Resumo: esse artigo tem por objetivo questionar as características raciais dos sujeitos responsáveis pela formação da opinião pública brasileira. A problemática analisada consiste em investigar como o marcador racial interfere nas condições de possibilidade para construir espaços democráticos em termos de opinião pública. Justifica-se a realização desse esforço teórico inicial para compreender as dificuldades e as potencialidades de democratização dos espaços de construção de narrativas jornalísticas. Por meio da revisão sistemática de literatura argumenta-se a impossibilidade de exercer a função de democratizar outros espaços, sem antes democratizar a si próprio.
Palavras-chaves: Opinião pública. Jornais brasileiros. Jornalistas negros. Exclusão social.
INTRODUÇÃO
Apesar de não constituir uma novidade propriamente dita o estudo sobre a opinião pública ainda está em fase inicial no Brasil. De modo particular, interessa destacar alguns resultados de uma pesquisa mais ampla que se encontra em desenvolvimento, tendo como recorte específico o marcador racial dos sujeitos responsáveis pela formação da opinião considerada pública. O argumento central a ser desenvolvido consiste em afirmar que é urgente democratizar (ou colorir) os espaços privilegiados de construção de narrativas jornalísticas.
Para tanto, impõe-se algumas delimitações. Ante a impossibilidade de desenvolver - com profundidade em curto espaço de tempo - o tema da opinião pública elege-se tratar apenas de um aspecto dos seus aspectos, qual seja: a “função democratizadora”. Elege-se a revisão sistemática de literatura para selecionar o repertório de análise e os materiais utilizados. Exemplificam-se algumas dessas dificuldades nos três principais jornais brasileiros enquanto sujeitos formadores da opinião pública.
Em primeiro lugar, importa problematizar o suposto aspecto democratizante geralmente atribuído à opinião pública. Segundo, colocar em movimento a dificuldade de aplicação prática dessa atribuição de acordo com o elemento raça; para ilustrar esse quadro serão apresentados dados do estudo realizado em 2021 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).[1]
Buscando ir além do mero diagnóstico sugere-se a necessidade de complementar as políticas afirmativas estatais de inserção de pessoas negras pela iniciativa privada. Vale ressaltar que não se trata da panaceia “capaz de curar todos os males”, mas de uma sugestão para que o jornalismo brasileiro possa refletir, no longo prazo, as “cores e valores”[2] que formam a sociedade brasileira.
1 A SUPOSTA FUNÇÃO DEMOCRATIZANTE DA OPINIÃO PÚBLICA
Contrariando Pierre Bourdieu, que negava a existência da opinião pública, o primeiro passo desse artigo consiste em discutir uma das funções que geralmente é atribuída à opinião pública, qual seja: a suposta função democratizadora. Não se sabe ao certo quando e quem uniu o substantivo feminino opinião ao adjetivo pública; todavia, pelo menos no lado ocidental do mundo, a opinião pública aparece originariamente associada aos valores democráticos como visibilidade, publicidade ou conhecimento amplo de determinado fato da vida em sociedade.
Para Jürgen Habermas, responsável pela elaboração da teoria do agir comunicativo,[3] a ideia de opinião pública apoia-se na “esfera pública” segundo a qual sujeitos livres e iguais valendo-se do uso público da “razão” exercitam a democracia deliberativa. Antes, porém, deve-se questionar quem, quando e como participam desse intento democrático, sobretudo ao considerar aqueles poucos que proclamam determinados discursos e aquelas e aqueles muitos que são silenciados.[4]
Nesse sentido, vem a calhar a metáfora apresentada por Walter Lippmann de que o trabalho dos jornalistas, enquanto partícipes da opinião pública, é lançar luzes sobre determinado aspecto da realidade social, por isso, reportagens são como “holofotes” que iluminam determinado ponto de vista, mas deixam na penumbra diversos outros.[5] Somados os argumentos do silenciamento e da seletividade sobra pouco espaço para atribuir a função democrática à opinião pública.
Certo, porém, que os estudos realizados ocorreram em tempo e lugares diversos, noutras palavras, não foram pensados para a realidade social e institucional brasileira. Todavia, não se pode “jogar a água do banho fora junto com a criança”. Se, por um lado, ainda não se pode atribuir a função democratizante à opinião pública brasileira; por outro, ela vem desempenhando uma importante missão para o enfrentamento dos desafios do tempo presente.
2 É POSSÍVEL DEMOCRATIZAR, SEM ANTES DEMOCRATIZAR A SI PRÓPRIO?
Levando em consideração apenas o marcador de raça para explicar, em parte, as dificuldades de compreender a democracia enquanto ethos ou prática na experiência brasileira, percebe-se que não há como compreender adequadamente qualquer ideia de democracia enquanto parcela expressiva de negras e negros estiverem à margem de determinadas “esferas públicas”. Desse modo, cabe levar em consideração algumas contradições nessa tarefa.
Vale pontuar, em primeiro lugar, a centralidade estatal de políticas públicas de ação afirmativa que buscam por meio de decisões legislativas e judiciais inserir determinadas pessoas em “espaços públicos” que historicamente foram sonegados. Certo, porém, que essa trilha somente foi aberta por meio de várias lutas sociais, que antecederam essas conquistas e, seguramente, as ultrapassarão.
