RESUMO: O presente estudo aborda a adequação constitucional da teoria da infração per se na apuração da infração de cartel, conforme adotada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. O faz recorrendo a instrumentos da metodologia constructivista lógico-semântica, a partir de sua taxinomia, em cotejo com a teoria de Hermenêutica Constitucional. Na passagem, se estrutura a pertinência e compatibilidade do pragmatismo no ambiente do Direito Concorrencial brasileiro e suas hodiernas modulações.
Palavras-chave: Direito da Concorrência. Direito Administrativo Sancionador. Hermenêutica Constitucional. Cartel. Teoria per se.
ABSTRACT: This study shall address the constitutional adequacy of the theory of the “per se” liability within investigations of cartels, as adopted by the Administrative Council for Economic Defense – CADE. This study provide this assessment using instruments of the “logical-semantic constructivist” methodology, based on its taxonomy, in comparison with the theory of Constitutional Hermeneutics. The study also investigates the pertinence and compatibility of pragmatism in the context of the Brazilian Competition Law and its current modulations.
Keywords: Competition Law. Administrative Sanctioning Law. Constitutional Hermeneutics. Cartels. Per se Theory.
O presente artigo busca examinar a possibilidade de acolhimento, em nosso sistema jurídico, da metodologia especificamente desenvolvida ao ambiente concorrencial dos Estados Unidos e importada ao Brasil na persecução de cartéis, conhecida como ilícito per se.
Conforme se verá adiante, quem tiver contato com literatura relacionada à livre concorrência deverá encontrar, em algum momento, dissertações acerca da conduta de cartel, dificilmente se deparando com intensos debates acerca de sua gravidade em abstrato e dificuldade de apuração, estimação do dano, ou responsabilização. Justamente por isso se avolumam teorias jurídicas e econômicas (bem como jurídico-econômicas) que buscam dar maior eficácia à envergadura do Estado em busca da repressão e dissuasão da formação de cartéis, buscando evitar seus efeitos comumente deletérios.
Trata-se, em maior ou menor medida, de teorias de base pragmática, que se apoiam, como regra, em conceitos importados das ciências econômicas, incidindo muitas vezes verticalmente sobre o Direito. Notadamente, observando se tratar de um delito cuja reprovabilidade decorre de seus efeitos sobre o ambiente econômico, ganharam especial projeção as teorias oriundas da plataforma construída pela Escola de Chicago, consoante à abordagem econômica do Direito, chamada Law and Economics, embora cumpra registrar a existência de outras teorias dignas de estudo e aprofundamento – o que não se fará no presente artigo por sua menor influência sobre a prática brasileira.
A filosofia da Escola de Chicago, em síntese, utiliza como referencial de antijuridicidade a (in)eficiência econômica, que busca garantir à apuração jurídica dos fatos maior objetividade, algo que melhor se abordará adiante. Tendo como premissa que o bem jurídico tutelado será traduzido em eficiências econômicas, a base do Law and Economics permite algumas presunções que funcionariam como facilitadores da busca por tal objetivo.
Com efeito, a apuração de cartel, como se disse, implica a difícil tarefa de apuração dos efeitos (danosos) da prática. Neste contexto, boa parte das teorias de natureza consequencialista buscam justamente desonerar a autoridade competente de apurar a existência de efeitos decorrentes da conduta, viabilizando mais condenações de agentes econômicos. Conforme se verá, a forma de apuração dos cartéis pode influenciar e até alterar substancialmente sua classificação segundo a ótica da dogmática penal, de resultado, formal ou de mera conduta.
Dentre as teorias jurídicas desenvolvidas sobre tal esteio, aqui adentrando especificamente o Direito da Concorrência, está a teoria da infração de ilicitude per se, isto é, infrações em que se presume de forma absoluta a ocorrência de efeitos negativos advindos da prática e, consequentemente, sua ilicitude. Conforme se verá, tal teoria busca embasamento na epistemologia econômica, que aponta que dificilmente haverá eficiências econômicas decorrentes de um cartel, de modo que, demonstrada a materialidade do conluio, o dano seria presumível.
A teoria da responsabilização per se é a atualmente adotada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, de modo que se encontra em pleno vigor, na prática, no Sistema Brasileiro de Defesa Econômica. Contudo, há de se investigar a natureza jurídica de tal teoria, em cotejo com os ditames constitucionais, buscando entender suas modulações e, finalmente, seu cabimento e limites no ordenamento jurídico brasileiro – que é, como se sabe, constitucionalista. Buscar-se-á responder, pois: (i) a teoria do ilícito per se encontra supedâneo legislativo? (ii) a base principiológica da teoria do ilícito per se encontra respaldo constitucional? (iii) a teoria do ilícito per se encontra conformidade constitucional?
Para tanto, utilizar-se-á recursos da metodologia constructivista lógico-semântica, partindo-se da premissa de que interpretar é construir sentido[1], dessa forma investigando o arcabouço normativo positivo, o nosso Direito posto.
II. Law & Economics e a Hermenêutica Constitucional
Conforme antecipado, a intensa expansão do pragmatismo no Direito pode ser especialmente associada à já mencionada escola jurídico-econômica de Chicago, conhecida como Law & Economics. A doutrina possui lógica própria, cuja valoração jurídica de condutas se preocupa menos com a reprovabilidade da conduta no cotejo de múltiplos princípios presente na ordem jurídica, restringindo-se à apuração sob a ótica do princípio da eficiência econômica[2] no ensejo da antijuridicidade e justificação da sanção[3]. Não coincidentemente, seu surgimento está umbilicalmente ligado à análise econômica do Direito Concorrencial[4], daí sua notável importância à hermenêutica deste universo.
Mais que um arcabouço ferramental útil ao estudo do campo, a abordagem econômica do Direito proposta pela referida doutrina oferece outro elemento relevante à hermenêutica específica, que é a importação de conceitos oriundos das ciências econômicas para o campo jurídico, otimizando seu caráter integrativo. Em termos de semiótica[5], ferramenta do constructivismo lógico[6], diversos conceitos cunhados sob a epistemologia do campo econômico são aproveitados para interpretação de nossa ordem normativa, desde a Constituição da República até resoluções e regulamentos, de modo que o campo semântico das normas se vê permeado pelas ciências econômicas.
É de se notar, contudo, que, conforme aponta Frazão[7], deve ser a matéria observada, sempre, sob a égide da ciência jurídica, especialmente em respeito à sua autopoiese, não obstante esta se aproprie, para maior precisão na execução da leitura jurídica, de conceitos e análises econômicas de prisma pragmático-consequencialista. Nesse sentido, cabe fazer uma breve leitura da estrutura jurídica da doutrina Law and Economics, para então verificar sua adequação hermenêutica.
Conforme bem explica Posner[8], o Law and Economics marcou sua expansão para além dos limites do Direito Concorrencial ao aplicar teorias e métodos de base empírica das ciências econômicas ao sistema legal de common law como um todo, cujo significado de justiça seria marcado por primados de eficiência econômica. O próprio autor, contudo, ressalva que tal substância não é partilhada por sistemas jurídicos distintos:
“The efficiency theory of the common law is not that every common law doctrine and decision is efficient. That would be completely unlikely, given the difficulty of the questions that the law wrestles with and the nature of judges’ incentives. The theory is that the common law is best (not perfectly) explained as a system for maximizing the wealth of society. Statutory or constitutional as distinct from common law fields are less likely to promote efficiency, yet even they as we shall see are permeated by economic concerns and illuminated by economic analysis”.
Uma vez mais, destaca-se a nota de que mesmo os regimes constitucionalistas são iluminados por análises econômicas, em que pese não sejam por elas pautados ou a elas moldados. Ainda, Posner[9] observa que a abordagem econômica do Direito, enquanto preconiza a eficiência econômica como valor referencial do common law, demonstra à sociedade de quê precisa ela abrir mão para atingir um ideal não econômico de justiça – isto é, a demanda por justiça, em termos não economicamente quantificáveis, possui seu custo.
Com efeito, não é nova a Teoria dos Valores[10] e a subjetividade[11] no estabelecimento de seus contornos e pressupostos hierárquicos, mormente em um sistema constitucionalista que, ao lado dos primados da eficiência econômica, possui uma série de outros valores igualmente positivados em seus princípios, normas fundamentais[12], cabendo ao intérprete seu escalonamento, consoante às teorias jurídicas que lhe aprouver.
Ronald Dworking, bem explica tal retrato, quando argumenta que “a lei será economicamente mais eficiente se os juízes forem autorizados a levar em conta o impacto econômico de suas decisões; isso, porém, não responderá à questão de saber se é justo que eles procedam assim, ou se podemos considerar critérios econômicos como parte do direito existente, ou se decisões com base no impacto econômico têm, por esta razão, um maior ou menor peso moral”[13]. Ao que conclui que problemas relativos à teoria do direito são ligados a princípios.
