 15.759/2015 do Estado de São Paulo, que prevê a elaboração do Plano Individual de Parto.
4.5 EM CASO DE ABORTAMENTO
Mulheres que sofreram um aborto também estão sujeitas a ser vítimas de violência obstétrica. Isso pode acontecer de diversas formas: negação ou demora no atendimento, questionamento e acusação da mulher sobre a causa do aborto, procedimentos invasivos sem uma explicação, consentimento ou anestesia, culpabilização e denúncia da mulher.
Todas essas formas de violência podem influenciar no desenvolvimento de uma depressão pós-parto, no não desejo de uma próxima gestação, no medo do próximo parto e, até mesmo, no exercício da vida sexual da mulher.
5. PARTO HUMANIZADO
O parto humanizado é um modelo de atenção, que tem a mulher como protagonista. E que é diferente de parto natural, que ocorre sem intervenção, mas, mesmo assim, pode haver violência obstétrica e não dá à mulher o protagonismo devido. São três pilares no parto humanizado: autonomia das mulheres, equipe multiprofissional e evidências científicas.
Muitas mulheres, quando pensam em parto humanizado, ainda têm a imagem de um parto que acontece num ambiente íntimo, na água ou com alguns tipos de simbolismos. Parto humanizado não é sobre parir em casa ou no hospital, na banheira ou fora dela. O termo humanização não se refere à via de parto (vaginal ou cesárea), mas ao tipo de assistência que a mulher recebe. Onde as decisões são compartilhadas e as escolhas da mulher são ouvidas e respeitadas.
Até mesmo um parto com cesárea pode ser humanizado, se essa decisão for tomada pela própria gestante como o melhor método de parto para si. Entretanto, para atingir essa autonomia, é necessário que a grávida busque se conhecer e saber sobre suas possibilidades de parto para que as próprias decisões sejam escolhas informadas e autônomas, não induzidas.
5.1 AUTONOMIA DA GESTANTE
Estar ciente das escolhas e de quais alternativas você quer e quais você não quer no seu parto só pode ser verdadeiramente alcançado se você tiver acesso à informação. Entender que a mulher, enquanto gestante, tem o poder de decisão nas mãos, é algo muito novo para muitas grávidas. Para assumir o protagonismo do parto, é necessário empoderar-se.
Desenhar o plano de parto mais adequado é uma experiência individual guiada pela descoberta. É “conhecimento e autoconhecimento”. O conhecimento informativo passa por buscas complexas, mas necessárias: saber os seus direitos e alternativas enquanto experiência de parto e adequá-las à sua realidade.
Autoconhecimento, tarefa individual e intransferível, é o complemento que dá segurança para as suas decisões. Saber como você está lidando com sua gestação, como você lida com o seu próprio corpo e como você lida com a maternidade e o seu bebê são fatores cruciais. Coloca-la [a gestante] em contato com as suas emoções, é muito importante. Eu procuro, como doula, dar uma visão geral, de tanto essa parte mais teórica, quanto essa questão mais emocional mesmo, de como ela vai lidar com isso tudo.
5.2 HUMANIZAÇÃO A CULTURA DO PARTO
Quando o assunto é gestação, existe um leque de recomendações dadas pela ciência ou até mesmo por pessoas próximas que já tiveram filhos. É dentro desse panorama que gestantes podem exercer a sua liberdade. Por direito, você, mulher, pode questionar seu obstetra sobre suas alternativas e deve aprofundar suas pesquisas para fazer as melhores escolhas para o seu parto – que devem ser respeitadas na prática. Isso diminui os riscos de você passar por uma situação violenta durante o parto ou a gestação, mas, infelizmente, não acaba com problema, visto que a violência obstétrica não é um problema individual, mas sim coletivo. O silenciamento das gestantes, condutas e práticas abusivas e violentas a partir de enfermeiros e obstetras não são casos isolados. São heranças de uma cultura que normatiza a violência obstétrica.
O termo “violência obstétrica” e sua definição são recentes, mas suas práticas, não. Para Lara, a questão é complexa por ter raízes mais profundas: “Eu acho que a gente tem uma questão de gênero bem forte. Não dá para discutir violência obstétrica dissociada de violência de gênero e o que é ‘ser mulher’ na sociedade”, declara.