Seja pelo sistema de reserva de vagas para estudantes negros nas universidades federais (Lei n. 12.711/2012) ou nos concursos públicos para a administração pública federal (Lei n.12.990/2014), seja pela confirmação judicial por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental ADPF n. 186/DF e da ação declaratória de constitucionalidade ADC n. 41/DF.
Mesmo que esses espaços ainda sejam campos de disputas interpretativas,[6] cumpre destacar a (não) contribuição da iniciativa privada para a mudança desse cenário social. Ao considerar o suposto papel democratizador da opinião pública cabe questionar sobre a presença de jornalistas negros nos principais jornais brasileiros.
De acordo com o estudo conduzido pelo GEMAA (2021), o espaço jornalístico da Região Sudeste do país reproduz a ordenação social ainda vigente na sociedade brasileira, isto é, os principais jornais são escritos majoritariamente por homens brancos. Noutras palavras, os jornais Globo, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo reforçam o privilégio de enunciação do discurso escrito para um determinado “grupo social” hegemônico.
Nos seis primeiros meses de 2021, as pessoas brancas que assinam as matérias jornalísticas e os colunistas representam o percentual de 84% da amostra coletada. Esse dado é significativo para compreender a sub-representação de pessoas negras nesses espaços cuja importância teórica é acentuada, conforme visto na primeira seção desse artigo. Vale dizer, apenas 05% das notícias publicadas na Folha são assinadas por pessoas negras, 03% no Globo e 01% no Estadão.
Por outro lado, homens brancos compõem 56% da redação do Estadão, 52% da Folha e 50% do Globo. O estudo revela ainda que essas disparidades também estão presentes em outros marcadores (gênero e etário). Esse diagnóstico é suficiente para abalar a crença no papel democratizante da opinião pública e também para compreender como funciona a “calibragem” dos holofotes jornalísticos brasileiros dentro dos recortes propostos.
CONCLUSÃO
Esse artigo reuniu algumas reflexões iniciais sobre a opinião pública brasileira, destacou as dificuldades de se atribuir a “função democratizadora” a determinados sujeitos da opinião pública. Ao final, restou confirmada a hipótese de impossibilidade de exercício dessa função sem antes democratizar a si próprio.
Como tentativa de superação desse quadro fático sugere-se a implementação de ações afirmativas, enquanto responsabilidade de todos. Assim, releva-se potencialmente adequado a utilização de mecanismos de inserção de pessoas negras nesses espaços privados com finalidades públicas. Tal qual no primeiro setor (Estado), a inserção desse público revela-se o primeiro passo numa longa caminhada.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Câmara dos Deputados. Raça humana: bastidores das cotas raciais na UnB. Youtube, 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fCcyxahMDBk Acesso em: 19 maio de 2022.
FERREIRA, Gianmarco Loures. O Supremo Tribunal Federal e as ações afirmativas: cotas raciais para a educação superior. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 02, n. 03, 2016, p. 633-662.
GRUPO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES DE AÇÃO AFIRMATIVA. Jornalismo brasileiro: raça e gênero de quem escreve nos principais jornais do país. Rio de Janeiro, 09 dez. 2021. Disponível em: https://gemaa.iesp.uerj.br/infografico/jornalismo-brasileiro-raca-e-genero-de-quem-escreve-nos-principais-jornais-do-pais/ Acesso em: 19 maio de 2022.
HABERMAS, Jürgen. The theory of communicative action: lifeworld and system - a critique of functionalist reason. Translated by Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1987, vol. 2.
LIMA, Ari. A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro: negação de inferioridade, confronto ou assimilação intelectual?. Afro-Ásia, Salvador, n. 25-26, 2001, p. 281-312.
LIPPMANN, Walter. Public opinion. New York: Start Publishing LLC, 2015.
NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. La espiral del silencio: opinión pública - nuestra piel social. Traducción de Javier Ruíz Calderón. Barcelona: Paidós, 1995.
[1] Cf. GRUPO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES DE AÇÃO AFIRMATIVA. Jornalismo brasileiro: raça e gênero de quem escreve nos principais jornais do país, 2021.
[2] Parafraseando o disco homônimo lançado em 2014 pelo grupo de rap Racionais MC’s gravado pelos selos Cosa Nostra e Boogie Naipe.
[3] Cf. HABERMAS, Jürgen. The theory of communicative action: lifeworld and system - a critique of functionalist reason, 1987.
[4] Cf. NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. La espiral del silencio: opinión pública - nuestra piel social, 1995.
[6] Cf. BRASIL. Câmara dos Deputados. Raça humana: bastidores das cotas raciais na UnB. Youtube, 2010; FERREIRA, Gianmarco Loures. O Supremo Tribunal Federal e as ações afirmativas: cotas raciais para a educação superior, 2016; LIMA, Ari. A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro: negação de inferioridade, confronto ou assimilação intelectual?, 2001.
Professor de direito da Universidade Federal do Tocantins - UFT, doutorando em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU, ambos com bolsa de pesquisa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas e Advogado (OAB/MG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Wagner Vinicius de. Opinião pública: seus sujeitos, sua cor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2022, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59025/opinio-pblica-seus-sujeitos-sua-cor. Acesso em: 23 dez 2024.
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