RESUMO: Este artigo tem a finalidade de apresentar o pensamento feminista decolonial como uma epistemologia. A epistemologia feminista decolonial no contexto da Filosofia do Direito tem a finalidade de refletir sobre a sociedade, a política e a cultura sob a ótica de análise do Feminismo Decolonial. O ordenamento jurídico, bem como os conflitos jurídicos são submetidos ao método de análise formal do materialismo histórico marxista, e com o método de análise material dos estudos decoloniais ou pós-coloniais, os quais visam a (des)construção do pensamento ocidental sob o questionamento da influência da colonização europeia e, consequentemente, as heranças do colonialismo nas relações institucionalizadas na contemporaneidade.
Palavras-chave: Decolonialismo. Feminismo. Racismo. Luta de Classes.
ABSTRACT: The purpose of this article is to present decolonial feminist thought as an epistemology. Decolonial feminist epistemology in the context of Philosophy of Law aims to reflect on society, politics, and culture from the perspective of analysis of Decolonial Feminism. The legal world, as well as legal conflicts, are submitted to the formal analysis method of Marxist historical materialism, and to the material analysis method of decolonial or post-colonial studies, which aim at the (de)construction of western thought under the questioning of the influence of European colonization and, consequently, the legacies of colonialism in institutionalized contemporary relations.
Keywords: Decolonialism. Feminism. Racism. Class Struggle.
Introdução
Difícil é a tarefa de construir propostas científico sociais para que se adie o fim do mundo[1]. No entanto, enquanto há vida, faz-se necessária a reflexão acerca das construções político, sociais, econômicas e suas nuances, com a finalidade de questionamento das engrenagens sociais.
O pensamento feminista levanta questionamentos importantes na construção social no caminho para a diminuição das desigualdades. Isto porque, os feminismos ao questionar os papéis de gênero e sexualidade, incitam a denúncia de outras desigualdades incipientes na estrutura social, como as discussões de raça, gênero e classe.
Assim como as diversas correntes filosóficas existentes, o feminismo não é um campo unificado. Há diversas vertentes, bem como a construção do próprio movimento feminista é controversa. Historicamente, a discussão feminista dominante evidencia a figura da mulher branca, no entanto, os feminismos de oposição reivindicam as pautas de mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres trans e mulheres estrangeiras.
E, para além do feminismo, os estudos decoloniais assumiram um compromisso epistemológico de confrontar as ideias filosóficas dominantes, de forma a retirar da normalidade o evento da colonização, e com isso desenhar imaginários epistemológicos os quais enfatizem a diferença colonial como uma estratégia fundamenta, antes e agora, para rebaixar populações e regiões do mundo (MIGNOLO, 2022).
Isto significa que, para além dos embates culturais no feminismo, seria necessário a compreensão do conceito de raça, classe e gênero. E, de forma mais profunda, o entendimento da classificação e a hierarquização, como um assunt epistêmico na construção da colonialidade do poder (MIGNOLO, 2022).
Ou seja, a narrativa feminista decolonial começa a ser compreendida para além da própria discussão de gênero, uma vez que o colonialismo enfatizou a diferença entre os corpos, a diferença entre a recepção social, cultural, política e econômica da cultura de cada um dos povos, como um resultado vivo da colonização.
A controvérsia é tão profunda há diversos outros movimentos que disputam a narrativa feminista com a finalidade de extingui-lo. Além disso, a construção de uma filosofia sobre as masculinidades também está ganhando espaço nos debates acadêmico-culturais.
Nesse contexto, e sem prejuízo de posteriores reflexões e transformações necessárias ao pensamento feminista contemporâneo, este artigo propõe uma inicial análise do Feminismo Decolonial.
1.A popularização do Feminismo: uma breve história
O Feminismo é compreendido como um conjunto de movimentos, sendo eles: político, sociais, ideológicos e filosóficos, os quais têm a finalidade de atingir a igualdade de direitos do gênero feminino e masculino. O Feminismo tem como escopo de trabalho a discussão dos direitos das mulheres, da libertação de padrões patriarcais, com base em normas estabelecidas historicamente.