Neste esteio, remete-se brevemente o leitor aos ensinamentos clássicos de hermenêutica quanto à modulação de princípios, desde a moldura de Kelsen[14], que já dá conta de ilustrar a problemática das múltiplas interpretações válidas de uma norma, até a valoração principiológica por meio das abstrações de Carlos Maximiliano[15] ou da ponderação[16] e otimização[17] de Alexy, perante a hipótese de colisão de princípios. Em destaque, a lição de Miguel Reale[18] quanto à interação com princípios jurídicos estrangeiros:
“Reduzido é o número dos adeptos dessa teoria de cunho nacional, quando não nacionalista, pois é difícil não perceber a natural convergência, ou a semelhança substancial dos princípios gerais que governam o ordenamento brasileiro ou espanhol com os outros povos integrados no mesmo ciclo de cultura, apesar de existirem, não há dúvida, princípios peculiares a este ou àquele outro sistema. Parece-nos que, se é inadmissível reduzir os princípios gerais ao sistema do Direito pátrio, seria absurdo não reconhecer que há princípios estruturais inseparáveis de dado ordenamento. Como ignorar, por exemplo, as diferenças existentes, no plano dos princípios, entre o Direito chinês e o das Nações democráticas do Ocidente? Por outro lado, não obstante inegáveis correspondências, há diversidade de princípios entre, por exemplo, o Direito brasileiro e o common law. (...) Não resta dúvidas de que, por mais que seja desejável a universalização do Direito, enquanto houver discrepância entre os nossos princípios jurídicos e os alienígenas, não poderá o jurista brasileiro, enquanto jurista, contrariar pressupostos do ordenamento nacional”.
Neste sentido, há um processo analítico que precede a simples aceitação do axioma pela busca da eficiência econômica, na medida em que tal premissa esbarra no conjunto de princípios disposto na Carta Magna. Note-se que os clássicos autores supracitados encontram território comum na noção de que não há possibilidade de imposição axiológica, abstrata, de um princípio fundamental sobre outro, conforme atualmente acolhido enquanto doutrina majoritária no tema[19].
Na passagem, cumpre registrar que a inadequação da preconização abstrata de um valor constitucional sobre o outro também é consistente à já referida Teoria dos Valores[20], que, justamente por isso, oferece uma metodologia para sua hierarquização[21]. Tais características oferecem intransponíveis obstáculos a uma presunção anteposta.
Pelo contrário, há uma incidência gradiente e fluida, em que disputam pontuais espaços nos quais se devam repelir[22] ou demandar sacrifícios, de modo a superar as lacunas referenciadas por Maximiliano ou a ensejar a ponderação, conforme ensinado por Alexy[23]. Portanto, não se trata de rechaçar por completo, como já se antecipou, o arcabouço ferramental do Law and Economics, mas sim de reconhecer sua limitação àquilo que couber à eficiência econômica enquanto valor constitucional, submetido aos critérios de proporcionalidade[24], cedendo lugar a outros pressupostos jurídicos naquilo em que for estranho ao Direito posto brasileiro.
Neste contexto, toma lugar a virtuosa doutrina de Hermenêutica Constitucional talhada por Streck[25], que carrega consigo, a nosso ver, a mais madura baliza hermenêutica ao nosso sistema de estrutura constitucionalista.
No fio desta doutrina, adite-se que o ato de hermenêutica não é um ato de vontade, ou escolha, mas de um ato de decisão, que possuiria estrutura distinta[26]. O hermeneuta constitucional preocupa-se com a manutenção do Estado de Direito Democrático, evitando margens para decisionismos ou correção moral do direito[27]. Acrescenta-se, por oportuno, neste contexto, a correção[28] econômica do Direito.
Outrossim, a referida doutrina orienta o papel da hermenêutica à preservação da força normativa da Constituição[29], isto é, a interpretação de qualquer norma jurídica do sistema deve ser realizada de modo a garantir à Constituição Federal seu maior império possível, ou a máxima efetividade[30], entendendo todo o ordenamento jurídico como um único organismo irrigado pelos valores constitucionais.
Essa doutrina erige cinco pilares, que estarão subjacentes à presente análise. A Hermenêutica Constitucional deve, ao nosso juízo, ter por princípios (i) a preservação da autonomia do direito, como sua própria condição de possibilidade, (ii) o controle hermenêutico da interpretação constitucional, voltado à imposição de limites à discricionariedade, (iii) integridade e coerência do Direito, (iv) dever fundamental de justificação/fundamentação das decisões, e (v) direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada, consequência da obediência aos demais princípios.
Em outras palavras, isto implica (i) a restrição do cabimento do viés pragmático da doutrina estrangeira ao ambiente da produção normativa, observado que a produção legislativa sofre, por elementar, limitação do arcabouço constitucional e influências políticas em que melhor se adequam ao pragmatismo e às perspectivas extraídas do plano fenomênico, e que a produção normativa infralegal sofre plena incidência do princípio da legalidade, e (ii) naquilo que coube preconização da eficiência econômica, poder aproveitar ferramentas e instrumentos oferecidos pela doutrina pragmática[31] – quando este esbarrar em valores positivados por outros princípios de alta estima, e.g. o princípio da legalidade, do devido processo legal, da presunção ou estado de inocência, deixará de encontrar conformidade com nossa ordem jurídica.
No útil, é dizer que avaliação pragmática de índole econômica, necessariamente coerente à ciência econômica, será relevante quando o sistema normativo disser que é.
É neste complexo cenário que se insere a infração de cartel. Essa conduta se caracteriza pelo conserto entre concorrentes para, atuando em conjunto, abusar de seu poder econômico combinado, arbitrando preços acima dos padrões competitivos, reduzindo quantidades ou diminuindo a qualidade, quantidade ou variedade de produtos ou serviços, visando amplificar seus lucros de forma artificial[32]. Isto é, na hipótese de um produtor não deter sozinho poder de mercado suficiente para dele abusar, busca combinar sua participação com a de outros produtores, equiparando-se o conclave a um agente monopolista – é, portanto, um meio de viabilizar o abuso do poder econômico, leitura que, aliás, encontra eco na Constituição Federal em seu artigo 173, §4º[33].
Em outras palavras, poder econômico é a capacidade de um ou mais agentes alterarem artificialmente as condições de mercado, isto é, arbitrariamente agir em desacordo com as leis racionais de mercado para majorar seus lucros, sendo o cartel um meio de viabilizar seu abuso. Isto é, em termos abstratos, segundo parte da epistemologia econômica, um acordo entre produtores que conjuntamente não detivessem poder econômico seria inócuo, haja vista que sua atuação uniforme não teria o condão de enfrentar as leis de mercado e, por conseguinte, manipular suas condições. É a anedota que Martinez chama de “o dilema dos padeiros”, na qual dois padeiros acordam em fixar o preço do pão francês em R$ 5,00 em um bairro com centenas de padarias, em que o preço desse mesmo pão varia entre R$ 0,15 e R$ 0,20. Formalmente, o ajuste entre concorrentes com objetivos espúrios ocorreu, mas em momento algum tal prática ofereceu qualquer perigo à livre concorrência, haja vista que “o único efeito esperado desse acordo é a perda de clientela por parte dos dois padeiros” [34].
De outro lado, a prática não poderia ser considerada de mera conduta em decorrência da complexidade das relações econômicas, a partir da qual essa categorização poderia resultar em grave desincentivo a práticas economicamente eficientes e benéficas. Acordos entre concorrentes podem resultar em contratos associativos ou joint ventures, além de situações de efetivos acordos voltados a objetivos lícitos, como em casos de projetos assistenciais, de inclusão e diversidade e até na situação da recente pandemia de coronavírus, em que ocorreram, em diversos mercados, alinhamentos entre concorrentes buscando solucionar problemas decorrentes da crise de saúde[35].
Outrossim, não é o cartel um fim em si mesmo, mas sim um meio artificial à concentração e abuso de poder econômico, sem o qual a potencialidade lesiva do cartel não se efetiva[36]. Em que pese se reconheça relevantes avanços na matéria[37], não há consenso, seja na esfera administrativa, seja na esfera penal, acerca da silhueta conceitual das condutas típicas de cartéis. Reconhece-se como mais adequada a referência plural a cartéis, consubstanciando condutas distintas e com elementos distintos. Conforme brilhantemente minudenciado por Martinez, pode-se estabelecer uma série de recortes metodológicos e segmentar os carteis em tipos[38], segundo diferentes critérios.
Feitas essas ressalvas, cabe o esforço de promover a leitura dos dispositivos atinentes à conduta e delimitar o conteúdo semântico do tipo infracional. Conforme anotam Franceschini e Bagnoli[39], o artigo 36 da Lei Concorrencial é estruturado por seu caput, que indica ilicitude de atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, enumerando, então, seus incisos[40].
Os incisos do artigo 36, chamados pelos autores de infrações-fim[41], trazem os objetos ou efeitos que oferecem densidade à norma consubstanciada no caput, enquanto o parágrafo 3º e respectivos incisos trazem exemplos de condutas comerciais[42]. Conforme ensinam os doutrinadores, a conduta de cartel está tipificada no §3º, I, do artigo 36, do que se denota que a conduta típica deve preencher os requisitos elementares das normas constantes em cada dispositivo.
Não se pode olvidar, a partir da estrutura exposta, que o preenchimento do caput não se dá de imediato com a subsunção do enunciado do inciso I do §3º. As condutas típicas descritas no inciso só provocam subsunção ao caput à medida que também se enquadrarem nas hipóteses de efeitos dispostas nos seus incisos. Trata-se de enquadramentos sucessivos, cada qual com seus elementos, até a subsunção e configuração de ilicitude.
Aliás, conforme já mencionado, essa leitura jurídica da conduta de cartel, conforme corroborado por Martinez, tem forma consistente ao conceito de cartel quando integrada pela ciência econômica, que é, ao fim e a cabo, o ambiente em que a conduta se manifesta no plano fenomênico. Assim, garante-se maior densidade e previsibilidade ao tipo normativo. Nesta leitura, a infração de cartel se configura mediante a produção, ou possibilidade concreta[43] de produção, dos efeitos arrolados nos incisos do art. 36.
Neste contexto inserem-se as teorias de apuração do fato jurídico para avaliação da ilicitude da conduta. Duas dessas teorias são importadas de experiências estrangeiras e pautadas, em maior ou menor medida, nos pressupostos pragmáticos de eficiência, mas cuja distinção é de se destacar por seus efeitos jurídicos. Uma é de origem comunitária europeia[44], a teoria da infração “por objeto”, a outra, vinculada ao Law and Economics, é a teoria da infração per se.
