Resumo: O presente trabalho visa analisar os diversos aspectos jurídicos e sociológicos referentes a criminalização do aborto no Brasil. Para esse propósito é considerada a carga histórica de desigualdade historicamente enfrentada pelas mulheres no mundo ocidental, bem como a condição jurídica concedida ao nascituro. Dessa forma, busca-se ponderar, inspirando-se nas teorias alemãs, os princípios em colisão, notadamente a autonomia e liberdades reprodutivas da mulher, em face ao potencial de existência humana do nascituro. As referidas considerações são realizadas mediante estudo da bibliográfica relacionada ao tema, com abordagem quantitativa e uso do método dedutivo. Ao fim, ao se basear na matriz filosófica kantiana da dignidade da pessoa humana, esse trabalho volta sua atenção aos danos causados pela criminalização do aborto à própria condição humana da mulher brasileira, e a consequente mitigação de sua titularidade de direitos.
Palavras-chave: Bioética; Direitos Fundamentais; Criminalização do aborto; Colisão de Princípios.
Abstract: The present job aim to analyze the varied legal and sociological aspects related to the criminalization of abortion in Brazil. For that purpose it is considered the historic charge of inequality historically faced by women in western world, as well as the legal condition granted to the unborn. Thus is intended to ponder, drawing inspiration from the german theories, the principles in collision, notably the autonomy and reproductive freedom of women, in face of the potential of human existence of the unborn. The referred considerations are carried out by the study of the bibliography related to the theme, with quantitative approach and use of the deductive method. Lastly, by relying in the Kantian philosophic base of human dignity, this job turns its attention to the damage caused by the criminalization of abortion to the very human condition of the brazilian women, and the resultant mitigation of their ownership of rights
Key-words: Bioethics; Fundamental Rights; Criminalization of abortion; Collision of Rights.
1. INTRODUÇÃO
No âmbito do direito constitucional contemporâneo, o respeito aos direitos fundamentais é um dos alicerces centrais do ordenamento jurídico, e um aspecto imprescindível na relação entre o Estado de Direito e os cidadãos.
Nesse sentido, o primeiro dos direitos fundamentais, e que serve de premissa para os demais é o direito à vida.
No decorrer dos últimos séculos, a forma como o direito à vida se manifesta nas Constituições e ordenamentos jurídicos vem evoluindo e se ampliando. Inicialmente, o direito à vida surge em conjunto com os demais direitos fundamentais de primeira geração. Estes são os direitos de caráter negativo, que se destinam principalmente ao Estado, e exigem apenas uma abstenção por parte desse. Ou seja, a manifestação primária do direito à vida é o dever do Estado não usar violência contra seus próprios cidadãos.
Todavia, com a evolução do direito constitucional, o escopo do direito à vida se ampliou, e passou a se manifestar e refletir em diversos outros direitos, como os direitos à saúde e segurança (direitos de segunda geração) e até o mesmo o direito ao meio ambiente (direito de terceira geração).
Dessa forma, no contexto brasileiro pós Constituição Federal de 1988, é dever do Estado garantir a vida das pessoas não somente por simples abstenção, mas de fato agindo positivamente e utilizando dos seus recursos para proteger e cuidar dos cidadãos, bem como para punir aqueles que ferem a integridade dos outros.
É nesse contexto que surge, por exemplo, o crime de homicídio, o qual foi incluído no Código Penal para proteger o bem jurídico da vida. Ainda, teoricamente com esse mesmo objetivo, o legislador incluiu o crime de aborto no Código. E é justamente esse crime que será tema desse trabalho.
Dentre os mecanismos jurídicos de proteção do direito à vida, a criminalização do Aborto é um dos mais polêmicos. Isso se deve a vários motivos, como sua baixa eficácia prática, marginalização de mulheres de baixa renda, e notadamente a violação da isonomia e da liberdade reprodutiva e sexual feminina.
Tendo isso em vista, será feito uma análise da bibliografia acerca do tema, visando estudar as consequências do choque entre os princípios em jogo, priorizando os aspectos de direito constitucional e teoria de direitos fundamentais, bem como considerando os aspectos intrinsecamente sociológicos, políticos e religiosos da problemática.
2. A DISCUSSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS FEMININOS EM MEIO À POSIÇÃO DE DESIGUALDADE DA MULHER NA SOCIEDADE.