Como método de análise histórica, Maggie Humm e Rebecca Walker popularizaram a divisão da história do feminismo em três ondas: (i) século XIX e início do século XX; (ii) 1960 e 1970; e (iii) 1990 até a atualidade.
A primeira onda do feminismo teria ocorrido no Reino Unido e nos Estados Unidos, em que a luta pela igualdade dos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres foi debatida por meio da oposição de casamentos arranjados e da propriedade de mulheres casadas por seus maridos. Nesse contexto, o feminismo foi destacado pela conquista de poder político de mulheres brancas, o sufrágio. Ressalta-se que no século XIX a escravidão ainda não havia sido abolida. Assim, muitas teorias feministas foram elaboradas por mulheres privilegiadas que vivem no centro, cujas perspectivas sobre a realidade incluem o conhecimento e a experiência vivida, por aquelas mulheres e homens que vivem na margem (HOOKS, 2019).
A segunda onda do feminismo teve início nos anos 1960, e coexiste com a terceira onda. Esta onda questionou, para além do sufrágio, o fim da discriminação. Nesse contexto houve a reinvindicação das desigualdades culturais e políticas das mulheres como imbricadas nos aspectos de suas vidas privada e pública. Essa fase ficou conhecida o slogan proposto pela feminista Carol Hanisch “O pessoal é político”. O que imprimiu que a vida privada não deveria ser afastada da vida pública no contexto da luta por direitos.
Já o feminismo da terceira onda teve início na década de 1990 com a finalidade de desafiar ou evitar as definições essencialistas da feminilidade, havendo um questionamento frente as experiências das mulheres brancas de classe média alta. As líderes feministas da terceira onda são a Gloria Andaluza, bell hooks[2], Cherrie Moraga, Audre Lorde, Maxine Hong Kingston, Angela Davis e diversas outras feministas negras as quais reivindicaram o enfoque da luta feminista, denunciando a micropolítica centrada na vida privada das mulheres brancas. Sendo que o pensamento e a prática feministas foram profundamente alterados quando mulheres negras e brancas de postura radical começaram, juntas, a desafiar a ideia de que o ‘gênero’ era o fator que, acima de todos, determinava o destino de uma mulher (HOOKS, 2019).
Na contemporaneidade, o feminismo ganhou popularidade e diversos slogans têm ocupado a mídia, seja em comerciais, camisetas e outros produtos comercializáveis. “Lute como uma Garota” e “Clube da luta feminista” fazem a propaganda da importância da consciência dos direitos das mulheres, bem como a igualdade de gênero. Se por um lado a popularização da luta feminista é benéfica a causa, por outro, há o esvaziamento da discussão. Isto porque a popularização dos conceitos dá confiança ao conhecimento superficial. Houve um afastamento e, até esquecimento, dos tópicos como violência obstétrica, direito ao corpo e violência sexual em comparação a disseminação das discussões sobre a ocupação de cargos de liderança de mulheres nas empresas.
bell hooks entende que a luta feminista em qualquer época acontece quando um grupo de pessoas se organiza para combater a opressão do patriarcado. Ou seja, a luta feminista ocorre a qualquer época onde quer que uma mulher ou um homem se erga contra o sexismo, contra a exploração sexista e a opressão. O movimento feminista acontece quando grupos de pessoas se reúnem em torno de uma estratégia organizada no intuito de combater o patriarcado (HOOKS, 2019).
Não obstante, bell hooks, Ângela Davis, María Lugones, Yurdeks Espinosa, Patrícia Hill Collins, Françoise Vèrges e tantas outras feministas constroem uma teoria feminista combativa à teoria feminista dominante, as quais começam a ser compreendidas como feminismo negro, para depois ser compreendido de forma concomitante, mas nem sempre, como um feminismo interseccional, e até que o conceito de feministo decolonial fosse forjada. O que demonstra que as ideias inclusivas ao movimento feminista não são suficientes no combate das estruturas de opressão. Isto porque o discurso de inclusão esvaziado de profundidade obscurece as críticas importantes para o crescimento da luta por reinvindicação por direitos.