Ambas partem da já mencionada premissa, extraída das ciências econômicas, de que carteis, se efetivados, dificilmente deixariam de produzir resultados negativos ou produziriam resultados positivos e, neste sentido, partem, em maior ou menor medida, da presunção de efeitos negativos advindos de sua materialidade. Como se viu da estrutura do tipo infracional, a presunção de efeitos resulta na subsunção automática dos incisos do artigo 36, configurando por consequência a hipótese típica descrita no caput. Isto é, a presunção de efeitos negativos implica presunção de ilicitude da conduta.
A teoria da infração “por objeto” vê na materialidade prima facie do acordo entre concorrentes uma presunção iuris tantum, relativa, de ilegalidade, isto é, verificada a materialidade do acordo, presume-se sua ilicitude, sujeita à prova em contrário, cabendo ao investigado demonstrar a não ocorrência dos efeitos previstos no art. 36 da Lei.
Tal presunção de ilicitude não se confunde, contudo, com a equiparação da infração de cartel a um delito formal, conforme conceito conhecido na doutrina penal, isto é, em que o resultado é deslocado para dentro do tipo, de modo que a possibilidade de produção ou não de efeitos se torne irrelevante à configuração do tipo. De modo distinto, a teoria “por objeto” implica, uma vez comprovada a materialidade do acordo, a inversão do onus probandi[45] acerca da produção de efeitos ao acusado, que, para obstruir a subsunção dos incisos do caput, deve demonstrar sua impossibilidade ou que seriam tais efeitos liquidamente positivos, neste caso interrompendo o nexo causal com o caput do art. 36 e afastando a configuração de ilicitude.
De outro lado, a teoria da infração “per se”, oriunda do direito estadunidense, implicaria uma presunção iuris tantum mais rigorosa que a teoria europeia. Neste sentido, as teorias nascem como formas de análise do fato jurídico que virá a compor o antecedente da norma sancionatória, conforme bem elucida Cueva, em referência de Frazão[46], ambas por meio de presunção relativa. Contudo, com o passar do tempo, a teoria per se passou a contemplar uma presunção iuris et de iure, absoluta, de ilegalidade[47]. Neste caso, mesmo que se apresente prova em contrário quanto à possibilidade de produção de efeitos ou de efeitos líquidos positivos, a presunção de ilicitude subsiste.
Neste contexto, ao se tratar da possibilidade de efeitos e pela utilidade em avaliar a teoria adotada pelo CADE, conforme se demonstra adiante por sua jurisprudência, cumpre abrir breves parênteses para lembrar de um importante conceito da análise antitruste: o mercado relevante[48], que uma vez delimitado servirá de recorte metodológico para a instrução e apuração de infrações à ordem econômica.
Conforme registra o Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE[49], item 2.3.1., “a delimitação do MR é o processo de identificação do conjunto de agentes econômicos (consumidores e produtores) que efetivamente reagem e limitam as decisões referentes a estratégias de preços, quantidades, qualidade (entre outras) da empresa resultante da operação”.
A definição do mercado relevante permite a averiguação da participação de mercado dos agentes econômicos e sem ela não há como se averiguar, afinal, se um ou mais produtores detêm poder suficiente para influenciarem artificialmente o comportamento dos demais agentes econômicos envolvidos. Conforme se extrai da acepção econômica do cartel, na hipótese de um conjunto de produtores atuarem conjuntamente sem que detenham poder de mercado, a manipulação artificial se vê inviabilizada – não se pode falar em abuso de um poder que não se detém.
É neste diapasão que toma protagonismo a metodologia adotada pelo CADE. Como se verá da doutrina, o CADE passou, em determinado momento, a enredar as duas teorias e tratá-las como se fossem uníssonas, ignorando suas substanciais diferenças, incorporando à sua metodologia a não definição de mercado relevante nas apurações por cartel, o que impossibilita a verificação de existência ou não de efeitos ou poder de mercado[50]. Ademais, conforme anotam Franceschini e Bagnoli, o CADE reconhece o alcance de suas premissas analíticas, que equiparam a infração de cartel a um delito formal[51]. Ainda, cumpre observar que o CADE adota o entendimento pela responsabilidade objetiva por infrações à ordem econômica, de modo que a imputação do delito enquanto formal ou de mera conduta sequer se sustenta em uma intelecção jurídica das intenções dos agentes econômicos.
Neste sentido, não consegue o particular enfrentar a subsunção dos incisos do caput pela impossibilidade de auditar a existência de poder de mercado do qual poderia abusar, em conjunto com outros. Negando-lhe o direito de produzir prova de efeitos líquidos positivos ou de demonstrar tratar-se de delito impossível, é de rigor estabelecer como premissa central deste artigo a aplicação pelo CADE da teoria per se, em detrimento da teoria “por objeto”[52], cabendo verificar sua adequação aos pressupostos hermenêuticos erigidos no capítulo anterior.
IV. A teoria per se e a Hermenêutica Constitucional
É da Constituição da República que se extrai a natureza e regime do Direito Concorrencial brasileiro, bem como o bem jurídico tutelado e o plexo de princípios sobre ele incidentes.
Conforme assinala Franceschini[53], complementado por Frazão a livre concorrência possui função abrangente que equaliza as falhas de mercado e suas diversas consequências não apenas econômicas, mas alinhadas às preocupações políticas e sociais ligadas ao liberalismo enquanto filosofia política[54]. Disto resulta que a livre concorrência não é veículo apenas à proteção da livre-iniciativa enquanto fundamento da ordem econômica, mas também como fundamento do Estado de Direito Democrático[55]. Sem desprezo a respeitáveis divergências[56].
A livre concorrência figura como princípio basilar da ordem socioeconômica pois representa, em última instância, um meio de legitimação da função social da propriedade, garantindo um ambiente isonômico e acessível para o exercício da livre iniciativa aos agentes econômicos. Neste sentido, entende-se que a tutela livre concorrência cumpre a função de barreira a potenciais objetivos egoísticos do agente econômico[57], isto é, quando sua função de produtor entrar em conflito com o interesse público e deixar de provocar bem-estar, conservando a livre iniciativa como fundamento da ordem jurídica brasileira sem agressão aos demais pilares constitucionais.
Neste esteio, frise-se que a liberdade ou autonomia decisória, em matéria econômica, contempla dupla vulnerabilidade[58], com supedâneo constitucional, no art. 173, caput e §4º, da Constituição Federal, que aqui não se enxerga como contradição[59]. Uma está refletida no abuso de poder econômico (tutela da livre concorrência frente ao poderio concentrado de entes privados, decorrente das ditas falhas de mercado) e outra que reflete o próprio Estado de Direito Democrático, sob o prisma do intervencionismo (tutela da livre concorrência frente à ingerência do Poder Público).
Neste sentido, a tutela da livre concorrência, protegendo-a das indevidas distorções, seja qual for sua origem, seria um dos meios necessários à garantia de outros princípios fundantes da ordem econômica pátria, como a busca pelo pleno emprego que, sob enfoque econômico, é conceito resultante justamente do equilíbrio econômico acima retratado, o que refuta a leitura de que o art. 170 da Constituição Federal buscaria harmonizar políticas[60] e valores[61] conflitantes, ou mesmo sua já mencionada aversão ao Estado de Direito Democrático.
Em que pese tal celeuma estar distante de um enunciado assertivo, conclusivo ou de reconhecimento geral, acolhe-se aqui uma visão não contrastante na coluna principiológica de nossa ordem socioeconômica, sem embargo ideológico ao neoliberalismo[62], mormente por sua pluralidade de significados em termos hodiernos, consoante sua leitura política[63].
O art. 170 é lido, portanto, como unidade, orientando a uma ordem econômica que prima pela livre iniciativa enquanto manifestação da autonomia do indivíduo, a ser protegida por meio da tutela da livre concorrência e cuja legitimidade se arvora na compatibilidade entre o projeto do empresário e todos os demais membros da sociedade, já que a dignidade da pessoa humana decorre da intersubjetividade dos direitos de todos e da interpenetração entre liberdade e igualdade por meio de critérios de justiça social, ainda na lição de Frazão.
Frise-se, neste contexto, que todo esse conjunto de bens jurídicos tutelados figuram como direitos fundamentais de extração constitucional, ao lado da eficiência. Uma vez mais, ainda que se busque categorizar os preceitos de justiça social como direitos fundamentais sociais e os fundamentos da ordem econômica como direitos fundamentais econômicos, tal separação também não contempla de forma inerente qualquer contraste[64].
Neste sentido, toma-se por ausentes contradições axiológicas entre os princípios e bens jurídicos tutelados, que tenderiam a justificar maior ingerência estatal sobre a economia, e alerta-se para os diversos valores, além da eficiência econômica, tutelados pelo ordenamento. Comparato, ainda nas palavras de Frazão[65], da conta de elucidar tal premissa:
“Consequentemente, toda essa principiologia, inclusive na parte em que direciona a atividade empresarial à realização da justiça social, precisa ser levada em consideração em todas as searas da ordem econômica, dentre as quais o Direito da Concorrência. Aliás, sobre a questão, é oportuna a advertência de Comparato no sentido de que ‘é em função desse objetivo último de realização da justiça social que devem ser compreendidos e harmonizados os demais princípios expressos no art. 170’. Dessa maneira, tem-se que, por imposição constitucional, o Direito da Concorrência não pode ser um mero instrumento de defesa de mercados ou de eficiência econômica – qualquer que seja o sentido que se atribua a tais expressões –, assim como não se pode ser instrumento flexível de implementação de qualquer tipo de política econômica, totalmente isolado e alheio aos demais princípios da ordem econômica” (grifou-se o negrito).