É relevante que primeiro passo em qualquer debate acerca de direitos das mulheres seja reconhecer o difícil contexto histórico da sociedade ocidental e sua relação com a condição de mulher.
A situação de desigualdade entre os sexos é um fato social e histórico que vem sendo amplamente estudado. Existem estudos feministas que associam o histórico de subordinação da mulher ao próprio nascimento da sociedade moderna. A filósofa britânica Carole Patemen faz uma reinterpretação das teorias contratualistas sob uma perspectiva feminista, defendendo que o próprio contrato social é intrinsecamente ligado ao poder masculino:
O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liberdade e a dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato original e o sentido de liberdade civil não pode ser compreendido sem a metade perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos homens sob as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade civil não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal. (PATEMAN, pgs. 16/17, 1993)
Nesse sentido, o poder patriarcal é um aspecto fundador e fortemente enraizado na sociedade moderna, de forma que no decorrer da história a mulher esteve constantemente em condição de desigualdade em relação ao homem.
Tal relação de subordinação se demonstra de diversas formas, e subsiste até hoje. Por esse motivo, para o adequado tratamento jurídico sobre assuntos com uma perspectiva de gênero, é imprescindível o reconhecimento das assimetrias, bem como das diversas formas de subordinação da mulher, que se iniciam na esfera privada e desenvolvem-se nos diversos contextos da esfera pública (AQUINO, KONTZE, p.260, 2014).
No que se refere ao aborto mais especificamente, é ainda mais latente a indissociabilidade entre esse esse debate e o crescimento do feminismo e movimentos de emancipação feminina. Afinal, as manifestações feministas, especialmente a partir dos anos sessenta e setenta do século XX (a chamada segunda onda do feminismo) foram as principais responsáveis pela legalização do aborto em inúmeros países europeus e estados norte-americanos (MACHADO, 2017).
Notadamente, a legalização do aborto em diversos países se deu pelo fato do movimento feminista ter demonstrado a brutalidade e indignidade que as mulheres que realizam o aborto enfrentavam.
Com isso, foi necessária a eclosão das denúncias do aprisionamento, a morte ou morbidade que afligiam as mulheres que abortavam, para serem desvelados e contraditados os fundamentos, especialmente os religiosos, da condenação do aborto (MACHADO, 2017).
Atualmente no Brasil, esse contexto de indignidade para com a mulher que pretende realizar um aborto ainda é uma marcante realidade. Apesar da criminalização, o aborto ainda é extremamente comum em nosso país, especialmente entre mulheres mais velhas, com menor renda e não brancas:
A proporção de mulheres que fizeram aborto, bem como outros fatos cumulativos relacionados à vida reprodutiva, cresce com a idade. Essa proporção varia de 6% para mulheres com idades entre 18 e 19 anos a 22% entre mulheres de 35 a 39 anos, evidenciando o quanto o aborto é fenômeno comum na vida reprodutiva das mulheres. A análise desta proporção permite inferir que, ao final de sua vida reprodutiva, mais de um quinto das mulheres no Brasil urbano já abortaram. (SANTOS et al, p. 497, 2013).
A prática do aborto é mais acentuada entre mulheres de escolaridade muito baixa, haja vista que dentre as que realizaram o aborto 23% têm até o quarto ano do ensino fundamental e cerca de 12%, o ensino médio concluído. O abortamento espontâneo, assim como o provocado, ocorre em maior frequência nas mulheres não brancas, com mais de um filho nascido vivo e união estável (SANTOS et al, p. 497, 2013).
Tendo em vista esses fatos, nota-se que a realidade do aborto é trágica no Brasil, e a sua criminalização, do ponto de vista prático, é altamente ineficaz, afetando majoritariamente grupos de mulheres em situação de vulnerabilidade, as quais acabem tendo que enfrentar o adicional do temor a punição do próprio Estado.
Outro aspecto marcante que põe a mulher em situação de desequilíbrio em relação ao homem, é uma simples diferença de liberdade. Homens podem muito mais facilmente, e basicamente sem punição, escolher não ter filho. O abandono parental tem crescimento vertiginoso e números surpreendentes no Brasil, de forma que entre 2005 e 2015 o Brasil ganhou mais de 1 milhão de famílias formadas por mães solteiras. (VALESCO, 2017). Ainda, dados do CNJ expõem que há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. (ANDRADE, 2018).