O feminismo inclusivo desejado de Sejamos todos feministas se revela inatingível, já que as mulheres como um todo não são iguais e os homens como um todo não são iguais; assim, as mulheres deveriam aspirar à conquista da igualdade em relação a quais homens? O racismo e a divisão em classes sociais, na medida em que se combinam, também se opõem. Em outras palavras, o argumento de Sejamos todos feministas é falacioso por dois motivos. Por um lado, ele propõe uma ideia de feminismo inclusivo que obscurece toda a crítica feita pelos feminismos negro e decolonial. Estes propõem justamente libertar toda a sociedade, e não uma separação dos homens. Por outro lado, tal argumento reduz o feminismo a uma mera mudança de mentalidade válida para todas as mulheres e todos os homens em todos os momentos e em qualquer lugar (VÈRGES, 2019).
E é nesse contexto que este artigo é inserido.
O método de análise do presente artigo transita entre o materialismo histórico marxista, a filosofia decolonial e a teoria construtivista social, as quais oferecem sustentação as reflexões de classe, de raça e gênero, enquanto conceito construído social e culturalmente por meio do discurso.
2. Feminismo Decolonial e a crítica ao Feminismo Liberal
Os slogans de diversidade e inclusão corporativizam a ampla discussão do Feminismo, o qual originalmente buscava a promoção de mudanças estruturais. Atualmente, as discussões estão resumidas às políticas corporativas, índices de desenvolvimento e premiações nos contextos empresariais. No entanto, na prática, há a violência contra a mulher, o encarceramento em massa, os genocídios de mulheres, povos negros e indígenas, e grupos LGBTQIA+. A discrepância entre as discussões demonstra que a mercantilização da discussão não reduz as desigualdades na base da pirâmide social.
O capitalismo, enquanto sistema social vigente, absorve as lutas sociais em sua estrutura, tornando aquilo que deveria ser revolucionário em reformas.
O Feminismo enquanto movimento social e instrumento de luta de reinvindicação dos direitos das mulheres foi absorvido pelo capitalismo e se tornou um produto social, o qual, consequentemente comporta opressão. Este é o feminismo liberal.
Ângela Davis denunciou o caráter de exclusão do feminismo dominante, demonstrando o quanto as discussões estariam centradas na dialética das mulheres brancas de classe média e classe média alta. E, que de forma prática, a luta pelos direitos das mulheres foi ideologicamente definida como uma luta pelos direitos das mulheres brancas de classe média, expulsando mulheres pobres e da classe trabalhadora, expulsando mulheres negras, latinas e de outras minorias étnicas do campo do discurso coberto pela categoria “mulher”. As muitas contestações dessa categoria ajudaram a produzir o que viemos a chamar de ‘teorias e práticas feministas radicais das mulheres de minorias étnicas’ (DAVIS, 2013).[3]
O feminismo branco, ou feminismo liberal ou ainda, feminismo dominante, são nomenclaturas que foram forjadas com a finalidade de denunciar a restrição do movimento de mulheres que exclui da categoria mulher tantas outras, as racializadas. Isto porque o feminismo branco, aceito como universal, impõe a existência da categoria única de mulher, esta absorvida e aceita pelo sistema capitalista e colonial.
A proposta de um Feminismo Decolonial pela filósofa francesa Françoise Vérges reivindica lugares à mesa da discussão feminista ao anunciar a pluralidade de história das mulheres e a necessidade de que se faça justiça a essas narrativas. Françoise entende que a escrita do passado e da história das mulheres racializadas não teve a mesma trajetória da escrita feminista europeia porque cada uma passou por um processo diferente. Para as racializadas, não foi necessário preencher uma ausência, mas encontrar as palavras que trouxessem de volta à vida, aquilo que tinha sido condenado à não existência, mundos que tinham sido expulsos da humanidade (VÈRGES, 2020).