Esta afirmação é de extrema valia para a ciência jurídica na incidência sobre o Direito da Concorrência, pois delimita de forma rigorosa sua operação de modo necessariamente compatível com os conceitos, por mais que econômicos, positivados no ordenamento jurídico brasileiro[66], atribuindo maior objetividade à noção de Hermenêutica Constitucional adrede referenciada, acentuando que o Direito da Concorrência não está a serviço exclusivo da eficiência econômica e que é incompatível com a noção de mero elemento de política ou de economia[67].
a. Regime jurídico: o direito administrativo sancionador
Preposta a dogmática jurídica para o escorreito estudo da matéria, destaca-se o regime jurídico no qual se situa a apuração de ilícitos contra a ordem econômica. Para o presente estudo, estabelece-se que o Direito Concorrencial, mormente no controle de condutas, encontra-se nas dobras da função de repressão administrativa, distanciando-se do poder polícia em definição estreita, limitada a atos discricionários ou preventivos[68], em benefício de leitura em sentido mais abrangente, contemplando a função fiscalizadora e restritiva de direitos[69]. Mais que isso, não se trata apenas de atividade restritiva de direitos, mas atividade restritiva sancionatória, que possui tal qualificação quando permeada pela natureza repressiva, punitiva, do Estado.
Por tal quadro, observar-se-á a presente problemática sob a luz do Direito Administrativo Sancionador[70], que é objeto, ainda, de disputas elementares em doutrina e jurisprudência, inclusive no que tange ao arcabouço principiológico incidente e sua extensão[71].
É importante ressaltar que Franceschini e Bagnoli, entre outros[72], encontram território comum na oposição ao caráter gerencial (meramente administrativo) do Direito da Concorrência, embora possam ter divergências quanto a determinadas premissas[73]. Neste sentido, sustentam que a natureza administrativa-dirigista[74] do Direito da Concorrência não encontra compatibilidade com os mandamentos constitucionais, com respaldo judicial[75] e, ao menos até pouco tempo, do próprio CADE[76].
Neste contexto, estabelecer um arcabouço principiológico atraído por tal regime jurídico é tarefa nada trivial. Pela natureza repressiva da competência e pelos limites no exercício de tal competência mediante atuação autárquica, enquadra-se o Direito da Concorrência, no controle de infrações à ordem econômica, no campo do Direito Administrativo Sancionador, respeitada divergência de Franceschini. Para este autor, o Direito da Concorrência estaria situado no campo do direito penal econômico, não obstante seus aspectos formais, que o autor chama de hibridismo. Arvorando-se em respeitável doutrina[77], Franceschini afirma que a natureza da lei é penal, considerando fatores endógenos – isto é, a natureza essencialmente repressiva.
Conforme elucida Costa, existe uma acentuada aproximação entre o direito penal econômico e o direito administrativo sancionador, além da própria delimitação dogmática ou criminológica do direito penal econômico não ser tarefa simples. A nosso ver, entretanto, a classificação não pode ignorar aspectos exógenos, quais sejam os aspectos formais de jurisdição e resultado: decisões do CADE são indubitavelmente atos administrativos e suas decisões condenatórias não resultam na configuração de crime ao agente infrator, nem resultam na aplicação de pena, ambos em sentido estrito. Contudo, há notas e alertas importantes na classificação empreendida pelo autor, especialmente se lida a expressão penal em sentido lato, como punitivo.
A principal preocupação é em atrair aspectos já consolidados da dogmática penal para a atividade sancionatória do direito concorrencial, ciente da ainda presente e intensa disputa científica no campo administrativo sancionador, notadamente quanto à defendida informalidade do regime administrativo, influência de princípios norteadores do Estado de Direito Democrático e da proteção de direitos fundamentais. A lição de Franceschini, pois, busca destacar a natureza repressiva e aproximar a dogmática penal especialmente quanto a sua fundamentação e consequente limitação[78].
Com efeito, tal preocupação é antiga e enseja investigação doutrinária acerca da incidência principiológica no sistema administrativo sancionador e eventual atração de princípios há muito aplicados no sistema penal. Conforme madura lição de Costa, parte substancial da doutrina reconhece a unidade de origem do ius puniendi, constituindo dele um regime jurídico próprio punitivo, macrossistema do qual fariam parte os subsistemas penal e administrativo sancionador. Com efeito, a autora rechaça a teoria da unidade do jus punitivo estatal por negar uma natureza autoritária dessa atividade e também por entender que dessa teoria decorreria, necessariamente, uma identidade normativa entre o direito penal e o direito administrativo sancionador. Costa é profícua nos ensinamentos sobre as aproximações adequadas entre os sistemas.
“O autor também nos relata que o Conselho Constitucional francês entendeu que não se trata, neste tema, de transladar as regras do direito penal ao administrativo sancionador, mas sim de reconhecer quais são os princípios comuns da repressão jurídica. Diante dessa discussão, deve-se, em primeiro lugar, rechaçar a ideia de um único ius puniendi em razão de seu caráter autoritário, como já anteriormente manifestado. A seguir, cumpre reconhecer que a concepção traz, ainda, um caráter retórico, que visa a justificar a aplicação das garantias do direito penal à esfera administrativa, mas que acaba por apresentar sérios problemas de fundamentação, ao ignorar as diferenças normativas existentes entre os dois ramos do direito. (...) Por fim, é necessário deixar claro que a compreensão aqui adotada acaba por chegar a resultados jurídicos muito semelhantes à tese do ius puniendi único. Entretanto, apresenta justificativa mais calçada, pois não depende do reconhecimento de identidade entre direito penal e direito administrativo sancionador, o que configura, consoante analisado anteriormente matéria extremamente controvertida. Para concluir pela incidência de um regime jurídico mais rigoroso no campo do direito administrativo sancionador, basta reconhecer suas próprias características, quais sejam: imposição de restrição de direito fundamental a um particular pelo Estado, com base na prática de ilícito. A partir daqui, deve passar a incidir, com fundamento na Constituição, uma série de garantias e normas protetivas do particular e delimitadoras do âmbito de atuação estatal”[79].
Note-se que a própria autora reconhece serem os resultados adotados semelhantes aos da teoria da unidade do ius puniendi, porém com supedâneo mais sólido ao resguardar a cada campo uma identidade própria. Concordamos com a noção de identidades distintas entre o direito penal e o direito administrativo sancionador e, por conseguinte, rejeita-se a noção de unidade do ius puniendi como fundamentação suficiente para a transposição automática e integral do arcabouço principiológico penal ao campo administrativo.
Contudo, entende-se que reconhecer a unidade do ius puniendi enquanto origem da atividade estatal não implica reconhecer identidade plena entre as esferas, mas sim a existência de propriedades comuns que permitem uma observação aproximada de determinados fenômenos e o uso, observada a necessária adequação, de determinadas ferramentas teóricas.
Buscando, portanto, evitar confusões, acolhe-se o entendimento de origem comum do ius puniendi, que configura um macrossistema de regime repressivo, do qual o sistema criminal e administrativo sancionador são espécies. Conforme a teoria das classes, enquanto espécies, há propriedades comuns e propriedades distintas que servirão de critérios lógicos para determinação do regime jurídico incidente.
Seja sob o fundamento da unidade do ius puniendi, seja sob fundamento constitucional autônomo, vem se formando um relativo consenso em torno da premissa central de que a natureza repressiva da atividade estatal, ao invadir aflitivamente a esfera de direito fundamentais dos particulares como resposta a atos ilícitos, demanda um regime jurídico rigoroso no estabelecimento da causalidade jurídica.
Na doutrina, ainda que eventualmente se filiem a doutrinas sensivelmente distintas, encontram território comum neste aspecto, Costa, conforme supra, Ataliba[80], Ferreira[81], Nieto[82], Osório[83] entre outros. Na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal também vem solidificando a positivação de tal premissa na Reclamação 41.557[84], e no Mandado de Segurança (MS) 32.201[85], em que se reconheceu tanto a autonomia científica do direito administrativo, quanto os aspectos basilares de seus princípios, com reflexo nas decisões proferidas no MS 35.536 e MS 35.294.
Entende-se, pois, que direitos e garantias fundamentais, no ambiente repressivo, devem se sobrepor a primados de eficiência estatal, sem que caiba flexibilização do processo de estabelecimento de causalidade jurídica, conforme a doutrina majoritária supra.
Disto se estabelece que não se considera possível relativizar ou flexibilizar a incidência dos princípios tipicamente atraídos pela atividade repressiva estatal, conforme elencados pelo Min. Roberto Barroso acima, haja vista que toma sua força vinculante diretamente da Constituição da República.
b. A constitucionalidade da teoria per se como ferramenta metodológica de hermenêutica
Delineado o regime jurídico no qual se situa o problema, parte-se, por derradeiro, à avaliação da adequação da referida teoria às demais premissas erigidas. Para tal tarefa, considere-se a estrutura do tipo de cartel anteriormente esmiuçada e, a partir dela, observe-se a forma como foi introduzida a teoria per se na atividade hermenêutica do CADE[86].