Além dessas problemáticas realidades do mundo social, a desigualdade entre os sexos obviamente também afeta o campo jurídico, no qual também por longos períodos da história ocidental a mulher teve sua condição como sujeito de direitos negada ou mitigada. No ordenamento jurídico atual, a Constituição de 1988 determina a igualdade entre todas as pessoas, independentemente de gênero. Porém, a antropóloga feminista Lia Zanotta Machado, ao estudar o debate público acerca do aborto no Brasil se vê obrigada a questionar se a mulher de fato é considerada como sujeito de direitos no âmbito legal e político brasileiro.
O debruçar-me sobre as falas de defensores do direito absoluto ao concepto exigiu analisar sobre o que e como se referem às mulheres. Permitiu desvelar que foi sobre a categoria da sacralidade da maternidade, seja ela “dolorosa” ou “radiante”, mas sempre “acolhedora” e “cuidadora”, que foi possível que, no enunciado, as mulheres pudessem ter sido desvestidas de seu atributo de sujeitos de direitos [...] Tal narrativa de fato propugna o valor e a volta da mulher ao lugar tradicional de subordinação, obediência e ajuda ao marido/companheiro. Propugna que o Estado regule a criminalização máxima (crime hediondo) de qualquer forma de aborto em qualquer circunstâncias. Visa reinstaurar, engrandecendo-o, o poder masculino familiar e, em seu nome, o controle sobre as mulheres no terreno da sexualidade e da reprodução. (MACHADO, p. 33, 2017)
O ponto de vista apresentado acima, bem como os demais argumentos presentes nesse tópico, exemplificam o quanto a teórica condição de igualdade jurídica da mulher no Brasil ainda é questionável na prática, bem como serve para introduzir uma discussão chave desse trabalho: a condição de pessoa da mulher em detrimento da condição de pessoa do nascituro.
3. A CONDIÇÃO DE PESSOA DO NASCITURO.
Os crimes referentes ao aborto encontram-se tipicados nos artigos 124, 125, 126 e 127 do Código Penal brasileiro, estando presentes no Título I da parte especial “Dos crimes contra a pessoa”, e no capítulo desse título “Dos crimes contra a vida”. Ou seja, esses crimes buscam proteger o bem jurídico vida, mas precisamente, vida humana, sendo comumente argumentado que a criminalização do aborto visa garantir o direito constitucional à vida, constante do artigo 5º da CF/88.
De forma similar, o artigo 2º do Código Civil determina: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Percebe-se então, uma nítida intenção do ordenamento jurídico em proteger o nascituro. Apesar de haver grande polêmica se essa norma do Código Civil configura ou não o nascituro como um sujeito de direitos, é inegável que é conferida importância jurídica a sua existência, mesmo desde a concepção.
Nesse sentido, a discussão sobre a criminalização do aborto é constantemente associada a debates acerca dos limites da vida, com argumentos filosóficos, religiosos e científicos expondo diversos caminhos possíveis. Contudo, uma observação interessante é que esse mesmo debate pode ser visto por outras óticas. Pode-se interpretar a discussão acerca da condição do nascituro, não focando como no debate acerca dos limites da vida, mas sim na abrangência do conceito de pessoa.
Naturalmente, não há dúvidas que o nascituro é uma coisa viva, sendo certo também que muitas coisas vivas não são sujeitos de direito. Dessa maneira, o que faz com o direito proteja o nascituro não é o fato desse conter células vivas, mas sim o seu potencial de ser tornar uma pessoa. Em outras palavras, é atribuído (em algum nível) o valor de pessoa ao nascituro.
Sob essa perspectiva, a pergunta central do debate não seria “Quando se inicia a vida humana?” e passaria a ser “Até que ponto a condição do nascituro deve ser equiparada a condição de pessoa humana?”, ou “em que momento o nascituro se torna uma pessoa, e portanto, titular de direitos?”. Essas variações nas perguntas, apesar de, em essência, discutirem sobre as mesmas coisas e de serem todas igualmente importantes, servem para abordar o debate sob óticas e métodos diversos.
No campo jurídico, o termo pessoa refere-se a um ente individual ou coletivo que goza de direito ou obrigações, ou seja, um sujeito de direitos. Como mencionado, o Código Civil determina que a personalidade civil inicia-se no nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Há diversas interpretações dessa norma, que ora é interpretada apenas como uma expectativa de direitos do nascituro, que serão efetivamente adquiridos no nascimento, e ora é interpretada como uma garantia expressa de direitos do nascituro, o que o tornaria um sujeito titular de direitos (CUNHA, p. 131, 2007).