E, para além da escrita, necessária é a ênfase do problema concreto das mulheres racializadas frente ao feminismo dominante, isto porque é na violência de raça, classe e gênero que as estruturas de opressão estão escancaradas. O feminismo dominante se ocupa de mascarar um feminismo para todos, para que não se evidencie que há mulheres que sustentam a economia do cuidado, ou ainda, a da reprodução social.
Ou seja, há diferentes teorias feministas para as diferentes realidades sociais que se apresentam. E, não há que se falar apenas da vida confortável das mulheres da burguesia em que só é possível em um mundo onde milhões de mulheres racializadas e exploradas proporcionam esse conforto, fabricando suas roupas, limpando suas casas e os escritórios onde trabalham, tomando conta de seus filhos, cuidando das necessidades sexuais de seus maridos, irmãos e companheiros (VÈRGES, 2020).
O feminismo confortável não é suficiente para a ênfase da reinvindicação dos direitos. Há que se falar num feminismo que seja evidentemente contra o pacifismo do feminismo liberal. E, para resistir a essa cooptação, é preciso antes de tudo construir uma perspectiva feminista diferente – uma nova teoria -, cujo pressuposto não seja a ideologia do individualismo liberal. (HOOKS, 2019)
No entanto, é fato que os diversos feminismos conquistaram importantes direitos civis e políticos, como o sufrágio universal, regramentos os quais possibilitassem o divórcio da mulher, e ainda, a proteção da mulher contra as diversas formas de violência doméstica. No entanto, as conquistas de direitos absorvidas pelo sistema jurídico não são suficientes para refrear o movimento feminista e suas respectivas reinvindicações, que atualmente estão centradas na luta por equidade de gênero, equiparação salarial, fim da cultura do estupro, entre tantas outras pautas.
Os direitos das mulheres conquistados pelo Feminismo e popularizados pelo Feminismo Liberal são o enfoque dessa discussão. O Feminismo enquanto filosofia profundamente alinhada com uma reflexão das estruturas de opressão política, econômica e social foi o responsável pelo ganho de direitos. Direitos esses os quais são constantemente ameaçados pelo avanço do pensamento conservador e das políticas restritivas. Ou seja, o direito é uma luta constante.
Tanto bell hooks quanto Françoise Vèrges compreendem que as ferramentas de opressão construídas pelo colonialismo perpetuam nas dinâmicas sociais contemporâneas e por isso há uma política de vidas descartáveis. É necessário que seja resgatado o anseio revolucionário do Feminismo.
E na necessidade do resgate revolucionário do movimento feminista, é necessário reescrever a história do feminismo desde a colônia é primordial para o feminismo decolonial” (HOOKS, 2019)
Nesse contexto, o Feminismo Decolonial é forjado por Françoise Vèrges, ainda que esta não tenha sido a primeira filósofa a incitar os estudos coloniais[4]. A filosofia colonial não é um conceito homogêneo, restrito apenas a um campo do conhecimento. Inclusive, o filósofo da Martinica Aimé Césaire em seu “Discurso sobre o Colonialismo” – com a ilustre frase: “a colonização trabalha para descivilizar o colonizado”, bem como Franz Fanon em “Peles Negras, Máscaras Brancas” foram um dos principais pensadores do século XX os quais se dedicaram aos estudos decoloniais. O capital é colonizador, a colônia lhe é consubstanciada, e para entender como ela perdura, é preciso se libertar de uma abordagem que enxerga na colônia apenas a forma que lhe foi dada pela Europa no século XIX e não confundir colonização com colonialismo”. (VERGÈS, 2020)
Ainda, o termo filosofia decolonial (estudos decoloniais, filosofias do sul), forjado por Aníbal Quijano[5] no contexto das Ciências Sociais para denominar os estudos do sul-americanos que têm a finalidade de repensar a constituição da Américas quando da colonização. E, bell hooks situa o pensamento do seu feminismo nesse contexto, de forma reivindicar a igualdade entre os saberes e contestar a ordem do saber imposto pelo Ocidente (HOOKS, 2019).