No passado, a Autoridade antitruste mantinha-se atenta a postulados do regime jurídico sancionador, adotando a teoria da Regra da Razão[87], que demanda apuração de efeitos, tal como ilustrado por seus ex-Conselheiros Fernando de Oliveira Marques[88] e Luiz Fernando Schuartz[89], entendimento que foi paulatinamente alterado. Franceschini e Bagnoli, acompanhado por outros[90], indicam que a primeira importação de teorias estrangeiras ligadas à busca pela eficiência se deu por meio da teoria “por objeto”, quando do Voto-Vista proferido pelo então Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, em 20 de fevereiro de 2013, no Processo Administrativo 08012.006923/2002-1818. Posteriormente, os Votos do Conselheiro Alessandro Octaviani Luíz e do Conselheiro Ricardo Machado Ruiz, de 28 de agosto de 2013, no Processo Administrativo 08012.011027/2006-02, que passaram a tratar a infração “por objeto” como infração “per se”.
Portanto, a referida teoria foi introduzida no sistema jurídico pátrio por meio da adoção de presunção absoluta de efeitos por interpretação. Conforme minudenciada classificação trazida por Tomé, a presunção adotada pelo CADE não se enquadra em qualquer das espécies juridicamente legítimas – pois se trata de uma presunção absoluta por hermenêutica ou experiência, o que reflete verdadeiro contrassenso[91]. Sem prejuízo de pertinentes resistências[92], a presunção absoluta por interpretação grassou-se, alterando a metodologia hermenêutica adotada pelo CADE sem correspondentes alterações legislativas, reconfigurando o tipo normativo de cartel, primeiro invertendo o ônus da prova, depois transubstanciando-o de delito material e de perigo concreto, vinculado à possibilidade concreta de efeitos, a formal, passando a encontrar a antijuridicidade na conduta em si.
Tão drástica alteração, ademais, substituiu substanciais discussões jurídicas por presunções econômicas sem disposição jurídica neste sentido, revelando uma entropia entre as categorias fundamentais de nosso sistema constitucionalista com o de common law. Tal influência pretensamente exagerada não passou desapercebida, batizada de colonização do Direito da Concorrência nacional por Schuartz, conforme excerto reproduzido por Frazão[93]:
“A partir daí, tais ensinamentos foram consolidados pela chamada Escola de Chicago, que pretendeu demonstrar que não existe relação direta e necessária entre concentração de poder econômico e abusividade do seu exercício (...). A busca pela eficiência deveria ser, portanto, o único objetivo do Direito Antitruste, orientação que passou a ser predominante nos anos 1980 (...). Apesar de tal postura basear-se em presunções extremamente simplificadas e duvidosas, o sucesso que obteve no contexto norte-americano acabou se projetando sobre o Brasil, que importou sem maiores ressalvas as novas concepções e metodologias. Segundo Schuartz, houve verdadeira colonização do Direito da Concorrência nacional, tornando-o consequencialista no seu sentido mais absoluto, como se verifica por suas palavras:
O uso intensivo, direto e indireto (via apropriação de proposições dos manuais ou documentos oficiais das autoridades estrangeiras, sobretudo as norte-americanas), da economia antitruste na solução de problemas jurídicos revolucionou o direito de defesa da concorrência no País. Mais do que isso: não há no direito brasileiro exemplo análogo de colonização, por uma teoria originalmente extrajurídica, dos programas normativos e argumentativos substantivos utilizados enquanto premissas nas atividades de interpretação e aplicação do direito. Esta revolução discreta e silenciosa operou em diversos níveis, mas é sem dúvida no nível metodológico que se encontram seus impactos mais radicais e ricos em implicações teóricas”.
E arremata:
“O efeito mais deletério de todo esse processo, como já se adiantou no início do capítulo, foi o distanciamento do Direito da Concorrência nacional das discussões mais substantivas de natureza constitucional, as quais foram eclipsadas pela metodologia econômica que passou a ser dominante”.
Há, como se vê, uma disputa transversal do princípio da eficiência com a coluna de princípios erguidos pela Constituição Federal. A começar pela introdução da teoria por interpretação, que confronta o princípio da legalidade e do devido processo legislativo. Passando por uma presunção absoluta de determinados efeitos, repelindo o princípio da busca pela verdade material. Ainda, culminando na presunção absoluta de ilicitude, representando significativa limitação a corolários do devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, além de relativizar a presunção de inocência do acusado diante da inviabilização de produção de prova em contrário, mesmo que negativa. Alcançando, por fim, a completa transmutação do tipo infracional de material para formal – tornando vazio o texto normativo em referência à possibilidade de efeitos[94].
Como resultado final da alteração metodológica, asseveram Franceschini e Bagnoli:
“Gerou-se, como decorrência natural, uma agenda negativa nas relações Administração e Administrado, em que a primeira, ciosa de suas prerrogativas e temerosa quanto ao seu cabedal cognitivo, passou a ver os atores econômicos com desconfiança. Deixou-se de ver o produtor como um agente produtor de bens e serviços que busca, por meio da eficiência, atender as necessidades e desejos do consumidor, mas alguém cuja atividade no mercado merece o sopro messiânico do dirigismo estatal em garantia do processo competitivo e não do bem-estar social. O Administrado passou a ser visto com desconfiança, sempre pronto ao engodo (o que demonstra pelo parágrafo único). Por seu turno, defensivamente, para os Administrados passou-se a ter, na relação com a Autoridade, não a busca pela execução fiel da lei e dos princípios constitucionais que a norteiam, mas antes uma atitude de minimização de perdas. Não sem preocupação Napoleão Nunes Maia Filho e Mário Henrique Goulart Maia já registravam a crescente insensibilidade das autoridades administrativa encarregadas do magistério punitivo para com os direitos e garantias individuais: ‘Mas a tradição da aplicação de sanções pela própria Administração parece adormecer os espíritos quanto às críticas que lhe podem ser dirigidas, especialmente no que diz respeito à isenção ou à neutralidade dos órgãos de julgamento’. E arrematam: ‘Na verdade, a Administração – com frequência – comporta-se no exercício do poder administrativo sancionador, como se estivesse praticando atos executivos, desconsiderando por completo as especificidades da função jurisdicional que faz atuar nesse mesmo exercício: amiúde se vê que a Administração apenas cumpre a rotina (procedimento) do devido processo legal, mas fica longe – muito longe – das ponderações exigíveis da atividade sancionadora”[95].
É neste diapasão que toma especial protagonismo as doutrinas hermenêuticas referidas anteriormente. A boa compreensão da incidência dos princípios, enquanto normas, conforme anteriormente arvorado nos ensinamentos clássicos de diversos jusfilósofos, entendendo-os como comandos de alta densidade valorativa, sopesados ou ponderados como critérios de otimização ou simplesmente vetores interpretativos das normas, demanda encontrar um equilíbrio, uma razão entre seus respectivos pesos - que, como já se demonstrou, vincula-se ao império dos preceitos da Constituição da República.
Contudo, se viu que este processo encontra diversos pontos de repulsa a valores fundamentais do regime constitucionalista brasileiro, base sobre a qual se apoia nosso Estado de Direito Democrático. Este complexo e abrangente processo, não inadvertidamente também chamado de desconstitucionalização do Direito da Concorrência[96], não ecoa sobre uma questão específica, mas verticalmente sobre a metodologia da autoridade antitruste brasileira, refletindo seu maior expoente na adoção da teoria per se para apuração de carteis.
Pelo exposto, no esteio das questões propugnadas no início, restou demonstrado que o texto legal voltado às infrações à ordem econômica possui dispositivos especificamente voltados à produção ou à possibilidade concreta de produção de efeitos, não sendo possível extrair, dos enunciados prescritivos, uma presunção absoluta de sua ocorrência, mesmo no que tange ao cartel.
Entretanto, não se pretende negar, como já se adiantou, que o pragmatismo essencial ao Law and Economics resultou no desenvolvimento de diversos sofisticados instrumentos à disposição do Poder Público na persecução e dissuasão de carteis e, mais que isso, na compreensão de complexos conceitos econômicos que permeiam as normas de defesa da concorrência.
A abordagem econômica do Direito se demonstrou extremamente útil não apenas para integração normativa em termos de semiótica, mas também para o amadurecimento do conjunto ferramental de que deve dispor o Estado enquanto primado o princípio da eficiência. Portanto, as bases da referida teoria encontram, até certo ponto, respaldo constitucional justamente na convergência a tal bem jurídico.
Por outro lado, viu-se que os valores pragmáticos não se restringiram a informar o processo legislativo, mas também influenciaram a forma como se apura a ilicitude de certas condutas, implicando, sem que houvesse mais aprofundada reflexão acerca de sua compatibilidade com a ordem jurídica sistematizada ao seu redor, uma modulação hermenêutica, que parece acolher o princípio da eficiência como hierarquicamente superior aos demais princípios fundamentais, mesmo em abstrato.
A partir do texto desenvolvido acima, estabeleceu-se, contudo, uma distinção essencial do regime de common law, sobre o qual tais teorias foram cunhadas, para o constitucionalista – algo que já se advertia desde sua criação, por seus próprios idealizadores. A importação incauta de tais teorias para a hermenêutica brasileira implicou uma entropia jurídica com o sistema estadunidense, sobrestando os demais princípios fundamentais da ordem jurídica pátria e distanciando a hermenêutica concorrencial brasileira da hermenêutica constitucional, reduzindo o império da Carta Maior a uma percepção fragmentada dos valores republicanos nela positivados.
Destarte, sustenta-se aqui que, embora sempre reconhecendo que o pragmatismo possui extrema relevância e é de integrar a construção normativa, não se pode perder de vista a necessidade de que seja o resultado um instrumento plenamente integrado ao sistema normativo jurídico-positivo brasileiro, modulado a lhe garantir não apenas constitucionalidade formal, mas também tenha como consequente normativo o império dos princípios fundamentais constitucionais de forma harmonizada segundo os minudenciados critérios de proporcionalidade.