Ou seja, nessa perspectiva, a violência contra gestantes é um dos vários mecanismos de opressão, abusos e agressões que atingem as mulheres, justamente por elas serem mulheres.
Em uma sociedade com prática machistas, na qual o homem ocupa um lugar de “superioridade” e dominação frente às mulheres, essa desigualdade se manifesta de diversas formas: diferença salarial, feminicídios, estupros, silenciamento das mulheres, violência psicológica e outros dispositivos que oprimem o gênero feminino.
Outro desafio cheio de ramificações são as práticas que permeiam a cultura do parto no Brasil e, consequentemente, a formação de profissionais de enfermagem e medicina. Práticas como a episiotomia, indicada em casos específicos, e a manobra de Kristeller, contraindicada há mais de 40 anos, são reclamações frequentes em relatos de violência obstétrica. Maria Lucia Oppermann, ouvidora do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (CREMERS), explica que algumas recomendações realmente estão mudando com o passar dos anos: “Na década de 70 e 80, a [episiotomia] era considerada uma ótima prática. Não que ela seja maléfica, mas ela deve ser utilizada só quando há necessidade. Quando ela é desnecessária, utilizá-la é um malefício”, constata. Sobre o direito ao acompanhante, a situação é semelhante: “Quando eu entrei na residência, o marido e a família ficavam esperando lá fora e a paciente ficava sozinha dentro da sala de parto. Hoje em dia, as pacientes sempre têm um acompanhante”, compara.
Atualizar os profissionais e estudantes sobre as boas condutas para um parto humanizado é uma mudança gradual. O que se sabe, de fato, é que há um crescente movimento de discussão sobre a violência obstétrica institucional, seja dentro ou fora da universidade. Para Maria Lúcia, os estudantes de medicina estão mais críticos e questionadores e mais aptos a compreenderem que as decisões durante a gestação e o parto são compartilhadas: “Agora, existe uma decisão compartilhada. A paciente toma as decisões, ela tem absoluto direito de decidir o que ela quer ou não. O que compete ao médico é dizer os riscos desse ou daquele caminho, para decidirem juntos”, expõe.
Por ser uma questão cultural, as situações no momento do parto e suas consequências vão além do ambiente hospitalar. Lara Werner avalia que o dever das instituições de ensino é formar profissionais sensíveis, com reflexões sobre a diversidade de experiências: “As pessoas não são bonecos, elas têm bagagens e, muitas vezes, ligar com a bagagem dessas pessoas é bastante difícil”, argumenta. Ela reitera que a satisfação na experiência deve ser uma das bases da prática hospitalar: “Eu acredito muito que a gente precisa efetivamente mudar o modelo de atenção, quando você pensa um modelo menos hospitalocêntrico, mais amigável com o usuário, que ouça seus desejos e entende que satisfação é um indicador de qualidade científica e que a subjetividade não é um fator a ser desconsiderado dentro da construção de parâmetros e diretrizes”, finaliza.
6.COMO DENUNCIAR A VIOLÊNCIA OBSTETRÍCA
Segue abaixo diversas maneiras de denúncias, as documentações necessárias e os meios de contatos.
6.1 COMO DENUNCIAR A VIOLÊNCIA OBSTETRÍCA
Independentemente do tipo de violência sofrida, para realizar uma denúncia, deve-se reunir todos os documentos:
· Prontuário médico (que deve ser fornecido pelo hospital ou unidade de saúde sem custo);
· Cartão da gestante;
· Plano de parto;
· Exames;
· Contratos e recibos (quando na rede privada).
Para agilizar o processo, os órgãos oficiais recomendam que a vítima redija um relato detalhando o que sofreu, como se sentiu ao sofrer isso e quais as consequências que esta violência trouxe.
6.2 ONDE REALIZAR A DENÚNCIA
O próximo passo agora é se dirigir até a Ouvidoria do hospital ou da unidade de saúde em que ocorreu a violência, levando os documentos e também o relato, para que seja protocolada a denúncia. Além disso, também é recomendado ir à Secretaria Estadual de Saúde ou à Secretaria Municipal de Saúde bem como realizar denúncia ao Ministério da Saúde e à Central de Atendimento à Mulher.