María Lugones usa o termo colonialidade seguindo a análise de Aníbal Quijano do sistema de poder capitalista do mundo em termos da “colonialidade do poder” e da modernidade – dois eixos inseparáveis no funcionamento desse sistema de poder. De forma a compreender que a análise de Quijano fornece-nos uma compreensão histórica da inseparabilidade da racialização e da exploração capitalista como constitutiva do sistema de poder capitalista que se ancorou na colonização das Américas (LUGONES, 2021)
Isto porque, a ampliação da narrativa de uma filosofia não significa o apagamento da história registrada, mas, a evidência da multiplicidade de discursos, a necessidade de que os campos de conhecimento reconheçam a existência de outros saberes que não estão sendo ouvidos, e que, há esforços para que sejam apagadas da história.
A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO, 2005)
3. Feminismo Decolonial e o recorte racial na teoria feminista
Quando da colonização, os marcadores fenotípicos e geográficos foram construídos como instrumentos de dominação entre o colonizador e colonizados. Sendo que, a correspondência da cor da pele e outros estereótipos se tornaram marcadores diferenciadores não apenas de cultura, mas de humanização, no sentido de que a característica cor de pele definiria de antemão o espaço social ocupado.
As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se (QUIJANO, 2005).
E, o que significa o colonialismo? María Lugones expõe que:
a “missão civilizatória” colonial era a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático (por exemplo, alimentando cachorros com pessoas vivas e fazendo algibeiras e chapéus das vaginas de mulheres indígenas brutalmente assassinadas). A missão civilizatória usou a dicotomia hierárquica de gênero como avaliação, mesmo que o objetivo do juízo normativo não fosse alcançar a generização dicotomizada dos/as colonizados/as. Tornar os/as colonizados/as em seres humanos não era uma meta colonial. A dificuldade de imaginar isso como meta pode ser vista nitidamente quando percebemos que a transformação dos/as colonizados/as em homens e mulheres teria sido uma transformação não em identidade, mas em natureza. E colocar os/as colonizados/as contra si próprios/as estava incluído nesse repertório de justificações dos abusos da missão civilizatória. A confissão cristã, o pecado e a divisão maniqueísta entre o bem e o mal serviam para marcar a sexualidade feminina como maligna, uma vez que as mulheres colonizadas eram figuradas em relação a Satanás, às vezes como possuídas por Satanás (LUGONES, 2021).
Além disso, o estudo decolonial tem a finalidade de superar as formas colonialistas modernas de opressão. Françoise Vèrges em Feminismo Decolonial incita o seu pensamento afirmando que a colonização é um acontecimento / período, e o colonialismo é um processo / movimento, um movimento social total cuja perpetuação se explica pela persistência das formações sociais resultantes dessas sequências”. E ainda, que a atemporalidade escravidão/abolição coloca a escravidão colonial em um passado histórico, e assim ignora o fato de que as estratégias de racialização e sexualização continuam projetando suas sombras em nosso tempo.
E, é nessa busca pela descrição das características sociais, políticas e econômicas das mulheres racializadas, que a Filosofia Decolonial emerge. E, conforme preceitua Ângela Davis: “O feminismo envolve muito mais do que igualdade de gênero. E envolve muito mais do que o gênero” (VÈRGES, 2020).
Qual seria a diferença prática entre os feminismos? A divisão racial do trabalho. Isto porque a herança histórica das mulheres negras, das mulheres racializadas é a mão de obra escrava. Sendo que os lugares e representações sociais que as mulheres negras e racializadas detêm dentro da sociedade são diferentes. Não é a mesma feminilidade, nem a mesma expectativa de performance do que significa ser mulher.
A exploração dos corpos marginalizados é escondida socialmente. Sendo que o feminismo popular, o dos slogans, deve ser perfumado. Não há que se falar da luta das empregadas domésticas, ou industriais. Seria demasiado real levantar uma bandeira feminista a qual de fato alterasse as estruturas sociais.
E, o corpo racializado, é o corpo colonizado, aquele imaginado e construído pelo colonizador e a colonialidade, de acordo com a imaginação colonial e as restrições da empreitada capitalista colonial, mas sim, como um ser que começa a habitar um lócus fraturado, construído suplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os “lados do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla (LUGONES, 2021).