De fato, muitos argumentos favoráveis a criminalização do aborto se baseiam no ideal que a vida do nascituro tem o mesmo valor que a vida de qualquer pessoa, sendo esse um pensamento frequentemente baseado no dogma religioso de sacralidade da vida. Com isso, os contrários ao aborto argumentam que o feto não se distingue de um recém-nascido, se opondo aos que defendem a possibilidade de interrupção da gestação focando a questão nos direitos da mulher, e não no limite ético de definição da vida (GOMES, MENEZES, p.82, 2007).
O exposto acima salienta a importância da análise do valor atribuído ao nascituro, de forma que esse possa ser comparado ao valor atribuído à mulher, a qual na história frequentemente sequer foi considerada sujeito de direitos.
Portanto, a criminalização do aborto inevitavelmente recai sobre uma ponderação de princípios em colisão, os quais, em razão da temática intimamente ligada ao conceito de pessoa, devem ser sopesados sob o guia da dignidade da pessoa humana.
4. A PONDERAÇÃO DOS PRINCÍPIOS EM COLISÃO SOB O GUIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Em sequência, destaca-se que os dois tópicos anteriores serviram de base, expondo os detalhes essenciais acerca dos entes envolvidos na polêmica do aborto, e salientando os aspectos mais relevantes, como a histórica posição de desigualdade da mulher e a condição jurídica do nascituro. E sempre favorável levar esses pontos em consideração quando se analisa a ponderação dos princípios envolvidos na criminalização do aborto.
Ademais, superada essa etapa do estudo e antes de prosseguir, cabe discorrer brevemente acerca dos entendimentos da doutrina acerca dos princípios de direitos fundamentais e suas formas de interpretação.
Inicialmente, deve-se considerar que esses princípios funcionam como um sistema, uma vez que se encontram em permanente interação e, consequentemente, em constante colisão (CARDOSO, p. 139, 2016). Por isso, a ciência jurídica no decorrer do tempo criou certos métodos, formulados pela doutrina e jurisprudência internacionais, para tentar solucionar da melhor forma possível a colisão de princípios.
E solucionar “da melhor forma possível” é a descrição adequada. Segundo a visão do jurista alemão Robert Alexy os princípios são mandados de otimização, que se caracterizam por não serem “tudo ou não nada”. Com isso, os princípios podem ser satisfeitos em graus variados, de acordo não só com as possibilidades fáticas, mas também jurídicas, as quais são influenciadas pelos demais princípios e regras colidentes (ALEXY, p.90-91, 2008).
Tendo em vista essa complexidade do sistema de direitos fundamentais, Robert Alexy, por meio do estudo da técnica da ponderação desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, defende que, em abstrato, todos os princípios têm a mesma importância. Contudo, no evento de colisão entre princípios, deve ser feita análise das condições fáticas e jurídicas do caso específico, para que se possa determinar qual norma será priorizada, e qual terá sua aplicação mitigada nessa hipótese (CARDOSO, p.145, 2016).
Acerca da técnica da ponderação mencionada acima, essa é considerada por Alexy como o procedimento para solução da colisão entre direitos fundamentais, e ele também dita que essa técnica deve ser guiada pelo princípio da proporcionalidade, o qual o jurista alemão chama de “máxima”, e divide em três subprincípios:
Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade, com suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é deduzível dessa natureza (ALEXY, pgs. 116-117, 2008)
Pelo exposto, apesar de existirem diversas doutrinas e teorias sobre as melhores formas de lidar com colisões de princípios, pode-se extrair dos ensinamentos clássicos de Alexy a intenção básica que sempre permeia a ponderação de direitos fundamentais: as normas devem ser aplicadas no caso concreto de forma a causar o mínimo de dano e de ferir o mínimo possível o ordenamento jurídico.
Em vista a impossibilidade de se seguir todos os princípios simultaneamente, a solução que chegue mais perto disso deve ser escolhida. Essa visão é uma decorrência lógica da intenção dos sistemas constitucionais modernos em proteger os direitos fundamentais o máximo possível, e com o fundamento central da dignidade humana.
No campo da bioética e biodireito, essa intenção de minimizar danos aos direitos fundamentais também se manifesta, mediante o chamado princípio da beneficência. “Desse modo, o princípio da beneficência se assenta no reconhecimento do valor moral do outro, e leva em consideração que maximizar o bem do outro, supõe reduzir o mal” (CAMPOS, OLIVEIRA, p.21, 2017).