Neste esteio, não se pode negar o intenso distanciamento da teoria da infração per se, tal como definida neste estudo, dos demais preceitos constitucionais, mormente ao notar o caráter absoluto das presunções que propõe, sendo ela por conseguinte incompatível com a noção de hermenêutica constitucional, visto que diversos dos valores fundantes de tal ordem se veem relegados a um plano de subordinação ao primado de eficiência, objetivamente quantificada por meio de modelos econômicos, reduzindo drasticamente o conteúdo e a envergadura dos demais princípios fundamentais, razão pela qual não se vê compatibilidade entre a Constituição da República e a referida teoria de ilicitude per se.
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[1] Conforme elucidativa assertiva de Fabiana Tomé na interpretação de Paulo de Barros Carvalho (TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. 4ª ed., São Paulo: Noeses, 2016 – Cap. 7, item 7.6.)
[2] POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 3ª Ed. Wolters Kluwer, 1986. p.5 e 23.
[3] “Já a Escola de Chicago adota a proteção do consumidor como único foco do Direito da Concorrência, (...) o que importa é a geração de eficiências e não propriamente a manutenção de um ambiente competitivo, até porque, diante dos pressupostos idealizados da Escola, grandes concentrações de poder econômico e mesmo monopólios não são fenômenos preocupantes, desde que não haja barreiras à entrada nos mercados. Como já se viu, o aspecto mais sedutor da Escola foi o de associar a ideia de eficiência ao bem-estar do consumidor, o que já se demonstrou ser falso”. (FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 51).
[4] POSNER, Richard. Op. Cit. p. 19
[5] Consoante às noções de SANTAELLA, Lucia. A relevância da semiótica para a construção do conhecimento. in CARVALHO, Paulo de Barros. (Coord.) et. BRITTO, Lucas Galvão (Org.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016.
[6] PAULINO, Maria Angela Lopes. A teoria das relações na compreensão do direito positivo. Constructivismo Lógico-semântico, Vol. I. São Paulo: Noeses, 2014.
[7] “Ainda se deve atentar para as importantes contribuições das análises econômicas, que são fundamentais para a dimensão pragmática do discurso jurídico antitruste. Sobre o assunto, é importante ressaltar que a demonstração das fragilidades e das deficiências das análises econômicas e consequencialistas tem a finalidade exclusiva de ressaltar a inviabilidade da sua utilização com metodologia exclusiva do Direito da Concorrência, mas não a de afastá-las do discurso antitruste, em razão de sua inegável importância”. E explica que, segundo José Maria Arruda de Andrade, “a utilização cada vez mais técnica e transparente da microeconomia na análise antitruste, com o reconhecimento do alcance preditivo limitado e dos pressupostos utilizados, pode contribuir para o fortalecimento do positivismo jurídico contemporâneo e para a segurança jurídica” (grifou-se). (FRAZÃO, Ana. Op. Cit. p. 51).
[8] POSNER, Richard. Op. Cit. p. 19.
[9] POSNER, Richard. Op. Cit. p. 26.
[10] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2016. Primeira Parte, Capítulo 3, item 3.2, p. 180.
[11] “Bem se vê que o deparar com valores leva o intérprete, necessariamente, a esse mundo de subjetividades, até porque eles se entrelaçam formando redes cada vez mais complexas, que dificultam a percepção da hierarquia e tornam a análise uma função das ideologias dos sujeitos cognoscentes”. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit. p. 186.
[12] Conforme, entre outros, BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon, 1ª Ed. São Paulo: Edipro, 2011. p.25. e ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 2ª Ed., 4aª Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 87.
[13] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 1a Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2002. P.11.
[14] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6a Ed. 3a Tiragem. Martins Fontes: São Paulo, 1999. p. 247
[15] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 241
[16] ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS v. 17, 1999. p. 277.
[17] ALEXY, Robert. Op. Cit. p. 90.
[18] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 307 – 317.
[19] BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 353.
[20] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit. p. 186.
[21] HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Coimbra: Almedina, 2001. p. 120.
[22] Neste diapasão, remete-se uma vez mais o leitor à obra de Alexy, na qual se podem encontrar referências a colisões entre interesses, pretensões e até deveres, em casos concretos, evitando-se, de outro lado, a referência a uma colisão de princípios, mormente em conotação de conflito axiológico entre princípios. (ALEXY, Robert. Op. Cit. p. 87).
[23] Neste esteio, cumpre destacar que a doutrina já logrou gracioso aprofundamento na avaliação dos critérios da proporcionalidade diante da hipótese de colisão de princípios. Acompanham Alexy, neste ínterim específico, no objetivo de destrinchar o princípio da proporcionalidade, Böckenförde, Schlink e Virgílio Afonso da Silva, todos reconhecendo a necessidade e a adequação como elementos de sua composição básica.
[24] ALEXY, Robert. Op. Cit. p. 117.
[25] STRECK, Lenio. Hermenêutica constitucional. in Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Tomo II: direito administrativo e constitucional / coord. Vidal Serrano Nunes Jr. [et al.]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.
[26] STRECK, Lenio. Op. Cit. p. 10.
[27] STRECK, Lenio. Op. Cit. p. 11.
[28] Cabe notar que a noção de correção aqui empregada é um ato póstumo de adequação visando um determinado resultado naturalístico, permeado pelo consequencialismo. Isto é, ao contrário do que aqui se defende (a importação de pressupostos e conceitos epistemológicos econômicos, quando de rigor, a partir do texto normativo para sua construção semântica), a ideia de que se possa modular a apreciação semântica da norma, buscando adequar conceitos jurídicos a determinados objetivos economicamente qualificados.
[29] STRECK, Lenio. Op. Cit. p. 14.
[30] FERREIRA, Daniel. Op. Cit. p. 176.
[31] Aliás, é de se registrar, as consequências práticas decorrentes de decisões calcadas em valores abstratos, nas esferas administrativas, controladora e judiciais, hão de ser consideradas conforme o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Trata-se de, diante da falta de densidade normativa como vínculo de meio, estabelecer-se um vínculo de fim (coroando-se o princípio da eficiência ao lado de tantos outros, não acima). A LINDB, portanto, já impõe força e limitação normativas a tal cenário, sem que haja verdadeira novidade em reflexões desta ordem. Note que essa passagem do art. 20 volve-se aos efeitos reflexos da decisão e não à tipificação. Anula-se um contrato administrativo por uma ilicitude qualquer, mas esse contrato envolve o fornecimento de merenda escolar. O que prevê o art. 20 da LINDB. Pode-se afirmar a ilicitude da avença, mas não se pode simplesmente interromper a sua execução, sob pena de as crianças ficarem sem merenda na escola (ou, ainda, tem-se que admitir na sentença, por exemplo, a contratação de merenda em caráter emergencial). Eis a amplitude do art. 20 da LINDB, que não guarda, ao meu juízo, relação com Law and Economics. Não lhe parece o mesmo?
[32] Apenas a título de referência, sob a ótica econômica: “Quando se estuda o estabelecimento comercial e o papel do empresário, novamente, duas visões emergem da análise: a econômica e a jurídica. A visão econômica ressalta o papel do administrador na organização dos fatores de produção – capital, trabalho, terra e tecnologia -, combinando-os de modo a minimizar seus custos ou maximizar seu lucro. A jurídica, extraída do Direito Comercial, apresenta várias concepções, que enfatizam que o estabelecimento comercial é um sujeito de direito distinto do comerciante, com seu patrimônio elevado à categoria de pessoa jurídica, com a capacidade de adquirir e exercer direitos e obrigações. Consumidores e produtores/fornecedores encontram-se nos mais variados mercados. Adam Smith, analisando os mercados, descobriu uma propriedade notável: o princípio da mão invisível, pelo qual cada indivíduo, ao atuar na busca apenas de seu bem-estar particular, realiza o que é mais conveniente para o conjunto da sociedade. Assim, em mercados competitivos, não concentrados em poucas empresas dominantes, o sistema de preços permite que se extraia a máxima quantidade de bens e serviços úteis do conjunto de recursos disponíveis na sociedade, conduzindo a economia a uma eficiente alocação dos recursos. (…) Segundo essa visão do sistema econômico, o Estado deveria intervir o menos possível no funcionamento dos mercados, porque estes livremente resolveriam da maneira mais eficiente possível os problemas econômicos básicos da sociedade: o quê, como e para quem produzir. Contudo, quando o Estado deveria intervir na economia? A justificativa econômica para a intervenção governamental nos mercados se apoia no fato de que no mundo real observam-se desvios em relação ao modelo ideal preconizado por Smith, isto é, existem as chamadas imperfeições de mercado: externalidades, informação imperfeita e poder de monopólio. (…) Já o exercício do poder de monopólio caracteriza-se quando um produtor (ou grupo de produtores) aumenta unilateralmente os preços (ou reduz a quantidade), ou diminui a qualidade ou a variedade de produtos ou serviços, com a finalidade de aumentar os lucros[32]” (grifou-se). (Vide VASCONCELLOS. Op. Cit. 2008).
[33] Conforme se lê do texto constitucional: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (...)§ 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.
[34] Idem, p. 59
[35] Pode-se mencionar, a título de exemplo, a sinergia para produção de equipamentos de proteção individual ou a troca de informações concorrencialmente sensíveis sobre P&D de farmacêuticas. Esse cenário, diga-se, acabou reconhecido pelo CADE: https://noticias.r7.com/economia/empresas-se-ajudam-nos-carteis-do-bem-durante-pandemia-29062022
[36] MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis: interface entre Direito Administrativo e Direito Penal. São Paulo: Singular, 2013. p. 59.
[37] Remete-se, destacadamente, o empenho de MARTINEZ.
[38] Ibidem, p. 41
[39] FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Tratado de Direito Empresarial: Direito Concorrencial. 2ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2018. p.421.