No contexto do regime escravocrata, as mulheres escravizadas tinham seus filhos arrancados a qualquer momento. Não havia possibilidade de defesa a não ser a desobediência, a qual era fatalmente punida pelos senhores de escravos. Para além de amas de leite, as meninas e mulheres negras eram exploradas sexualmente e todos esses papéis estavam submetidos aos caprichos do senhor de escravos e aqueles os quais compunham a elite escravocrata. Nesse contexto, a origem da luta feminista das mulheres negras é diametralmente oposta à das mulheres brancas. O que seria a reinvindicação de trabalho em comparação ao trabalho forçado? Para as mulheres racializadas, afirmar o que é, para elas, ser mulher, foi um campo de luta. As mulheres, como eu disse não constituem em si uma classe política (VÈRGES, 2020).
Assim, o mundo contemporâneo e suas ferramentas coloniais perpetuam tais papéis, de forma que a divisão entre limpeza e sujeira baseada está fundamentada na divisão racial do espaço urbano e da moradia. E, para além do espaço urbano, essa divisão se encontra na divisão das dinâmicas de trabalho moderno nas diversas sociedades contemporâneas.
Este trabalho não tem a finalidade de contemplar todas as possibilidades de exploração de mão de obra na divisão racial do trabalho. Isto porque as consequências dessas divisões de trabalho a partir do aspecto racial compreende diferentes consequências. A missão feminista civilizatória é clara: as mulheres europeias estão fazendo uma cruzada contra a discriminação sexista e os símbolos de submissão que persistem em sociedade de fora da Europa Ocidental; elas se apresentam como o Exército que protege o continente da invasão de ideias, de práticas, de mulheres e homens que ameaçam suas conquistas. A narrativa é obviamente falsa (VÈRGES, 2020).
Conclusão
Para que serve esta discussão ao Direito, especificamente ao campo da Filosofia do Direito? O Feminismo Decolonial, bem como a Filosofia Decolonial propõe que as discussões políticas, sociais, econômicas e jurídicas sejam discutidas simultaneamente as questões de raça, gênero, classe, localização geográfica e o quaisquer outros tópicos relevantes na discussão para a análise dos conflitos e realidade.
Isto porque, “As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.[6]”
Françoise Vèrges ressalta que a violência “não é exclusividade do dispositivo colonial, mas lembremos que a escravidão colonial estava fundada na ameaça constante da tortura e da morte de um ser humano legalmente transformado em objeto, assim como no espetáculo público de sua morte. Ao escancarar a violência do estado moderno, a autora sinaliza que é necessário não se iludir com a popularização do Feminismo. Este precisa ser relembrado e reconstruído, para que suas raízes de radicalidade transforme as estruturas sociais.
Ainda que haja vitórias histórico-sociais em relação aos direitos dos grupos marginalizados. Basta uma guinada conservadora para que haja o desmonte dos direitos conquistados pelos movimentos sociais e filosofias alinhadas com a luta por direitos. A exemplo das mudanças governamentais em todo o mundo, o que constrói uma realidade de difícil transformação através da luta política. E, Françoise entende que há uma lição a ser tirada da eleição para presidente do Brasil, em outubro de 2018, de um homem branco apoiado por grandes proprietários de terra, pelo mundo dos negócios e por Igrejas evangélicas, um homem que declarou abertamente sua misoginia, sua homofobia, sua negrofobia, seu desprezo pelos povos indígenas sua vontade de vender o Brasil ao melhor pagador, de violar as leis sociais voltadas às classes mais pobres e as leis de proteção à natureza, de voltar atrás nos acordos assinados com povos indígenas, e tudo isso alguns meses após o assassinato da vereadora queer e negra Marielle Franco (VÈRGES, 2020).
E, é por isso que o feminismo de slogans não é suficiente para o combate de violência e aprofundamento da luta por direitos. Há uma ausência de discussão dos direitos reprodutivos, estes os quais não estão evidenciados suficientemente para se tornarem políticas públicas no estado democrático de direito brasileiro. Isto fica evidente quando há o veto pelo presidente Jair Messias Bolsonaro sobre a lei[7] que buscava disponibilizar absorventes em escolas públicas.