Retomando a discussão do aborto, naturalmente, essa temática, por ser um hard case com colisão de diversos direitos fundamentais, é um dos casos em que a ponderação e princípio da proporcionalidade devem ser aplicados.
Em realidade, há mais de dois princípios em colisão no debate acerca da criminalização do aborto, tendo em vista a grande complexidade do tema. Existem diversos aspectos que influenciam a discussão moral e religiosa relacionadas à interrupção de gravidez, bem como vários fatores jurídicos que se empilham e se cruzam em direções diversas:
É possível afirmar que no grupo pró-vida há a precedência das categorias vida e família, ao passo que no grupo pró-escolha a primazia é das categorias de autonomia e igualdade. Os primeiros buscam a precedência do modelo tradicional de família e concebem a vida desde a concepção como direito absolutamente inviolável, ao passo que os segundos procuram construir a mulher como indivíduo pleno no ordenamento Estatal, reconhecendo-a, a partir do preceito da isonomia, como sujeito de direitos sociais e individuais. Bens jurídicos e modelos de relações de gênero são confrontados entre si e, se a Constituição anuncia a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade, a questão do aborto emerge como um terreno atravessado por linhas de força que se perpassam em direções variadas (CUNHA, pgs. 128/129, 2007).
O trecho acima resume adequadamente a complexidade do debate. Apesar disso, pode-se perceber certos padrões que facilitam a análise do tema. 1) O grupo contrário ao aborto dá o valor máximo a vida do nascituro, vendo-a com a mesma inviolabilidade de uma pessoa nascida; 2) O grupo a favor do aborto não considera a vida do nascituro tão inviolável a ponto de ser mais importante que a dignidade humana da mulher.
Logo, como delimitação da abordagem, esse trabalho visa abordar o debate do aborto com enfoco principal nos dois pontos acima, por serem aspectos recorrentes da discussão, e que já foram introduzidos e tratados brevemente acima. Assim sendo, serão esses os aspectos principais a serem considerados na ponderação dos princípios em colisão (direitos da mulher em face dos possíveis direitos do nascituro).
Por conseguinte, como dito anteriormente, é pertinente identificar o valor humano atribuído ao nascituro, para que se possa ponderar o seu direito à vida com os direitos da mulher envolvidos, e assim identificar o caminho menos danoso a dignidade humana.
Um dos pontos principais para essa análise é entender se o nascituro, para propósitos jurídicos, deve ser considerando um ente próprio e independente da mãe, ou apenas uma parte dela.
O ponto de vista dos defensores da criminalização do aborto costuma ser que o nascituro é um ente próprio, de forma que a gestante violaria o direito à vida de outro ao interromper a gravidez. Tal entendimento, frequentemente é embasado nos ideais religiosos de sacralidade da vida, e de “plano de Deus” para o embrião, conforme se verifica no texto de justificativa do Projeto de Lei 5376/2005, o qual objetivava proibir a comercialização do anticonceptivo conhecido como “pílula do dia seguinte”:
Que argumentos teríamos para defender a vida, ainda no ventre materno? Inúmeros. Mas podemos resumir em apenas um, importantíssimo a toda humanidade: toda vida, ainda no ventre, tem um plano pré-estabelecido por Deus. É uma obra da Sua Criação e significará, em maior ou menor grau, um componente indispensável na relação que se estabelece entre todos os seres vivos. (BRASIL, 2005)
Dessa forma, verifica-se que existem grupos que intentam proteger a vida intrauterina o máximo possível, entendendo mesmo os embriões com poucos dias de existência como inclusos na inviolabilidade do direito à vida.
Por outro lado, existem os que argumentam que a pessoa surge apenas após o nascimento com vida, e nesse momento se configura como sujeito de direitos e obrigações, conforme esse do jurista Sergio Abdalla Semião:
Antes do parto, o feto não é pessoa, é uma porção da sua mãe, uma parte desta, como se afirma nas fontes romanas mencionadas. Antes do nascimento o nascituro não tem vida própria e independente, pois é alimentado pelo sangue materno. […]
O nascimento com vida é o fato jurídico gerador da personalidade civil da pessoa. Se o neonato é um natimorto, diz-se que nunca existiu (SEMIÃO, pgs. 138-139, 2015)
Assim sendo, o entendimento jurídico sobre o assunto parece ser que os nascituros não são sujeitos de direitos, por não serem pessoas ainda, porém, gozam de certa proteção estatal justamente em razão desse potencial de se tornarem seres humanos.