[40] Conforme se lê da Lei nº 12.529/2011: “Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante”.
[41] FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p.474.
[42] Conforme se lê da Lei nº 12.529/2011: “(...) §3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública; II - promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes; (...)”
[43] Em linha às lições de Bagnoli (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p. 467).
[44] FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p.43.
[45] “(...) `a presunção dispensa, em outras palavras, que a autoridade administrativa se desencarregue da prova dos efeitos para determinação da ilicitude, e transfere para o próprio Representado o ônus de provar que a restrição à concorrência é acessória em relação a outro objetivo distinto e lícito, e que os potenciais benefícios advindos da persecução desse objetivo principal superam os riscos detectadas à concorrência’”. Conforme Voto-Vista do então Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo 08012.006923/2002-18, fls. 16. In FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p. 430.
[46] “A despeito da confusão conceitual que normalmente se faz entre ilícitos per se e ilícitos com auxílio da regra da razão, não há diferença substancial entre essas duas maneiras de caracterizar o ilícito antitruste. São, por certo, modalidades distintas de análise do fato, cuja peculiaridade consiste na profundidade que se queira exigir da prova de ilicitude. Não se opõem de maneira frontal, constituindo, antes, um contínuo, como uma escala na qual se determine o quantum probatório necessário a formar o convencimento do julgador. Assim, se é certo que algumas condutas, como, por exemplo, os hard core cartels exigem provas muito simples para a caracterização do ilícito, outras normas de colusão podem demandas graus variados de profundidade na análise de potencialidade dos efeitos, tal como a situação descrita nos autos, que terá recebido exame mais adequado caso houvesse sido estudada a racionalidade eventual da conduta das representadas”. (Op. Cit. p. 290)
[47] MARTINEZ, Ana Paula. Op. Cit. p. 55.
[48] Conforme Franceschini: “(...) expressão mal traduzida do original inglês (relevant market), que não tem conotação de “porte”ou “tamanho” do mercado, significando, em vernáculo, o “mercado em questão” ou “sob análise”. (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p.1019).
[49] Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf. Acessado em 25 de junho de 2021.
[50] MARTINEZ, Ana Paula. Op. Cit. p. 56.
[51] “Em texto repetido à saciedade em praticamente todas as Notas Técnicas relativas aos processos por cartel ou indução à conduta uniforme, e sem mais rebuço, assim passou a se manifestar em seu conteúdo, até à atualidade, a Superintendência-Geral do CADE, mutatis mutandis: “171. O resultado prático e útil desta classificação na aplicação da lei antitruste é evidente. Quando uma conduta for considerada anticompetitiva porque possui objeto ilícito, ou seja, sua mera existência a torna ilícita já que dela nunca decorreriam efeitos positivos concorrenciais, existe uma presunção de ilegalidade, ‘aplicando-se aquilo que se convencionou chamar de regra ‘per se’. Neste caso, repise-se, a mera existência de uma conduta com determinado objeto é anticompetitiva, não sendo necessárias análises posteriores sobre efeitos ou sobre o mercado” (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p. 196).
[52] Não se enfrentará, nesta oportunidade, a constitucionalidade da teoria da infração “por objeto”, a uma porque superada sua aplicação atual pelo CADE e, a duas porque, embora certamente a inversão do onus probandi e presunção de efeitos sejam questionáveis, seu exame depende de uma mais longa e aprofundada abordagem.
[53] Vide FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p. 46.
[54] Vide FRAZÃO, Ana. Op. Cit. p. 31.
[55] “[n]ão é exagerada, portanto, a conclusão de Fox no sentido de que o Direito da Concorrência encontra-se em verdadeira simbiose com a democracia e que, mesmo no caso americano, teve suas raízes na tentativa de equilíbrio entre os poderosos e os desprovidos de poder, buscando diversidade, autonomia e igualdade de oportunidades para competir com base no mérito” (FRAZÃO, Ana. Op. Cit. p. 31).
[56] “Há marcante contradição entre o neoliberalismo – que exclui, marginaliza – e a democracia, que supõe o acesso de um número cada vez maior de cidadãos aos bens sociais. Por isso dizemos que a racionalidade econômica do neoliberalismo já elegeu seu principal inimigo: o Estado Democrático de Direito”. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). São Paulo: Malheiros, 2010. p. 55).
[57] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p.34.
[58] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p.36.
[59] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p.34.
[60] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p.46.
[61] Tal respeitável avaliação se arvora na premissa básica de que a livre iniciativa, a exploração de atividade econômica ou a proteção à propriedade privada estariam em conflito axiológico com a valorização social do trabalho, a busca pela redução das desigualdades sociais e pela justiça social de modo abrangente. (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23000/o-conflito-axiologico-entre-os-canones-constitucionais-da-livre-iniciativa-e-da-busca-do-pleno-emprego, acessado em 10/09/2021).
[62] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p. 46-54.
[63] “Uma leitura apressada da Constituição poderia sugerir que esta procura conciliar princípios conflitantes, como a livre-iniciativa e a propriedade privada, de um lado, e a função social da propriedade e a justiça social, de outro. No entanto, o Estado Democrático de Direito traz em si uma unidade de sentido que permeia toda a Constituição e orienta a compreensão dos demais princípios: a dignidade da pessoa humana, o que se reforça pelos princípios fundamentais constantes dos arts. 1º e 3º”. (FRAZÃO. Op. Cit. p. 47)
[64] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas: Entre Direitos Fundamentais e Democratização da Ação Estatal. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v.12, n.12. p. 170.
[65] FRAZÃO. Op. Cit. p. 47
[66] “Daí o acerto da conclusão de Stucke no sentido de que o direito Antitruste, em qualquer democracia com um pluralismo razoável, não pode ser reduzido a um único e bem definido objetivo, tendo em vista que, ao tentar alcançar o bem-estar das pessoas, precisa ponderar diversos objetivos políticos, sociais, morais e econômicos. Ora, no caso brasileiro, tais objetivos estão fixados precipuamente na ordem econômica constitucional” (FRAZÃO. Op. Cit. p. 48)
[67] FRAZÃO. Op. Cit. p. 49.
[68] “(...) já há algum tempo a doutrina tem conferido tratamento específico ao poder sancionador das entidades públicas, diferenciando-o do poder de polícia. Distinguem-se, assim, as limitações impostas com base no poder administrativo de polícia – o qual possui caráter de proteção preventiva de interesses públicos – das punições decorrentes do exercício de um autêntico poder administrativo sancionador, este sim de caráter repressivo. É dizer que o poder de polícia, nesse sentido estrito, não inclui a aplicação de sanções, atividade submetida, consoante compreensão mais recente, ao regramento jurídico próprio e específico do chamado direito administrativo sancionador”. Mandado de Segurança 32.201-Distrito Federal, Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator Min. Roberto Barroso. 21.03.2017
[69] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed., São Paulo: Malheiros, 2015.p. 846.
[70] “Em síntese, o Direito Administrativo Sancionador corresponde ao conjunto sistematizado de princípios – expressos ou implícitos – e de regras informadores da estipulação regulamentar (quando necessária) e averiguação concreta das infrações, da imposição e, ainda, da aplicação das sanções, no exercício da função administrativa. O que não se pode olvidar é que há um marco característico garantidor de sua identidade substancial e que de tão bem apreendido por NIETO (2000, p. 185) merece literal transcrição e adesão: El Derecho Administrativo Sancionador es substancialmente un derecho de riesgos. Éste es el tronco de la institución, que se instrumentaliza en un mecanismo muy sencillo: la norma contiene una orden (mandato o prohibición) acompañada de la amenaza de una sanción. Uma vez aceita essa premissa, fica evidente o distanciamento entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador. Não no sentido de que este deixe de (também) impor limites ao legislador e ao administrador público, mas que as sanções administrativas tendem a garantir a preservação do Direito – em si e por si – e não necessariamente proteger bens jurídico-administrativos relevantes, com a ameaça de sua imposição”. (FERREIRA, Daniel. Op. Cit. p. 176).
[71] Franceschini afasta tais discussões, com suporte em diversos autores clássicos de renome, entendendo que a natureza da lei é penal. Conforme adrede explicado, para Franceschini, não há categorizar o Direito da Concorrência como um direito de riscos, preservado em si e por si, mas sim como instrumento mediato, imposto constitucionalmente e de caráter repressivo, de garantia de direitos fundamentais (econômicos e/ou sociais). Acolhe o autor, no útil e pelas consequências, considerados os aspectos formais do Direito da Concorrência, que se o tenha sob o Direito Administrativo Sancionador – desde que o caráter repressivo se sobreponha ao caráter gerencial e atraia para si, sem corriqueiras flexibilizações e informalidades, os princípios e garantias constitucionais comumente atribuídos ao Direito Penal. Vide FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p.44.
[72] DUTRA, Pedro, Regulação, Concorrência e a Crise Brasileira. Singular: São Paulo, 2017, p. 144-145.
[73] FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p. 65.
[74] YEUNG, Karen in VORONOFF, Alice. Op. Cit. p. 101.