Somando-se a isso, se pode também as representações dos profissionais envolvidos, como o Conselho Regional de Medicina (CRM) e o Conselho Regional de Enfermagem (Coren). Porém, essas instituições só se responsabilizam por abrir processos administrativos contra profissionais das suas respectivas áreas, sendo menos abrangentes.
E, caso ainda facilite de certa forma, é possível abrir ações judiciais com o auxílio de advogados, ou gratuitamente através das Defensorias Públicas.
Se porventura a violência tenha acontecido na rede privada, utilizando plano de saúde, outra opção é prestar queixa à Agência Nacional de Saúde (ANS) ou diretamente a ouvidoria do plano contratado.
6.3 TELEFONES E ENDEREÇOS
· CENTRAL DE ATENDIMENTO A MULHER
Através do telefone 180
· AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE
Através do endereço: ans.gov.br/aans/ouvidoria/fale-sobre-a-ans
7.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A superação da violência obstétrica é um desafio que pode ser efetivado através do seu reconhecimento como uma violação de direitos humanos (e, por conseguinte, de direito das mulheres).
Acredita-se que a inclusão de direitos das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos como disciplina de graduação em cursos da área da saúde colaborariam para que os profissionais desse ramo tivessem uma formação mais humanística e ética.
O simples fato de o acesso à informação ter se tornado mais fácil não desobriga o profissional de saúde a “esquecer” de fornecer informações sobre assistência ao parto durante o pré-natal, o parto e o pós-parto. Ainda, deve esse garantir o direito à parturiente de ser acompanhada durante todo o processo, seja por um ente familiar ou por uma profissional com conhecimento diverso do modelo hegemônico de assistência.
Destaca-se que a relação entre profissionais de saúde e pacientes de camadas socioeconômicas desfavorecidas é marcada pela desconfiança, pelo desrespeito, por conflitos mal resolvidos que geralmente terminam expressos em maus tratos às puérperas.
Em relação à prevenção, existe no Brasil algumas políticas e programas que contribuem com esse objetivo. Porém, em contraponto a todos esses avanços, em maio de 2019, o Ministério da Saúde publicou um ofício (Ofício nº 017/19 – JUR/SEC), julgando o termo violência obstétrica como inadequado e banindo a sua utilização em documentos legais e em políticas públicas. Essa mudança de postura gerou uma revolta entre ativistas e entidades em defesa das mulheres que acreditam que negar o termo é negar a existência do problema. Logo após a polêmica, houve uma nota do Ministério da Saúde reconhecendo o direito legítimo das mulheres em usar o termo que melhor represente suas experiências vivenciadas em situações de atenção à saúde que configurem maus tratos, desrespeitos, abusos e uso de práticas não baseadas em evidências científicas.
Com o propósito de tentar minimizar algumas das questões levantadas, a pesquisa “Nascer no Brasil II”, o segundo inquérito nacional sobre parto e nascimento que irá à campo em 2020, tem propósito de coletar dados referentes à violência obstétrica no Brasil. Será utilizado o questionário proposto pela Organização Mundial da Saúde previamente adaptado para o uso no Brasil. Um dos principais objetivos da pesquisa será estimar a prevalência de Violência Obstétrica, seus fatores de risco, estudar as consequências na saúde da mulher e do recém-nascido, assim como oferecer dados epidemiológicos para subsidiar políticas públicas. Presume-se que essa pesquisa possa ser um grande passo para a construção de um modelo de atenção ao parto e abortamento de forma mais respeitosa e digna para as mulheres no Brasil.
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graduanda em Direito pela Universidade Brasil. Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Julia Scatena. Violência obstétrica: aspectos jurídicos no Brasil e o direito das mulheres a um parto humanizado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2022, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58912/violncia-obsttrica-aspectos-jurdicos-no-brasil-e-o-direito-das-mulheres-a-um-parto-humanizado. Acesso em: 23 dez 2024.
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