Para se considerar o campo de abrangência dessa proteção jurídica deve-se questionar se os nascituros, apesar de não serem sujeitos de direitos, são titulares de dignidade da pessoa humana. Em vista disso, segue o trecho do renomado constitucionalista Ingo Sarlet, no qual é demonstrada a matriz essencial da dignidade da pessoa humana:
É do conhecimento de todos que a matriz filosófica moderna da concepção de dignidade humana tem sido reconduzida essencialmente e na maior parte das vezes ao pensamento do filósofo alemão IMMANUEL KANT […] A formulação kantiana coloca a idéia de que o ser humano não pode ser empregado como simples meio (ou seja, objeto) para a satisfação de qualquer vontade alheia, mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo (ou seja, sujeito) em qualquer relação, seja em face do Estado seja em face de particulares. Isso se deve, em grande medida, ao reconhecimento de um valor intrínseco a cada existência humana, já que a fórmula de se tomar sempre o ser humano como um fim em si mesmo está diretamente vinculada às idéias de autonomia, de liberdade, de racionalidade e de autodeterminação inerentes à condição humana. A proteção ética e jurídica do ser humano contra qualquer "objetificação” (SARLET, FENSTERSEIFER, p. 70, 2007).
Portanto, o princípio da dignidade humana nasce do ideal de que todos os humanos possam controlar suas próprias vidas plenamente, de que cada pessoa se autodetermina como um ente em si mesmo, um indivíduo no sentido próprio da palavra, único e independente, com seus próprios sonhos e angustias.
É nesse contexto que a criminalização do aborto se demonstra como uma ferida na sociedade. Ao proibir as mulheres de interromperem as próprias gestações, é violado o ideal kantiano do “ser humano como fim em si mesmo”, pois nesse momento, a mulher deixa de ser vista uma pessoa, e se torna um objeto, um “humano como simples meio” obrigado a produzir aquela criança, uma ferramenta que existe para gerar outras vidas.
Ademais, utilizando novamente da matriz kantiana da dignidade humana, pode-se notar que é problemático estender essa titularidade de dignidade ao nascituro, pois esse não tem autonomia ou liberdade, por estar inevitavelmente vinculado à mãe, tampouco há como se falar que o nascituro tem objetivos, emoções, ou qualquer forma de se autodeterminar como indivíduo.
Dessarte, o crime do aborto sinaliza uma valorização maior da proteção da vida do nascituro, mesmo esse não sendo completamente um sujeito de direitos, do que da autonomia e isonomia das mulheres, as quais inegavelmente portam a qualidade de pessoa, com titularidade intrínseca de dignidade humana.
Retomando o aspecto da colisão de princípios, também há de se considerar que a técnica de ponderação mediante o princípio da proporcionalidade, ao determinar que se busque a solução que menos viole o sistema de direitos fundamentais também permite uma interpretação favorável a descriminalização do aborto.
Portanto, no que se refere à dignidade humana entendida como valor intrínseco, há apenas um direito fundamental favorecendo a posição antiaborto — o direito à vida — contraposto por dois direitos fundamentais favorecendo o direito de escolha da mulher — a integridade física e psíquica e a igualdade. (BARROSO, p. 101, 2012)
Outrossim, não é apenas a quantidade de princípios envolvidos que desfavorecem a criminalização do aborto. Do ponto de vista dos subprincípios da necessidade e adequação, deve-se salientar que a criminalização do aborto não é o único meio pelo qual o ordenamento jurídico pode proteger da vida do nascituro, certamente não é meio menos danoso ou oneroso, e possivelmente não é também o mais eficiente. Afinal, deve-se lembrar do caráter ultima ratio do direito penal.
Assim sendo, é completamente possível a substituição da tutela penal e punitivista do aborto, por meios socialmente mais adequados, destinados a orientar as gestantes, com foco em suas saúdes psíquicas e físicas, e considerando suas condições sociais e raciais. Ou seja, em caso de supressão da tutela penal do aborto, não significaria necessariamente o abandono da proteção do direito à vida. Existem outros meios para se buscar redução tanto dos casos de interrupção de gravidez quanto de seus riscos colaterais, protegendo também as mulheres que decidem pelo aborto, tal como se deu na Alemanha (SARLET, p. 198, 2014).