[75]“Não concordo também com a colocação fundamentada do nobre representante do Ministério Público Federal no sentido de que esta multa aplicada pelo Cade é de natureza meramente administrativa e não se confunde com a multa punitiva. Aqui, no Brasil, costuma-se atribuir muitas denominações às multas: temos multas coercitivas, multas administrativas, multas moratórias, multas punitivas etc., quando, na verdade, multa é pena e quem diz isso não é a doutrina ou a jurisprudência, é a Constituição, no art. 5º, inciso XLVI, alínea ‘c’, XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: c) multa. Portanto, essa multa que se discute nos autos é uma multa punitiva, sim, e há de ser regida pelo princípio da retroatividade da pena mais benéfica ao apenado”. (Referência ao Voto proferido pelo eminente Desembargador Sousa Prudente, integrante da 5ª T. do E. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, na data de 13.08.2012, julgando o recurso de Apelação 2008.34.00.011433-3, interposto por Dow AgroSciences Industrial Ltda. e Monsanto Company em Ação Anulatória)
[76] Ana Frazão, em Voto proferido no Processo Administrativo 08012.000261/2011-63, faz constar que: “mais flagrante, porém, e aí autorizando perceber-se logo uma patente inconstitucionalidade é a absurda tipificação dos delitos contra a ordem econômica, expressa no caput do art. 20. (...) Não tem cabimento jurídico, pois, (...) que a Lei 8.884/94 defina como ilícitos civis (comerciais na espécie) atos não culposos. Fala-se aqui de ilícito, de tipificação de uma conduta antijurídica punível e não de criação de simples responsabilização patrimonial derivada de mero risco, como acontece nos casos de responsabilidade objetiva” (Voto no Processo Administrativo 08012.000261/2011-63. Representante SDE, ex officio, e Representados Brazilian Educational & Language Travel Association (BELTA) e outros, item 93).
[77] Citando, entre outros, em Stampa Braun, Pontes de Miranda, Oscar Barreto Filho, Orosimbo Nonato, Celso Neves e José Cretella Junior
[78] Conforme ilustra Costa: “Nessa linha, esse trabalho parte do pressuposto de que à dogmática penal cabe a tarefa de buscar a construção de um sistema que se revele coerente e que se ancore nos princípios, sobretudo os constitucionais, aplicáveis à matéria”. Citando Hassemer, “enquanto o direito penal interferir em direitos fundamentais, (...) terá de justificar essa intervenção perante sua própria tradição e perante a constituição, e para isso a simples remissão a uma justiça da reação retributiva não será suficiente”. COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador – ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre-Docência apresentada na Universidade de São Paulo (USP), em 2013. P.13
[79] COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador – ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre-Docência apresentada na Universidade de São Paulo (USP), em 2013.
[80] “Constitui exigência constitucional que toda vez que se configure situação em que o particular esteja diante do estado no exercício do seu direito de punir (castigar), incide automática e imediatamente o chamado regime jurídico punitivo, assim designado o conjunto de preceitos constitucionais e legais que estabelece limites procedimentais, processuais e substanciais à ação do Estado, nesta matéria (exercício do jus puniendi)” (ATALIBA, Geraldo. Imposto de Renda – Multa Punitiva, p. 550).
[81] “Como anota Canotilho (1993, p. 227), tratando do ‘princípio da máxima efetividade’: A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça a maior eficácia aos direitos fundamentais). Forçoso concluir, pois, que todas as regras e todos os princípios versando sobre ‘ilícitos’, ‘sanções’, ‘litígios ou processos sancionadores’ e, adicionalmente, sobre as garantias deferidas aos ‘acusados’ e aos ‘sancionados’ em geral, como insculpidos na Carta Magna, são apropriáveis tanto pelo Direito Penal como pelo Direito Administrativo Sancionador, ainda que com nuanças, porque retratam o poder punitivo estatal” (FERREIRA, Daniel. Op. Cit. p. 176).
[82] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. Madrid: Tecnos, 4ª Ed. 2006. p. 167-168.
[83] OSÓRIO, Fabio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.102.
[84] Conforme repercutido no Supremo Tribunal Federal na Reclamação 41.557, julgada em 15 de dezembro de 2020 pela Segunda Turma. Relator Min. Gilmar Mendes, tratando de improbidade administrativa, “que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal”. Importando, na passagem (p.4), doutrinas de Ana Carolina Oliveira, citando o Tribunal Europeu de Dirietos Humanos (TEDH) (“O direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal” in Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 190) e Regina Helena Lobo da Costa (“Assim, seguindo a proposta de Rando Casermeiro, crê-se que uma política jurídica conjunta, que leve em conta os dois ramos sancionadores, é imprescindível para aportar um mínimo de racionalidade à questão” in Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador).
[85] “Essa linha de pensamento se mostra apropriada na medida em que as sanções administrativas estão sujeitas, em suas linhas gerais, a um regime jurídico único, um verdadeiro estatuto constitucional do poder punitivo estatal, informado por princípios como os da legalidade (CF, art. 5o, II, e 37, caput); do devido processo legal (CF, art. 5o, LIV); do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5o, LV); da segurança jurídica e da irretroatividade (CF, art. 5o, caput, XXXIX e XL); da culpabilidade e da pessoalidade da pena (CF, art. 5o, XLV); da individualização da sanção (CF, art. 5o, XLVI); da razoabilidade e da proporcionalidade (CF, arts. 1o e 5º, LIV)”. Vide citação acima do MS 32.201.
[86] “O Brasil parece ter optado historicamente por uma regra da razão modificada: a autoridade adota uma presunção iuris tantum em relação à geração de efeitos anticompetitivos no mercado provocado pelo cartel, ainda que recentemente se note tendência do CADE a considerar cartéis clássicos ilícitos per se”. MARTINEZ, Ana Paula. Op. Cit. p. 56.
[87] DONAS, Frederico Carrilho; VILAS BOAS, Maria Izabella; LUCIANO JUNIOR, Paulo César. Parâmetros de análise de infrações concorrenciais pelo Cade. In DONAS, Frederico Carrilho; SOARES, Marcio (coord). Direito concorrencial: questões atuais. São Paulo, Edgar Blücher: 2018. p. 120.
[88] “No meu particular entender, no direito da concorrência decisões baseadas in dubio pro reo ou pro societatis, não atendem ao interesse público. É preciso considerar que as restrições impostas às liberdades constitucionais dos particulares sevem estar adstritas à legalidade o que impõe a subsunção do caso concreto à lei, e não de situações hipotéticas à lei, ou ao caso real e concreto dos autos”. (Voto no Ato de Concentração nº 08012.012223/99-60, de 04.09.2002, Requerentes WL CUMBICA LLC, Warner-Lambert Indústria e Comércio Ltda. e Kraft Lacta Suchard Brasil S.A.)
[89] “A aplicação das leis de defesa da concorrência – e no meu entender a Lei 8.88494 não é uma exceção – usualmente envolve o recurso a standards de prova distintos para a repressão ex post de condutas anticompetitivas e o controle ex ante das concentrações econômicas. No primeiro caso, dada a natureza sancionadora da atividade estatal e suas implicações para o administrado, uma proposição é provada quando sua verdade estiver – para me valer da expressão norte-americana – ‘acima de qualquer dúvida razoável’ (no direito brasileiro, pode-se identificar no ‘in dubio pro reo’ um equivalente para a ideia de que, nos processos sancionadores, deve-se aplicar um standard de prova mais rigoroso), ao passo que, no segundo, basta a constatação de que a proposição é ‘mais verossímil’ que a sua negação”. (Voto no Processo Administrativo nº 08012.002493/2005-16, Requerentes Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA, Friboi, Marfrig e outros)
[90] DONAS, Op. Cit. p. 120.
[91]“A chamada presunção absoluta nada tem de presunção, pois, ao inadmitir prova em contrário, caracteriza-se como verdadeira disposição legal de ordem substantiva que prescreve determinada consequência jurídica em função de específico acontecimento factual, previsto na hipótese. O raciocínio presuntivo está presente apenas na fase pré-jurídica, em que os membros do Poder Legislativo, observando o que ordinariamente acontece, criam normas gerais e abstratas, prescrevendo ao aplicador da lei que reconheça, sempre que provada a existência de certo fato, e independentemente da produção de provas em contrário à existência do fato que se quer provar, um outro fato”. TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. 4ª ed., São Paulo: Noeses, 2016. Item 4.7.1.
[92] “57. No processo administrativo mencionado acima, que pacificou a jurisprudência do Conselho, o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo ressaltou que, embora a divulgação de tabela de preços (por uma entidade de classe) constitua uma infração por objeto, não se trata de uma infração `per se’, de modo que a ilicitude poderá ser afastada quando for possível demonstrar, diante das circunstâncias do caso, que a sugestão de preços pode ser utilizada para a realização de outro objeto lícito e razoável”. (Voto parcialmente vencido proferido pela então Conselheira Ana Frazão no Processo Administrativo 08012.000261/2011-63, julgado em 03 de setembro de 2015, sendo Representante a SDE, ex officio, e Representados Brazilian Educational & Language Travel Association – BELTA e outros).
[93] FRAZÃO. Op. Cit. p. 40.
[94] “Mas como reitera Bagnoli, ainda que não ocorra o dano, a Lei só se aplica se ao menos o dano fosse algo possível de ser produzido, seja pelo objeto da conduta, seja pelo efeito da mesma, mesmo porque o legislador não tipificou condutas pelo objeto”. (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p.467).
[95] (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Op. Cit. p.64).
[96] “Para a compreensão do processo que Schuartz chama de ‘desconstitucionalização do Direito da Concorrência no Brasil’, é preciso fazer uma breve referência aos pressupostos da chamada Escola de Chicago e ao modo como estes foram incorporados ao discurso antitruste norte-americano e, posteriormente, ao brasileiro” (FRAZÃO. Op. Cit. p. 39).
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIANNA, Rodrigo França. A conformidade da apuração da infração de cartel sob a teoria per se segundo a hermenêutica constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2022, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58978/a-conformidade-da-apurao-da-infrao-de-cartel-sob-a-teoria-per-se-segundo-a-hermenutica-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Luis Carlos Donizeti Esprita Junior
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Roberto Carlyle Gonçalves Lopes
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