Entre os eixos de luta de um feminismo decolonial é necessário, primeiramente, sublinhar o combate à Violência policial e à militarização acelerada da sociedade, que se apoiam na ideia de que a proteção deve ser garantida pelo Exército, pela justiça de classe / racial e pela política. Isso implica recusar o feminismo carcerário e punitivo que se satisfaz com uma abordagem judicial das violências, sem questionar a morte de mulheres e homens racializados/as, uma vez que elas são apresentadas como ‘naturais’, consideradas um fato de cultura, um acidente, uma triste contingência em nossas democracias. É necessário denunciar a violência sistêmica contra as mulheres e os transgêneros, mas sem opor as vítimas umas às outras (VÈRGES, 2020).
O Feminismo Decolonial é contrário aos feminismos que estão a serviço do capital. É necessária a restituição da raiz do movimento o qual carrega objetivos de justiça social, dignidade, respeito, políticas de vida contra necropolítica de que fala Achille Mbembe[8]. Esses movimentos existem, no entanto, as suas narrativas não estão sendo escutadas.
REFERÊNCIAS
ARRUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
CÉSAIRE, AIME. Discurso sore o colonialismo. Trad. Anísio Garcez Homem. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2020.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Trad. Hecci Regina Candiani. 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2016.
DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. Trad. Hecci Regina Candiani. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
DAVIS, Angela. A Liberdade é uma luta constante. Org. Frank Barat. Trad. Heci Regina Candiani. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
DAVIS, ANGELA. Artigo publicado no portal Geleés – Instituto da Mulher Negra. Disponível em: http://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/ Último acesso em 01 dez. 2021.
HOOKS, bell. Teoria Feminista: da margem ao centro; tradução Rainer Patriota – São Paulo: Perspectiva, 2019 – (palavras negras)
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
MORRISON, Toni. Sula. Tradução Débora Landsberg – 1 ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
PIZA, Suze. O pensamento decolonial para superar a Colonialidade e o Racismo Epistêmico. Casa do Saber. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8qs9uXf0I0Y Último acesso em 01 dez. 2021.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América latina. Capítulo do livro A colonialidade do saber> eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, 2005. Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf Último acesso em 02 dez. 2021.
VERGÈS, Françoise. Um Feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
VERGÈS, Françoise. Uma teoria feminista da violência. Trad. Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
[1] Paráfrase do termo cunhado por Ailton Krenak em sua obra: Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhias das Letras, 2019.
[2] Destaca-se aos leitores iniciantes na leitura feminista que autora escreve seu nome apenas com letras minúsculas, uma vez que sustenta que o mais importante é a substância das suas ideias e não propriamente o sujeito que as apresenta.
[3] DAVIS, Angela. A Liberdade é uma luta constante, em Feminismo e abolicionismo: teorias e práticas para o século XXI. Organização de Frank Barat, tradução: Heci Regina Candiani. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 92.
[4] Se o debate sobre o racismo estrutural na França é tão difícil, isso se deve também a uma paixão por princípios abstratos e não ao estudo das realidades. (VÈRGES, 2020)
[5] Aníbal Quijano, sociólogo peruano conhecido por ter desenvolvido o conceito de "colonialidade do poder".
[6] DAVIS, ANGELA. Artigo publicado no portal Geleés – Instituto da Mulher Negra. Disponível em: http://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/. Acesso em: 28 de dezembro de 2021.
[7] BRASIL. Lei nº 14.214, de 6 de outubro de 2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Lei/L14214.htm / Projeto de Lei nº 4.968/2019, da deputada Marília Arraes (PT-PE)
[8] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
Advogada. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2019), mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2023); https://orcid.org/0000-0001-8015-1797; http://lattes.cnpq.br/9652728139482329; [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Jennifer Aline Ernesto de. Por uma epistemologia feminista decolonial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2022, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58984/por-uma-epistemologia-feminista-decolonial. Acesso em: 21 nov 2024.
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