Por fim, cabe considerar os importantes aspectos mencionados no primeiro tópico desse trabalho. A mulher enfrentou historicamente uma posição menos favorecida na sociedade, de forma que são necessárias muitas mudanças para que se alcance o equilíbrio adequado. Dessa feita, deve ser considerado o artigo 3º, IV da Constituição Federal: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, bem como o artigo 5º ao promover os princípios da isonomia e igualdade entre os sexos.
Mesmo indo além da Constituição Federal brasileira, as teorias de filosofia do direito renomadas atualmente costumam dar destaque a função do Estado em promover a igualdade. Como é o caso da teoria de justiça de John Rawls, segundo a qual o Estado deve priorizar a tarefa de igualar os cidadãos em suas circunstancias básicas (AQUINO, KONTZE, p.2603, 2014).
Em vista de todo o exposto, garantir os direitos reprodutivos e sexuais da mulher seria um passo importante para sedimentar a posição dos indivíduos do sexo feminino como titulares de direitos, dando mais espaço para que essas assumam controle de suas próprias existências. É o favorecimento da dignidade humana de cada pessoa, com a mulher podendo ser um fim em si mesmo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho visou analisar principalmente os aspectos constitucionais da criminalização do aborto, especialmente mediante o enfoque na teoria dos direitos fundamentais e no princípio guia da dignidade humana.
Inicialmente, buscou-se sedimentar a discussão com a carga histórica e sociológica envolvendo a desigualdade enfrentada pelas mulheres. Com isso, ao considerar a tendência de nossa sociedade em desconsiderar a mulher como sujeito de direitos, pode-se ver com mais clareza os dilemas e interesses em jogo na criminalização do aborto.
Em seguida, ao analisar os aspectos jurídicos relacionados ao nascituro, verificou-se que, de fato, esse é alvo de proteção jurídica, apesar de não ter garantida claramente uma posição como sujeito de direitos.
Em vista desses fatos, e inspirando-se na técnica da ponderação alemã para colisão entre direitos fundamentais, comparou-se os direitos em jogo, a potencialidade de existência humana do nascituro, em face da autonomia e isonomia das mulheres.
Por fim, certamente a criminalização do aborto no Brasil, por envolver tantas normas de nosso ordenamento, e principalmente princípios de direitos fundamentais se configura como um verdadeiro hard case que continuará a ser discutido no campo jurídico brasileiro por bastante tempo.
Dessa forma, não é possível exaurir o tema em uma única pesquisa ou estudo, razão pela qual apenas objetivou-se abordar a discussão sob uma certa perspectiva e delimitação.
Dito isso, ao se guiar pelo sistema de princípios constitucionais brasileiros, especialmente a dignidade da pessoa humana, remetendo-se a sua matriz na filosofia kantiana, o presente trabalho chama a atenção para os graves danos que a criminalização do aborto causa a condição de pessoa das mulheres que desejam interromper uma gestação.
Portanto, a tutela penal do aborto se demonstra como um meio frequentemente brutal de tentativa de proteção do direito à vida, sendo notável o pouco valor que é dado no espaço público brasileiro à liberdade sexual e reprodutiva da mulher. Com isso, ocorre verdadeira mitigação da autonomia e liberdade de autodeterminação da mulher, os quais deveriam ser intrínsecos a todo humano.
A criminalização do aborto dá sinais de ser um sintoma de um grande e antigo mal da sociedade brasileira, o posicionamento da mulher como “simples meio”, e não como “fim em si mesmo”.
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SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista Brasileira de Direito Animal. pgs. 69-94. Núm. 3, Junho 2007.
SEMIÃO, Sergio Abdalla. Os direitos do nascituro: aspectos cíveis, criminais e do biodireito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2015
VALESCO, Clara. Em 10 anos, Brasil ganha mais de 1 milhão de famílias formadas por mães solteiras. G1. 14 de maio de 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/em-10-anos-brasil-ganha-mais-de-1-milhao-de-familias-formadas-por-maes-solteiras.ghtml
Graduando do curso de Direito na Universidade Federal do Amazonas
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Vitor Souza da. Direitos do nascituro e os direitos reprodutivos da mulher: quando os princípios entram em rota de colisão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 ago 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59029/direitos-do-nascituro-e-os-direitos-reprodutivos-da-mulher-quando-os-princpios-entram-em-rota-de-coliso. Acesso em: 23 dez 2024.
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